uma questão de VIDA ÚTIL Em uma natureza em que tudo se transforma, o homem não só inventou o lixo como a tecnologia capaz de fabricar produtos cada vez mais modernos e que duram cada vez menos. chegou a hora de combater a obsolescência programada PoR Eduardo Duarte Zanelato fotos Andrew mcconnell O boom econômico do Brasil dos últimos 15 anos esconde números impressionantes. Somos um país de 190 milhões de pessoas e 240 milhões de telefones celulares. Consumimos 2,5 milhões de novos carros e 2 milhões de novas geladeiras a cada ano – e esse número continua crescendo. Geramos 370 mil toneladas anuais de lixo eletrônico, o mais alto índice produzido por habitante entre os países emergentes, superando a China e a Índia. É a nossa singela “contribuição” para os 40 milhões de toneladas de resíduos eletroeletrônicos anuais produzidos no mundo, a maioria repousando em imensos cemitérios tecnológicos de países pobres. Um dos principais motivos dessas taxas espantosas de poluição é pouco discutido e está envolto numa névoa de teorias conspiratórias: a obsolescência programada. Na linguagem simples, trata-se da estratégia da indústria de bens de consumo de fabricar produtos com uma vida útil curta, predeterminada desde sua concepção, a fim de manter o ciclo de consumo girando rapidamente. Exemplos da perversidade desse modelo estão reunidos no documentário Comprar, tirar, comprar, lançado em 2010 pela cineasta norueguesa Cosima Dannoritzer. “Essa estratégia está disseminada desde a fabricação de produtos com data para acabar até o estímulo psicológico que a propaganda promove convencendo as pessoas de que elas precisam de coisas novas”, diz a diretora do filme. O fio condutor do documentário, produzido na Espanha, se baseia no périplo de um cidadão comum que tenta consertar sua impressora, que deixou de funcionar abrupta e misteriosamente. Quando busca assistência técnica, o homem ouve que é mais barato comprar um produto novo do que consertar o que possui. Intrigado, ele sai à caça de explicações e formas alternativas de resolver o problema da impressora. Constata, por fim, que um chip bloqueia o equipamento após cinco anos de uso ou 18 mil impressões. O motivo alegado pela fabricante, ao cabo das investigações do filme, é zelar pela “segurança” do usuário. Ninguém explica, porém, que tipo de risco ele correria ao imprimir a página 18.001. A obsolescência foi posta em prática pela primeira vez em 1924, quando um lobby promovido pela indústria de lâmpadas definiu que o tempo de duração do produto deveria baixar de 2,5 mil horas para mil horas por lâmpada, a fim de aumentar as vendas. Quem contrariasse a política era punido pelos sindicatos. Em 1940, a meta estava consolidada. “Passamos a desejar coisas que não precisamos. Há uma ideia 92 Cemitério tecnológico clandestino em Acra, em Gana: um dos destinos de todo lixo eletrônico produzido no Brasil vigente, hoje, de que o bem-estar está ligado a ter um objeto. Valoriza-se muito a ideia de que ter algo é o que nos define”, avalia Nina Orlow, urbanista da Rede Nossa São Paulo que participa da Agenda 21 local, projeto decorrente da Rio 92, que busca implantar práticas sustentáveis regionalmente – incluindo produtivo de forma orgânica, sem poluir. Como exemplo, estudos sobre o impacto do lixo. Num ciclo que se retroalimenta, o próprio exemplar físico de Cradle to cradle: feito de um a substituição cada vez mais veloz de produtos por novas papel especial, impresso com tinta não tóxica, o livro pode ser versões acaba levando itens em condições de uso para o lixo. dissolvido num polímero de alta qualidade e, assim, facilmente “Sabemos que uma grande quantidade de equipamentos reinserido na cadeia produtiva. Ou mesmo virar adubo. eletrônicos usados é jogada fora – e acaba indo parar em “Estou muito animado com o crescimento da aceitação e aterros locais ou, em alguns lugares, é até incinerada. adoção que nossa visão está tendo”, diz Braungart. “As pessoas Quantidades menores são destinadas a pequenos estão mais familiarizadas com materiais como esses e estão recicladores, algumas acabam sendo reutilizadas e outras são mudando o foco de seu trabalho. O foco está superando a meta desmontadas para uso de cada um dos componentes”, escreve de vender produtos e caminhando para a oferta de serviços.” a norte-americana Elizabeth Grossman em seu livro High O químico vai além e provoca: por que não vender, em vez de tech trash: digital devices, hidden toxics, and human health um par de sapatos, o serviço de proteção aos pés? Isso tiraria, (“Lixo high tech: dispositivos eletrônicos, elementos tóxicos segundo ele, o foco do produto e permitiria ao fabricante criar escondidos e saúde humana”, na tradução livre). Lançado em soluções passageiras e mais eficazes. E que pudessem, ainda, 2002, o livro resume uma situação apenas agravada, dez anos ser reincorporadas à cadeia produtiva. “A lógica de ter uma depois de chegar às livrarias. equipe de marketing preocupada em convencer o consumidor Apesar de se referir ao mercado norte-americano, a a comprar um par de sapatos atrás do outro é estúpida.” descrição de Elizabeth se aplica perfeitamente ao Brasil A proposta de Braungart e McDonough, ainda que um de 2012. Segundo estimativa da entidade Compromisso tanto utópica, está em linha com o que se discute no mercado Empresarial para Reciclagem (Cempre), de reciclagem de eletroeletrônicos hoje. No menos de 10 toneladas de lixo eletrônico são a ideia de descartar produtos centro das discussões está a logística reversa: recicladas no Brasil por ano. “Há uma falta de os fabricantes tornam-se responsáveis por fazer com boas condições de uso ação dos consumidores em devolver esses com que os seus produtos, quando descartados, está disseminada, desde a materiais para a indústria”, afirma André sejam reciclados e aproveitados no processo fabricação de novidades Vilhena, diretor executivo da entidade. O de fabricação de novos gadgets. No Brasil, com data para acabar até a alguns grandes fabricantes oferecem a opção ao Cempre é composto de empresas dispostas a encontrar formas de diminuir o impacto no propaganda que nos convence consumidor. É possível, com alguma burocracia, planeta pela venda de seus produtos. devolver seus equipamentos antigos a quem os a comprar tudo de novo colocou no mercado. Consumir menos, produzir melhor O governo, por sua vez, regulamentou a questão em 2010. Esse cenário prova a necessidade de nós, consumidores, O então presidente Lula sancionou, em agosto daquele ano, reavaliarmos a maneira como consumimos o que a indústria nos a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Pela lei, que passa oferece. “A economia não irá funcionar por muito mais tempo a vigorar em 2014, os diversos setores da economia devem dentro dessa lógica”, afirma Cosima. Algumas iniciativas têm oferecer produtos, da embalagem à sua composição, que sejam surgido nesse sentido. Uma delas, pautada pela biomimética, facilmente reincorporados à cadeia de produção. À indústria propõe a criação de processos produtivos e de consumo mais eletroeletrônica, cabe colocar em pleno funcionamento um orgânicos. A teoria foi detalhada em Cradle to cradle: Remaking sistema que permita ao consumidor devolver o produto que the way we make things (“Do berço ao berço – refazendo a não quiser ou puder mais usar, para que seja reciclado. O maneira como fazemos as coisas”), livro do arquiteto nortedesafio, que ainda inclui a participação dos governos estaduais americano William McDonough e do químico alemão Michael e municipais, é estimular a população a reciclar esse material – Braungart. A dupla propõe que a indústria seja ecoeficaz. sobretudo o lixo eletrônico. Ou seja: não basta usar matérias-primas “menos piores” Essas iniciativas, tímidas, ainda estão longe de resolver no impacto ao meio ambiente. Mas, sim, adotar saídas o problema. Mais do que leis, é preciso uma mudança na ecossustentáveis que tornem o produto ainda mais atrativo mentalidade do consumidor. “O Brasil não tem escala de ao consumidor, sem gerar resíduos não reaproveitáveis. Isso reciclagem de eletroeletrônicos e acaba exportando parte do aumenta a satisfação do consumidor, o tempo de uso dos material que recolhe para outros mercados”, afirma Vilhena, produtos e permite que, ao fim do uso, eles retornem ao ciclo do Cempre. Quem determinará a intensidade e duração dessa revolução, porém, é a indústria. Isso, claro, se ela estiver disposta a abandonar a obsolescência como estratégia de negócios, e passar a oferecer produtos com um prazo prévio em sintonia com uma natureza que não produz lixo. 94 95