Pensões, Estado Social e a reforma do Estado
1. Parece indiscutível que a proposta de redução da despesa contida no relatório
encomendado ao FMI pelo governo inclui um severo corte no valor das pensões.
Compreende‐se porquê. Ao olhar para os números da despesa pública, o valor afeto à
proteção social é dos mais elevados. No entanto, não pode o ministro Gaspar
esquecer‐se que este é porventura o corte da despesa mais recessivo de todos os que
se propõem no citado relatório. Porque se trata de uma redução do rendimento
disponível das famílias, com forte impacto no consumo doméstico, sendo que esse
corte não dará origem a qualquer redução de contribuições ou impostos. 2. Estas propostas de cortes não são justificáveis pela descoberta que alguém “vendeu” a
Passos Coelho de que o nosso sistema de proteção social favorecia os mais ricos. Trata‐
se de uma grosseira mistificação, um argumento tecnicamente medíocre e
incompetente, politicamente demagógico e irresponsável. Mas principalmente trata‐se
de um argumento falso.
A proteção social na sua vertente monetária tem um efeito poderoso da melhoria da
equidade na repartição de rendimento, conforme é evidente na significativa
concentração de recursos públicos nos 40 % com menos rendimentos Aliás, a utilização combinada dos dados deste relatório e da informação produzida pelo
Eurostat permite identificar a dimensão da correção da desigualdade de rendimentos
gerada pela proteção social.
Escalões rendimento
1º Quintil
2º Quintil
3º Quintil
4º Quintil
5º Quintil
de Peso das transferências sociais
no rendimento disponível
57%
46%
32%
27%
26%
Esta informação prova que o impacto das transferências no rendimento é mais do
dobro nos 20% mais pobres comparativamente aos 20% mais ricos.
3. A mais recente “fundamentação” técnica para os cortes propostos encontra‐se na
afirmação do P.M. de que a proteção social não combatia eficazmente a pobreza.
Argumento poderoso se não fosse totalmente falso.
Segundo os dados oficiais, a redução da pobreza provocada por pensões e outras
transferências sociais situava‐se em Portugal nos 58%, a menos de três pontos do valor
da UE e acima de países como a Espanha ou a Itália. Mas, mais importante, este valor
compara com o de 37% em 1995. Ou seja o nosso sistema de proteção social, nos
últimos 15 anos aumentou de forma muito intensa a sua eficácia social.
4. Afirma ainda o “relatório do FMI” que a despesa com pensões é excessiva e ineficaz.
Para o provar constrói um indicador macroeconómico para a taxa de substituição
(comparação do ultimo salário com a primeira pensão) . Mais uma vez, a imaginação
criativa dos autores deste relatório sofre duramente no confronto com a realidade. É o Eurostat que, em dados de 2011 (para informação de 2010), os desmente. A taxa de
substituição agregada mostra que ela é em Portugal apenas ligeiramente superior à
média da UE (56% em Portugal para 54% na UE).
Este valor compara a média das pensões dos pensionistas dos 65 aos 70 anos com os
rendimentos dos ativos dos 59 aos 60 anos, e é um poderoso desmentido das
afirmações daqueles que tão depressa dizem que o nosso sistema de pensões é
demasiado generoso como garantem que ele é socialmente ineficaz.
5. O sistema de pensões em Portugal sofre dois desafios quanto à sua sustentabilidade
que, sendo contemporâneos, são, no entanto, diversos.
O desafio da sustentabilidade de longo prazo, principalmente questionada pela
evolução demográfica, e o impacto da dupla crise económica que sofremos desde 2008
(a grande recessão de 2009 e a recessão prolongada de 2011‐?).
São realidades que interagem mas que têm de ser olhadas com autonomia. Não há
nenhuma mudança no sistema de pensões que possa dar resposta à queda continuada
de receitas e à pressão sobre a despesa provocadas por uma recessão que ameaça
prolongar‐se durante quatro anos. Recessão que, em grande parte devido às políticas
recessivas, já ultrapassou o pico de 2009 com consequências na queda das receitas da
Segurança Social de cerca de 5% só em 2012.
6. As reformas conduzidas na década passada modificaram radicalmente a prospetiva da
evolução da pressão das pensões sobre a despesa pública. Como alias este relatório
reconhece, ainda que em pé de página.
Portugal possui, segundo os dados da Comissão Europeia, uma previsão do
crescimento das despesas com pensões no longo prazo muito inferior à média europeia
e a diversas economias de referência como a Alemanha, a Holanda ou a Finlândia.
Esta situação, que veio alterar significativamente a realidade existente até 2007, é, em
particular fruto da introdução de um novo modelo de transição para o cálculo das
pensões baseado em toda a carreira contributiva e da aplicação do fator de
sustentabilidade. Este fator adequa o valor da pensão à evolução da esperança de vida
e à duração da carreira contributiva. 7. A reforma feita em Potugal compara positivamente com as experiencias europeias que
têm vindo a privilegiar o aumento da idade legal de reforma, e o modelo do fator de
sustentabilidade encontra‐se já noutros países, ainda que com uma produção de
efeitos mais dilatada no tempo que em Portugal.
Refira‐se que os países que decidiram aumentar a idade legal de reforma, como a
Alemanha ou a Espanha, aplicarão ritmos de crescimento desses limiares de idade que
produzem efeitos inferiores aos do fator de sustentabilidade.
8. Na discussão que se relançou com o Relatório/FMI vieram de novo a debate as velhas
teses que defendem a introdução dos limites às contribuições e às pensões‐ o
chamado plafonamento.
Estas propostas são hoje, ainda mais desfasadas da realidade do que eram quando a
atual coligação no poder as tentou lançar, sem êxito, em 2003.
Por um lado porque, como ficou demonstrado na crise de 2009, os sistemas que têm
uma significativa componente de capitalização individual na proteção na velhice não
respondem de forma mais sustentável ou mais eficaz em momentos de dificuldades
económicas Em última análise, o problema da sustentabilidade é sempre o da
capacidade para gerar recursos na economia que garantam os rendimentos dos ativos
e dos reformados. Por outro lado, os problemas de transição de um regime de repartição para um regime,
ainda que parcial, de capitalização, isto é a passagem de um regime de seguro social
para um regime de poupança individual, agravaram‐se com a crise da dívida.
Retirar parte das receitas contributivas hoje para poupar eventualmente nas pensões
daqui a trinta anos levanta a eterna questão: quem vai pagar as pensões entretanto?
Mais dívida pública? Agora? Hoje é ainda mais claro – esta opção é uma aventura
política, social e financeiramente irresponsável.
9. O sistema de pensões necessita sempre de ser gerido com uma política reformista. A
sua defesa é fundamental num estado de direito e numa sociedade que aspira ao bem‐
estar e à coesão. Mas as mudanças têm de ser feitas com uma combinação de ambição
e prudência.
Pode e deve ser feito um esforço suplementar de convergência entre todos os regimes
públicos de pensões numa ótica de sustentabilidade e de equidade.
Podem e devem ser avaliados os resultados das pensões não contributivas (perto de
25% das despesas) numa lógica de reforço da eficácia no combate à pobreza. E tal não
se pode fazer reduzindo o empenhamento daqueles que são os instrumentos
comprovadamente mais eficazes para a reduzir (como o Complemento Solidários para
Idosos). 10. Existe, em todo este debate, uma realidade que dificilmente pode ser contrariada. Só o
controlo da crise económica pode evitar a degradação da situação financeira da
Segurança Social, só o progressivo regresso ao investimento e ao crescimento tornará
possível garantir a sustentabilidade do sistema de pensões. Uma sustentabilidade que
é financeira, que é económica e que não pode deixar de ser social.
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artigo vieira silva dv