Assim nasce uma empresa.
Vicente Sevilha Junior
Assim nasce uma empresa.
Uma históri a para você que tem, ou pensa em, um dia, ter seu própri o
negócio.
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Assim nasce uma empresa.
Vicente Sevilha Junior
"Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo da gloriam" (Sl 115,1)
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Assim nasce uma empresa.
Vicente Sevilha Junior
Sem o ar
“Torna-te aqui lo que és.” Friedrich Nietzsche1
Depois de estacionar em sua vaga de garagem, no segundo subsolo do prédio
onde morou pelos últimos 10 anos, Otávio resistiu para desligar o motor, e mesmo
depois de fazê-lo não conseguia sair do carro. Ele sabia que seria o último ato de uma
rotina que já fazia parte de sua vida há tanto tempo, e sentia um enorme vazio ao
pensar que a partir de agora esta rotina não existiria mais.
Respirou longamente e prendeu o ar por alguns instantes, como se tentasse se
prender também a toda aquela realidade e segurança que agora estava prestes a se
desfazer. Era como se, ao soltar o ar e sair do carro, ele estivesse virando uma página
importante de sua vida, escrita com muito esforço.
Por fim soltou o ar, e ainda se deteve mais alguns momentos no carro, assistindo
ao filme que se desenrolava em sua cabeça. Lembrou-se de todo o processo seletivo
pelo qual ele teve que passar para conseguir aquele emprego. Longos testes,
entrevistas sucessivas com perguntas um tanto inesperadas, dinâmicas de grupo, e até
testes psicológicos. Ele riu com o canto da boca ao se lembrar que já se dava como
eliminado, quando foi, finalmente, chamado para começar a trabalhar. Era seu
primeiro sorriso, naquele dia que já estava terminando.
Otávio trabalhou naquela empresa pelos últimos 14 anos, e não restava
dúvidas de que tinha oferecido o melhor de si naquela corporação. Filho de pais
humildes foi ali, naquele emprego, que ele conseguiu recursos para pagar sua
faculdade de engenharia, que cursou à noite, para conciliar com o horário de seu
trabalho. Foi enquanto trabalhava naquela empresa que ele conheceu o amor de sua
vida, Laura, com quem mais tarde se casou. Seu apartamento, seu carro, a educação
dos filhos, o sustento da família, as lembranças do passado e os planos para o futuro;
tudo estava apoiado naquele emprego, que deixou de existir em uma conversa que
não durou mais do que dez minutos.
É verdade que todos sabiam que a empresa já não ia bem, e é claro que os
rumores sobre cortes já cruzavam os corredores junto com um vento frio, prenúncio de
problemas. Mas Otávio sempre foi muito esforçado e dedicado, e haviam tantos
outros funcionários menos empenhados, que em algum nível subconsciente, ele se
sentia seguro.
Ainda naquela manhã, ele acompanhava no rádio, enquanto vencia o trânsito
difícil, as notícias que davam conta do agravamento daquela crise econômica
internacional. Toda aquela confusão e pânico lhe pareciam irracionais, ele nem
terminou de ouvir as notícias e mudou de estação, em busca de uma música que o
afastasse daquela situação. Naquele instante, não podia imaginar que sobre a mesa
de seu chefe, seu encontro com a crise já estava agendado.
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Filósofo alemão do século XIX, nascido em Röcken, Alemanha.
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Assim nasce uma empresa.
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Teve um dia normal de trabalho, embora tenha encontrado Márcio uma ou
duas vezes pelos corredores, e notasse um semblante mais pesado, coisa incomum
para seu chefe, que estava sempre de bem com a vida.
Quando no final do dia o telefone tocou, e ele viu na tela de identificação que
era Márcio chamando, uma preocupação latente saltou para seu coração. Otávio
sabia que não era boa coisa, tirou o telefone do gancho e nem teve tempo de dizer
alô, a voz do outro lado disse, num tom de poucos amigos:
__ Otávio, venha aqui até a minha sala. Precisamos conversar.
Ele nunca demorou tanto para chegar até a sala do chefe. Sempre solicito,
Otávio cruzava os 20 metros que dividiam sua estação de trabalho da sala de seu
chefe em um piscar de olhos. Mas não daquela vez. Os passos saiam arrastados,
como se ele quisesse, de alguma forma, adiar aquela conversa.
Outra eternidade se passou, enquanto o engenheiro, fincado na porta da sala
de Márcio, buscava forças para girar a maçaneta e entrar.
__ Pois não Márcio, você precisa de alguma coisa?
__ Otávio, Otávio... Sente aqui, receio que eu não tenha boas notícias.
__ O que foi? É aquele projeto de Santos? O cliente quer alterações
novamente? – o engenheiro ainda tentava acreditar que seus instintos estavam
errados, e que se tratava apenas de um problema de trabalho.
__ Bem Otávio, até tem alguma ligação com aquele projeto de Santos sim,
mas desta vez o cliente não quer alterações. Eles decidiram adiar o projeto por tempo
indeterminado. A matriz decidiu suspender investimentos, e eles não têm previsão de
quando vão retomar. Como você sabe, este é o segundo projeto cancelado, só neste
mês.
__ Deixe-me conversar com eles Márcio. Já estamos muito adiantados, e acho
que posso reverter isto. Quem sabe não conseguimos pelo menos terminar esta fase?
__ Não dá Otávio, é irreversível! Eles já comunicaram nossa diretoria, e não vão
voltar atrás. – O chefe deixou cair o lápis que estava em sua mão, sobre a mesa, como
quem desiste de uma luta que já acabou.
__ Neste caso, qual a ajuda você precisa de mim? – a pergunta saiu tensa, e a
voz ficou rouca. Otávio precisou pigarrear depois de falar.
__ Nós vamos precisar fazer cortes na empresa. Não podemos mais adiar.
O engenheiro ouviu aquela notícia, e uma pressão começou a se formar em
seu estomago. O chefe iria pedir para ele ajudar a escolher os que seriam demitidos, e
ele não se sentia bem com aquilo. Todos eram seus amigos, e ele conhecia as
necessidades de cada um.
Não, ele não queria ajudar na escolha dos que seriam demitidos.
O silêncio ficou na sala, entre aqueles dois homens, e uma nuvem foi se
formando. Até que por fim Márcio disse:
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__ Eu já recebi a lista de cortes que veio do nosso RH. Eles nem pediram minha
opinião, começaram a cortar pelos salários mais elevados – o chefe fez uma pausa,
como se buscasse as palavras corretas em sua mente, até que continuou – Eu nem sei
como dizer isto – outra pausa, parece que não havia as tais palavras corretas – Seu
nome está na lista...
Dois anos antes, a mãe de Otávio fora hospitalizada. Uma sucessão de
complicações, com nomes médicos estranhos, e explicações pouco compreensíveis,
a levou a óbito. Quando o médico deu a notícia, o rapaz teve dificuldades de respirar,
foi como se ele ficasse sem o ar. Aquela sensação nunca havia ocorrido antes, e
nunca se repetira... não, até aquele dia.
__ Otávio, você está me ouvindo? – Márcio perguntou, ao perceber que o
engenheiro estava alterado
__ Otávio? – Desta vez o chefe chamou mais forte, e colocou sua mão sobre a
do rapaz.
__ Desculpe – respondeu Otávio por fim – Eu... eu não esperava por isto.
__ Nem eu, meu caro; nem eu! – Márcio parecia sinceramente perplexo e
desorientado.
Foi o barulho de outro carro entrando na garagem que despertou Otávio de
seus pensamentos. Por fim ele abriu a porta e saiu do carro. Restava agora encontrar
um jeito de contar aquilo para a esposa. Na verdade, restava mais. Restava agora
encontrar um jeito de recuperar sua identidade.
Já dentro do elevador, subindo para sua casa, Otávio ainda pensava consigo
mesmo. O engenheiro havia construído seu conceito de auto-estima, apoiado no fato
de que ele tinha um bom cargo, e que era um profissional respeitado. Perder o cargo
fazia com ele perdesse também sua identidade.
Quando finalmente a porta do elevador se abriu, ele caminhou em passos
lentos até a porta de seu apartamento, e pensando que encontraria sua esposa lá
dentro, sentiu-se novamente sem o ar.
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