SERGIO FINGERMANN
Sônia Salzstein
Mesmo demonstrando disposição relativamente moderada para as aparições
públicas, o trabalho de Sergio Fingermann vem se desenvolvendo em ritmo constante e
intenso desde o final da década de 70.
O obscurecimento contemporâneo da medida individual do ateliê e seu corolário
de práticas e tradições da pintura, se introduzem como questões fortes para o artista. A
esta questão, aliás, parece se dever a atitude reticente e confiante que o mesmo revela
frente às possibilidades da pintura. De qualquer modo, o fato é que tal trabalho trai
certo pudor ou ceticismo para se declarar pronto. Afinal, os problemas que advinham ao
trabalho, relativos, basicamente, à viabilidade de uma pintura preocupada com a
representação e com a figuração, indicavam um campo de trabalho incerto e freqüentado
pelas mais diversas revisões ideológicas, incitando a um permanente estado de dúvidas
e riscos conceituais. Parecia então estar em curso uma opção tanto extemporânea,
porque o artista escolhia deixar de lado imagens “prontas”, prescindia das vantagens
comunicativas militantes que estas poderiam lhe propiciar e com isto inclinava-se para a
sondagem de uma dimensão interna e processual da pintura figurativa.
Como decorrência, o trabalho tendia a rumar em sentido contrário ao das
pressões do presente, longe da valorização do instante, da ação e das preocupações
contextuais de boa parte da arte contemporânea. Esta atitude solicitava um tempo
físico de produção, isto é, tempo suficiente para se dispender com as qualidades
sensíveis e os desenvolvimentos empíricos da pintura. Neste caso, a instância formal da
obra estaria sempre obrigada à prova de uma espécie de plasticidade historicamente
inerente à matéria pictórica.
É claro que a “lentidão” e a materialidade que o trabalho exigia para fabricar
suas imagens pareceriam incongruentes em face da disponibilidade instantânea e
ilimitada de imagens no ambiente da arte contemporânea. Mas era justamente disto de
que se tratava: reencontrar o parentesco entre o universo subjetivo das coisas e seus
referentes no universo da vida material. Mais do que descrever o mundo em imagens,
estaria em jogo, portanto, deixar provisoriamente de lado tudo o que fosse apenas
ótico, digamos assim, para desentranhar uma natureza antropológica, exploratória e, em
suma, genericamente humana, das imagens.
Tal escolha abria uma perspectiva de trabalho árida para o artista, pois a maior
parte da arte produzida dos anos 80 para cá vinha tratando a pintura figurativa quase
invariavelmente em tom de comentário, e colocaria uma opção como esta sob suspeita
metafísica. Para ele, não obstante, o principal era interrogar se a pintura (contra todas as
evidências em contrário) poderia ainda propor novas configurações do mundo
contemporâneo da técnica, isto é, de uma “natureza” em constante mutação (ela
própria manancial permanente de novas imagens, sem qualquer referente numa matéria
originária) e à mercê de processos tecnológicos de transformação cada vez mais
autônomos e podendo declinar, para seguir seu curso, das especialidades cognitivas e
reflexivas do pensamento artístico. O trabalho, enfim, parecia não desejar tomar como
fato consumado a imanência da visão às comodidades espirituais do novo quadro
pragmático da cultura.
Importaria saber se a pintura se demonstraria capaz de algum senso de
autonomia e de produtividade nessa situação cultural em que as coisas, para
acontecerem, não necessitam mais do que permanecerem ponto morto – e sendo, assim
tanto fariam noções como as de “autonomia” ou “produtividade”.
Evidentemente, tal atitude tenderia a valorizar a natureza artesanal do processo
de trabalho do artista, comprometendo-o em duradouros enfrentamentos empíricos,
empenhados em testar a resistência das “vocações plásticas” da matéria pictórica. Isto é,
em liberar uma figuração alentada por algum oxigênio histórico, não totalmente
fantasmática.
São estes enfrentamentos empíricas que produzem na obra aquela medida
própria do tempo, elemento chave, porquanto introduzindo-se aí como índice do atrito
que cada pintura teria de produzir para fazer suas figuras se soltarem do plasma
indiferenciado de imagens em que engorda o “enfant gaté” da cultura contemporânea.
Com isto o artista relativiza o valor visual (ótico, conforme se disse), de seus
trabalhos, a face externa e desfrutável destes, solicitando a atenção, inversamente, a
uma impossível apreensão “perpendicular” (a expressão é dele) das imagens, que
acompanhasse o movimento retrospectivo da narração ali interiorizada.
Explica-se então que tais figuras estejam freqüentemente engastadas, de modo
quase indiferenciado, nas camadas (virtuais) de um “muro” ou “parede”, construído à
base da sobreposição e do desgaste progressivo das cores.
Dado que inexiste um centro privilegiado nessas telas, nem tampouco padrão de
escala único, pois cada objeto e cada área representados pertencem apenas aos espaços
respectivos que encerram, convocando pontos de vista heterogêneos e a princípio
incomunicáveis, cabe ao olho o trabalho redobrado de discriminar continuamente um
campo visual, diferenciar e selecionar imagens que poderão constituir um universo
visual significativo. É claro que o que conta aqui não é apenas o teor confessional que
possa se depreender de tais imagens, mas a capacidade dessa espécie de memória
pessoal, pouco a pouco sedimentada, reconduzir sinceramente ao debate a memória
formal da história da arte moderna, irritar a sensibilidade contemporânea com a
reconsideração lírica mas desapaixonada do projeto moderno da autonomia e do poder
constituinte das formas.
Embora ciente da verdade que possa conter uma figuração pop, nisto que tal
figuração sela a despedida de toda indagação pelos fundamentos, pelos sentimentos da
profundidade, o artista estaria apostando numa pintura figurativa capaz, no mínimo, de
recobrar a prerrogativa de infundir critério e assegurar discriminação pessoal neste
cenário de heteronomia.
Porque, se não há como representar de maneira convincente os objetos de corpo
inteiro (o artista está quase sempre às voltas com fragmentos), suas pinturas não abrem
mão da prerrogativa de restituir-lhes um campo semântico, no qual as marcas da
subjetividade, se já não têm nenhuma garantia de receptividade na situação
contemporânea, poderiam quem sabe reaparecer, mediante o trabalho do tempo e da
memória. Mas isto, é claro, a depender de uma disposição pessoal para o esquecimento
ou para a rememoração.
Como se vê, a obra de Sergio Fingermann abriu alto poder discriminatório à
visão. Compreende-se, neste sentido, a presença forte do desenho em suas pinturas,
como espécie de elemento motriz que organiza e retira da empiria a matéria pictórica.
Penso aqui, naturalmente, na tradição clássica do desenho que o concebe dotado
de inédito poder intelectivo, um instrumento de ordenação do visível, do conhecimento
e controle da natureza.
A numerosa produção em gravura do artista atesta de modo límpido o sentido
construtivo, iluminador que a obra em geral atribui ao desenho. Ele transmite à pintura
algo do que possa ser ainda, para a arte contemporânea, projetar e intervir normalmente
no real. Como declarou, certa vez, o próprio artista: “A pintura não nos dá qualquer
garantia quanto à compreensão de seu processo. Ela exige que nos abandonemos a uma
certa desorientação. Mas é difícil nos desorientarmos completamente, porque todo
nosso esforço vai no sentido da construção”.
Cabe sublinhar, desta frase, o quanto ela concede à dúvida intelectual e ao
diálogo (com o sentido construtivo da tradição moderna), em sua modesta inquirição por
alguma verdade constitutiva da imagem. O que se verá, de todo modo, nas pinturas de
Sergio Fingermann serão as formas residuais daquela concepção clássica do desenho,
batalhando para circunscrever a dimensão coletiva de um imaginário pessoal, e com isto
revelando a inconsistência pueril de um mundo excitado por objetos parciais.
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em português - Sergio Fingermann