P E D R O AV E L A R
HISTÓRIA DE GOA
D E A FONSO
DE
A LBUQUERQUE
A
VASSALO
E
S ILVA
ÍNDICE
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Um: Goa, Roma do Oriente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1.1. A conquista de Goa por Afonso de Albuquerque .
1.2. A política de casamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1.3. As populações locais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1.4. A cabeça do Estado Português da Índia . . . . . . . .
1.5. A cristianização de Goa e o papel da Inquisição .
1.6. São Francisco Xavier, apóstolo das Índias . . . . . .
1.7. A colonização linguística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1.8. Camões em Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Dois: O domínio espanhol e os novos impérios
europeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
2.1. Ascensão dos Holandeses e Ingleses nas grandes
rotas comerciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
2.2. A viragem para Macau e Brasil . . . . . . . . . . . . . . . 126
Três: A decadência de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
3.1. Novas conquistas e ampliação do território
de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.2. As políticas pombalinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.3. Motins e conspirações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.4. Bocage em Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.5. A ocupação inglesa e a extinção da Inquisição . . .
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Quatro: Do período liberal à Primeira República . . . . 175
4.1. A Igreja em conflito: entre o Vaticano
e o Padroado de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
4.2. As epidemias e a passagem de Velha Goa para
Pangim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
4.3. A arquitectura colonial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
Cinco: O Estado Novo e o conflito luso-indiano
(1947-1961) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
5.1. Gilberto Freyre em Goa: o luso-tropicalismo . . . . 243
5.2. Crise nas relações entre o regime e o episcopado:
deterioração das relações entre o Estado e a Igreja . 253
5.3. A invasão de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289
Sofala (1502)
Moçambique (1502)
Melinde Lamu
Pemba Mombaça
Zanzibar
Quiloa (1502)
Mogadíscio
Oceano Índico
Colombo (1510)
Damão (1559)
Mascate(1508) Diu (1536)
Baçaim (1533)
Bombaim (1530) Chaúl (1522)
Goa (1510)
Adém
Mangalor (1565)
Socotará
Cananor (1502)
Jafna (1519)
Cochim (1502)
Ormuz(1507)
Pegu
Sião
Malaca
(1511)
Lampacau (1554) Macau (1557)
Suchau (1547-1549)
Liampó (1533-1545)
Presença portuguesa no Índico, século XVI
Goa, costa ocidental da Índia
MAHARASHTRA
Perném
Perném
Mapusa
Bicholim
Satari
Bicholim
Valpoi
Pangim Velha Goa
Pondá
Mormugão
Pondá
Sanguém
Margão
Salcete
Mar Arábico
Sanguém
Quepém
Quepém
Canaconá
Canaconá
KARNATAKA
Bardez
UM
G OA , RO M A D O O R I E N T E
Goa teve tanta importância no império colonial de Quinhentos, que a Coroa portuguesa chegou a imaginá-la como
uma réplica de Lisboa. Se esta última era a capital do Império
no Ocidente, Goa seria a capital do Império no Oriente.
A arquitectura político-administrativa de Goa – um vice-rei,
um Conselho de Estado, um Tribunal da Relação, um Conselho da Fazenda, uma Alfândega, uma Mesa da Consciência
e Ordens – e a estrutura eclesiástica – que em 1557 ascendeu
ao estatuto de arcebispado e em 1560 instituiu o Tribunal do
Santo Ofício – eram semelhantes à da metrópole.
Responsável directo por aquele centro administrativo,
económico, militar, político e religioso, o vice-rei da Índia
portuguesa era o representante do rei de Portugal naqueles
territórios, estando por isso investido de poderes régios, como
os poderes de punição, de deportação, de desterro e de expropriação. Eram tantos os poderes do vice-rei (e do bispo),
que o reitor do Colégio dos Jesuítas, padre António Gomes,
escreveu na altura: «cá o bispo hé papa e o governador rey».
O cargo exercia tal atracção, que começou progressivamente
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HISTÓRIA
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GOA
a ser disputado pelos fidalgos das principais casas nobiliárquicas.
A prosperidade que alcançou no século XVI, pela sua condição de entreposto do comércio para diferentes pontos
da Ásia e da África Oriental, deu origem ao «mito da Goa
Dourada». Mito porque o Estado Português da Índia seria
rico mas apenas para os padrões europeus – o reino mogol,
por exemplo, era muito mais abastado –; o mesmo em relação à cidade de Goa, que numa perspectiva europeia podia ser
grande mas no contexto indiano não era mais que uma urbe
de média dimensão (as três grandes cidades da Índia, por
volta de 1600, eram Deli, Agra e Lahore, cada qual com cerca
de meio milhão de habitantes; as cidades europeias eram
muito mais pequenas: em 1600 Nápoles tinha 200 mil pessoas, Roma 110 mil, Londres 170 mil, Madrid 60 mil e Lisboa,
mesmo em 1629, não passava das 110 mil).
Fosse como fosse, durante o século XVI, Goa foi a mais
importante colónia portuguesa, tanto em termos políticos,
como em termos religiosos e comerciais. Daí ter recebido o
distintivo epíteto de «Roma do Oriente».
1.1. A conquista de Goa por Afonso de Albuquerque
Dez anos antes da conquista de Goa, já os Portugueses
circulavam no Índico, porém, faziam-no sobretudo a bordo
das naus ou nas feitorias. A ameaça muçulmana a isso obrigava. Daí que o controlo do território de Goa fosse vital para
as aspirações lusas. Goa, pela sua situação geográfica, era um
porto de abrigo com condições únicas de segurança para as
frotas e constituía um centro de operações que facilitaria o
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DO
ORIENTE
policiamento daquelas zonas costeiras. Afonso de Albuquerque parece tê-lo percebido melhor que ninguém.
Albuquerque viajou pela primeira vez ao Oriente em 1503,
com o objectivo de pôr os Portugueses a dominar o comércio
da região – em particular das especiarias –, o que obrigava,
desde logo, a controlar a navegação no Índico, nomeadamente
através da conquista dos portos que serviam de correia de
transmissão de todas as operações mercantis. Em Setembro
de 1505, visando reforçar essa estratégia, D. Manuel I nomeou
D. Francisco de Almeida vice-rei da Índia. As ordens eram
muito claras: construir feitorias no litoral, o ponto de partida
para se conseguir o monopólio do comércio marítimo. Dando
sequência à política da realeza, Albuquerque estabeleceu fortalezas em Cochim, naquele que seria o primeiro assentamento europeu na Índia e o motor de arranque da expansão
portuguesa no Oriente.
Regressado a Portugal em Julho de 1504, Albuquerque
foi gloriosamente recebido por D. Manuel. Aquela primeira
missão na Índia causara tão boa impressão na corte lisboeta,
que o rei não dispensou os seus conselhos na hora de traçar
a futura estratégia para o Oriente, em particular esta: Portugal
deveria manter uma frota naval, a título permanente, no Índico
Ocidental. Só assim conseguiriam submeter o rei de Calecute.
Não surpreende, por isso, ver Albuquerque, no início de 1506,
a rumar novamente à Índia, tendo-lhe sido atribuída uma
esquadra de cinco navios na armada de Tristão da Cunha,
constituída por um total de 16 embarcações. O primeiro
objectivo era conquistar Socotorá e edificar aí uma fortaleza,
que passaria a controlar o comércio no mar Vermelho. O que
poucos sabiam era que Albuquerque, entre os seus pertences,
levava uma carta selada pelo rei designando-o, após o cumpri-
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HISTÓRIA
DE
GOA
mento dessa primeira missão, sucessor do vice-rei D. Francisco de Almeida. Após algumas escaramuças com os árabes
da costa oriental africana, Tristão da Cunha e Afonso de
Albuquerque chegaram a Socotorá em Agosto de 1507 e,
tendo-a conquistado, iniciaram a construção de uma fortaleza.
A partir dali, os destinos de ambos seguiriam caminhos diferentes. O primeiro foi directamente para a Índia, para dar apoio
aos Portugueses sitiados em Cananor; o segundo avançou em
direcção à ilha de Ormuz, no golfo Pérsico, com uma frota
de seis naus, uma fusta e quinhentos homens (Ormuz era outro
centro nevrálgico do comércio no Oriente). Quando foi avistado em Ormuz, a 26 de Setembro de 1507, Albuquerque
levava consigo a reputação de adversário de respeito – pelo
caminho conquistara várias cidades árabes, como Mascate,
Curiate, Corfacão e Soar –, o que explica, em parte, que o rei
local tivesse logo concordado submeter-se à autoridade do
Terribil Português, também conhecido por Leão dos Mares ou
César do Oriente.
Sem perder tempo, Albuquerque ordenou a construção do
Forte de Nossa Senhora da Vitória (posteriormente designado Forte de Nossa Senhora da Conceição), que teve início a
24 de Outubro de 1507, com a colocação da primeira pedra.
Porém, em resultado do mau ambiente entre os oficiais portugueses, obrigados a participar nos trabalhos de construção
debaixo de condições de subsistência duríssimas, vários capitães revoltaram-se e desertaram, levando consigo todos os
mantimentos e quase todas as naus. Reduzido a dois míseros
navios, em território hostil, cercado por forças inimigas que
tinham aparecido em socorro do rei de Ormuz, Albuquerque
teve de abandonar a cidade, em Abril de 1508, e dirigiu-se para
Socotorá, onde foi recebido pela igualmente esfomeada e débil
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GOA, ROMA
DO
ORIENTE
guarnição portuguesa. Se queriam sobreviver, tinham de recorrer novamente à força e à violência: pilhar navios e cidades
muçulmanas.
Entretanto, acabara de chegar de Portugal a armada de
Jorge de Aguiar com a ordem de o vice-rei passar o governo
a Afonso de Albuquerque e regressar imediatamente ao reino.
Albuquerque foi então para a Índia, onde chegou em Dezembro de 1508, a terras de Cananor, e onde estavam D. Francisco
de Almeida e os capitães desertores. Assim que ali chegou, e
na presença de D. Francisco de Almeida, Albuquerque mostrou o documento do rei designando-o a autoridade máxima
na Índia. Almeida, que por portas travessas já tivera conhecimento daquela ordem, recusou-se a deixar o cargo, argumentando que o seu mandato só terminava em Janeiro de 1509.
Além disso, queria vingar o seu filho, D. Lourenço de Almeida,
morto na Batalha de Chaúl pelos árabes do almirante Mirocem. Era um imperativo de consciência, sem isso nunca mais
teria paz. Em contrapartida, propôs a Albuquerque o pagamento pelo cargo de governador enquanto ele ia combater
o Mirocem (no que seria a Batalha de Diu, ocorrida nesse ano
de 1509).
Não querendo enfrentar-se abertamente ao ainda vice-rei,
Albuquerque aceitou e retirou-se para Cochim. Restava-lhe
esperar. E suportar, por um lado, a animosidade dos oficiais
da confiança do vice-rei, que tudo fizeram para o desinteressar do futuro cargo, e, por outro lado, os conselhos dos camaradas de armas, que o desafiavam a assumir o poder pela força.
Porém, nada demoveu Albuquerque, que resistiu a todas as
solicitações e emboscadas. Ali ficaria pacientemente a aguardar novidades. Estas surgiram em Agosto e pela voz do próprio Francisco de Almeida. Engrandecido pela vitória sobre
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HISTÓRIA
DE
GOA
os otomanos e os mamelucos egípcios, que perante a fúria
de vingança do português se viram forçados a abandonar
o Índico, e aconselhado pelos capitães e outros senhores da
sua confiança – que inclusivamente forjaram algumas cartas
dirigidas ao vice-rei ainda em funções e atribuídas ao Leão dos
Mares –, Francisco de Almeida enviou Albuquerque para a
Fortaleza de Santo Ângelo, em Cananor. A esta desconsideração se referiu Albuquerque com amargura numa das cartas
que enviou a D. Manuel:
Confiado em vossos poderes, vim à Índia, e com eles me
atacam, e me puseram em prisão e torre de menagem, guardado e velado, e vilmente arrebatado de minha casa e levado!
O objectivo era claro: isolar Albuquerque, mantê-lo afastado dos manejos do governo. Ali ficou desterrado até Outubro de 1509 – as casas onde habitara em Cochim tinham sido
destruídas, como era comum fazer-se aos réus acusados de
alta traição, e os seus bens confiscados –, mês em que chegou
a Cananor o marechal do reino, D. Fernando Coutinho, que,
além de ser o fidalgo mais importante do reino que pisava
aquelas terras do Oriente, era seu familiar. Desembarcou com
uma armada de 15 naus e três mil homens, enviados pelo rei
para fazerem valer a ordem de entregar o governo a Afonso
de Albuquerque e conquistarem Calecute. O vice-reinado de
Almeida tinha os dias contados: a 4 de Novembro, superadas
todas as intrigas, conspirações e invejas, Albuquerque recebia finalmente o singelo título de governador do Estado da
Índia Portuguesa.
A política que Albuquerque perspectivava para aquela região
era bem diferente, se não oposta, à que Francisco de Almeida
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GOA, ROMA
DO
ORIENTE
levara a cabo. Se a obsessão deste era o domínio marítimo,
Albuquerque concentrar-se-ia na edificação de uma série de
fortalezas em pontos estratégicos da costa, pois só assim seria
possível expulsar os mouros, controlar o comércio do Índico
e fundar um império português no Oriente. O primeiro passo,
segundo as ordens vindas de Lisboa, era a tomada de Calecute. Chegados ali, gulosos com a perspectiva do saque, os
oficiais liderados por D. Fernando Coutinho entraram imprudentemente na cidade e sofreram uma emboscada. Obrigado a intervir para os salvar, Albuquerque foi ferido e teve
de recuar.
Após o desastre de Calecute, instalado novamente em
Cochim, Albuquerque tratou de reforçar a sua armada para
empreender nova batalha contra os infiéis. Reunidos 23 navios e 1200 homens, dirigiu-se para a costa do Malabar, possivelmente para reconquistar Ormuz ou derrotar os mamelucos egípcios do mar Vermelho. Porém, quando já estava na
barra de Onor, alguns informadores locais inimigos dos maometanos – parece que um de nome Timoja, chefe hindu de
Canará – comunicaram-lhe que a frota dos mamelucos estava em Goa, em cujos estaleiros tentava reorganizar-se com
o objectivo de perseguir os Portugueses e acabar com os seus
dias. Havia assim que eliminar, quanto antes, aquela ameaça.
Caso saíssem vitoriosos, herdariam uma cidade próspera e com
um enorme valor estratégico, já que por ali tinha de passar
obrigatoriamente o comércio do Índico Ocidental e do golfo
Pérsico, bem como todos os mercadores que se dirigiam para
a entrada do mar Vermelho. A seu favor, o ódio dos indígenas
ao governo tirânico e cruel dos maometanos e as disputas
políticas entre os chefes do exército (tratava-se de um terri-
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HISTÓRIA
DE
GOA
tório dividido em várias soberanias, controladas sobretudo
por príncipes muçulmanos). Para Goa, pois, e em força!
Em Fevereiro de 1510, sem que ninguém estivesse à espera, Albuquerque apareceu no porto de Goa com a sua frota.
A primeira investida ficou a cargo de D. António de Noronha,
seu sobrinho, que atacou e tomou, quase sem resistência do
inimigo, a fortaleza de Pangim, situada à entrada da barra
(mais tarde Palácio do Governo), abrindo assim caminho à
entrada dos Portugueses. Com o sultão ausente, em guerra
no Decão, a rendição foi instantânea: os mouros mais importantes ajoelharam-se e ofereceram a Albuquerque as chaves da fortaleza. Montados a cavalo, bandeira portuguesa
ao alto e uma grande cruz transportada pelos dominicanos,
Albuquerque e os seus entraram na cidade ao som das músicas das trombetas e dos tambores. Vitoriado pela multidão,
que o ia cobrindo de flores, o novo senhor de Goa cruzou
as muralhas da cidade e dirigiu-se ao palácio do xá Adil.
Seguiram-se depois Salcete e Bardez, que também se deixaram subjugar pacificamente.
Uma vez em Goa, depois de analisada a posição do seu
porto, que estava situado num vasto estuário, ainda mais convencido ficou Albuquerque da relevância estratégica daquela
cidade, tanto ao nível do comércio marítimo como do comércio com o interior do subcontinente indiano. Rodeada
por rios e encravada no extremo sul da costa do Concão, num
espaço de 3611 quilómetros quadrados, a ilha, além de fácil
defesa, servia de porto de abrigo para os navios na época das
terríveis monções e constituía uma posição-chave em todo
o raio de acção do comércio do Índico Ocidental, nomeadamente entre Kerala e o Guzarate. O que permitiria aos Portu-
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GOA, ROMA
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ORIENTE
gueses controlarem todo o Noroeste do mar Arábico e, recorrendo às frotas sediadas em Goa, dominarem toda a área
económica entre o Malabar e o Guzarate. O sítio ideal para
lançar as bases do futuro sistema imperial português.
Na verdade, apesar do despotismo muçulmano, o Estado
de Goa era próspero e opulento, gozava do estatuto de grande
empório comercial exercendo um grande poder de atracção
sobre indivíduos provenientes de todos os pontos do vastíssimo mundo do oceano Índico. Enquanto ali se instalavam,
os Portugueses depararam com o espectáculo de uma sociedade organizada, estabelecida numa cidade bem construída,
com edifícios, praças e jardins de arquitectura notável, como
o palácio do xá Yusuf Adil Khan (Hidalcão), reputado pelos
espaçosos e cómodos salões, pela arte da madeira lavrada e
pela magnífica colecção de plantas aromáticas. Além disso,
a pujança comercial, bem visível nos bazares, onde se negociava arroz, açúcar, ferro, pimenta, gengibre e outras especiarias, na actividade das ourivesarias, as mais prestigiadas em toda
a Índia, nos registos dos estabelecimentos aduaneiros, que
geravam enormes receitas, nos haréns de odaliscas e no florescente comércio de cavalos importados de Ormuz, cobiçados por todas as forças de cavalaria e infantaria. Percebe-se
assim que Goa, antes da chegada dos Portugueses, tivesse
sido cobiçada por muitos povos e por diferentes dinastias
de reis e imperadores que a invadiram com os seus exércitos.
Imediatamente Albuquerque reconstruiu a fortaleza e mandou cunhar moedas de prata e de cobre, numa das faces com
a cruz de Cristo e na outra com a esfera armilar de D. Manuel.
Três meses depois, estava ainda Albuquerque a traçar a nova
organização de Goa e o novo governo das terras e dos habi-
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HISTÓRIA
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GOA
tantes, o sultão Yusuf Adil Khan reuniu os seus milhares de
guerreiros e cercou a cidade. Queria a desforra. Estava-se no
mês de Maio de 1510, início do Inverno naquela região (que
decorre entre Junho e Setembro e cujas chuvas das monções
inundam os territórios). O contra-ataque foi devastador, não
só porque as obras de fortificação da cidade estavam ainda a
meio, mas também devido à falta de solidariedade dos capitães portugueses, divididos em discórdias e lutas de interesses,
considerando uma loucura permanecer em Goa à espera dos
reforços que deveriam chegar de Cochim. Resultado: Albuquerque ofereceu fraca resistência e a 23 de Maio, depois de
rejeitarem a paz que o Hidalcão lhes oferecera, os Portugueses
foram avistados a abandonar a cidade recém-conquistada de
Goa e a refugiar-se na sua frota, fundeada no rio Mandovi.
Aí permaneceram ancorados durante o Inverno, dispondo de
poucos mantimentos e passando as maiores privações (a miséria era tal, que até ratos e couro tiveram de comer).
No limite das suas forças, os Portugueses aproveitaram
uma melhoria das condições meteorológicas e a 15 de Agosto
partiram primeiro para a ilha de Angediva – durante a viagem
receberam o reforço de 10 navios enviados de Portugal e depois a notícia de que o príncipe árabe tivera de ausentar-se
novamente de Goa – e depois para Cananor, para aí reorganizarem as forças e prepararem a estratégia da reconquista.
De repente, Goa tornara-se o objectivo mais importante dos
Portugueses, talvez porque a encarassem já como a futura
cabeça do império luso no Oriente. O entusiasmo de Albuquerque era notório quando escreveu ao rei D. Manuel, a
17 de Outubro de 1510. Descrevia Goa como uma «Ilha cercada de água, de muita renda e muito proveitosa; barra de
muita água, porto morto de todos os ventos, ilha de muitos
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GOA, ROMA
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ORIENTE
mantimentos e muita criação, veados tantos que é uma coisa
de espanto». E continuava:
Senhor, as coisas de Goa são tão grandes, que tocam tanto à
segurança da Índia e a tudo o que nos compre e desejais, assim
para gastos, despesas oficiais, madeira, ferro, salitre, linho, arrozes, mercadorias, roupas de algodão, que me parece que sem ela
não poderei suster a Índia, porque os calafates e carpinteiros com
mulheres de cá e trabalho em terra quente como passa um ano
não são mais homens, e com Goa pode Vossa Alteza escusar os
desses Reinos, porque há mais e melhores que os que cá andam…
Reunida uma armada de 28 navios tripulados por 1700 homens, mais as tropas de Timoja (soberano do território de
Onor, aliado dos Portugueses e inimigo dos Maometanos)
e do rajá de Garsopa (o eixo de um dos Estados do rei de
Bisnagar e relativamente próxima de Onor), partiram os Portugueses para nova batalha. A meio caminho, Albuquerque
ordenou escala na ilha de Angediva, para reunir os capitães
e fidalgos e consciencializá-los da importância da reconquista
da cidade de Goa. Por fim, a 24 de Novembro, a frota entrou
no porto de Goa e fundeou no vale de Banguinim. No dia
seguinte – segunda-feira, dia de Santa Catarina de Alexandria,
que por isso foi nomeada padroeira de Goa –, deu-se o ataque.
Após violento combate, enquanto alguns Portugueses subiam
às muralhas e sobre elas desfraldavam a bandeira das quinas,
outros forçavam a entrada nas portas da cidade. Quanto a
Albuquerque, estava posicionado com as suas forças num
monte vizinho, a partir de onde dirigia a contenda.
Pela segunda vez, a vitória era dos Portugueses, para o que
muito contribuiu quer a aliança com Timoja, quer a desor-
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HISTÓRIA
DE
GOA
ganização do inimigo, dividido internamente pelas lutas de
sucessão ao trono de Hidalcão, Yusuf Adil Khan, ou «Rei
de Goa», que morrera pouco antes. No momento do assalto,
quem ocupava o trono era o seu filho mais novo, xá Ismail
Adil, inexperiente nas coisas da guerra. A batalha foi especialmente sangrenta para os mouros, que sofreram grande
mortandade, cerca de dois mil homens (de um exército de
quatro mil soldados). Do lado português os registos apontam
para 40 mortes e cerca de 150 feridos.
Assegurado o triunfo, Albuquerque desceu do seu posto
e entrou na cidade, com a bandeira real a acompanhá-lo. Preparava-se para tomar posse de Goa, que passava assim a ser
governada por cristãos europeus e pouco depois se converteria no centro regional de um império marítimo. Para afirmar
o seu poder e como exibição de força bruta, Albuquerque
quis ser exemplar nas primeiras medidas, ordenando a matança cruel de todos os muçulmanos acusados de refractários
ou considerados factores de perturbação da ordem pública.
Dando rédea livre à sua sede de vingança, os Portugueses saquearam a seu bel-prazer e assassinaram mais de seis mil seres
humanos, entre homens, mulheres (algumas delas grávidas)
e crianças de ambos os sexos, e destruíram e arruinaram muitas famílias. Muitos muçulmanos foram queimados vivos nas
mesquitas ou lançados aos crocodilos – também chamados,
na época, «lagartos de água» – e outros tantos foram massacrados sem dó nem piedade enquanto tentavam escapar.
Nos anos seguintes, os maometanos ainda fizeram algumas
investidas com o intuito de recuperar Goa, porém, nunca foram
bem-sucedidos. A área conquistada por Albuquerque em 1510,
designada simplesmente como «Ilhas», tinha 166 quilómetros
30
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HISTÓRIA DE GOA