Fragmentos éticos, filosóficos e educacionais para os dias de hoje
Bruno Pucci1
Não quero neste ensaio falar dos elementos teóricos, metodológicos, nem do
conteúdo ético-filosófico-educacional presente no livro que ora prefacio. Todos esses
tópicos, muito bem desenvolvidos ao longo das páginas, refletem seriedade, dedicação à
pesquisa, coerência e clareza na exposição. Certamente os leitores atentos e não apressados
se sentirão instigados a um diálogo tenso e crítico com o autor. Quero apenas colher
mensagens espalhadas furtivamente no transcorrer das palavras que compõem densamente
as páginas desta obra.
O fio condutor das reflexões do autor é o pensamento de Max Horkheimer, filósofo
frankfurtiano, que sombriamente analisa os entraves à cultura, à filosofia, à educação
presentes na organização da sociedade capitalista dos anos 40 a 60. A racionalização
integral do mundo deixa então de ser um fenômeno puramente aparente para embrenhar-se
na constituição de todas as produções humanas: ciência e consciência, indivíduo e
coletividade, bens materiais e bens espirituais. O todo é invadido e submetido à
racionalização, ao planejamento. As pessoas desde a mais tenra idade são levadas a se
adaptarem à realidade da troca; só tem valor social o pensamento que justifica sua utilidade
imediata; a cultura passa a se manifestar predominantemente como artigo auxiliar da
produção. O pensamento de Horkheimer dos anos 60 se torna pré-anúncio da radicalização
da razão instrumental no novo milênio!
Questões básicas, derivadas dessa lógica coercitiva, povoam o texto do novo livro.
Em lugares diversos pergunta o autor: o que pode a filosofia contra o caráter administrado
da sociedade contemporânea se ela própria se insere na perspectiva do iluminismo, base
dessa mesma sociedade? Como encontrar atualidade para a “via crítica da razão”? como ser
crítico na reino dos descartáveis sem banalizar a dor e o sofrimento? Como manter a
denúncia sem torná-la supérflua? como educar para a sensibilidade indivíduos
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Professor Doutor Titular da Faculdade de Educação da UNIMEP, Coordenador do Grupo de estudos e
pesquisa “Teoria Crítica e Educação”, com apoio do CNPq e da FAPESP.
profundamente marcados pela “frieza”, pela “apatia”? como pensar uma ética da
compaixão que possa atuar contra a insensibilidade dominante e não compactuar com a
barbárie crescente? qual a validade de se pensar uma educação para a autonomia em um
“mundo administrado” pela onipresença da razão instrumental? E o autor aborda
pacientemente questão por questão, analisando-as densamente, buscando subsídios teóricos
em clássicos do pensamento filosófico e ético (como Shopenhauer, Kant, Nietzsche), sem
preocupação direta em apresentar receitas ou saídas falaciosas. Antes, leva o leitor a pensar,
a fazer múltiplas relações com o objeto analisado, a não se deixar iludir pelas conciliações
apressadas e infrutíferas. Suas considerações críticas são temperadas pela utopia negativa,
na esperança de transformar a consciência das pessoas que vão atuar sobre o mundo
danificado.
A força irresistível do progresso, as novas descobertas científicas, a aplicação de
novas tecnologias — todos eles marcadamente gerenciados pelo mercado —
desenvolveram nos seres humanos a síndrome da pressa e da funcionalidade: as ações
humanas devem ser realizadas bem e o mais rapidamente possível; tem mais valor para o
sistema os produtos de utilidade imediata. Desatualizam-se rapidamente os instrumentos de
trabalho, de cultura, de entretenimento; os valores morais, que constituíam a busca do
homem pela autonomia individual, são vertiginosamente
substituídos pelo ethos do
consumo; as idéias científicas, filosóficas, culturais se sustentam socialmente se tiverem
intencionalidade prática. Na realidade escolar, a síndrome da pressa e da funcionalidade se
manifesta de maneira cada vez mais evidente: a valorização das disciplinas práticas e de
utilidade profissional, a simplificação dos programas dos cursos para se adaptarem às leis
do mercado, a invasão desenfreada de instrumentos “facilitadores” de aprendizagem nas
salas de aula, a exigência de um contínuo aperfeiçoamento do docente para se lidar com as
novas técnicas educacionais. Desenvolvem-se nos educadores, bem como nos demais
profissionais, uma nova síndrome: a busca descomedida por novos cursos de “atualização”,
para não serem descartados pelas mudanças. Divino, a partir de Horkheimer, nos chama a
atenção para a dificuldade dos indivíduos, nos dias atuais, em construírem experiências. As
pessoas, quais turistas irriquietos, movimentam-se apressadamente de um lugar para outro,
em busca de novidades, de “coisas básicas”. Enquanto que a experiência, propriamente dita,
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exige “perder tempo” com as pessoas, com os objetos, exige o otium — o tempo reservado
para fortalecer as coisas do espírito —, supõe um olhar longo e contemplativo sobre o
mundo; enquanto o ritmo da produção, do mercado e do consumo cada vez mais absorve
nossas potencialidades, reifica nossos sentidos, modela nossa cosmovisão.
O que dizer da cultura, caracterizada por Jurandir Freire Costa, como “a morada da
ética” — por nela habitarem as nossas mais elevadas aspirações morais —, quando a esfera
dos valores contemporâneos vem sendo quase que integralmente absorvidos pela
civilização, submetida aos interesses da produção e da reprodução materiais? (Costa, 1994,
p. 76). O que dizer da formação cultural que, segundo Theodor Adorno, necessariamente
portava em seu conceito a “situação de uma humanidade sem status e sem exploração”, e
que, com a sobreposição da sociedade administrada, fez prevalecer os mecanismos de
adaptação, a “superioridade do meio organizado universal sobre todo fim racional”? 2. Por
sua vez, para Horkheimer — nos mostra o autor — se antes a realidade era confrontada
com os conceitos regulados por algum ideal, hoje a própria realidade, na sua mais crua
dureza, é elevada ao status de ideal, e o “ajustamento se torna o modelo para todos os tipos
imagináveis de comportamento” (Silva, 2001, p. 37). Ajustar-se, adaptar-se, integrar-se eis
o mandamento primeiro e fundamental da sobrevivência na sociedade do capital.
Divino nos mostra ainda, a partir de Horkheimer, como o preconceito, fruto de um
conhecimento fragmentário e parcial — pré-conceito, pré-juízo, pré-julgmento — oculta
comportamentos e sentimentos bárbaros, conscientes ou inconscientes, causado(s) pelo
caráter competitivo da sociedade ao longo da história. Horkheimer chama o conjunto de
preconceitos de “cicatrizes psíquicas”, de “instintos destrutores reprimidos” (1976d, p.
180). O preconceito acaba se transformando em “disposição do caráter”. Numa sociedade
administrada, como a nossa, em que os esquemas da industrialização da cultura e de
manipulação das pessoas, geram padronização, tipos e comportamentos estereotipados, o
preconceito encontra um campo fértil de reprodução e de vigência. O que sai da
normalidade, o diferente de nós, é tratado como out side, como inferior, como merecedor de
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ADORNO, T. W. “Teoria da Semicultura”. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia
B. Moura Abreu. In : Educação & Sociedade: Revista quadrimestral de ciência da educação, AnoXVII, nº
56, Campinas: Editora Papirus, dez/96, pp. 391-392.
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ódio e de crueldade. O diferente, pela sua própria constituição histórica, gera instabilidade e
desconfiança. Merece ser perseguido. Horkheimer mostra assim que o preconceito não é
criação da natureza; existe uma história oculta por detrás de sua manifestação. E essa
história é permeada de dor, de injustiça, de repressão. Essa história deve ser narrada, para
que o preconceito seja denunciado e abra perspectiva de ser superado. “Os preconceitos
produzem o enrijecimento dos indivíduos, conduzindo-os ao fechamento para qualquer
experiência. Olhamos as pessoas e projetamos nelas os nossos recalques. (...) Olhamos as
pessoas e definimos previamente em quais clichês elas se encaixam. Assim passamos a
alimentar contra elas o nosso ódio e a nossa inveja” (Silva, 2001, p. 183). Numa crônica
escrita por mim tempos atrás, sobre a história paralisada, tentei mostrar o quanto é difícil
superar o preconceito. Assim concluo minha narrativa:
O autor ressalta ainda o espaço privilegiado da filosofia nos escritos de Horkheimer.
Na verdade os dois são filósofos. A filosofia, como toda e qualquer expressão espiritual, se
deixou contaminar pelo vírus histórico da razão instrumental. Perdeu sua potência, quando
se colocou ao lado da ciência na justificação da realidade dada, quando quis se tornar
também explicação dos fatos. Sofreu o controle das instâncias planificadoras das
organizações sociais; esvaziou sua capacidade de negação. Passou a apoiar o sistema e
colocou os pensadores de braços dados com os dirigentes. Positivizou-se. Horkheimer,
fundamentado em Schopenhauer e em Marx, quer resgatar o potencial crítico da filosofia
iluminista. Alia a seu materialismo histórico o poder do pessimismo no combate à
resignação que tomou conta dos homens. É preciso despertar a razão da letargia e das falsas
certezas do “mundo administrado”, lançando contra ela as manifestações infindáveis de dor
e de sofrimento que maculam de sangue a história dos homens e a história do pensamento.
Somente na desesperança, no desamparo em que os homens se deparam, é possível
vislumbrar possibilidades de reação, esperanças de solidariedade. Com o auxílio de
categorias freudianas, mostra que a filosofia pode ser um instrumento singular na ajuda do
homem no contato com seus recalques. Através dos conceitos e, particularmente, da palavra
o sentido do que foi reprimido, os impulsos miméticos oprimidos, podem ser liberados. A
filosofia se torna assim o esforço inaudito de chamar as coisas pelo seu próprio nome,
quase como que se o nome identificasse plenamente aquilo que a coisa é. Escolher o
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conceito e a palavra para tentar nomear a coisa, procurar chamá-la pelo seu próprio nome é
ter a coragem de descobrir a história de dor e de sofrimento nela coagulada. Daí o esforço
negativo e rebelde da filosofia contra o estabelecido, contra o naturalizado; daí sua busca
incessante em ir além de si mesma no pronunciamento do indizível. A filosofia se desdobra
em narração; a narração em desnudamento, em revelação, em intervenção. Nessa
perspectiva é possível se detectar o potencial educativo presente no processo de filosofar. A
filosofia se torna educadora da própria razão, num sentido próximo ao da paidéia, na
formação de indivíduo autônomos (Cf. Matos, 1997, p. 07-11). Pode-se dizer que
Horkheimer, mesmo escrevendo poucos ensaios sobre educação, se torna realmente um
educador pela potencialidade pedagógica presente em seus livros filosóficos.
Linhas atrás falava da dificuldade de se fazer experiência num mundo de mudanças
contínuas. As mudanças são velozes, a construção da experiência é morosa. Como manter a
tensão entre a velocidade das mudanças e a morosidade da experiência e não ser atropelado
pela primeira? Penso que isso seja fundamental. Não se trata de virar as costas ao progresso
ininterrupto e buscar saudosamente os instrumentos artesanais do passado. O que carateriza
a formação, na perspectiva de Horkheimer, é a polaridade entre seus momentos de
adaptação e de autonomia. O processo de adaptação supõe a imersão na sociedade
administrada de hoje, o conhecimento mais profundo de suas leis, de suas ciências, de seus
poderosos instrumentos funcionais. É preciso ser contemporâneo de seu tempo. O processo
de autonomia, por sua vez, significa a afirmação do indivíduo contra o poder do social, o
desenvolvimento de gérmens de resistência e de crítica à situação dada, a utilização
consciente dos instrumentos de poder a serviço da emancipação. Servirei-me, sim, dos
aparatos tecnológicos de última geração, a serviço de minha autonomia, mesmo sabendo
que esses produtos trazem em si mesmo a intencionalidade do mercado. Penso que uma
educação crítica nos dias de hoje não pode virar as costas para os instrumentos modernos
de aprendizagem e de informação; mas também não pode dispensar os momentos de
aprendizagens que exigem tempo, paciência, dedicação. A arte de construir experiência
constitui um aprendizado fundamental na formação de nossos jovens apressados.
5
*****
Meu olhar cansado e enviezado pelas múltiplas leituras frankfurtianas não me
impediu de encontrar
mensagens significativas e fecundas no livro ora analisado, e
continuar com o autor um diálogo iniciado há muitos anos atrás, por ocasião de seu
mestrado, na Universidade Federal de São Carlos.. Certamente você, leitor, atento, inquieto
e não tão influenciável quanto eu, encontrará outros importantes espaços de diálogo e de
questionamento às exposições contempladas no livro. Certamente, o processo de trazer as
idéias de Horkheimer para fertilizar as análises sobre “Ética e Educação para a
sensibilidade” produzirá tensões, reações críticas e novas contribuições de todos aqueles
que ainda não foram completamente integrados pelo mercado. Boa leitura!
Piracicaba, 28 de agosto de 2001
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