VIOLÊNCIAS SOFRIDAS NA INFÂNCIA E SEUS REFLEXOS NA VIDA ADULTA
ROZANGELA ALVES JUSTINO
O workshop de Fátima contou com a participação de Rozangela Justino (2a. da esquerda para direita), e de Angele
(na roda, olhando para a câmera)
Este trabalho representa o resultado dos estudos realizados por Rozângela Justino e Sylvanyr Castro, na
PUC-Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, para a disciplina: Introdução ao Debate e aos Estudos
sobre Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes, ministrada pela professora Irene Rizzini e sua
assistente Carla Sartor sobre a violência e suas manifestações na vida das pessoas, especialmente as violências
sofridas na infância e/ou adolescência. Esta síntese sofreu acréscimos teóricos feitos por Rozangela Alves Justino
que não constam do trabalho original.
Elaboramos um instrumento de pesquisa, que se encontra no final da presente síntese, onde nos baseamos no
ECA-Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), como também em conceitos e definições de diversos
autores como Cukier, Fahlberg, Furniss, López, Fuertes, Zwahlen, Rizzini, Assis, Aguiar, Marques, Morgado,
Buvinic, Morrison, Shifter, Larraín, Constantino, Hirigoyen, Allender, Silva, outros pesquisadores e estudiosos do
tema e instituições como ABRAPIA-Associação Brasileira Mul-tiprofissional de Proteção à Infância e
Adolescência, FIA-Fundação para a Infância e Adolescência, SBP–Sociedade Brasileira de Pediatria, CLAVESCentro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli, ENSP-Escola Nacional de Saúde Pública,
FIOCRUZ, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Ministério da Justiça, além da nossa experiência em clínica
psicológica e instituições de atendimento às pessoas vítimas de violências diversas.
Universo Pesquisado
189 pessoas de 18 a 72 anos (média de idade = 32/33 anos) responderam ao instrumento de pesquisa em 30
dias, iniciados no dia 22 de junho de 2002:
Gênero: masculino = 75; feminino = 113; indefinido = 1;
Escolaridade: 1 não mencionou o grau de escolaridade; 8 não estudaram; 23 ensino fundamental
incompleto; 12 ensino fundamental; 37 ensino médio incompleto; 44 ensino médio; 27 superior incompleto; 29
superior; 5 pós-graduação; 3 mestrado;
Religião: 76 evangélicas; 73 católicas; 2 cristãos; 14 espíritas; 1 acredita em Deus; 1 universalista; 1
testemunha de Jeová; 21 não professam qualquer religião.
Estado Civil: 54 casadas; 114 solteiras; 8 viúvas; 9 separadas; 1 divorciada; 3 não colocaram o estado civil.
Filhos: 73 têm filhos; 116 não têm.
O universo pesquisado foi o de profissionais das áreas de saúde e humanas; universitários; estudantes do ensino
médio de colégio público estadual; comunidades rurais; Baixada Fluminense; pessoas que vivenciam ou
vivenciaram a homossexualidade; ex-dependentes/dependentes químicos que estão em instituição de atendimento e
pessoas de origens diversas.
Proposta de Verificar:
1) Se as pessoas costumam sofrer violência(s) na infância e/ou adolescência;
2) As violências predominantes, conforme o gênero masculino ou feminino;
3) A faixa etária em que as violências foram mais freqüentes;
4) Se estas violências foram sofridas no lar ou fora dele;
5) Os sentimentos aflorados diante das situações de violência;
6) As promessas que as pessoas fizeram para a vida adulta após terem sofrido as violências;
7) Se as violências sofridas lhes trouxeram dificuldades na vida adulta;
8) Se receberam algum tipo de apoio/ajuda para superarem as suas dificuldades e quais foram;
9) Se estas violências se repetiram nas relações com outras pessoas de forma a serem revitimizadas na vida
adulta ou tornarem-se autoras das mesmas ou outras violências que sofreram.
II. Violência Social –
Violência Doméstica.
Partindo do conceito de sociedade como a reunião de homens que vivem em grupos organizados e sujeitos às
mesmas leis, sempre que uma lei é desrespeitada o homem está cometendo uma violência contra a sociedade em
que ele vive, pois a violência é um desrespeito aos limites estabelecidos por esta sociedade sob a forma de
constrangimento físico, psíquico ou moral exercido sobre alguém ou sob a própria sociedade.
As normas sociais podem ser reformuladas de acordo com o momento histórico e cultural de um povo. Quem
avalia se o comportamento é violento ou não precisa se despir dos conceitos e valores pessoais, para levar em conta
a percepção individual das pessoas envolvidas, o seu histórico, os seus conceitos e valores, a cultura em que vive,
além do momento sócio-político em que a sociedade se encontra. Por estas razões, é complexo avaliar se o
comportamento foi ou não violento.
As várias sociedades e países da América Latina não concordam quanto à maneira de definir a violência. As
diferenças ainda são maiores quando se trata de definir “violência doméstica”. A principal dificuldade é que a
tolerância e a aceitação da violência variam de uma para a outra. Assim, é muito difícil estabelecer uma definição
comum e universalmente aceita de violência doméstica. As definições existentes discordam quanto ao
comportamento e às manifestações consideradas violentas. Algumas incluem apenas a violência física, enquanto
outras levam em conta a agressão psicológica e a negligência grave. Algumas consideram que um único episódio é
suficiente para a violência existir, enquanto outras acham que o comportamento tem de ser repetido. (LARRAIN in
MORRISON e BIEHL. A Família Ameaçada. FGV, Rio de Janeiro, RJ, 2000, p. 113)
Segundo Rosana Morgado, em sua Tese de Doutorado Abuso Sexual Incestuoso: seu enfrentamento pela
mulher/mãe (PUC-SP, 2001, cap. 2 p. 85-115), a família é uma instituição social atravessada por relações de poder
e dominação, porém, no imaginário social, a família é considerada um espaço de socialização pelo afeto, respeito
aos indivíduos e união pelo amor. A Igreja, a medicina, o direito, a psicologia e a formulação sociológica
funcionalista foram os seguimentos sociais que sustentaram e difundiram este modelo de família ao longo do Séc.
XX.
Inúmeras pesquisas têm demonstrado que o lar é um espaço de extremo risco para crianças e adolescentes, em
todas as classes sociais e nas mais diferentes sociedades. A família, longe de ser o espaço de exercício de amor e
respeito entre seus membros, destaca-se como o locus de graves agressões, que continuam sendo mantidos, sob o
mais forte sigilo. (MORGADO, 2001, p. 99)
Morgado cita diversos autores que respaldam as suas afirmações:
Giffin faz suas as palavras de Prado & Oliveira (1982), [A família] “é agora definida como um terreno
privilegiado para o aprendizado de normas, valores e técnicas de violência”. Prossegue, citando Moreira et al.
(1992): “assim considerada, a violência (doméstica) insere-se no plano da ordem, não é desvio” (GIFFIN, 1994, p.
150, in MORGADO, 2001, p. 100)
Observam Saffioti e Almeida que: “o domicílio constitui um lugar extremamente violento para as mulheres e
crianças de ambos os sexos, especialmente as meninas”. (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995, p. 33, in MORGADO,
2001, p. 99)
No Rio de Janeiro, em 1991, os boletins da polícia civil demonstraram que “67% dos homicídios praticados
contra crianças (zero a onze anos) foram perpetrados na própria família”. (apud, SOARES, 1999, p.24, in
MORGADO, 2001, p. 100)
Quanto à violência sexual, estudo realizado no ABC paulista registrou que “90% das gestações em jovens com
até 14 anos foram fruto de incesto [abuso sexual incestuoso], sendo o autor, na sua maioria, pai, tio ou padrasto”.
(SEIXAS, 1999, p. 118, in MORGADO, 2001, p. 99)
“(...) o ambiente familiar é, com maior freqüência do que seria desejável, um ambiente factível de expressão da
violência e como tal deve ser encarado”. (ASSIS, 1994, p. 45, in MORGADO, 2001, p. 100)
Segal (1989) afirma que: “longe de ser uma proteção para as mulheres, a família nuclear burguesa tradicional
tem sido um lugar onde a prevalência de abuso de crianças, violência doméstica e estupro é sistematicamente
ocultada e negada”. (apud, GIFFIN, 1994, p. 150, in MORGADO, 2001, p. 100)
Ferenczi, em 1932: “mesmo crianças que pertencem a famílias honradas e de tradições puritanas, com mais
freqüência do que ousaríamos supor, são vítimas de violências e estupros (...)”. (apud, LAMOUR, 1997, p. 46, in
MORGADO, 2001, p. 100)
Morgado chama a atenção para o fato de que é preciso problematizar o atual modelo dominante de família e as
suas relações afastando-se do simplismo de caracterizar como desajustadas ou deses-truturadas aquelas famílias em
que a violência doméstica tem lugar, pois “...ao culpabilizar indivíduos ou patologizar o fenômeno, estamos
reduzindo um problema de ordem pública à esfera do individual, negando o quanto os sujeitos se constituem e são
constituídos nas e pelas relações sociais”. (MORGADO, 2001, p. 99)
Saffioti também compartilha desta mesma posição dizendo que “...é necessário que passemos a ver a dor
pessoal, a mágoa e a cicatrização de cada criança, como um assunto não de caráter privado, mas social”.
(SAFFIOTI, 1989, p. 88, in MORGADO, 2001, p. 99)
Victória Fahlberg faz afirmações semelhantes em Fatores que Influenciam o Risco de Violência Doméstica
(PUC-Rio, 1996): “A sociedade promove a violência quando a violência é usada como um meio para resolver
problemas sociais”. (FAHLBERG, p. 24)
Numa matéria da Revista Superin-teressante-especial, Ed. Abril/2002, p.9 encontramos as seguintes
afirmações:
“O Brasil é considerado um dos países mais violentos da América Latina, que é a região mais violenta do
globo terrestre.
(...) Em uma pesquisa da ONU, realizada com dados de 1977, (...) o Brasil ficou com o preocupante terceiro
lugar entre os países com as maiores taxas de assassinato por habitante. Na quantidade de roubos, somos o quinto
colocado. (...) Na cidade de São Paulo, em 2001, o assassinato foi, pela primeira vez, a principal causa de mortes
de mulheres (...). Sem contar as vidas perdidas, o crime custa ao Brasil mais de 100 bilhões de reais” (Revista
Superinteressante, Ed. Abril/2002, p.9).
Continua Fahlberg: “A exploração é um mal profundamente enraizado na cultura do Brasil desde o período
colonial. Todos são atingidos pela exploração embora os fracos, que incluem os velhos, as crianças, os pobres, os
negros e as mulheres, sejam os grupos mais fortemente atingidos”. (FAHLBERG, p. 25)
“Quando uma sociedade cria um sistema político que deixa o seu povo com um senso de impotência, esse
mesmo povo impotente tentará compensar por seu desamparo dominando alguém mais fraco que ele próprio, tendo
como resultado o domínio de crianças”. (FAHLBERG, p. 26).
É como um slogan de um cartaz da ABRAPIA em conjunto com a FIA que diz: “...Pais apanham da vida e
filhos apanham dos pais!”
Longe de ser uma prioridade das políticas sociais públicas, já está havendo uma crescente preocupação com a
violência doméstica/violência social enquanto uma preocupação pública:
“A violência política e social tem sido um fator permanente nos países da América Latina e do Caribe. Só na
última geração, no entanto, é que a violência contra as mulheres tornou-se uma preocupação pública”. (LARRAIN
in MORRISON e BIEHL. A Família Ameaçada. FGV, Rio de Janeiro, RJ, 2000, p. 113)
III. Resultados preliminares
conforme a proposta:
1) As pessoas costumam sofrer violências na infância e/ou adolescência, independente de gênero, grau de
instrução, religião;
2) As principais violências relatadas por todas as pessoas foram: agressão verbal, discriminação, agressão
física, abuso sexual e presenciar cenas de violências.
As violências predominantes de acordo com os grupos pesquisados foram:
a) Profissionais:
- Gênero masculino: presenciar cenas de violência;
- Gênero feminino: abuso sexual.
b) Universitários:
- Gênero masculino: Foi assaltado, roubado ou viu alguém ser assassinado, assaltado ou roubado / agressão
física;
- Gênero feminino: Agressão verbal/discriminação.
c) Estudantes de Ensino Médio:
- Gênero masculino: não teve representante do sexo masculino neste grupo;
- Gênero feminino: agressão verbal.
d) Comunidades Rurais:
- Gênero masculino: agressão verbal;
- Gênero feminino: abuso sexual.
e) Baixada Fluminense:
- Gênero masculino: agressão verbal;
- Gênero feminino: agressão física.
f) Pessoas que vivenciam/viven-ciaram a homossexualidade:
- Gênero masculino: agressão verbal / abuso sexual;
- Gênero feminino: agressão verbal / discriminação / abuso sexual.
g) Dependentes químicos/ex-dependentes químicos:
- Gênero masculino: agressão verbal;
- Gênero feminino: agressão verbal.
h) Origens diversas:
- Gênero masculino: agressão verbal;
- Gênero feminino: discriminação.
3) Recordam-se de terem sofrido violências, principalmente, no final da infância para o início da adolescência;
4) Os principais autores citados foram as pessoas da família e/ou ligadas afetivamente a elas, tais como amigos,
colegas, e outros;
5) Os sentimentos que mais afloraram nestas situações foram: raiva/ódio, medo, vergonha e em situações de
abuso sexual/gênero masculino: alegria, prazer, satisfação;
6) Muitas relataram as promessas que fizeram para a vida adulta e estas sugerem relação com o
comportamento atual destas pessoas;
7) Diversas pessoas correlacionaram as suas dificuldades atuais com as violências sofridas; várias declararam a
superação das dificuldades devido às violências que sofreram; a maioria parece viver sem muita consciência das
violências que sofreram, embora as tenham relatado;
8) As pessoas procuram apoio/ajuda, primeiramente, entre amigos e familiares; muitas tentaram superar
sozinhas, com o tempo – poucas procuram ajuda profissional e foram escassas as citações de contarem com a
ajuda das instituições religiosas as quais pertencem;
9) Muitas declararam perceber a repetição das violências nas relações com outras pessoas de forma a serem
revitimizadas ou tornando-se autoras das mesmas ou outras violências que sofreram; algumas declararam que as
violências sofridas serviram de motivação para ajudar pessoas que sofrem violências.
Propomo-nos a introduzir estudos sobre este tema e concluímos que para cada violência que pesquisamos
muito se tem a estudar, principalmente quanto à reação das pessoas às violências que sofreram.
Pessoas que tiveram que trabalhar na infância em detrimento dos seus estudos, por exemplo, não demonstraram
consciência de terem sofrido violência político/social; o mesmo aconteceu com os jovens universitários quanto às
violências sofridas através da mídia – muitos questionaram se assistir a cenas de violência era violência, pois já se
tornou algo natural na vida deles – ainda carecemos de maiores estudos nestas áreas.
As violências parecem interferir, marcar a vida adulta mais ou menos, conforme a leitura individual de cada pessoa
na época em que sofreu a violência, o que dependerá das características individuais, bem como do contexto grupal
e social em que a pessoa vive/viveu.
Rozângela Alves Justino é psicóloga no
Rio de Janeiro, com especialização em psicologia clínica e escolar, formação em psicodrama e psicopedagogia, treinamento em
EMDR (níveis 1 e 2) e Coordenadora
do Núcleo do CPPC-Niterói.
E-mail: [email protected].
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