[liberdade]
Uma via de
mão dupla
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[liberdade]
Existem fronteiras
que devem ser
respeitadas tanto
pelo cidadão
comum quanto
por quem detém
o poder
[texto: Rogério
do Espírito Santo]
[fotos: Pauline Costa]
D
escartes, que foi considerado o primeiro
filósofo moderno, com importantes contribuições à espistemologia e às ciências
naturais, definiu liberdade como espontaneidade,
um ato da própria vontade, simplesmente, o livre
arbítrio. É dessa forma que a maioria das pessoas
está habituada a vivenciar e sentir o conceito de liberdade. Mas o ser humano acaba por tencionar a
liberdade de tal forma que parte para a inversão de
valores, ao ponto de romper seus limites, suas fronteiras, mudando os sentidos socialmente aceitáveis
e configurando acontecimentos graves.
Na história do Brasil, os universitários representam
um grupo que tem relação direta com a liberdade. A
liberdade de idéias, de comportamento, de inovação
são marcas de quem está saindo da posição de estudante para passar a ser o futuro do país. Essa postura
libertária, no entanto, nem sempre é bem vista por
quem detém o poder. Na história brasileira, um período marcou claramente o rompimento dos limites da
liberdade dos cidadãos, entre eles os universitários.
Em 1964, o regime militar instaurou a política de linha dura. Políticos e jornalistas foram presos. Mesmo
com o apoio do empresariado, de parte da imprensa,
dos proprietários rurais, da igreja católica e de alguns
governantes, muitas pessoas sofreram.
“A liberdade era vedada através da censura brutal
em filmes, peças de teatro, letras de música, jornais e
outros”, diz João Alberto Figueiró, diretor do Colégio
Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, um dos mais reconhecidos por ter um movimento estudantil atuante na época. “Quem decidia o que devia ser dito era
o censor”, acrescenta ele, se referindo a uma pessoa,
que, a mando dos militares, restringia o conteúdo de
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tudo aquilo que atingia o grande público. O professor
conta que, como estudante do ensino médio até a universidade, sofreu o peso das restrições do período da
ditadura. Segundo ele, o medo, a paranóia de viver em
uma época como aquela foi uma violência para o jovem
universitário. “Nós amávamos o Brasil tanto quanto
eles, que se diziam donos do país”, acrescenta.
O professor Nelson Eduardo Rivero, da área de
psicologia social da Unisinos, comenta que os regimes totalitários foram aclamados pelas populações
e ainda hoje são sustentados em grupos menores
de manifestação política. “Lembro deste fato para
dizer que a liberdade não é um estado ou uma condição inerente à pessoa como uma característica da
sua humanidade. Liberdade é uma ação, um exercício que deve ser tomado como responsabilidade
daqueles que se implicam neste movimento”, explica o professor, que é doutorando em psicologia
na PUC-RS na linha de pesquisa de estudos culturais e modos de subjetivação.
Segundo Rivero, antes de uma tomada de poder por facções políticas ou institucionais, há uma
construção subjetiva e uma certa condescendência
com a usurpação da possibilidade do exercício da
liberdade. Ou seja, quando, mesmo pela força, um
governo totalitário se impõe, provavelmente ele
tem sustentação da população. “A extrapolação e
usurpação da liberdade de um povo é também um
reflexo de uma abdicação do poder ou de uma servidão voluntária de um povo”, comenta.
Ainda, segundo o professor, esses fatos não são
construídos pela disciplina moral somente, mas
principalmente pela produção de subjetividades
conformadas ou resignadas com a falta da liberda-
de. Neste momento, por exemplo, vivemos uma
relação deste tipo em várias ocasiões, onde suspendemos os direitos civis ou mesmo humanos face a
determinadas condições.
“Veja, por exemplo, a reação junto ao filme Tropa
de Elite. Para muitos, foi a denúncia da existência
de um estado de exceção onde vale a lei do mais
forte. Para outros, foi um deleite, por realizar muito
do que gostariam que acontecesse com seus semelhantes fora-da-lei. Ou seja, em nome de um estado
de segurança, se interpõe um estado de exceção
cotidianamente, apoiado por boa parte da população brasileira. É o tratado do estado de soberania”,
explica. O professor acrescenta que esse é um tema
importantíssimo, discutido por autores como Giorgio Agamben, Zygmunt Bauman e Michel Foucault.
Ele esclarece que esses autores, embora não sejam
psicólogos, consideram a subjetividade um aspecto
fundamental para avaliar essas situações.
O trote universitário
Longe da época do regime militar, os universitários brasileiros hoje têm liberdade de agir e pensar.
Mas é nas universidades que acontece um dos maiores exemplos de cerceamento da liberdade: os trotes.
Já foram registradas ocorrências com morte em várias
universidades brasileiras por causa de práticas consideradas graves, como agressões, ingestão forçada de
bebidas alcoólicas, ingestão de misturas de alimentos
com paladar desagradável, entre outras. O primeiro
caso de trote universitário ocorreu em 1831, em Recife. Na ocasião, um estudante morreu a facadas e bengaladas. De lá para cá, o trote se espalhou, e a lista de
acontecimentos fatais aumentou. Nenhuma medida
eficaz foi tomada pelo Ministério da Educação ou por
parte da maioria das universidades.
Sem uma política anti-trote e a prévia investigação sobre o que vem associando a violência
ao ingresso nas universidades, a cultura do trote
permanece no país. “O fenômeno da violência, da
usurpação da liberdade ou mesmo do desrespeito
aos direitos humanos são considerados complexos
e multicausados. O trote universitário é mais uma
das tantas tradições que temos na universidade
moderna. Tanto o agressivo como o politicamente
correto são modos apresentados como possíveis,
como repertórios, para nossos estudantes viverem
este momento”, explica o professor Rivero.
Segundo ele, as pessoas podem pensar na forma
como vivem a relação com seus semelhantes. Muitas
vezes, os indivíduos percebem o próximo como uma
ameaça ao bem estar próprio e não como uma possibilidade de convivência. De acordo com o professor, existe uma valoração das pessoas. É possível, por
exemplo, entender as classes populares como perigosas para uma minoria mais afortunada, de uma classe
rica. “Subjetivamente, o efeito que tem este discurso
é de que existem pessoas melhores, aquelas que valem a pena, e outras que não valem”, analisa Rivero.
“Seria importante alguma destruição, como
abandonar a idéia de que a liberdade é uma propriedade individual. Ela, na verdade, é um direito”, acrescenta o professor. Ele diz que é preciso
perceber a liberdade como uma ação, um exercício
entre sujeitos livres. Aproximar-se da idéia de que
liberdade é uma realidade política e coletiva, uma
conquista e não um presente. Essa deveria ser uma
das lições mais ensinadas aos universitários.
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