Projeto editorial e concepção visual nas
capas de Sandman: um estudo de caso em
“Prelúdios e Noturnos”
Amaro Xavier Braga Jr.1
(UFPE/UFAL)
Resumo
O artigo analisa, a partir de elementos de sintaxe visual e análise imagética, o processo de editoração
das capas de “Prelúdios e Noturnos”, primeiro arco da série em quadrinhos Sandman, apresentando a
concepção editorial presente nas capas e buscando estabelecer uma taxionomia do processo criativo
na concepção das capas de histórias em quadrinhos. Relaciona as múltiplas influências das artes
visuais, como o neodadaísmo e a assemblage, às técnicas utilizadas pelo artista. Conclui destacando
como o conceito de montagem é importante para compreender a relação entre as capas das HQs e os
conteúdos das histórias nestas revistas.
Palavras-chave: Estética; Quadrinhos; Projeto gráfico de capas
Abstract
The article analyzes, from visual syntax elements and imagery analysis, the process of publishing
Preludes and Nocturnes covers, the first arc of Sandman comic series, featuring the design on the
covers and this editorial seeking to establish a taxonomy of the creative process in designing the covers
of comics. Lists the multiple influences of the visual arts, as neodadaism and assemblage, techniques
used by the artist. Concludes by highlighting how the concept of assembly is important to understand
the relationship between the covers of comics and content of the stories in these magazines.
Keywords: Aesthetics, Comics, Graphic design covers
Introdução
N
eil Gaiman e seu personagem Sandman compartilham um espaço na
galeria da fama do universo das histórias em quadrinhos. O primeiro, por
alimentar o imaginário de milhares de fãs do universo de super-heróis,
1. Produtor Cultural e Quadrinista. Possui seis álbuns em quadrinhos publicados. É bacharel e licenciado
em Ciências Sociais, com especialização em História dasArtes e emArtes Visuais. Mestre e Doutorando
em Sociologia. Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
[email protected], http://axbraga.blogspot.com.br
Projeto editorial e concepção visual nas capas de Sandman:
um estudo de caso em “Prelúdios e Noturnos”
cuja assinatura no roteiro foi responsável por histórias inesquecíveis; e também por criar
ícones da cultura underground ressignificados nos álbuns desenhados. Já o personagem
Sandman incorporou, através da aventura fantástica, enredos que misturavam o cenário
punk-gótico da década de 80, os movimentos de misticismo e ocultismo da segunda
geração da new age com um material gráfico repleto de inovações estéticas que tornaram
o selo “Sandman” um dos maiores exemplos de sucesso comercial e criativo nos
quadrinhos. Histórias fechadas, variações nos desenhos e pinturas que não deixariam a
desejar em nenhuma galeria de arte, aliadas a uma estratégia de composição cênica que
ambientava os valores sociais, as descobertas e os interesses presentes no campo social
em que produzia e comercializava suas histórias em quadrinhos (HQs), foram o foco de
análise em um trabalho anterior (BRAGA Jr., 2009). Entretanto, durante sua produção,
não foi possível analisar as capas das revistas, ficando a análise restrita ao miolo dos
álbuns. As capas resultaram em outro trabalho, ainda mais amplo2, cujo primeiro
capítulo, compõe, em parte, este artigo. Desta forma, este trabalho dá continuidade à
análise imagética da revista em quadrinhos Sandman, privilegiando exclusivamente as
capas. Os diagramas das capas, sinais, logotipos, tipografia, malha gráfica, as relação
espacial entre as composições, texturas e demais elementos típicos de analise editorial
serão retomados aqui com o intuito de identificar as inovações no projeto gráfico da
revista e o processo de concepção visual utilizado pelo artista responsável pela primeira
série de capas da revista.
O projeto gráfico tende a ser o conjunto de indicações gráficas que compõe um
produto midiático e lhe impõem uma identidade visual. Muitas vezes, esta situação
decorre da própria logomarca do produto; no entanto, outros critérios podem ser
utilizados para induzir no expectador esta identificação. Estes critérios, apresentados
no decorrer deste trabalho, foram largamente utilizados pelos capistas de Sandman
ao compor sua identidade visual, atribuindo às capas das histórias em quadrinhos um
novo patamar de reconhecimento e criação. Identificar estes elementos permitirá os
diretores de arte e profissionais de produção gráfica, sem falar nos próprios produtores
2. Refiro-me a um trabalho monográfico, ainda inédito, intitulado: “Produção Editorial e Concepção
Visual nas capas dos quadrinhos de Sandman”.
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de quadrinhos, alimentar os critérios que lhes permitam produzir com mais qualidade
suas produções sequenciais.
A análise das imagens se estrutura metodologicamente a partir da grelha de
análises proposta por Laurent Gervereau (2004) que privilegia a descrição (das técnicas,
dos estilos e dos temas), o estudo do contexto (contexto a montante e a jusante) e a
interpretação (com suas significações iniciais e posteriores, do balanço e apreciações).
A seguir nos deteremos nos projetos editoriais encontrados nas capas do primeiro
arco de histórias da revista Sandman.
Das capas e seu processo gráfico
Durante as 75 edições de Sandman, foram produzidos dez arcos3 de história:
“Prelúdios e Noturnos” (Ed.1 até 9); “A Casa de Bonecas” (Ed. 10 até 16); “Terra dos
Sonhos” (Ed. 17 até 20); “Estação das Brumas” (Ed. 21 até 28); “Espelhos Distantes”
(Ed. 29 até 31); “Um Jogo de Você” (Ed. 32 até 37); “Convergências” (Ed. 38 até
40); “Vidas Breves” (Ed. 41 até 49); “Espelhos Distantes” (Ed. 50); “Fim do Mundo”
(Ed. 51 até 56); “Entes Queridos” (Ed. 57 até 69); e, finalizando, “Despertar” (Ed.
70 até 75).
Em cada um destes arcos nota-se um perfil particular de construção
das capas, seguindo um padrão de identificação, composição, distribuição
e
síntese
das
temáticas
contidas
nos
arcos.
A
seguir,
procurar-se-á
traçar os elementos gráficos que compuseram as criações do primeiro dos arcos descritos
acima: “Prelúdios e Noturnos”.
Na primeira sequência de histórias de Sandman, o arco Chamado “Prelúdios e
Noturnos”, as capas da 1ª até a 9ª edição (Figs. 1 a 9), idealizadas pelo artista gráfico
Dave Mckean, se constroem a partir de uma sequência de montagens que se utilizam de
uma gama muito variada de elementos, mas, predominantemente da fotografia. Numa
composição vertical, três conjuntos de imagens se organizam em sentido complementar
3. Um Arco é um subenredo por onde se desenvolve a história. Estes arcos são processo de
concepção ficcional que emolduram em cada bloco, um determinado padrão: temático, dialógico,
visual e estético.
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aos conteúdos das histórias contidas em cada volume. No centro de cada imagem,
elementos figurativos se organizam centralizados, em sua maioria em plano médio, iniciando
pela imagem do sonho (o próprio Sandman) e seguidos pelos personagens de centralização
temática de cada história. Ladeando-as, dois retângulos estreitos organizam uma série de
quadrados em forma de estante onde se listam peças, quadros, objetos e elementos dos
mais diversos, cada qual com referência aos conteúdos das histórias contidas em cada
volume. Ilustrações, gravuras, raios-X, papéis rasgados e queimados e até folhas de plástico
se incorporam na construção destas imagens: uma nítida configuração de montagem
esteticamente organizada evitando uma sensação de profusão.
Nota-se ainda a insistência do artista que concebe as imagens no uso de recursos
de técnicas suaves de impressão: lápis e pastel seco, aliados aos dégradés em tons
pastel e com transparência e sobreposição de imagens, configurando o sentido onírico
muito recorrente nas histórias desta HQ, recorrentemente introduzido na história e na
concepção das personagens.
A logo do nome da revista – “Sandman” – é distribuída pelas nove edições sem que
haja mudança da fonte e de sua disposição, porém impondo-lhe uma variação cromática
que dialoga de maneira a contrastar com os padrões visuais de toda a página. Aspecto
bem regular no que tange a diagramação de impressos:
A maioria das revistas passa a determinar alguns componentes visuais mínimos
que se repetem de um número para o outro. Geralmente, o nome da revista,
através de seu logo, é o elemento mais estático. A estratégia mais usual é determinar
um lugar e um tamanho específico para esse logo. As variações ficam, quando
acontecem, por conta da alteração de cor para se adaptar ao restante da capa, e
às vezes, varia-se a localização do logo. (KOPP, 2002, p.6)
Também se insere no contexto uma abertura e fechamento da área visível,
demarcada com dois retângulos de igual temperatura cromática: um no topo da revista,
demarcando o espaço do título e outro na base, demarcando os nomes dos autores.
Esta variação cromática não é de forma aleatória: “A cor está, de fato, impregnada
de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em
comum. Constitui, portanto, uma fonte de valor inestimável para os comunicadores
visuais, [...]” (DONDIS, 1997, p. 108). Esta consciência dos pigmentos permeia toda
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a concepção visual do álbum e entre as capas selecionadas, destaca-se as edições 6
(Fig. 6) e 8 (Fig. 8). Na primeira, uma grande área esverdeada de uma visão noturna
ou de um negativo de fotografia, imprimindo nos retângulos de topo e de base uma
tonalidade rosa choque, isto é, complementar a centralidade cromática presente no
trabalho. Esta situação se inverte na oitava edição, onde uma confluência de matizes
verdes e anil preenche a centralidade da imagem, imprimindo aos retângulos sua
tonalidade complementar: o vermelho.
Outro detalhe interessante na composição destas capas se deve ao contrates
de elementos antagônicos, caráter decisivo não só na criação das capas, mas na
percepção da linguagem visual da série. Não é difícil entender o porquê da busca
por este particular processo de criação:
No processo de articulação visual, o contraste é uma força vital para a
criação de um todo coerente. Em todas as artes, o contraste é um poderoso
instrumento de expressão, o meio para intensificar o significado, e,
portanto, simplificar a comunicação. (DONDIS, 1997, p. 108)
E, ainda que “os designs visualmente interessantes que costumam atrair (...)
[a] atenção têm, em geral, bastante contraste (...)” (WILLIANS, 1995, p. 75). Uma
das maneiras mais simples de realizar o contraste é através do tom ou valor (o
grau de luminosidade entre escuro e claro), isto é, as propriedades da intensidade
da cor, suas matizes (a variação de cor pelo espectro de luz) e seus cromas (o grau de
intensidade e saturação da cor). Estas três características, baseadas no Sistema de
Munsell, terminam por definir as propriedades da cor e são por elas que se produz,
inicialmente, os contrastes. Entretanto, não apenas pela cor que se detém o contraste.
As formas também a impulsionam, devido a uma regularidade ou irregularidade de
sua constituição e também devido aos seus níveis de textura que podem intensificar
ou não uma situação de contraste. E por último, a escala, isto é, a posição e o
tamanho dos objetos dispostos em uma composição (MARINE, 2005).
Os três tipos de contraste podem ser percebidos nas edições 1, 2, 3 e 4 (Fig. 1 a
4, respectivamente), que são organizadas da seguinte forma: imagens centrais grandes
dissolvidas e transparentes, com traços ricos em ranhuras e riscados que são emoldurados
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por imagens fotográficas nítidas, pequenas e facilmente identificadas no entendimento
da forma. Assim se contrasta nitidez e opacidade. Macro e micro. Real e surreal. Na
edição 5 e 6, claridade e penumbra se alternam. Definição e nebulosidade. No número
5, a imagem central é turva e polarizada em micro quadrados, as imagens que ladeia
são nítidas e densas. No numero seguinte, a imagem central é escura e opaca, porém as
imagens ao lado são claras e nítidas, inclusive duas delas criam a sensação de linha e
demarcam o meio da página por terem em suas áreas espaços em brancos que explodem
ao lado das áreas escuras abaixo das mãos. Já nas edições 6 e 9, há uma sobreposição
de claridade e escuridão. Na primeira pelo retângulo em preto que é preenchido por um
dorso colorido, sobreposto à imagem clara do busto figurativo, porem em preto e branco.
Na última edição o mesmo elemento se repete com outra configuração: uma mulher
negra é vestida de branco e de seu lado oposto um homem branco é vestido de preto,
criando uma sintonia verticalizada de alto valor de contraste e que inter-relaciona estes
dois elementos, altamente significativos para a história, revelando-nos a capacidade de
criação contida nestas capas e poder comunicacional-interpretativo, isto é, semiótico.
As funções de uma capa podem ser expressas da seguinte forma: “a capa da revista
deve revelar em parte o seu conteúdo (ou seu espírito) e, sobretudo, atrair o olhado
do leitor, convidando-o a conhecê-la” (RIBEIRO, 2008, [s.p.]). Nestas nove capas de
Sandman, tal definição é levada a risca. A fragmentação das imagens das capas em
pequenas imagens montadas permite conduzir os sentidos e os símbolos aos conteúdos
das histórias dentro da revista. É um jogo de representações sintagmáticas e referenciais,
feito pelo artista criador (Dave McKean) e assinalada pelos leitores.
Na primeira edição tudo gira em torno do enigmático protagonista do título, o
senhor “Sandman” rei do sonhar. Não à-toa, seu busto rascunhado a lápis centraliza a
capa, ladeado de dez quadros que emolduram objetos, cujas referências de sentido se
ligam aos subenredos deste número. Este ladeamento vai se alternando entre poucos
ou muitos elementos, mas mantendo o mesmo processo de vínculo: o enredo principal
sempre aparece ladeado dos acontecimentos da história, circunscritos, visualmente, por
objetos de valor estético que os representa.
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Amaro Xavier Braga Jr.
Fig. 1 - capa da Ed. Nº 1 de
Sandman. Janeiro 1989.
© DC Comics .
Fig. 2 - capa da Ed. Nº 2 de
Sandman. Fevereiro 1989.
© DC Comics
Fig. 3 - capa da Ed. Nº 3 de
Sandman. . Março 1989.
© DC Comics .
Fig. 4 - capa da Ed. Nº 4 de
Sandman. . Abril 1989.
© DC Comics
Fig. 5 - capa da Ed. Nº 5 de
Sandman. . Maio 1989.
© DC Comics
Fig. 6 - capa da Ed. Nº 6 de
Sandman. Junho 1989.
© DC Comics
Fig. 7 - capa da Ed. Nº 7 de
Sandman. . Julho 1989.
© DC Comics .
Fig. 8 - capa da Ed. Nº 8 de
Sandman. Agosto 1989.
© DC Comics
Fig. 9 - capa brasileira da Ed.
Nº 9 de Sandman..Agosto 1990.
© Globo, DC Comics .
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Projeto editorial e concepção visual nas capas de Sandman:
um estudo de caso em “Prelúdios e Noturnos”
A técnica de produção das capas
A montagem, aliada a colagem, foi um grande propulsor de desenvolvimento
da plasticidade contemporânea, inúmeros artistas a partir de Picasso, passando
por Braque, Hausmann até Wahol, construíram linguagens próprias e particulares
utilizando estes princípios. Às vezes estas montagens se constroem com uma
articulação entre planos e linhas de materiais de naturezas diversas, mas que se
complementam na produção do artista, produzindo um diálogo, na maioria das
vezes decifrável pelo observador: “Montar é unir elementos com a finalidade de
se produzir um todo coerente, portanto a montagem é o resultado das combinações
e justaposições estabelecidas entre esses elementos” (SENAC, 2008, [s.p.]). A
coerência da montagem consiste em reunir signos que se comuniquem com um
sentido linear de leitura da imagem. Desvendado o sentido, muitas vezes orientado
pelo titulo ou contexto que se insere a obra, a coerência é conseguida. Podese enxergar a montagem como um concílio de várias visões plásticas sobre um
mesmo suporte de modo a estabelecer uma comunicação entre eles ou criarem um
sentido.
O último, e talvez mais recorrente dos sentidos da montagem, é aquele
associado ao cinema: onde a estrutura narrativa é construída por uma sequência
ininterrupta de cenas ou planos de imagem, anteriormente dispostos de forma
diferente. O esquema cinematográfico e posteriormente, o televisivo, que lhe
é complementar, produz uma grande efeito norteador: montar é o conduzir. A
montagem se configura na vídeo-arte e no cinema como os meios necessários
por onde a estética artística flui e é percebida pelo observador. Nos quadrinhos
a montagem é o coração da sequencialidade. Montar é justapor os quadros
desenhados em sequência. É criar o ritmo da história. É dar sentido ao inúmero
conjunto de imagens que lhes compõe.
Nas capas do Dave McKean a montagem aparece como recurso criacional.
Há uma justaposição entre desenho, pintura e fotografias, às vezes, materiais de
outras naturezas como o objeto real ou folhas de raio-x integram uma montagem
prévia. O resultado final sempre é uma fotografia do processo que ambientará
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a capa da revista em quadrinhos como uma ilustração. Talvez a linguagem da
montagem sobre montagem, presente nestas primeiras capas de Sandman, deveuse ao próprio processo criativo do McKean aliado ao perfil editorial da DC
Comics, editora dos álbuns. Estrutura revelada em entrevista pelo próprio artista:
Normalmente, o que eu costumava fazer era falar com o Neil [Gaiman]
sobre as tramas que estavam rolando e que iriam se desenrolar, e tentar
descobrir onde ele queria chegar. Neil acabava falando pelos cotovelos
enquanto eu fazia anotações visuais. Depois disso eu me retirava e fazia um
monte de capas de uma vez só, normalmente as quatro ou cinco que eram
necessárias para um determinado arco de histórias. O prazer de Sandman
estava no fato de que ele podia ir a qualquer parte e ser qualquer coisa, e
por isso as capas também podiam ter essa versatilidade e ser fotográficas,
colagens ou geradas por computador. [...] literalmente qualquer coisa com
a qual me deparava podia ser usada nelas de algum modo. [...] elas eram
uma mistura do resumo da trama, do que a história queria e daquilo que
eu estava gostando de fazer em cada período. [...] uma delas [das capas]
tinha um pedaço de porta que encontrei na estação ferroviária. [...] uma
outra capa que fez parte da serie inicial tinha correntes [...] [e] enormes
cadeados. (Dave McKean apud PITOMBO, 2010, p.176-177)
O recorrente uso da fotografia na construção das capas de Sandman, um
característico personagem de quadrinhos, desenhado, vai de encontro aos
parâmetros tradicionais das capas de quadrinhos, mesmo aquelas que são
underground. O uso da fotografia nestas capas parece remeter ao seu sentido
indexical, voltado completamente a marcar a existência concreta dos objetos e
sua realidade. Isso decorre do conjunto de representações: objetos corriqueiros
e do cotidiano representados por fotos e personagens humanos e fantásticos das
histórias da revista não-fotográfico, isto é, desenhados. Nas capas aparecem
fotografias de partes de corpos humanos, olhos, bocas, mãos e braços, mas sem
completude, fragmentados.
Estas fotos de partes de corpo e de objetos com funções ou usos deslocados
de suas bases tradicionais parecem refletir uma mimese de realidade. Uma
realidade traumática e perturbadora, vivenciada pelo artista e suas influências.
Em determinada entrevista, McKean chega a afirmar que suas capas “[...] são como
um diário daqueles sete anos, pois dizem onde eu estava em cada momento” (apud
PITOMBO, 2010, p.176). Ao que consta, parece ter sofrido a influência de vários
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artistas de vanguarda (de arte contemporânea) que se utilizam da fotografia para
reproduzir um contato traumático com a realidade, particularmente, no registro
de cenas abjetas e escatológicas. Podemos citar, como exemplo, no mesmo período
em que é produzida a capa da edição número 1, encontramos as amostras de Cindy
Sherman (Fig. 10) e Robert Rauschenberg (Fig.11), exibindo fotografias ricas em
closes com temas abjetos e perturbadores e fotomontagens temáticas impregnadas
de pigmento, respectivamente. É possível arriscar e concluir que a influência do
neodadaísmo norte americano parece muito evidente no trabalho de McKean.
Montagem, assemblage, colagens e fotografias entrecortadas de desenhos e tinta
sobreposta às imagens, constituídas a partir de referenciais da cultura de massa
permeiam toda sua obra e, particularmente, as capas de “Prelúdios e Noturnos”.
Fig. 10 - Sem Título #190, Cindy
Sherman, 1989. Fotografia Colorida.
248 x 185 cm
Fig. 11 - Soviet American Array I. Robert
Rauschenberg, 1988-1989. Fotogravura.
225.1 x 133.4 cm.
Com o sucesso editorial de Sandman e a constante ciranda das empresas
responsáveis pelos direitos de impressão aqui no Brasil, diversas capas foram
produzidas para a edição número 1. Em cada uma delas um exercício de variação de
composição foi feito, evitando assim pagar direitos autorais à editora anterior. Na
editora Globo, a primeira a publicar a versão brasileira (Fig.12), não há mudanças
estruturais em relação à edição original (Fig.1), salvo pela substituição da logomarca
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da DC pela da Globo. A segunda reedição (Fig.13) foi feita pela editora Pixel, sua
estratégia foi diminuir a composição gráfica da capa original e antecede-la do
título. Existe ainda um diferencial gráfico que foi o uso do verniz localizado sobre
a arte do
McKean.
Na terceira reedição (Fig.14), pela editora Brainstore, houve um
rearranjo radical: os elementos que ladeavam o desenho central foram retirados e o
busto desenhado em lápis e carvão foi estourado na página.
As decisões editoriais interferem, sobremaneira, na composição da capa. Mas
revelam seu elemento principal: o busto do protagonista com traços etéreos. Não
são apenas os traços de materiais suaves que imprimem sentido neste desenho em
particular.
Fig. 12 – Capa da 1ª ed. Brasileira
publicada pela Ed. Globo.
nov.1989.
© Ed. Globo, DC Comics.
Fig. 13 – Capa da 1ª ed.
republicada pela Ed. Pixel. 2008.
© Pixel, DC Comics.
Fig. 14 – Capa da 1ª ed.
republicada pela Ed.
Brainstore,
© Brainstore, DC Comics.
Apesar da aparente nitidez, os materiais utilizados foram tinta, carvão, nanquim
e lápis. De maneira tal que a superfície é completamente riscada com traços não
regulares e imprecisos, atribuindo ao desenho um ar tosco, inacabado, etéreo, mas
também confuso e poluído. Estes adjetivos, ao contrário do possa parecer num
primeiro momento, não atribuem ao material um aspecto negativo, ao contrário,
está tematicamente vinculado aos elementos do roteiro presentes no volume cuja
esta capa estampa. Esta aparente dicotomia é ratificada dentro do álbum por uma
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história desenhada com um traço muito irregular, com arte final rústica e bruta
e de composições muito poluídas, contrastando com o roteiro polido, denso de
referências intelectuais 4 e com uma narrativa bem estruturada.
Se retomarmos o fragmento da entrevista citada anteriormente (ver PITOMBO,
2006) no qual McKean revela que seu processo criativo, na construção das capas, é
feito pela produção de certo número de trabalhos baseados na mesma ideia ou com
inspiração muito próxima. Retomando entre as capas, as edições 1, 3 e 7 (Fig. 01, 03 e
07, respectivamente), podemos perceber que elas podem indicar um certo pleonasmo
imagético, pelo qual os principais elementos se repetem: o dorso da figura hominídea
masculina traçada em material transparente ou tangente, ladeado de fotografias de uma
série de objetos reais, fragmentados e estranhos. Inclusive na edição 7, o tracejado a
lápis é visivelmente um estudo daquele utilizado na edição 1. Isso indicaria que estas
capas foram aproveitadas do estudo original, isto é, dos estudos para a capa da primeira
edição? É provável.
Considerações finais
As histórias em quadrinhos seriadas costumam ter um projeto editorial limitado,
isto é, sem muitos recursos exaltantes ou variações ao longo de suas edições impressas.
Quando ocorrem variações, normalmente estão envolvidas com as mudanças editoriais
do nome da revista ou de seu conteúdo ou por uma mudança da editora responsável
pela publicação. Poucas editoras aventuram-se em projetos gráficos que penetrem
na linguagem dos quadrinhos e busquem uma inovação estética. É comum que estes
projetos estejam vinculados às propostas editoriais e certa hegemonia editorial dos
lançamentos da editora.
Pensar o projeto gráfico específico para os quadrinhos ou formular aspectos
4. Nas edições encadernadas publicadas pela Conrad e republicações da década e 90 é
possível encontrar posfácios escritos pelo próprio autor ratificando, pontuando e apontando este
enorme fluxo de referências presentes no arcabouço estético da HQ. Revelando-nos um dado
frequentemente apontado nos estudos de sociologia das histórias em quadrinhos: é inegável
que tais produções são ricamente compostas por valores ou axiomas, na terminologia de Viana
(2005), que nos revelam as intenções do autor e os vínculos com o período em que foi produzido.
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visuais que dialoguem com a linguagem sequencial impõe ao editor um árduo trabalho
de esclarecimento e ancoragem na desconstrução dos estereótipos. Acredito que foi
exatamente isto que tenha acontecido com as capas de Sandman. E, além do fator
plástico de sua concepção e produção, as capas de McKean revelam outro sentido para
capas de revistas em quadrinhos: elas quadrinizam a ilustração. A grande fragmentação
de elementos gráficos produz um ambiente cênico, uma verdadeira atmosfera
Tchékhoviana, que atribui sentido ao cenário. Os fragmentos assumem uma função
narrativa, se intercalma justapostamente, obrigando o leitor descomedido e produzir um
sentido teligível entre a sequência daqueles objetos. No fim, o que temos é uma capa,
que além de suas funções de capa, assume a função de página de HQ. Talvez deva-se a
isso o encanto apreciativo produzido nos leitores e fãs do material: já sentimos o clima
e lemos a sinopse da história nas capas de McKean.
O que se propôs aqui foi analisar o processo de constituição editorial da revista
Sandman, de modo a explicitar suas inovações e, porque não, propor uma taxionomia
aplicada ao design de quadrinhos, vinculadas ao conceito de montagem nas artes
visuais, aplicados às capas daquela revista.
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Referências
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WILLIANS, Robin. ´Design’ para quem não é ’designer’. São Paulo: Callis, 1995.
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| INTERSEMIOSE | Rev ista Dig ita l | A NO II, N. 03 | Jan /Jun 2013 | ISSN 2316 -316X
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Projeto editorial e concepção visual nas capas de Sandman