A ANÁLISE DE DISCURSO E A FORMAÇÃO DO
JORNALISTA
SILMARA DELA SILVA
Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Inicio esta breve reflexão sobre os estudos de linguagem e, de modo mais
específico, sobre a análise de discurso na formação do profissional jornalista recorrendo
a uma definição dessa prática formulada por Clóvis Rossi, em seu livro O que é
jornalismo. Assim afirma o autor:
Jornalismo, independentemente de qualquer definição acadêmica, é a
fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos:
leitores, telespectadores e ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que
usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra...
(ROSSI, 2005, p. 7).
Essa definição de jornalismo data de 1980, ano de publicação da primeira edição
do pequeno livro que integra a coleção “Primeiros Passos”, da editora Brasiliense. É com
ela que Rossi abre a introdução dessa obra, muito conhecida dos jornalistas que se
formaram nas universidades brasileiras desde então e que continua a ser leitura
recomendada.
Seis anos depois, no livro Vale a pena ser jornalista?, de 1986, Rossi retoma esse
seu dizer buscando ampliá-lo, ao pensar a função do jornalista em condições de produção
outras, em um país recém-saído de um longo período de governo ditatorial. Nos termos
do autor, caberia ao jornalista a “conquista de mentes e corações para a cruzada
permanente contra o autoritarismo, contra a prepotência, contra o arbítrio e a favor da
democracia”, como ele já desejava mostrar em sua primeira definição de jornalismo. Mas
também seria de competência desse profissional a conquista de “mentes e corações para
a causa da justiça social, ingrediente que jamais pode ser dissociado da democracia...”
(1986, p. 5-6), como acrescenta o jornalista nessa retomada de sua definição anterior.
Retomo tais afirmações de Clóvis Rossi porque, ainda que elas acenem para um
ideal de jornalista como o defensor da democracia e da justiça social, elas não deixam de
fazer algum sentido. Ser jornalista é assumir uma posição dentre outras, é comprometerse com uma leitura possível dos acontecimentos e do mundo que têm (ou que deveria ter)
como foco o engrandecimento humano. Mas essa é só uma das razões pelas quais retorno
a esses textos introdutórios do jornalismo, que também estiveram presentes em minha
formação inicial. O que me move nesse percurso é o que Clóvis Rossi afirma mais ao
final do fragmento textual de abertura de seu primeiro livro ([1980] 2005), ao significar
a “palavra” como “a arma” do jornalista. Isso porque entendo que a palavra e, de um
modo mais geral, o dizer, que são mesmo a “matéria-prima” do jornalismo, estão também
no foco da análise de discurso.
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À análise de discurso interessam os modos como as palavras, ao constituírem
discursos, produzem sentidos. Como afirma Eni Orlandi, discurso é “palavra em
movimento, prática de linguagem” (2001, p. 15) para e por sujeitos. “Na análise de
discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico,
parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história.” (ORLANDI,
2001, p. 15). Entendo que é nessa relação com a palavra, e mais precisamente, com o
dizer e com os seus efeitos de sentidos que se encontram a análise de discurso e a prática
jornalística.
Como já sinalizava o jornalista Clóvis Rossi, é mesmo de palavras que se fazem
os relatos sobre os acontecimentos jornalísticos que ganham as páginas dos jornais
diariamente, que circulam nos noticiários de rádio e de televisão, e que se movimentam
na rede eletrônica, produzindo sentidos para os sujeitos. Mas as palavras, como aponta o
filósofo Michel Pêcheux, fundador dessa perspectiva teórica de análise de discurso, não
são neutras e tampouco possuem um sentido em si mesmas. Elas têm os seus sentidos
determinados “pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico
no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).”
([1975] 1997, p. 160). O que Pêcheux está nos mostrando é a intrínseca relação entre as
palavras, as expressões, as proposições..., ou seja, entre a linguagem em seu
funcionamento e a ideologia, que em sua releitura de Althusser ([1970] 1985), é entendida
enquanto um mecanismo de produção de evidências para os sujeitos.
Dessa perspectiva, torna-se possível afirmar que as palavras não são mesmo
“inofensivas”, como já sugeria Clóvis Rossi lá no início da década de 1980. No entanto,
elas também não são “armas”, não são instrumentos que podem ser simplesmente usados
de modo mecânico pelos jornalistas na “transmissão de mensagens” aos seus “alvos:
leitores, telespectadores e ouvintes” (ROSSI, 2005, p. 7). Como todo sujeito, o jornalista,
ao formular o seu dizer, o faz sempre a partir de uma posição ideológica, inscrevendo-o
no já-dito, de modo que ele produza efeitos de sentidos para os sujeitos leitores,
telespectadores, ouvintes e internautas, mas sempre em relação a outros dizeres. Isso
porque as palavras são materialidades do discurso, sempre em movimento, sempre em
curso (ORLANDI, 2001), e por isso mesmo sempre escapando ao “domínio” dos sujeitos.
O jornalista trabalha, de fato, com a linguagem, com a mesma linguagem que, em
sua incompletude, o constitui enquanto sujeito e que funciona como “mediação necessária
entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2001, p. 15). Esta relação
necessária e constitutiva entre linguagem e sujeito já é um dos motivos pelos quais a
formação do jornalista não deve prescindir dos estudos de linguagem.
Contudo, não é qualquer concepção de linguagem que se propõe a explicar aos
sujeitos a especificidade de tal relação, haja vista a presença recorrente nos currículos dos
cursos de jornalismo de disciplinas que reduzem o pensar a linguagem a uma técnica a
ser aprendida pelo estudante. É justamente como um contraponto a tais perspectivas que
os estudos do discurso desempenham um importante papel na formação do jornalista.
Diferentemente de estudos pragmáticos e interacionais, que consideram a
linguagem em sua transparência, como um mero instrumento a ser manipulado de modo
a permitir que o sujeito diga aquilo que “ele quer dizer”, a análise de discurso assume a
opacidade da linguagem. Com isso, o analista de discurso busca refletir sobre o “caráter
material do sentido”, como afirma Pêcheux ([1975], 1997, p. 160, itálico do autor), que
se mostra como já-lá aos sujeitos, mas que se constitui sempre em relação a. A análise de
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discurso se interroga, assim, sobre o modo como os sentidos se constituem; ela se
questiona acerca do “funcionamento da linguagem” que, como afirma Orlandi ([1983]
2003, p. 117), “não é integralmente lingüístico, uma vez que dele fazem parte as
condições de produção, que representam o mecanismo de situar os protagonistas e o
objeto do discurso”.
Também diferentemente das análises de conteúdo, a análise de discurso não se
pergunta a respeito do que um texto significa, mas acerca do modo como ele faz para
dizer aquilo que diz. Desse modo, a análise de discurso não busca chegar à depreensão de
um sentido, atravessando “o texto para encontrar um sentido do outro lado” como afirma
Orlandi (2001, p. 17), mas se volta à sua materialidade, ao modo como na formulação do
dizer inscrevem-se as marcas de sua constituição. Por isso, um importante papel
desempenhado pela análise de discurso na formação do jornalista consiste em mostrar ao
profissional em formação esse modo de funcionamento da linguagem e dos discursos,
desconstruindo o efeito de evidência dos sentidos pela exposição do modo como os seus
efeitos se constituem em diferentes discursos midiáticos. Possibilitar aos estudantes dessa
área o conhecimento de textos que apresentam como corpora de análise diferentes
materialidades em circulação nas diversas mídias é, sem dúvida, um modo de contribuir
para um posicionamento crítico do futuro jornalista a respeito das questões de linguagem
e de produção de sentidos, o que se dá pela sua exposição a esse gesto outro de leitura
que o quadro teórico-metodológico da análise de discurso proporciona.
Há ainda outra contribuição da análise de discurso para a formação do jornalista
e que entendo ser a mais importante. Por essa perspectiva teórica, entende-se que a
linguagem, de um modo geral, e a prática jornalística por extensão se dá sempre na relação
com a interpretação (ORLANDI, 2007), em um processo de atribuição de sentidos, que é
condição do sujeito. Como afirma Orlandi: “A interpretação está presente em toda e
qualquer manifestação de linguagem. Não há sentido sem interpretação.” (2007, p. 9).
Desse modo, é possível entender que a prática jornalística consiste justamente na
interpretação de acontecimentos diários que são recortados pelo jornalista como dignos
de nota e alçados à condição de acontecimentos jornalísticos. Como afirma Mariani, em
uma de suas análises: “... o discurso jornalístico produz leituras do mundo (...) ele
interpreta (e, até mesmo produz) os acontecimentos...” (1999, p. 103). A análise de
discurso vai justamente desnaturalizar para o sujeito jornalista a evidência da
anterioridade dos “fatos” em relação ao seu relato na mídia, mostrando a esse profissional
o seu gesto de interpretação, que “se dá de algum lugar da história e da sociedade e tem
uma direção...” (idem, p. 18-19).
O jornalista com formação em análise de discurso considera a incompletude da
linguagem e a sua opacidade; entende que, como nos diz Pêcheux, o sentido sempre pode
ser outro, o que o leva a compreender a impossibilidade de “aprisionar” esses sentidos e
também de “tudo” dizer. Essa compreensão pode, de fato, mudar o modo como o
jornalista se posiciona, o que se dá, como já mencionado, pelo reconhecimento de que
essa sua posição é sempre uma dentre outras.
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Referências
ALTHUSSER, L. (1970) Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos
ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
MARIANI, B. Sobre um percurso de análise do discurso jornalístico: a Revolução de 30.
In: INDURSKY, F.; LEANDRO-FERREIRA, M.C. (Orgs.). Os múltiplos territórios da
Análise do Discurso. Porto Alegre-RS: Editora Sagra Luzzatto, 1999.
ORLANDI, E.P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5 ed.
Campinas-SP: Pontes Editores, 2007.
______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3 ed. Campinas-SP: Pontes,
2001.
______. (1983) A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed.
Campinas-SP: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad.:
Eni P. Orlandi [et al]. 3 ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1997.
ROSSI, C. (1980) O que é jornalismo. 10 ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2006.
______. Vale a pena ser jornalista?. São Paulo: Ed. Moderna, 1986.
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