VIRTUDES A REDESCOBRIR E A VIVER
II.
ESPERANÇA (a sala dos tesouros)
Recurso escasso da nossa civilização é mesmo a esperança. Ela é sem dúvida uma
virtude, mas por detrás desta grande palavra escondem-se muitas coisas, umas
maiores e outras mais pequenas que a virtude. Como toda a palavra nobre e antiga,
assemelha-se às cidades estratificadas que ao longo de séculos conheceram muitas
vidas e diversas civilizações. Na verdade, existe um primeiro nível de esperança –
que se reconhece à primeira vista porque é muito superficial – que não é virtude,
mas um mal.
É a esperança que São Paulo chama 'vã', à qual recorrem muitas vezes os
poderosos, quando convidam os cidadãos a esperar em retomas imaginárias e em
futuros melhores, quando nada ou muito pouco fazem para melhorar as condições
de vida do presente. A esperança de ganhar a lotaria e a raspadinha, ou a atitude de
quem perante um pedido de ajuda responde: 'esperemos que corra bem', uma frase
que nada custa (e nada vale), que marca o fim daquele encontro e o fracassado
início de um esforço responsável para procurar em conjunto uma solução concreta.
Esta esperança é um mal porque pode fazer-nos viver, ou pelo menos sobreviver,
sem o esforço de nos tornarmos protagonistas da nossa felicidade, aguardando
passivamente que a salvação chegue com a sorte, com o favor dos deuses, ou
através do Estado.
Contra esta esperança vã e ilusória já a filosofia grega, e depois decididamente o
cristianismo, desferraram batalha duríssima, com o objetivo de libertar as pessoas
de malévolas esperanças enganadoras, e de assim as abrirem à esperança que não
desilude. Uma batalha que – é preciso reconhecer – nesta fase da nossa vida
pública parece substancialmente perdida, se olharmos a quanta ilusão e falsas
esperanças produz a nossa cultura de consumo e de televisão (são impressionantes
as estatísticas sobre o tempo gasto, cada vez mais em solidão, diante da tv. Se
escavarmos mais em profundidade, encontraremos um segundo nível ou estrato de
esperança, que começa a ser virtude. É a atitude espiritual e moral que leva a
procurar verdadeiras razões de esperança num futuro próximo melhor que o
presente; a fazer alguma coisa para que o 'não ainda' esperado se torne 'já'.
Foi a esperança que impeliu as gerações passadas a lutar contra um hoje pobre e
parco de bens e de direitos, para construir um futuro melhor para filhos e netos.
Foi esta esperança que tornou suportável e por vezes alegre o trabalho de muitos
dos nossos avós, quase escravos no campo ou na mina, porque atrás daquele
esforço e lágrimas entreviam diplomas, formaturas, casas, campos e trabalhos
diferentes. Mas existe ainda um terceiro nível de esperança, que quando a
descobrimos começa a revelar os traços de uma cidade antiga muito nobre e bela.
É a esperança dos que lutaram até dar a própria vida para construir um futuro
melhor não apenas para os seus filhos, mas para os filhos e filhas de todos.
É a esperança civil, social, política, que moveu milhares de trabalhadores,
sindicalistas, políticos, cooperadores, cidadãos, homens e muitas (por demais
esquecidas) mulheres, e em que a descoberta das dimensões da esperança não se
detém, no entanto, neste terceiro e já alto e nobre nível. Na verdade existe uma
quarta forma de esperança que se encontra muito em profundidade, e que é diversa
de todas as outras, porque já não está contida no interior do registo semântico da
palavra virtude. Não se chega a ela (ao contrário das virtudes) com exercício,
disciplina, esforço. Esta esperança é simplesmente, dom, gratuidade, charis.
Quando chega a nós surpreende sempre, corta-nos a respiração. É o encontro com
a sala dos tesouros. Esta esperança não pode ser calculada nem prevista; deve ser
aguardada e desejada e quando chega é alegria grande, paraíso, como com o
regresso de um amigo longínquo e muito esperado que, finalmente e de improviso,
aparece um dia.
Existe um laço profundo entre esta esperança e a expectativa. Dizem-no também
as línguas portuguesa e espanhola, nas quais com uma única palavra se pode dizer
ter esperança e aguardar algo ou alguém: esperar. Existe talvez algo desta esperança
no misterioso final do Conde de Montecristo: «Toda a sabedoria humana repousa
nestas duas palavras: aguardar e esperar».
Damo-nos conta de que nos é dada uma nova possibilidade, uma nova razão para
esperar verdadeiramente, não por auto-engano consolatório mas porque renasce a
força de esperar para além do desespero. E então depois de ter depositado os livros
no tribunal, depois da enésima ilusão, da enésima promessa de crédito bancário,
depois da trigésima entrevista de trabalho acabados em nada, eis que com os olhos
ainda brilhantes renasce dentro a esperança. E surpreende-nos, faz-nos recomeçar
a corrida, a luta. Não somos nós a gerar esta esperança: chega, e por isso é dom,
como bem sabia a tradição cristã que chamou a esperança 'virtude' acrescentandolhe o adjetivo 'teologal', para sublinhar também a sua dimensão de gratuidade, de
excedência relativamente a todo o mérito, e que não nos pode ser roubada por
nenhuma tristeza e desespero do presente.
Se na terra não existisse esta quarta (ou enésima) esperança, a vida seria
insuportável – e assim se torna quando esta esperança não chega ou não se ouve
por causa de ruído demasiado.
Luigino Bruni, Avvenire, 8 de Setembro de 2013
http://www.avvenire.it/Commenti/Pagine/Speranza%20La%20stanza%20dei%20tesori.aspx
VIRTUDES A REDESCOBRIR E A VIVER
II.
ESPERANÇA (a sala dos tesouros)
Recurso escasso da nossa civilização é mesmo a esperança. Ela é sem dúvida uma
virtude, mas por detrás desta grande palavra escondem-se muitas coisas, umas
maiores e outras mais pequenas que a virtude. Como toda a palavra nobre e antiga,
assemelha-se às cidades estratificadas que ao longo de séculos conheceram muitas
vidas e diversas civilizações. Na verdade, existe um primeiro nível de esperança –
que se reconhece à primeira vista porque é muito superficial – que não é virtude,
mas um mal.
É a esperança que São Paulo chama 'vã', à qual recorrem muitas vezes os
poderosos, quando convidam os cidadãos a esperar em retomas imaginárias e em
futuros melhores, quando nada ou muito pouco fazem para melhorar as condições
de vida do presente. A esperança de ganhar a lotaria e a raspadinha, ou a atitude de
quem perante um pedido de ajuda responde: 'esperemos que corra bem', uma frase
que nada custa (e nada vale), que marca o fim daquele encontro e o fracassado
início de um esforço responsável para procurar em conjunto uma solução concreta.
Esta esperança é um mal porque pode fazer-nos viver, ou pelo menos sobreviver,
sem o esforço de nos tornarmos protagonistas da nossa felicidade, aguardando
passivamente que a salvação chegue com a sorte, com o favor dos deuses, ou
através do Estado.
Contra esta esperança vã e ilusória já a filosofia grega, e depois decididamente o
cristianismo, desferraram batalha duríssima, com o objetivo de libertar as pessoas
de malévolas esperanças enganadoras, e de assim as abrirem à esperança que não
desilude. Uma batalha que – é preciso reconhecer – nesta fase da nossa vida
pública parece substancialmente perdida, se olharmos a quanta ilusão e falsas
esperanças produz a nossa cultura de consumo e de televisão (são impressionantes
as estatísticas sobre o tempo gasto, cada vez mais em solidão, diante da tv. Se
escavarmos mais em profundidade, encontraremos um segundo nível ou estrato de
esperança, que começa a ser virtude. É a atitude espiritual e moral que leva a
procurar verdadeiras razões de esperança num futuro próximo melhor que o
presente; a fazer alguma coisa para que o 'não ainda' esperado se torne 'já'.
Foi a esperança que impeliu as gerações passadas a lutar contra um hoje pobre e
parco de bens e de direitos, para construir um futuro melhor para filhos e netos.
Foi esta esperança que tornou suportável e por vezes alegre o trabalho de muitos
dos nossos avós, quase escravos no campo ou na mina, porque atrás daquele
esforço e lágrimas entreviam diplomas, formaturas, casas, campos e trabalhos
diferentes. Mas existe ainda um terceiro nível de esperança, que quando a
descobrimos começa a revelar os traços de uma cidade antiga muito nobre e bela.
É a esperança dos que lutaram até dar a própria vida para construir um futuro
melhor não apenas para os seus filhos, mas para os filhos e filhas de todos.
É a esperança civil, social, política, que moveu milhares de trabalhadores,
sindicalistas, políticos, cooperadores, cidadãos, homens e muitas (por demais
esquecidas) mulheres, e em que a descoberta das dimensões da esperança não se
detém, no entanto, neste terceiro e já alto e nobre nível. Na verdade existe uma
quarta forma de esperança que se encontra muito em profundidade, e que é diversa
de todas as outras, porque já não está contida no interior do registo semântico da
palavra virtude. Não se chega a ela (ao contrário das virtudes) com exercício,
disciplina, esforço. Esta esperança é simplesmente, dom, gratuidade, charis.
Quando chega a nós surpreende sempre, corta-nos a respiração. É o encontro com
a sala dos tesouros. Esta esperança não pode ser calculada nem prevista; deve ser
aguardada e desejada e quando chega é alegria grande, paraíso, como com o
regresso de um amigo longínquo e muito esperado que, finalmente e de improviso,
aparece um dia.
Existe um laço profundo entre esta esperança e a expectativa. Dizem-no também
as línguas portuguesa e espanhola, nas quais com uma única palavra se pode dizer
ter esperança e aguardar algo ou alguém: esperar. Existe talvez algo desta esperança
no misterioso final do Conde de Montecristo: «Toda a sabedoria humana repousa
nestas duas palavras: aguardar e esperar».
Damo-nos conta de que nos é dada uma nova possibilidade, uma nova razão para
esperar verdadeiramente, não por auto-engano consolatório mas porque renasce a
força de esperar para além do desespero. E então depois de ter depositado os livros
no tribunal, depois da enésima ilusão, da enésima promessa de crédito bancário,
depois da trigésima entrevista de trabalho acabados em nada, eis que com os olhos
ainda brilhantes renasce dentro a esperança. E surpreende-nos, faz-nos recomeçar
a corrida, a luta. Não somos nós a gerar esta esperança: chega, e por isso é dom,
como bem sabia a tradição cristã que chamou a esperança 'virtude' acrescentandolhe o adjetivo 'teologal', para sublinhar também a sua dimensão de gratuidade, de
excedência relativamente a todo o mérito, e que não nos pode ser roubada por
nenhuma tristeza e desespero do presente.
Se na terra não existisse esta quarta (ou enésima) esperança, a vida seria
insuportável – e assim se torna quando esta esperança não chega ou não se ouve
por causa de ruído demasiado.
Luigino Bruni, Avvenire, 8 de Setembro de 2013
http://www.avvenire.it/Commenti/Pagine/Speranza%20La%20stanza%20dei%20tesori.aspx
esforço e lágrimas entreviam diplomas, formaturas, casas, campos e trabalhos
diferentes. Mas existe ainda um terceiro nível de esperança, que quando a
descobrimos começa a revelar os traços de uma cidade antiga muito nobre e bela.
É a esperança dos que lutaram até dar a própria vida para construir um futuro
melhor não apenas para os seus filhos, mas para os filhos e filhas de todos.
É a esperança civil, social, política, que moveu milhares de trabalhadores,
sindicalistas, políticos, cooperadores, cidadãos, homens e muitas (por demais
esquecidas) mulheres, e em que a descoberta das dimensões da esperança não se
detém, no entanto, neste terceiro e já alto e nobre nível. Na verdade existe uma
quarta forma de esperança que se encontra muito em profundidade, e que é diversa
de todas as outras, porque já não está contida no interior do registo semântico da
palavra virtude. Não se chega a ela (ao contrário das virtudes) com exercício,
disciplina, esforço. Esta esperança é simplesmente, dom, gratuidade, charis.
Quando chega a nós surpreende sempre, corta-nos a respiração. É o encontro com
a sala dos tesouros. Esta esperança não pode ser calculada nem prevista; deve ser
aguardada e desejada e quando chega é alegria grande, paraíso, como com o
regresso de um amigo longínquo e muito esperado que, finalmente e de improviso,
aparece um dia.
Existe um laço profundo entre esta esperança e a expectativa. Dizem-no também
as línguas portuguesa e espanhola, nas quais com uma única palavra se pode dizer
ter esperança e aguardar algo ou alguém: esperar. Existe talvez algo desta esperança
no misterioso final do Conde de Montecristo: «Toda a sabedoria humana repousa
nestas duas palavras: aguardar e esperar».
Damo-nos conta de que nos é dada uma nova possibilidade, uma nova razão para
esperar verdadeiramente, não por auto-engano consolatório mas porque renasce a
força de esperar para além do desespero. E então depois de ter depositado os livros
no tribunal, depois da enésima ilusão, da enésima promessa de crédito bancário,
depois da trigésima entrevista de trabalho acabados em nada, eis que com os olhos
ainda brilhantes renasce dentro a esperança. E surpreende-nos, faz-nos recomeçar
a corrida, a luta. Não somos nós a gerar esta esperança: chega, e por isso é dom,
como bem sabia a tradição cristã que chamou a esperança 'virtude' acrescentandolhe o adjetivo 'teologal', para sublinhar também a sua dimensão de gratuidade, de
excedência relativamente a todo o mérito, e que não nos pode ser roubada por
nenhuma tristeza e desespero do presente.
Se na terra não existisse esta quarta (ou enésima) esperança, a vida seria
insuportável – e assim se torna quando esta esperança não chega ou não se ouve
por causa de ruído demasiado.
Luigino Bruni, Avvenire, 8 de Setembro de 2013
http://www.avvenire.it/Commenti/Pagine/Speranza%20La%20stanza%20dei%20tesori.aspx
VIRTUDES A REDESCOBRIR E A VIVER
II.
ESPERANÇA (a sala dos tesouros)
Recurso escasso da nossa civilização é mesmo a esperança. Ela é sem dúvida uma
virtude, mas por detrás desta grande palavra escondem-se muitas coisas, umas
maiores e outras mais pequenas que a virtude. Como toda a palavra nobre e antiga,
assemelha-se às cidades estratificadas que ao longo de séculos conheceram muitas
vidas e diversas civilizações. Na verdade, existe um primeiro nível de esperança –
que se reconhece à primeira vista porque é muito superficial – que não é virtude,
mas um mal.
É a esperança que São Paulo chama 'vã', à qual recorrem muitas vezes os
poderosos, quando convidam os cidadãos a esperar em retomas imaginárias e em
futuros melhores, quando nada ou muito pouco fazem para melhorar as condições
de vida do presente. A esperança de ganhar a lotaria e a raspadinha, ou a atitude de
quem perante um pedido de ajuda responde: 'esperemos que corra bem', uma frase
que nada custa (e nada vale), que marca o fim daquele encontro e o fracassado
início de um esforço responsável para procurar em conjunto uma solução concreta.
Esta esperança é um mal porque pode fazer-nos viver, ou pelo menos sobreviver,
sem o esforço de nos tornarmos protagonistas da nossa felicidade, aguardando
passivamente que a salvação chegue com a sorte, com o favor dos deuses, ou
através do Estado.
Contra esta esperança vã e ilusória já a filosofia grega, e depois decididamente o
cristianismo, desferraram batalha duríssima, com o objetivo de libertar as pessoas
de malévolas esperanças enganadoras, e de assim as abrirem à esperança que não
desilude. Uma batalha que – é preciso reconhecer – nesta fase da nossa vida
pública parece substancialmente perdida, se olharmos a quanta ilusão e falsas
esperanças produz a nossa cultura de consumo e de televisão (são impressionantes
as estatísticas sobre o tempo gasto, cada vez mais em solidão, diante da tv. Se
escavarmos mais em profundidade, encontraremos um segundo nível ou estrato de
esperança, que começa a ser virtude. É a atitude espiritual e moral que leva a
procurar verdadeiras razões de esperança num futuro próximo melhor que o
presente; a fazer alguma coisa para que o 'não ainda' esperado se torne 'já'.
Foi a esperança que impeliu as gerações passadas a lutar contra um hoje pobre e
parco de bens e de direitos, para construir um futuro melhor para filhos e netos.
Foi esta esperança que tornou suportável e por vezes alegre o trabalho de muitos
dos nossos avós, quase escravos no campo ou na mina, porque atrás daquele
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(Português)