BAÚ DE PESQUISA
BIENAL 10
SUMÁRIO
COLÔMBIA COCA-COLA
03
Obra de Antonio Caro (Ficha de referência)
A LOGO FOR AMERICA
10
Obra de Alfredo Jaar
SIN TÍTULO (OLOR A NUEVO)
19
Obra de Fritzia Irízar
TREPANTE, VERSÃO 1
25
Obra de Lygia Clark (Ficha de referência)
O PORCO
32
Obra de Nelson Leirner
DIOXAZINE
38
Obra de Rogelio Polesello (Ficha de referência)
MÁQUINA DO MUNDO
46
Obra de Laura Vinci (Ficha de referência)
80 GRAMOS
52
Obra de Gabriel de la Mora
ACOSO
57
Obra de Kukuli Velarde (Ficha de referência)
NUESTRA SEÑORA DE GUADALUPE, PATRONA DE LA NUEVA ESPAÑA
64
Obra de artista anônimo
EXPERIÊNCIA Nº 3 - NEW LOOK
Obra de Flávio de Carvalho
69
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Galeria Casas Riegner
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da Obra: Colombia Coca-Cola
Ano: 1976
Artista: Antonio Caro (1950, Bogotá, Colômbia)
Suporte: esmalte sobre lata 100x76cm
Palavras-chave: arte conceitual, pop art, identidade, crítica, capitalismo, produto, mercado de consumo.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970 - Cildo Meirelles (1948, Rio de Janeiro - Brasil)
Decalque silk screen sobre vidro. 18 x 8 Ø cm cada.
2. BIOGRAFIA
Antonio Caro, que é tido como um grande nome das artes visuais colombianas, nasceu em Bogotá, Colômbia, em
1950. É conhecido por suas proposições e obras que adotam visuais icônicos, usualmente trazendo questionamentos
políticos, em grande parte a respeito de seu país, bem como a respeito do meio artístico, seu caráter comercial e acadêmico. Iniciou sua carreira nos anos 1970, sempre polemizando em suas exposições e participações em exposições.
A seguir, dois textos a respeito do artista.
A enigmática arte de ser Antonio Caro
Revista Bocas, Jornal El Tiempo, Colômbia, 31 de outubro de 2014.
Texto: Natalia Castillo.
“Desde os anos setenta, Antonio Caro é uma figura da arte colombiana. Hoje, com mais de quarenta anos de trajetória,
não somente se mantém vigente, mas ainda abala os alicerces da cena artística nacional. Talvez por isso, e por tudo o
que representa sua figura, já é uma lenda: uma espécie de super-herói das artes plásticas colombianas. É reconhecido por ser um dos pioneiros da arte conceitual na América Latina e por ser o dono de um selo muito particular
que mescla a irreverência e a polêmica. Aos 63 anos, ainda seleciona seu vestuário diário, que é o mesmo há décadas:
jeans, botas, flanelas e mochilas.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Em uma carta dedicada a Bob Dylan, o escritor Ray Loriga disse: ‘De Bob Dylan todo mundo sabe algo e de Bob Dylan
ninguém sabe nada’, e com essa frase conseguiu condensar a essência de um homem que, em si mesmo, é todo um
universo: uma espécie de super-herói dos nossos tempos.
De Antonio Caro todos sabem algo e de Antonio Caro ninguém sabe nada. Parafraseando.”
Tradução e adaptação do Núcleo de Documentação e Pesquisa (NDP) – Fundação Bienal do Mercosul. Texto integral disponível AQUI.
Acesso em: 17 ago. 2015.
Antonio Caro, guerrilheiro visual
Revista Polyester, n. 12, p. 40-45, Colômbia, verão de 1995.
Texto: Luis Camnitzer.
“Meu primeiro contato com a obra de Antonio Caro foi através de um carrinho de arame que me deram. Feito ao
estilo dos filhos de Burkina Fasso – apenas mais bruto e desajeitado –, carregava um maço de cigarros Marlboro. Era
1975 e eu nunca havia estado em Colômbia. O significado da marca de cigarros (símbolo da venda de rua em Bogotá
e eufemismo para a mendicidade das crianças de rua) se me escapava e, no geral, o contexto da obra de arte (se era
tal) me era desconhecido. A confusão me deixou com as alternativas de declará-la um joguinho talvez sentimental e
definitivamente frívolo, ou vê-la como portadora de um mistério estrangeiro.
A segunda obra em minha experiência foi a palavra ‘Colombia’ escrita em letra Coca-Cola. Perfeitamente produzida
em nível de aviso publicitário profissional, de pronto o carrinho de arame deixou de ser uma estupidez casual. Caro
era capaz de mesclar ícones de forma perfeita e verossímil. Conseguia não somente o tipo de evocações de um bom
aviso, mas também, em sua realização pretendidamente anônima em termos visuais, unia o humor e a política de tal
forma que a literalidade da mensagem obrigava o perdão.
O terceiro encontro foi duplo, através de uma série com o texto ‘Todo está muy caro’ e com Caro em pessoa. A série
jogava com a queixa popular sobre os preços e com o nome do artista. De certo modo, Caro buscava a integração
de dois mercados, um por descrição crítica, o outro por divulgação da sua própria imagem e possível venda. A combinação da crítica e a exploração do mecanismo mercantil é um evento comum no mundo da arte. Na ambiguidade
da definição artística contemporânea, que não permite separar a mercadoria do ato cultural, é muitas vezes expressa
essa fusão inconscientemente pelo artista. Caro, ao menos, fez isso conscientemente.
Caro em pessoa foi outro tipo de experiência. Não posso jurar, mas creio que vive com uma mochila grudada às costas.
Creio que ‘possui’ coisas, que tem o poder de onipresença e que não envelhece (através dos anos o vi em distintas
cidades da Colômbia, sem razões para estar, sem mudanças visíveis). A despreocupação com sua própria imagem o
converteu em uma espécie de ícone que nos dá uma chave para sua obra. Sua arte carece do fetichismo típico das
obras de galerias, a vaidade foi expulsa do seu mundo e nesse mundo, Caro não é mais que outra obra a mais.
Em termos de esclarecimento artístico, o encontro seguinte foi provavelmente o mais importante de todos: a rubrica de Manuel Quintín Lame. Superficialmente analisadas, são obras que, caindo na sedução do grafismo barroco,
rubrica de Quintín Lame, se limitam a documentar um ornamento. Com um pouco de conhecimento, a mesma
caligrafia, hermética, e ludicidade, se converte em uma expressão de rebelião e desafio. Quintín Lame (1883-1967)
foi um advogado ameríndio autodidata que dedicou sua vida à defesa de seus compatriotas contra a opressão e
a negligência do governo colombiano. Sua luta, sempre dentro dos limites da lei e fundamentalmente conduzida
por meio de petições e apelações que levavam sua assinatura, o levou a ser preso cerca de duzentas vezes com um
total de mais de dezoito anos de prisão, ainda que sem ser comprovada culpa alguma. A decisão de Caro de ‘republicar’ a rubrica, ainda sem comentário político ou explicação, se converteu em uma forma de revitalizar o poder da
letra de Quintín Lame e de fortalecer a consciência de que a Colômbia ainda tem histórias não terminadas. A presença da assinatura aos olhos públicos força o espectador a deduzir as causas e os efeitos e aceitar a presença da
negligência e da opressão contra as quais lutou Quintín Lame. Cada lugar onde a rubrica é exposta se transforma
em um documento de desafio a essas condições.
Contudo, à margem do valor que a obra possa ter politicamente (valor que em última instância está condenado a se
manter restringido), com essas rubricas Caro pôs o dedo em uma espécie de chaga política artística. As assinaturas
de Quintín Lame somente possuem vigência na Colômbia. No momento em que uma dessas obras cruza a fronteira
colombiana, ela perde seu impacto. O conhecimento da história, as ressonâncias da lenda além dos dados estritamente anedóticos, são parte da obra. Sem eles, o que resta é um esqueleto visual que se entendo como decoração vazia.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Nesse sentido, essa obra de Caro não trata apenas com uma especificidade geográfica, mas também com uma especificidade de público e com ele se contrapõe a ideia de uma necessidade de compreensão internacional de uma obra de
arte. Caro, em 1980, com a rubrica de Quintín Lame e com a utilização de recursos provenientes do repertório artístico
internacional, define rigorosamente uma audiência local para sua mensagem. Antes que se estabelecesse a moda do
multiculturalismo das correntes hegemônicas, Caro já ergueu uma resposta ao embate. Uma espécie de vernacularização artística que utiliza os valores artísticos internalizados no meio em que se desempenha. É o mesmo caminho que
posteriormente seguiram muitos artistas cubanos na década de 1980 e que marcou o florescimento da arte em Cuba.
Enquanto nas peças de Quintín Lame Caro se dedicou a subjeções e mitos locais, em sua série de milho se aventurou
em um tema continental. Porém, a sequência de obras (iniciada em 1975) não foi feita para reafirmar o símbolo, mas
sim para desmistificar o estereótipo. Com a desculpa de que tem poucas ideias (uma por ano), Caro se dedicou a
representar o milho (pintado, feito de arame, impresso, etc.), deixando-o crescer uma folha por ano. Quando lhe foi
perguntado por que havia mudado da imagem do Marlboro para a do milho, respondeu que era porque lhe interessava o contraste da cor. Provavelmente a resposta se deve ao humor do momento, pois é paradoxal que Caro pareça
satisfazer necessidades mais subjetivas e pessoais quando se dedica a temas mais gerais. A série do milho parece
servir de sala de espera para as outras ideias. A mais recente, ‘Indícios’, continua com o uso das condições locais para
desenvolver uma ideia. A palavra, inicialmente banal, adquire a função de um desses espelhos policiais que para um
observador é transparente e para outro simplesmente reflete.
Foi a especificidade da obra sobre Quintín Lame que me obrigou a reavaliar seriamente a arte de Antonio Caro. Ver
essa obra como arte, ou não, deixou de ter importância. Caro seguramente se encaixa na corrente artística que desde
os anos sessenta foi categorizada como conceitualismo. Mas também se encaixa em algo mais vasto e culturalmente
mais importante. Caro se manifesta em uma forma muito particular de guerrilha visual. Cuidadosamente aponta para
errar os alvos de tiro definidos e amados pela estrutura de poder artística. Essa vontade de errar é difícil de analisar
com palavras do jargão artístico, do mesmo modo que sua vontade de localismo é difícil de exportar.
Com tudo isso, incluindo sua produção escassa (uma espécie de fraude à confiança que o mercado comercial investe
em um artista), Caro provavelmente é o artista mais subversivo atuando na América Latina atualmente. Um ponto de
referência inevitável para muitos de nós. O carrinho de arame segue na estante, ao alcance dos meus olhos.”
Tradução e adaptação do Núcleo de Documentação e Pesquisa (NDP) – Fundação Bienal do Mercosul.
Texto original em espanhol disponível AQUI. Acesso em: 17 ago. 2015.
2.1. OUTRAS OBRAS
No link a seguir, que contém a lista de obras da exposição Todo está muy Caro – Exposición antológica de Antonio Caro,
encontramos uma variedade de imagens de obras do artista, compreendendo toda a sua carreira. Para ver a imagem,
clique AQUI.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
A obra Colombia Coca-Cola, de Antonio Caro, permite leituras que vão de uma perspectiva relacionada às artes visais, à
arte conceitual, à pop art, e atravessam facilmente para o campo do mercado de consumo, da globalização e, por fim, confundem-se com a história da política externa colombiana e da relação do país latino-americano com os Estados Unidos.
A fim de tornar a presente análise mais clara para o seu objetivo de servir de base para a elaboração de material pedagógico, analisaremos separadamente as perspectivas mencionadas.
3.1. POLÍTICA INTERNA COLOMBIANA
No ano em que Caro realizou a obra (1976), a Colômbia dava os primeiros passos após o “Desmonte da Frente Nacional”, uma coalizão política e eleitoral dos partidos liberais e conservadores colombianos que dominou o país de 1958
até 1974. Criado para governar o país após um período conturbado de violência entre a população civil (período convenientemente chamado de “La violencia”), o sistema bipartidarista também gerou descontentamento, uma vez que
outros partidos e grupos não tenham a capacidade de influir politicamente de maneira direta no governo do país (já
que a Frente Nacional dividiu a governança com alternância entre os dois partidos no executivo, bem como “repartiu”
todo o resto das esferas administrativas nacionais), cenário que favoreceu o surgimento de grupos paramilitares relaPOSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
cionados a guerrilhas de esquerda – as FARC (1964), o ELN (1965), o EPL (1967), o M-19 (1974) e o MAQL (1984) – e ao
narcotráfico – representado pelos cartéis de Medellín, Cali, Norte del Valle e De La Costa. Tanto as guerrilhas quanto os
cartéis (que, por sua vez, tiveram momentos de parceria e guerra entre si) seriam alvo e justificativa para a expansão
da influência estadunidense sobre o país.
3.2. POLÍTICA EXTERNA COLOMBIANA
Partindo do ponto de vista de que o artista, com essa obra, desejou sugerir o debate em relação ao alinhamento político da história da relação entre os dois países, podemos afirmar que ele se refere ao fato de que, segundo Marcelo
Santos (2010), “quando se analisa a história da política exterior colombiana, logo fica evidente que, em grande parte do
tempo, ela esteve permeada por uma forte influência dos EUA. Seja por pragmatismo, convicção ou conveniência das elites
políticas e econômicas do país, ou por sugestões, intervenções ou imposições dos EUA, o fato é que, desde a perda do Panamá, no início do século XX, a Colômbia tem uma relação muito próxima aos norte-americanos”.
Essa relação de alinhamento das políticas externas sempre foi alvo de diversas críticas, especialmente no que se refere
ao fato de que o seu principal foco são as ações militares. A Colômbia, durante o período de 1949 a 1974, foi o segundo
país latino-americano que mais recebeu investimentos norte-americanos (superado apenas pelo Brasil), voltados, em
sua maior parte, ao combate aos cartéis e às guerrilhas. Tais intervenções geraram uma avalanche de críticas ao longo
das décadas. Segundo pesquisas realizadas pelo próprio Departamento de Defesa dos Estados Unidos, tais intervenções
teriam pouco efeito no que tange ao combate ao tráfico e poderiam, inclusive, fortalecer os grupos paramilitares.
Falando sobre o Plano Colômbia (1999), Santos (2010) confirma os problemas gerados por esse foco nas ações militares e demonstra que, dessa forma, a política externa colombiana em relação aos Estados Unidos acaba gerando
vantagens econômicas para este último: “Outra questão a ser notada é que parte do montante financeiro inicial destinado a fins militares na Colômbia foi utilizada diretamente para a compra de serviços e equipamentos militares de empresas
norte-americanas, como a Bell Textron, a Lockheed Martin, a Military Professional Resources e a United Technologies. Esse
plano colocou a Colômbia no seleto grupo composto por Israel, Turquia e Egito, principais países receptores de armamentos pesados e semipesados, treinamento de forças de elite e de assessoria em inteligência militar por parte dos EUA”.
3.3. MERCADO DE CONSUMO E GLOBALIZAÇÃO
No contexto aqui descrito, a tendência ao favorecimento da iniciativa privada norte-americana no que tange às relações bilaterais Colômbia/Estados Unidos parece corroborar a tese de que Caro, em Colombia Coca-Cola, deseja provocar a possibilidade de discussão em relação ao expansionismo econômico de corporações como, por exemplo, a
“gigante” dos refrigerantes.
Essa discussão pode ser aprofundada em termos da análise do mercado de consumo, remetendo aos paradigmas
lançados a partir da globalização das atividades comerciais. Consequentemente, a crítica à sociedade de consumo
torna-se evidente, apontando para um esvaziamento de alguns conteúdos a partir do consumismo, conforme salienta Marilena Chauí (2009, p. 294):
“Em outras palavras, a propaganda ou publicidade comercial passou a vender imagens e signos e não as próprias mercadorias. […] A propaganda comercial também se apropria de atitudes, opiniões e posições críticas ou radicais existentes
na sociedade, esvazia seu conteúdo social ou político e as investe num produto, transformando-as em moda consumível
e passageira. Feminismo, guerrilha revolucionária, movimentos culturais de periferia, liberação sexual, direitos humanos,
etc., são transformados em qualidades que vendem um produto”.
3.4. ARTE CONCEITUAL E POP ART
A relação entre arte e sociedade de consumo, bem como a maneira de se aproximar ao debate, possibilita interpretar
Colombia Coca-Cola por meio da análise da sua relação com a pop art e a arte conceitual.
A apropriação de uma simbologia ligada ao mercado de consumo (no caso, a Coca-Cola) remete aos ícones da pop
art, tais como Andy Warhol, movimento analisado por David Monteiro Pimenta (2013, p. 4):
“A tensão anárquica do Dadaísmo, entretanto transformado em Surrealismo, voltou a ser reacesa quando a Pop Art começou a emergir nos Estados Unidos e no Reino Unido alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial. James (1996) define
o movimento artístico, de uma forma resumida, como a pintura e escultura que empresta a imagem para a cultura de
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
massas, isto é, a chamada grande arte ou arte de elite imita a intitulada como baixa, dirigida para uma grande quantidade
de pessoas. Segundo informações disponibilizadas pelo autor (1996) na obra, os produtos comerciais, a publicidade – uma
parte integrada no quotidiano das famílias americanas e inglesas –, assim como os livros de banda desenhada e mesmo
a pornografia, são materiais elevados pelos artistas pop a objetos de cultura intelectual, anteriormente considerados
como vulgares. Andy Warhol foi um dos artistas, dentro da revolução da Pop Art, que elevou as imagens representativas da
cultura popular e comercial até ao vocabulário de arte”.
Antonio Caro, em entrevistas, aproxima-se de Warhol em alguns aspectos que tornam a comparação entre os dois
artistas um exercício interessante. Além de citar o artista pop americano não exatamente como influência, mas
como referência, ele indica que o trabalho de Warhol e, em especial, a conquista desse lugar de destaque que
ocupa no mundo das artes demonstram a Caro que ele pode ser artista sem se preocupar com regras técnicas ou
acadêmicas. Mais do que isso, vê na apropriação de Warhol dos ícones da sociedade de consumo – inclusive da
onipresente Coca-Cola – e na subsequente transformação da imagem – que 1) parte do item de consumo, 2) altera-o e reelabora-o enquanto objeto de arte para que então chegue ao ciclo completo e 3) quando esse objeto de
arte também é comercializado – o combustível necessário para que Caro chegue ao seu objetivo. O próprio artista
transforma-se em obra quando, em uma série de 1978, ele utiliza a expressão “Todo está muy Caro”. Sua aparência,
que parece ser calculadamente despreocupada, também pode ser interpretada como uma obra de arte, conforme
observa Luis Camnitzer (1995, p. 42):
“Caro em pessoa foi outro tipo de experiência. Não posso jurar, mas creio que vive com uma mochila grudada às costas.
Creio que não ‘possui’ coisas, que tem o poder de onipresença e que não envelhece (através dos anos o vi em distintas cidades da Colômbia, sem razões para estar, sem mudanças visíveis). A despreocupação com sua própria imagem o converteu
em uma espécie de ícone que nos dá uma chave para sua obra. Sua arte carece do fetichismo típico das obras de galerias,
a vaidade foi expulsa do seu mundo e, nesse mundo, Caro não é mais que outra obra a mais.”
Caro, no entanto, é tido como talvez (“talvez” porque ele não utiliza o termo, mas o termo é utilizado para falar nele1)
um artista conceitual. A arte conceitual, como movimento, tem essa característica de interatividade com o público,
que recebe o mínimo de informações possível e transforma o que vê, subjetivamente, em um novo conceito de informação, como salienta Maria de Castro:
“É interessante notar que na arte conceitual o público é obrigado a deixar de ser apenas um observador passivo, pois o
entendimento da obra de arte não é mais direto. O público também é obrigado a refletir e sair da confortável situação
de saber, por antecipação, avaliar se uma obra de arte é ‘ruim’ ou ‘boa’. Não é mais possível ir a uma exposição e dizer
‘essa paisagem está bem composta, a pintura é de qualidade’.
Questões clássicas das artes plásticas como a composição, o estudo de cor e o uso da luz podem não ter sentido nenhum na arte conceitual.
Bem, se o público é chamado a ter o trabalho de pensar sobre a obra de arte para aceitá-la e entendê-la, o trabalho do
artista também não é menos difícil.”
Porém, tanto Warhol quanto Caro têm em comum o fato de se recusarem a discutir, ou elaborar mais aprofundadamente, o caráter crítico de sua obra, por mais explícito que seja. Warhol costumava dizer que ser artista é apenas um
emprego como os outros, enquanto Caro costuma falar mais a respeito das razões práticas de cor e design que o
levaram a escolher, por exemplo, a logomarca da Coca-Cola ou da Marlboro para realizar suas obras. Vale lembrar que
“Coca-cola” e Colômbia são palavras com oito letras (segundo o artista, “Ocho letras por un lado igual ocho letras por
el otro”). Conforme observa Lucas Ospina:
“Caro comenta os problemas de design, as letras que se repetem em ambos os nomes. O problema era a letra m, a b e a i,
que teria que inventar. De um papel oficial da ‘International Company’, roubou as três letras que faltavam. “O problema foi
o b – afirma Caro – o b de bobo, esse foi um problema grave e, como sou um bobo, pude fazer o b de bobo”.
Mantendo-se na fuga de impor explicações que poderiam influenciar o público, Caro também fala do “problema” de
colocar ou não o ponto no “i” de Colômbia, conforme analisa Lucas Ospina:
1. Conforme afirma Carmen María Jaramillo em Colombia: años 70, Revista Al arte colombiano. Sala de exposiciones ASAB, Bogotá, agosto de 2002. (p. 64): […]
resulta ilustrativo acudir a la obra de Antonio Caro, uno de los primeros artistas que incursiona en un trabajo con el lenguaje: una de sus obras consiste en escribir la
palabra Colombia con lagrafía del logotipo de Coca-Cola; acudiendo también a un juego lingüístico; con el nombre de indígenas asesinados constituye la frase “aquí
no cabe el arte”. El artista no alude a un espacio consensual de significación, como el de una proposición analítica, sino que carga sus obras con guiños difíciles de
entender fuera de un ámbito específico, a la vez que propone diversos niveles de lectura para unmismo texto. Caro busca fundir significados, crear ambigüedad y,
finalmente, generar una nueva realidad semántica. La alusión al colonizaje económico y cultural de los Estados Unidos en Colombia, más que contribuir a definir la idea
de nación o la de identidad, contribuye en forma crítica a ampliar las dudas y los interrogantes al respecto”.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
“Porém, para Caro, o foco do problema estava em outro lado: ‘Foi o ponto no ‘i’, porque sou uma pessoa que não põe os
pontos nos ‘is’, e as pessoas se perguntavam, será que faz falta, será que não faz falta, será que ele se enganou?’. No vídeo,
Caro faz um esboço da Colômbia, lhe põe o ponto ausente no ‘i’ e o usa para começar a desenhar um ponto de interrogação. ‘Felizmente, você nunca sabe o que está fazendo – diz Caro – e muito menos para onde vai.”
Sobre a – sem dúvida proposital – recusa em “elucidar o caso” (“porque eu sou uma pessoa que não põe pontos nos
“is”) e a necessidade de desmistificar a figura do artista, David Monteiro Pimenta destaca que a “afirmação ‘it’s just another job’ é de Andy Warhol, no livro The Philosophyof Andy Warhol, publicado em 1975. Galenson (2007, p. 14) apresenta as
observações de David Bourdon sobre o livro, referindo que a visão do artista americano na obra é visivelmente desprovida
de qualquer idealismo sobre a realização de uma obra de arte ou o seu papel na sociedade. Não há também evidência
sobre a posição de Warhol em relação à condição de artista, se a considerava ou não uma profissão honrosa. No capítulo
intitulado Art, o artista pergunta por que é que as pessoas pensam que os artistas são especiais, quando se trata apenas
de um outro emprego”.
E o que existe de fundamentalmente diferente entre Warhol e Caro? A resposta mais simples e direta seria em relação à nacionalidade de cada artista. Caro é latino-americano, condição que carrega – em relação aos compatriotas
de Warhol – uma conotação submissa em termos econômicos e culturais (e, consequentemente, militares e sociais).
É exatamente nessa relação de submissão/imperialismo que “Colombia Coca-Cola” destaca-se de uma maneira que
a coloca à anos luz de distância das “Green Coca-Cola Bottles” do ícone da pop art. Essa interpretação é claramente
subjetiva e necessita de um público que compartilhe desse viés ideológico, o qual não encontrei citado por Caro em
nenhuma entrevista, assim como Warhol jamais falava sobre os “males” da sociedade de consumo quando se referia
às suas obras. Entretanto, ela é, sem dúvida, uma interpretação possível de ser feita. Segundo Camnitzer (1996, p. 44),
“Caro trabalha, de forma muito particular, como um guerrilheiro visual. Ele cuidadosamente mira para errar os alvos que
são definidos e amados pelas estruturas de poder do mundo da arte”.
4. REFERÊNCIAS
4.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIDELIS. G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2014.
CAMNITZER, L. Antonio Caro: guerrillero visual. Revista Poliester, Colômbia, n. 12, p. 40-45, verão de 1995. Disponível em:
<http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/860606/language/en-US/Default.aspx>. Acesso em: 17 jun. 2015.
JARAMILLO, C.M. Fisuras em el arte moderno: nuevas propuestas. Colombia, años 70: Revista al arte colombiano,
p. 5-73, ago. 2002. Disponível em: <http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/ELARCHIVO/RegistroCompleto/tabid/99/
doc/864528/language/es-MX/Default.aspx>. Acesso em: 17 jun. 2015.
PIMENTA, D.M. A criatividade e a pop art: o caso de Andy Warhol. 2005. Trabalho de conclusão de curso (Mestrado em
Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação) – Escola de Sociologia e Políticas Públicas, Instituto Universitário
de Lisboa, 2013.
4.2. REFERÊNCIAS ON-LINE
MICHELLI, C.R.P.; SCHÖPPING, J. Bebendo emoções: Coca-Cola e a psicologia do consumidor, 2002. Disponível em:
<http://docslide.com.br/documents/bebendo-emocoes-coca-cola-e-a-psicologia-do-consumidor.html>. Acesso em:
17 jun. 2015.
CASTRO, M. de. Especial arte conceitual, 2005-2014. Disponível em: <http://www.artepratica.com/especiais/page64/
page64.html>. Acesso em: 17 jun. 2015.
OSPINA, L. Colombia, Antonio Caro, 2014. Disponível em: <http://www.revistaarcadia.com/impresa/especial-arcadia-100/articulo/colombia-antonio-caro/35073>. Acesso em: 17 jun. 2015.
Canal do Panamá. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Canal_do_Panamá>. Acesso em: 17 jun. 2015.
4.3. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
Entrevista con el artista colombiano Antonio Caro, 2015. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=3CEPOSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
vYsh8X5o>. Acesso em: 17 jun. 2015.
Antonio Caro - Parte 1 - Entrevista - Mapa de las Artes Bogota - Interviews with Visual Artists, 2012. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=X6E19mn0_KI>. Acesso em: 17 jun. 2015.
Antonio Caro - Parte 2 - Entrevista - Mapa de las Artes Bogota - Interviews with Visual Artists, 2012. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qipNrZni9h0>. Acesso em: 17 jun. 2015.
Antonio Caro aclara la metodología de su taller, 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kNnMM8oTZ7A>. Acesso em: 17 jun. 2015.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Cortesia do Artista
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: A Logo for America
Ano: 1987-2014
Artista: Alfredo Jaar (1956, Santiago, Chile | reside e trabalha em Nova York)
Suporte: vídeo/animação feita por computador, 45 segundos
Palavras-chave: geopolítica, geopoéticas, ativismo, globalização, pertencimento, periferias, linguagem, identidade.
A Logo for America (1987)
A Logo for America é uma instalação provocante, principalmente por conta de sua alocação. Consiste em uma crítica
a vícios de linguagem e reafirmação da identidade americana como bloco territorial unificado. Trata-se de uma sequência animada de 45 segundos, instalada primeiramente em Nova York, no ano de 1987, no letreiro Spectacolor da
Times Square, a cada seis minutos, intercalada entre comerciais.
Ao início da animação, a representação do mapa dos Estados Unidos é dissolvida e sobreposta com a frase “This is not
America”, ou seja, “Essa não é a América”. O mesmo acontece em seguida com a bandeira do país. Logo após, surge a
palavra “America”, e a letra R acaba por se transformar em todo o mapa da América – do Norte e do Sul.
A seguir, texto de Patrícia C. Phillips sobre a instalação:
“A representação da geografia e os meandros das relações globais influenciam todos os pensamentos e ações de Jaar. Em
projetos mais recentes, sua obsessão o levou a investigações críticas da cartografia. A Logo for America foi uma demonstração explícita da significância das imagens e da linguagem da geografia – suas representações e articulações. A obra
também utiliza uma tecnologia mutável que aproveitou o interesse de Jaar por textos, palavras, processos cinematográficos e design gráfico. Parte de um programa de seis anos patrocinado pelo Fundo Público de Artes de Nova York, Jaar foi um
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
dos trinta artistas envolvidos na produção de uma animação computadorizada de 45 segundos/intervenção exposta no
letreiro Spectacolor, no coração da Times Square.
Durante um mês, a animação criada por ele foi apresentada a cada seis minutos entre as campanhas promocionais da
cidade. Nas incessantes pulsações da cultura comercial, havia –periodicamente e inesperadamente – uma arritmia artística. Sempre ansioso para voltar às ruas onde começou seu trabalho, Jaar usou esse proeminente local para entregar uma
mensagem clara sobre identidade e linguagem. Utilizando-se de uma taxonomia seletiva de sistemas de comunicação –
mapas, bandeiras e palavras –, ele lembrou os espectadores a respeito da propaganda que perpetua o poder.
A animação de Jaar inicia como uma imagem sólida do mapa dos Estados Unidos da América. No enquadramento seguinte, esse mapa transforma-se em um contorno vazio; não mais uma massa sólida, uma intangibilidade que destacava que
as representações são efêmeras e incansáveis.
A seguir, a expressão ‘ESSA NÃO É A AMÉRICA’ aparece escrita sobre a silhueta dos 48 estados estadunidenses. Isso é abruptamente substituído pela bandeira vermelha, azul e branca dos Estados Unidos da América.
Obviamente, esse símbolo é frequentemente e ubiquamente identificado como a ‘bandeira americana’. Por que isso é um
problema? Jaar chama-nos a atenção para as imprecisões oportunistas da linguagem e da percepção.
Finalmente, a bandeira tem sua cor retirada e se lê: “ESSA NÃO É A BANDEIRA AMERICANA”.
A seguir, a palavra “AMÉRICA” aparece solitária. A letra R do centro é lentamente transformada no contorno do mapa
do Canadá, dos Estados Unidos, da América Central e da América do sul. Quando as letras se dissolvem, vemos uma
completa – e correta – representação do continente americano fundindo-se. Em uma selvagem conclusão, a imagem
é duplicada, girada, invertida e sobreposta à palavra “AMÉRICA”. Jaar mudou a autoridade da linguagem através da
vicissitude das imagens.
Apesar de Jaar não ter interesse na apropriação, esse foi o momento oportuno para lidar com a monopolização midiática
através da adoção de suas táticas.
Em meio ao brilho berrante da Times Square, Jaar apreendeu o mundo coorporativo da propaganda para introduzir uma
outra realidade. Seu projeto foi incrementado – literalmente destacado – por uma tela de LED que evolveu um prédio da Times Square nos destaques da imprensa internacional. A invisibilidade do controle midiático e do poder global não poderia
ter sido corroborada de uma forma mais convincente do que essa.”
Por Patrícia C. Phillips
Disponível AQUI.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
“O mundo da arte tem um problema. O mundo da arte tem uma imagem muito ruim. E é um paradoxo, pois no mundo
da arte nós trabalhamos com representações, porém o mundo da arte é incapaz de controlar a sua própria representação
para o mundo.
Então, a imagem que temos do mundo da arte em grande parte da mídia é de glamour, e do mercado, e de vendas milionárias.
Mas asseguro a vocês que isso não é o mundo da arte.
99% do mundo da arte são jovens que decidiram se tornar artistas apesar da pressão da sociedade e que estão tentando
encontrar algum sentido no mundo.
Esse é o verdadeiro mundo da arte.
Não é o glamour, não é o mercado, não é o sistema.
99% do mundo da arte estão fora do sistema.
Mas a mídia não quer falar nisso.
Eles apenas falam sobre aquela ponta do iceberg.
Para mim, o mundo da arte e o mundo da cultura são os últimos espaços de liberdade que nos restam. É aqui que eu posso
inventar modelos de pensar o mundo. Estou livre para especular. Estou livre para sonhar um mundo melhor. E só posso
fazer isso no mundo da arte.
E é isso que os jovens artistas estão fazendo e é isso que estou tentando fazer.”
Alfredo Jaar (entrevista à Revista Vogue Itália, 2013)
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
11
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Alfredo Jaar, chileno nascido no ano de 1956 em um contexto familiar socialista, cresceu em um meio politicamente
conturbado por conta da família dividida e do contexto histórico da política chilena em que cresceu e viveu. Reside
em Martinica aos 5 anos e, em 1972, quando então tinha 16 anos. Volta a morar no Chile socialista de Salvador Allende
para imediatamente a seguir, um ano após sua chegada, viver sob o momento do assassinato do presidente e a posse
do que viria a se tornar um dos mais violentos ditadores da história: Augusto Pinochet.
Assim, enquanto artista, Jaar desenvolve-se de modo indireto e discreto. Muda-se para Nova York em 1982, vindo a
trabalhar no ramo da arquitetura, área de sua formação acadêmica. Seu trabalho, que integra com maestria a lógica
arquitetônica com a preocupação social, alerta para as crueldades e os problemas sociais, procurando despertar a
sensibilidade das pessoas em relação às realidades mais difíceis. Suas produções obtêm alto reconhecimento, sendo-lhe concedidos financiamentos do Museu Guggenheim em 1985 e da Fundação MacArthur no ano de 2000, entre
premiações e outros diversos financiamentos.
Em sua produção, podemos destacar as seguintes obras: Muxima, filme sobre a Angola, dividido em dez seções, cada
uma delas representando um aspecto do país – como a AIDS, a colonização e a guerra civil; The Silence of Ndwayezu,
uma de suas instalações mais conhecidas, que representa o genocídio de Ruanda; Gold in the Morning, em que o artista documenta as cruéis condições de trabalho dos mineiros independentes e contrasta as imagens com as variações
do preço global do ouro; A Logo for America, instalação no letreiro Spectacolor da Times Square que critica o termo
America para designar apenas os Estados Unidos.
O artista chileno Alfredo Jaar: a controvérsia através da arte
Por Makaela Anderson
Disponível AQUI.
“Nascido em 1956, numa família socialista chilena em Santiago do Chile, Jaar viu-se exposto a um tenso clima político
desde o seu nascimento. Quando tinha cinco anos, ele e sua família imediata mudaram-se para a Martinica. Enquanto sua
família imediata identificava-se fortemente com a ideologia liberal, o restante dela era significativamente mais conservador. Em 1972, após dois anos de liderança no Chile por parte do presidente socialista e democraticamente eleito Salvador
Allende, o pai de Jaar declarou que sua família retornaria ao Chile, ao mesmo tempo em que o restante de sua família
tentava fugir do estado socialista.
Com 16 anos, Jaar foi jogado em um país profundamente dividido em termos políticos. Um ano após a volta de sua família,
o presidente Allende foi assassinado e substituído pelo general Augusto Pinochet. Com ele, que por fim se tornaria um dos
mais violentos ditadores de todos os tempos, veio uma nova abordagem política e social.
Jaar aprendeu a falar por entre as linhas e a se comunicar indiretamente para poder sobreviver como artista. Por quase
uma década, viveu sobre o controle do regime de Pinochet até que se mudou para Nova York em 1982. Porém, é importante
ter em mente que ele credita apenas parte de sua inspiração à sua experiência em uma atmosfera tão tensa política e socialmente, enfatizando que todas as suas experiências o tornaram o artista que ele continua sendo hoje em dia.
Alfredo, o arquiteto
Com uma educação formal em arquitetura, Jaar garantiu uma vaga na empresa SITE de arquitetura em Nova York. Logo
integraria seu conhecimento e sua paixão pela arquitetura a outras formas de arte. Jaar aborda a arte como um arquiteto
– ele considera seu trabalho em termos sociais, políticos, culturais e físicos. Quando faz arte, ele vê isso como uma forma
de solucionar problemas, tal como um arquiteto veria um projeto. Talvez seja apropriado, então, que Jaar se considere um
arquiteto em primeiro lugar e um artista em segundo.
A dura verdade na arte
Jaar tenta chamar atenção para as difíceis realidades do mundo, em relação às quais, ele crê, as pessoas tornaram-se
insensíveis. Através de instalações, vídeo e fotografia, aborda assuntos profundos e complexos, como genocídio, fome,
epidemias, corrupção, conflitos militares e lutas enfrentadas pelas nações em desenvolvimento no cenário global. Focado
em questões relevantes à América Latina, África e Europa, seu trabalho pretende lembrar o público da injustiça e das crueldades que ocorrem diariamente.
Uma de suas instalações mais conhecidas foi parte de um projeto de seis anos que culminou em The Silence of Nduwayezu,
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
12
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
uma representação a respeito do genocídio em Ruanda, no qual 20% da população foi eliminada. Outras obras incluem
seu primeiro filme, Muxima, palavra que significa coração em Kimbundu, língua nativa de Angola. O filme é dividido em
dez seções, cada uma delas dedicada a um aspecto diferente da história angolana, incluindo a colonização, a guerra civil,
a AIDS e as consequências das atividades da indústria petrolífera naquela nação. Na América Latina, Jaar foi até Serra Pelada, a mina de ouro no nordeste brasileiro (Pará), a fim de documentar as atrozes condições de trabalho dos mineiros autônomos e contrastou tais imagens com as flutuações do preço global do ouro, projeto que chamou de Gold in the Morning.
Muitas das produções de Jaar receberam grande reconhecimento e consagração, o que acabou por lhe conceder financiamentos do Museu Guggenheim (1985) e da Fundação MacArthur (2000), bem como o prêmio Extremadura de la Creación,
na Espanha, além de diversos outros prêmios e financiamentos.
Melhor sorte da próxima vez
Em 1987, Jaar realizou a obra A Logo for America, uma crítica ao uso errôneo do termo América, por ignorar os outros
países dos continentes americanos. Exibida na Time Square, trata-se de uma animação com a frase “Essa não é a América”,
escrita por sobre o mapa dos Estados Unidos e seguida pela frase “Essa não é a bandeira americana”, colocada em cima da
bandeira dos Estados Unidos. A resposta foi uma enxurrada de proporções não antecipadas pelo artista.
A rádio pública norte-americana (NPR) entrevistou ao vivo o público enquanto as frases apareciam na tela, o que gerou
questionamentos acerca de se o que ele estava fazendo era ilegal. A intenção do trabalho era comentar a importância do
papel da linguagem na realidade geopolítica, mas muitos não entenderam dessa forma.
Vinte e cinco anos depois, Jaar decidiu tentar exibir a obra novamente, com pequenos ajustes. Os textos sobre a silhueta dos
Estados Unidos e de sua bandeira permaneceram iguais e uma terceira imagem foi adicionada à apresentação. A palavra
América foi exibida na tela, com a letra R substituída com um mapa de todos os continentes americanos. Dessa vez, não
houve nova-iorquinos dando entrevistas na rádio, mas a oposição à obra ainda foi expressa, com algumas pessoas considerando o projeto como antiamericano.
O impacto da arte
A arte de Jaar pode, muitas vezes, ser controversa, mas ela também tem um inegável impacto na comunidade artística e
nas culturas sobre as quais comenta. Desde o milhão de passaportes finlandeses em branco que ele exibiu para chamar a
atenção ao extraordinário número de imigrantes incapazes de obter cidadania estadunidense até a Infinite Cell (Cela Infinita), onde espelhos estrategicamente colocados criavam uma imagem sem fim, com a intenção de provocar os artistas, seus
projetos têm inspirado a comunidade artística de todo o mundo. Em 2006, após 20 anos de exílio, Jaar finalmente retornou
ao Chile para uma exposição na Fundação Telefônica de Santiago.”
3. DIÁLOGOS COM A 10ª BIENAL DO MERCOSUL – MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Antes de discutir as relações da obra de Jaar com a proposta curatorial da 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de
Uma Nova América, é relevante realizar uma aproximação com a proposta curatorial da 8ª Bienal do Mercosul – Ensaios de Geopoética, de José Roca.
3.1. GEOPOÉTICAS
O termo “americano” provavelmente deriva da forma britânica de se referir aos habitantes originais do “novo mundo”
como native americans, o que acabou por se mesclar com a língua e – cabendo ou não uma crítica relativa à dominação econômica estadunidense1 sobre os outros países do continente –, consequentemente, o mundo acabou tendo
um único país no qual seus habitantes são chamados pelo nome de seu continente. De qualquer modo, a noção de
nação e nacionalidade pode até ter respaldos legais, geográficos, naturais, sociais, políticos, militares e econômicos;
porém, quando analisada friamente, é invariavelmente uma construção humana ou uma ficção e, como tal, pode ser
analisada criticamente, conforme aponta José Roca (2011, p. 42):
“Toda nação é, de certa maneira, uma ficção, posto que o que a caracteriza como tal, em um sentido ontológico e incontestável, foi definido culturalmente com o fim de dar a um grupo humano uma série de características que lhes permita se
1. O termo “estadunidense” também é gerador de polêmicas. Há quem afirme que é empregado de forma pejorativa e “antiamericana”, apesar de que, na totalidade das
vezes em que foi localizado durante a busca por fontes para esta pesquisa, o tom não possuía nenhum tipo de carga negativa. No presente texto, está sendo utilizado
com o objetivo de tornar o material mais claro e, de forma alguma, há o interesse de disseminar “ideias antiamericanas”, o que quer que isso signifique.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
identificar como conjunto. E, por ser uma criação, as características de nação podem ser redefinidas criticamente.”
A interpretação das bases que constituem tal “ficção” pode adquirir, como disse antes, contornos críticos ou não acerca delas. O que A Logo for America faz, acima de tudo, é provocar tal debate e, de forma alguma, a ocorrência de uma
discussão a respeito disso pode ser interpretada como um ataque a valores, uma vez que até conceitos bastante tradicionais, em uma sociedade democrática em pleno funcionamento, são constantemente questionados e revisados.
Sendo – ou não – o uso do termo “América” para designar os Estados Unidos uma maneira de exercer algum tipo de
controle internacional, é correto dizer que, em diversos casos, conceitos de nacionalidade são utilizados para tal fim,
como afirma Roca (2011, p. 43):
“Territórios inteiros são representados desde o olhar colonial como geografias imaginadas de uma maneira específica, com
o objetivo de naturalizar no discurso popular uma visão particular do território e aplanar o caminho para seu controle e
para sua dominação.”
3.2. UMA NOVA AMÉRICA
No contexto da 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de Uma Nova América, A Logo for America insere-se no Campo I
– A Jornada da Adversidade, cujo caráter político aproxima-se, de acordo com Gaudêncio Fidelis (2015, p. 6), da ideia
de que o artista latino-americano tem como um dos motores de sua força criativa a resistência aos
“[…] imensos obstáculos a serem transpostos para que a arte possa ser produzida e circule, tais como resistir às intempéries
políticas e econômicas pelas quais historicamente estes países estão submetidos ou a crítica insolvência institucional de
que padecem. Com a consciência dessas dificuldades, a exposição levará a cabo uma organização consciente de uma ‘política da adversidade’ que, ainda que anunciada por um artista brasileiro, simboliza bem as imensas dificuldades pelas quais
ultrapassa a arte em toda a região, às margens dos grandes centros internacionais de circulação da produção artística, em
suma, os centros econômicos e políticos mundiais.”
Essa busca por visibilidade da arte latino-americana vai ao encontro da mensagem contida na obra de que a América,
em sua totalidade, não cabe em um único país, nem a produção artística do continente curva-se aos grandes centros
mundiais.
No Campo I, a obra faz parte da exposição Biografia da Vida Urbana, que tem como objetivo propiciar uma experiência artística acerca dos espaços urbanos latino-americanos. Seu suporte, o vídeo, adapta-se a esse objetivo, já que
constitui uma maneira de fazer arte com um suporte tecnológico, algo que, de acordo com Fidelis (2015, p. 8),
“[…] dá forma, também, ao aspecto metafórico referente ao título da exposição ‘mensagens’, estas transmitidas através
dos diversos instrumentos de veiculação da informação disponíveis na vida contemporânea. Mensagens são também uma
referência às contribuições históricas dadas pela produção artística da América Latina e, ainda, ao aspecto político da exposição e sua proposição conceitual de intervenção na história da arte.”
4. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
“Grandes filmes ficcionais tendem ao documental, assim como grandes documentários tendem ao ficcional. Deve-se escolher entre a ética e a estética, mas não é menos entendido que uma palavra faz parte da outra. E quem opta sinceramente
por uma, necessariamente encontra a outra ao final de sua jornada.”
Jean-Luc Godard, durante a divulgação do filme Acossado (À bout de souffle)
Através de instalações, fotografias, vídeos e projetos comunitários, o trabalho de Alfredo Jaar explora a dessensibilização do público em relação às imagens e às limitações da arte em representar eventos socialmente sensíveis da
história recente (especialmente dos países em desenvolvimento), como o genocídio em Ruanda, a “febre do ouro” de
Serra Pelada no Pará, as prisões políticas em regimes ditatoriais, as epidemias e guerras civis, entre outras questões.
Isso tem sua inegável origem na história pessoal do artista, que viveu a ditadura chilena por vários anos até se mudar
para os Estados Unidos. Partindo de um contexto mais amplo, apresentado em A Logo for America, obra que o revelou
e possibilitou dar continuidade na carreira de artista. A seguir, algumas referências históricas factuais a respeito do
seu modo de trabalho e dos fatos (em geral, tragédias) que inspiraram algumas dessas obras.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
4.1. A DITADURA CHILENA
Conforme mencionado anteriormente, a família imediata de Alfredo Jaar viveu um período de exílio na Martinica durante os anos que antecederam a eleição do presidente Salvador Allende. Depois disso, seus familiares retornaram ao
Chile, mas enfrentaram, poucos anos depois, o golpe militar que depôs (e matou) Allende. Jaar permaneceu no Chile
até 1982, quando então se mudou para os Estados Unidos.
Não se deve estranhar a escolha de Alfredo Jaar por viver nos Estados Unidos. Apesar do hoje em dia comprovado
apoio bélico e financeiro norte-americano ao golpe no Chile, os Estados Unidos são uma nação de grandes contrastes.
Isso se comprova com o resultado imediato que A Logo for America teve em 1987. Se, por um lado, os nova-iorquinos
entrevistados pela NPR pediam a prisão do responsável pela obra, por outro, a aceitação foi tamanha que acabou por
catapultar a carreira de Jaar.
4.2. IMAGE POLITICS
“[…] Fomos além da cultura do espetáculo e da cultura do consumo. Tudo ao nosso redor é consumo. E todos os milhares
de imagens que nos cercam são sobre consumo. Eles estão nos dizendo ‘Compre, compre, compre’. Tanto produtos quanto
ideias.
Então, como uma imagem de dor sobrevive em um mar de consumo? Ela não sobrevive.
[…] Prefiro me arriscar a falhar em tentar compartilhar essa informação com o público, em vez de condenar essas realidades à invisibilidade.”
Alfredo Jaar (entrevista à Revista Vogue Itália, 2013)
Alfredo Jaar faz uso das imagens de maneira particular, como que matéria-prima de suas instalações. Nunca simplesmente as exibindo, mas desconstruindo a imagem a partir de sua contextualização, da intencionalidade do fotógrafo,
do uso dela na mídia – bem como da ideologia por trás desse uso ou, de maneira ainda mais impactante, da ideologia
por trás desse não uso, como em instalações nas quais podemos observar o não uso da imagem e a mise-en-scène
poética de sua abstração, nas quais o artista busca produzir o que chama de image politics (política da imagem).
Exemplos de como Jaar aplica esse conceito incluem exibir capas de revistas populares norte-americanas publicadas
no período em que alguma tragédia (o foco ou o “assunto” da instalação) ocorre, nas quais o público pode observar – e
isso fica facilitado pelo distanciamento temporal em relação ao fato – como as corporações de comunicação tendem
a retratar assuntos desse tipo. Outro exemplo é esconder imagens de enorme impacto em caixas e acima delas descrever a imagem lá dentro contida, fazendo com que o público se sensibilize ao reconstruir mentalmente a imagem e
explorando a relação entre o que se pode e o que não se pode ver.
4.3. O GENOCÍDIO EM RUANDA
O mais extenso trabalho de Alfredo Jaar é o Projeto Ruanda, que se estende de 1994 a 2000, tendo resultado em uma
exposição de diversas instalações a partir do tema, seu mais celebrado projeto, The Sound of Silence. Sobre tal projeto,
parece ser relevante apresentar a interpretação de Camila Monteiro Schenkel em seu artigo “O que fazer com imagens?”.
4.3.1. O QUE FAZER COM IMAGENS
Trecho do artigo escrito por Camila Monteiro Schenkel (2011):
De 1994 a 2000, Jaar tenta, de diferentes maneiras, processar o que ele viu em Ruanda logo após o massacre que
resultou no assombroso saldo de um milhão de mortos. O projeto, o mais longo que empreendeu até o momento,
resultou em 21 trabalhos. Nenhum deles apresenta fotografias que registrem diretamente o ocorrido e todos fracassaram, em sua opinião, como representações do que ele viu em Ruanda.
“Fiquei revoltado com o modo como nos contavam o que estava acontecendo. […] ‘Ontem 35.000 corpos foram encontrados; eles estavam flutuando no Rio Kagera’. 35.000 corpos, e era apenas uma matéria de 5 linhas na página 7. ‘Eu preciso
ir’, pensei, ‘há algo que eu preciso dizer sobre isso’. Foi a experiência mais horrível de minha vida. […] Acumulamos provavelmente 3.500 imagens das coisas mais terríveis […]. Quando finalmente tive coragem para analisá-las, percebi que não
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15
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
podia usá-las. Não fazia sentido usá-las, as pessoas não reagem a esse tipo de imagens. […] Comecei a pensar que deveria
existir um outro modo de falar sobre violência sem recorrer a ela. […] Como você representa isso, respeitando a dignidade
das pessoas que você está enfocando? […] como você transfere isso para um trabalho de arte? Não faço ideia.” (Jaar, 2011)
Em Untitled (Newsweek, 1994), Jaar mostra imagens de todas as capas publicadas pela revista Newsweek à medida
que o genocídio em Ruanda avançava, sem que a comunidade internacional o reconhecesse. Cada imagem é acompanhada por números e informações que mostram a progressão do conflito. A série acaba em agosto, quando o fato
finalmente chega à capa da revista.
A potência que o artista encontra no texto aparece também em Field, road, cloud (1997), três fotografias da paisagem
em Ruanda: um canavial, uma estrada vazia e uma única nuvem no céu. As cenas são belas e tranquilas. Ao lado de
cada uma das fotografias, é apresentado um pequeno mapa desenhado à mão que indica a localização e a direção
em que cada foto foi feita, os arredores de uma igreja onde um violento massacre ocorreu. Há, portanto, um contraste
entre a informação que é dada pelo texto e a imagem mostrada, separação presente em outros trabalhos da série.
Tentando apresentar a história de Gutete Emerita, uma ruandense da minoria Tutsi que sobrevive a um massacre após
testemunhar a morte de seu marido e de seus filhos, Jaar realiza duas versões para o mesmo trabalho. Na primeira, em
uma sala escura, duas caixas de luz fixadas na parede apresentam, em um texto com letras brancas sobre um fundo
preto, a trajetória de Gutete, contada em seis frames (duas duplas) nas seguintes palavras:
“Gutete Emerita, 30 anos de idade, está em pé em frente a uma igreja onde 400 homens, mulheres e crianças Tutsis foram
sistematicamente massacrados por um esquadrão de morte Hutu durante a missa de domingo. Ela assistia à missa com
sua família quando o massacre começou. Seu marido, Tito Kahanamura, 40, e seus dois filhos, Muhoza, 10, e Matirigari, 7,
foram mortos a facadas diante de seus olhos. De alguma forma, Gutete conseguiu escapar com a sua filha, Marie Louise
Unumararuga, 12. Elas se esconderam em um pântano por três semanas, saindo apenas durante à noite para procurar
comida. Seus olhos parecem perdidos e incrédulos. Seu rosto é o rosto de alguém que testemunhou uma tragédia inacreditável e agora a veste. Ela retornou a esse lugar na floresta porque não tem mais nenhum lugar aonde ir. Quando ela fala de
sua família perdida, gesticula para corpos no chão, apodrecendo sob o sol africano. Eu me lembro de seus olhos. Os olhos
de Gutete Emerita.”
O texto é projetado por 90 segundos, sendo que 15 são reservados apenas para as duas últimas frases. E, então, confrontamo-nos com a imagem desses olhos, dispostos da mesma maneira que o texto narra sua história, um de cada lado, divididos entre duas caixas de luz. Em uma fração de segundos ela desaparece, resistindo apenas como uma pós-imagem.
Na segunda montagem, a história de Gutete é contada ao longo de um corredor que antecede a sala. Apenas do lado
esquerdo, em uma única linha, o mesmo texto é apresentado, iluminado por trás. Ao fim do corredor, depois das palavras, temos acesso ao outro lado da sala. Uma grande mesa de luz está coberta por uma montanha de slides (mais
precisamente um milhão, número correspondente ao saldo de mortos estimados no conflito), todos com a mesma
fotografia, os olhos de Emerita. Algumas lupas estão posicionadas na mesma mesa para que o público se debruce
sobre a imagem e examine esses olhos milímetro por milímetro, enquanto a tragédia narrada ainda é processada.
Para o artista, é quando nossos olhos aproximam-se de tal maneira dos de Gutete que a distância imposta pelo modo
como a mídia abordou Ruanda rui.
“Quando dizemos um milhão de mortos, não significa nada. Então, a estratégia foi reduzir a escala para um único ser humano, com um nome, uma história. […] Esse processo de identificação é fundamental para criar empatia, solidariedade e
envolvimento intelectual.” (Jaar, 2011)
Ao mesmo tempo, como aponta Oliver Chow (2008, p. 5), “há uma distância fundamental entre a narrativa do trauma,
que pode ser contada, mas não representada (ou só pode falhar em representar) e seu olhar, que testemunhou o genocídio, mas é incapaz de mostrá-lo”. Novamente, a disjunção entre o que o texto dá acesso e o que a imagem mostra
é usada para interromper a lógica usual em que fotografias são vistas. Para Rancière (2010, p. 99), que comenta outro
trabalho de Jaar, Real Pictures (1995), a estratégia do artista não reside em opor palavras a imagens, mas em construir
uma imagem através da conexão entre verbal e visual.
Para Rancière (2010, p. 100), a anestesia em relação às imagens, especialmente aquelas de horror, não é um problema de número:
“Não vemos um excesso de corpos sofrendo na tela, vemos um excesso de corpos sem nome, um excesso de corpos incapazes de devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são o objetivo de uma fala sem que eles próprios tenham a palavra.”
O autor destaca a necessidade de inverter a lógica que transforma o visual em algo para as multidões e o verbal em
um privilégio de poucos (fim do trecho do artigo citado).
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
4.4. GOLD IN THE MORNING
“Em 1985, Alfredo Jaar foi a Serra Pelada, uma mina de ouro a céu aberto situada no nordeste do Brasil. Lá ele fotografou e
filmou as deploráveis condições de trabalho dos mineiros autônomos. A insistência na importância do contexto para a subsequente interpretação e distribuição de seu trabalho é central na prática de Jaar; e o material de Serra Pelada foi inicialmente exposto em uma estação de metrô em Nova York ao lado de indicações da flutuação da cotação do ouro no mundo.
‘Sempre me descrevi como um artista de projetos. Não sou um artista de estúdio. Não crio trabalhos em meu estúdio. Não
saberia o que fazer. Não olho para uma página em branco e começo a inventar um mundo saído de minha imaginação.
Todo trabalho é em resposta a um evento da vida real, uma situação da vida real’”.
Disponível AQUI.
5. REFERÊNCIAS
5.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PHILIPS, P.C. The aesthetics of witnessing: a conversation with Alfredo Jaar. Revista Art Journal, Nova York, n. 3, p. 6,
outono 2005.
RANCIÈRE, J. El espectador emancipado. Vilaboa: Ellago Ediciones, 2010.
ROCA, J. Geopoéticas. Catálogo da 8ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Fundação Bienal do Mercosul, p. 40,
2011.
SCHENKEN, C.M. O que fazer com imagens? Algumas possibilidades a partir do trabalho de Alfredo Jaar e Rosângela
Rennó. Revista Valise, Porto Alegre, v. 1 n. 1, ano 1, p. 69-81, jul. 2011.
5.2. REFERÊNCIAS ON-LINE
ANDERSON, M. Chilean artist Alfredo Jaar: controversy through art. Disponível em: <http://theculturetrip.com/south-america/chile/articles/chilean-artist-alfredo-jaar-controversy-through-art/>. Acesso em: 26 jun. 2015.
BLITZER, J. A logo for America. 2014. Disponível em: <http://www.newyorker.com/business/currency/logo-america>.
Acesso em: 27 jun. 2015.
CHOW, O. Alfredo Jaar and the Post-Traumatic Gaze. Tate papers: Tate’s Online research papers. Primavera de 2008.
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/no-9/alfredo-jaar-and-the-post-traumatic-gaze>. Acesso em: 08 set. 2015.
FARAGO, J. Anti-American art to take over NYC’s Times Square every night in August. The Guardian. 1º ago. 2014. Disponível em: <http://www.theguardian.com/artanddesign/2014/aug/01/times-square-august-art-this-is-not-america-alfredo-jaar>. Acesso em: 27 jun. 2015.
KIRSCH, C. A lost cause? Alfredo Jaar’s “A logo for America”. 28 jul. 2014. Disponível em <http://artfcity.
com/2014/07/28/a-lost-cause-alfredo-jaars-a-logo-for-america/>. Acesso em: 27 jun. 2015.
PEPI, M. “This is not America”: Alfredo Jaar interrupts the adverts in Times Square. Apollo Magazine. Disponível
em: <http://www.apollo-magazine.com/america-alfredo-jaar-interrupts-adverts-times-square/>. Acesso em: 27
jun. 2015.
PHILIPS, P.C. A logo for America, 1987. Disponível em: <www.alfredojaar.com>. Acesso em: 27 jun. 2015.
5.3. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
Alfredo Jaar: Gramsci & Pasolini | Art 21 “Exclusive”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oCjMCtOsezI>. Acesso em: 27 jun. 2015.
Politics in contemporary art: Alfredo Jaar. Disponível em: <http://www.marthagarzon.com/contemporary_
art/2011/01/politics-in-contemporary-art-alfredo-jaar/>. Acesso em: 27 jun. 2015.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Focus on: Alfredo Jaar. Revista Vogue Itália. 28 nov. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EjvRtNPVzgs>. Acesso em: 27 jun. 2015.
Midnight Moment August 2014: A Logo for America by Alfredo Jaar. 27 ago. 2014. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=2jJfNdE1xds>. Acesso em: 27 jun. 2015.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Galería Arredondo \ Arozarena
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Sin título (Olor a nuevo)
Ano: 2006
Artista: Fritzia Irízar (1977, Culiacán, México)
Suporte: vapor
Palavras-chave: novo, consumo, mercado, dinheiro, obsolescência, sorte, azar, subjetividade, desejo.
Descrição
“A obra consiste de um aromatizador que remete ao odor de objetos recém-produzidos ou adquiridos. O objetivo é produzir nostalgia no espectador ao lembrá-lo quando, por exemplo, comprou um carro, ou despertar nele o desejo de ter
que adquirir algo novo. A obra foi apresentada primeiramente como uma instalação, uma espécie de barraca de lona de
borracha, dentro da qual se armazenava esse cheiro de novo; mais adiante, para a reabertura do Museu Rufino Tamayo, o
odor saía de orifícios na parede do museu, invadindo todo o espaço com o dito aroma.”
Disponível AQUI.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Fritzia Irízar, mexicana natural de Culiacán, nasceu em 1977. Estudou licenciatura na Escola Nacional de Pintura, Escultura e Gravura (Escuela Nacional de Pintura Escultura y Grababo), “La Esmeralda”, e também escultura no Kalamazoo
Institute of Arts, em Michigan, nos Estados Unidos. Foi bolsista da Casa de Velásquez de Madrid, na Espanha. Obteve
três vezes a bolsa para jovens criadores concedida pelo Fundo Estatal para a Cultura e as Artes. Conquistou o prêmio
internacional “Unión latina a la creación joven”, o prêmio estadual de pintura “Antonio Lopéz Saenz” e o prêmio estadual de fotografia do salão plástico Sinaloense. Entre os países em que expôs, citam-se Alemanha, França, Espanha,
Estados Unidos e Inglaterra, assim como diferentes museus e galerias do México, como Museo Ex Teresa Arte Actual,
MUCA-ROMA, Centro Nacional de las Artes, Centro Cultural de España, Museo de Querétaro, Museo de Arte Contemporáneo de Aguas Calientes, entre outros.
Disponível AQUI.
2.1. OUTRAS OBRAS
Sem título (Tragamonedas), 2002
Disponível AQUI.
Sem título (4,81 mm x 2,95 mm, 0,43 ct, VS2 G), 2008
Disponível AQUI.
Sem título (Ilusión y decepción I), 2008
Disponível AQUI.
Sem título (Colectividad y selectividad), 2011
Disponível AQUI.
Sem título (Naturaleza de imitación), 2012
Disponível AQUI.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
A identificação da obra de Fritzia Irízar com a história mexicana ou latino-americana ocorre de maneira muito mais
conceitual do que factualmente histórica, isto é, a sua produção artística concretiza-se por meio de conceitos acerca
do dinheiro, do capital, do “valor” da arte (no caso, valor tanto financeiro quanto artístico), do novo e da sorte, que,
por sua vez, foram e são analisados por diversos pensadores latino-americanos, estes sempre resgatados pela artista
durante a elaboração de seus projetos. Em seu site, o catálogo de suas obras é acompanhado de textos que alimentam essa compreensão, demonstrando que ela trabalha a partir de uma crítica aos valores do capitalismo financeiro,
firmemente baseada em conceitos não só sociológicos e filosóficos, mas também oriundos das demais áreas das
ciências humanas e sociais.
Portanto, é a própria artista quem aponta para os conceitos aqui tratados, sejam eles elaborados pelos colaboradores
de seu site ou em suas bibliografias. Acrescento-lhes também um estudo sociológico a respeito do valor do dinheiro
na contemporaneidade, do qual participei em 2002.
3.1. “O NOVO”
A sedução do novo
“En el pasado, el fenómeno de ‘lo nuevo’ era resultado de la relación estrecha entre la forma y su función. Con el paso
del tiempo, ‘lo nuevo’ se fue transformando en un concepto más subjetivo, en donde los propios individuos disimulamos
una apariencia de cambio, aunque sea una apropiación renovada del pasado. El consumismo, los cambios radicales de la
moda y la multifuncionalidad tecnológica son demandas ineludibles, aunque hoy día lo nuevo ‘es más bien el resultado
de determinadas estrategias cultural económicas de transmutación de valores’1, como lo describe el crítico Boris Groys.
Estos valores, simbólicos o reales, son los que hacen posible entrar y salir de la innovación en un estado permanente que se
renueva mediante la seducción, el poder y las relaciones sociales.
1. GROYS, Boris. Sobre lo nuevo: ensayo de una economía cultural. Valencia: Pre-textos, 2005, p. 64.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
A la artista Fritzia Irízar le interesan las estructuras de poder donde se ocultan jerarquías, se intercambian valores
simbólicos y se devela el estado de la economía actual. En 2006, realizó una primera versión de una obra titulada Olor
a nuevo en la que colocó un cubo blanco de lona similar a los que se utilizan en las ferias comerciales. Al entrar a este espacio provisional, los espectadores percibían un olor a plástico, un perfume que en realidad era el resultado de la producción
de materiales tóxicos asociado al aroma de los automóviles recién salidos de las fábricas.
La imagen de un stand de feria es un signo alegórico, pues en ellas sucede un flujo de capital mercantil por medio de la representación. En estos quioscos temporales, el intercambio potencial reside en la imagen corporativa que presenta un aura
de innovación. El olor a nuevo también es un gadget que seduce por unos instantes el olfato de los ansiosos aunque sea
un artificio. Por ello, Irízar cuestiona los valores subjetivos inherentes a la noción de ‘lo nuevo’ mediante una crítica sobre el
poder del deseo con dos elementos: el cubo blanco y el olor a nuevo.
En una segunda versión para la exposición Primer acto del Museo Tamayo (2012), la artista desmaterializó la pieza
para dejar sólo el olor casi imperceptible en las galerías. Por una parte, el aroma tóxico y aislado que invadía invisiblemente el espacio museístico hacía eco de la anestesia colectiva en relación con el arte. Por la otra – con la desaparición
del objeto –, cuestionó la irrelevancia de la imagen por medio de la transmutación de valores mercantiles y
simbólicos.
Es decir, más allá de representar la idea de lo nuevo o buscar la originalidad, la artista reveló las estrategias y estructuras
de un síntoma cultural, en donde un olor fabricado e invisible evidencia la circulación de un simulacro. El ‘olor a nuevo’ es
finalmente una parodia sobre la inercia cultural que siempre va en búsqueda de la innovación, aunque está se evapore
constantemente, como cualquier aroma.”
Por Andrea Torreblanca
Disponível AQUI.
3.2. O VALOR DA ARTE
“En un artificio muestra de la picardía extrema con la que a veces pontificaba, André Breton llamaba a Salvador Dalí por
su anagrama: ‘Avidas Dollar’, subrayando el hambre irreparable que el pintor ibérico tenía por el dinero y la riqueza, que
acabaron siendo muy pronto en su carrera el motivo de su trabajo.
De la picardía de Breton al cinismo de aquel disco legendario de Frank Zappa, We’re only in it for the money, la relación entre el arte o, más bien, entre la obra de arte y el dinero es explícita en muchos creadores. Es más contundente aún: el dinero,
la riqueza, es uno de los temas centrales del arte, de manera directa o como sub-texto, mediante las varias formas en que el
dinero y la riqueza se manifiestan en la obra de arte: entre ellas, por ejemplo, la muerte.
La muerte es lo único que el dinero no puede resolver, es la única insobornable. La muerte es el sueño irrealizable del dinero
y la riqueza. Todo se puede comprar, excepto tiempo más allá del que nos ha sido destinado.
Pero ¿la muerte nos ha sido escriturada? ¿Nacemos con los días contados? ¿O acaso nuestra vida, como nuestra muerte,
está determinada por el mero y llano azar?
Detrás de la obra de Fritzia está un diálogo permanente entre el dinero y el azar, y, por lo tanto, un discurso sobre la muerte,
cómo vivir con ella y cómo trascenderla.
Pasar la mirada por la obra de Fritzia es una ilustración viva y brusca, trepidante, de uno de los temas torales de la economía política clásica: la dialéctica entre el valor de uso y el valor de cambio. Este tema, absolutamente central, ha sido abandonado por el discurso económico y por la filosofía política, pero en la obra de Fritzia surge como un pilar contundente,
novedoso y rotundo de su discurso.
El dinero vale no por lo que es, sino por su capacidad de ser cambiado por otros bienes. La utilidad inmediata del dinero y
sus diversas formas es mínima, irrisoria. El oro no sirve para nada en sí y su valor proviene de que podemos cambiarlo por
cualquier otro artículo.
La perversión del capitalismo, decían los economistas clásicos, es que el valor de cambio acaba predominando sobre el
valor de uso. El dinero (y los insumos de Fritzia son sus varias formas: sal, plata, oro o diamantes) es el bien más preciado de
la civilización a pesar de su minúsculo valor de uso, de su mínima utilidad intrínseca.
El oro nos sirve en tanto que es un medio de cambio. Quien tiene oro no pasa hambre. El oro nos permite tener cualquier
cosa, excepto un salvoconducto para la muerte. Fritzia lleva esta aseveración al extremo de la literalidad cuando tres voPOSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
luntarios engullen sendas esferas de oro. El rey Midas muere de hambre entre fuentes, hojas y frutos de oro, pero no los
voluntarios de Fritzia: ellos se alimentan de oro.
La provocación es extrema: la mayor violencia que puede sufrir el oro es denigrar su poder como valor de cambio y someterlo a la humildad de ser un simple valor de uso: degradar al oro poderoso a ser un humilde alimento, un elemento de la
canasta básica. Es una subversión maravillosa que muestra la profunda comprensión de Fritzia Irízar respecto a este tema
central de la filosofía política y su capacidad para convertirla en una obra de arte.
No puedo ocultar mi entusiasmo: el capitalismo contemporáneo, y eso queda de manifiesto en cada crisis (y la sufrida por
el mundo en 2008-2009 fue la más cruenta de los últimos 90 años), muestra el poder que el dinero tiene sobre la sociedad.
Michel Aglietta escribió en la década de los años ochenta, un libro con un bello título: La violencia de la moneda, el cual
ilustra la violencia con la que el dinero puede embestir a la sociedad en momentos de crisis severa.
La revancha de Fritzia es justo ejercer esa violencia sobre la moneda misma: billetes de dólar usados como papel tapiz en
el Centro Cultural de España en México; billetes de cien dólares triturados hasta el límite del confeti; notas financieras que
arden; billetes que desaparecen tras una tortura física extrema. La violencia sobre la moneda, como ese doblón antiguo
aplastado por un tren, es la forma en la que Fritzia pone de cabeza al mundo, y al invertirlo, le da claridad y transparencia.
Lo absurdo del dinero es que sea un objeto con la mínima utilidad el artículo más buscado por todos. Las instalaciones de
Fritzia son eso: una búsqueda de dinero, para mostrar al final lo inútil del objeto mismo. Buscar diamantes en bolsas de sal;
enterrar fortunas; desaparecer la riqueza monetaria y buscar ese fantasma.
Hay una propuesta final de Fritzia que la hace particularmente original: su cercanía con la numismática. Las monedas, sobre
todo en México, que desde hace quinientos años tiene una de las mejores casas de moneda del mundo, pueden ser también
bellas. La distancia entre una obra de arte y una bella moneda puede ser pequeña. Diríamos, en términos de Marcel Duchamp, que la moneda puede llegar a ser un ready-made, como en esa torre esbelta y dorada hecha de monedas de 10 pesos.
Decíamos que el diálogo de Fritzia entre el dinero y el azar (como su dado de plata: azar y dinero, el coup de dés) es también
un diálogo con la muerte. Me corrijo: al aplicar la violencia de la moneda sobre la moneda misma, al evaporar el dinero y
disolver la fantasía que tiene sobre todos nosotros el poder de cambio, lo que queda es el valor de uso: la vida misma.
Existe una pieza especial de Fritzia Irízar. Dentro de Sin título (Colectividad y selectividad), seis participantes entran por
selección, uno a uno, en un espacio. Se convierten en la obra de arte, pero para salir de ella dependen de los demás, son los
otros los que se salvan entre ellos. La colectividad y la selectividad acaban convirtiéndose en solidaridad.
Cierto, vivimos en un mundo en donde el azar y el dinero rigen nuestra vida: pero nos tenemos a nosotros mismos, y la
colectividad y la selectividad pueden derivar en comunidad y, si el azar lo permite: en hermandad y salvación.”
Fritzia Irízar: la vendedora de dinero
Por Edgar Amador
Disponível AQUI.
3.3. DINHEIRO, CRÉDITO E JUROS
Podemos falar brevemente sobre o sistema monetário reduzindo-o a três fatores: o surgimento do dinheiro, o
crédito e os juros.
O surgimento do dinheiro, tal como o conhecemos hoje, ocorreu de forma lenta. Inicialmente, os egípcios, cinco mil
anos atrás, foram os primeiros a possuir grandes estoques de grãos; o grão guardado era utilizado como lastro para
a circulação de bens. Por volta do ano zero, em Jerusalém, o crédito era dado com base na quantia de ouro existente
naquele momento no templo. Já na Idade Média, os comerciantes da Europa só podiam gastar sua riqueza em seus
próprios países, o que gerava uma circulação maior e efetiva nos pequenos burgos. Na Itália, os comerciantes ricos
passaram a guardar seu ouro nos cofres dos ourives e, em troca, ganhavam um documento que garantia que eles receberiam esse dinheiro de volta. Essa garantia de valor tornou-se um novo meio de troca e, com isso, surgia o dinheiro
em papel. Os ourives logo notaram que poderiam emprestar mais papéis representando o valor do ouro do que o
ouro que eles de fato possuíam, uma vez que os donos do ouro jamais iriam retirá-lo dos cofres ao mesmo tempo.
Dessa forma, criaram riqueza baseando-se no crédito, gerando dinheiro do nada. Essa forma de gerar riqueza com
base em crédito é, hoje em dia, a base da circulação de dinheiro.
Quanto à natureza dos juros, há certa discordância: por um lado, há quem pense que eles são o “custo” do dinheiro, isto
é, quanto um banco precisa gastar para poder produzir ou armazenar o dinheiro. Outros afirmam que o juro é o “preço”
do dinheiro, isto é, quanto um banco quer ganhar para produzir ou armazenar o dinheiro. Quando alguém pede um
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
empréstimo, paga juros; quando investe em uma poupança, recebe juros. Porém, essa não é uma relação de equilíbrio,
visto que essa pessoa vai receber menos do que pagou. Um exemplo é dado por Henk Van Arkel (2002, p. 23):
“Alguém que depositou 100 reais na poupança num banco, no dia 1º de julho de 1994 (data de lançamento do real), tem
hoje 374 reais e 34 centavos. Já se esse mesmo alguém sacou 100 reais no cheque especial, na mesma data, tem hoje (em
2002) uma dívida de 139 mil, 259 reais e 10 centavos no mesmo banco. Ou seja: com 100 reais do cheque especial você fica
devendo nove carros populares e, com o da poupança, consegue comprar apenas quatro pneus.”
4. DIÁLOGOS COM A 10ª BIENAL DO MERCOSUL - MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
4.1. A 10ª BIENAL DO MERCOSUL – MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA (MARCO CURATORIAL)
No contexto da 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de uma Nova América, a obra Sin título (Olor a nuevo), de Fritzia
Irízar, encontra-se no segmento denominado Campo II – A Insurgência dos Sentidos e, dentro dele, na exposição O
Cheiro da Arte.
4.2. A INSURGÊNCIA DOS SENTIDOS
Como o título sugere, esse segmento da 10ª Bienal do Mercosul almeja proporcionar um contato do público com a
arte através de sentidos considerados subalternos àquele tido como hegemônico: a visão. Essa hegemonia, caracteristicamente ocidental, tem suas origens no Renascimento, quando o cruzamento entre ciência e arte resultou em
uma imagem espetacular. Conforme afirma Maria Emilia Sardelich (2006, p. 205):
“A perspectiva é bem mais do que a aplicação de leis geométricas e matemáticas, ela é um modelo de organização e racionalização de um espaço hierárquico. É a possibilidade de estruturar o espaço a partir de um determinado ponto de vista,
aquele de um sujeito onisciente, capaz de tudo dominar e determinar. [...] o lapso de tempo no qual o artista do Renascimento organizava uma nova visualidade coincide com o desenvolvimento da imprensa, com um novo modo de armazenar e distribuir um conhecimento interessado na preservação do passado e na difusão do presente. Esse período buscava
um novo estilo cognitivo baseado na demonstração visual. As imagens com perspectiva tentavam tornar o mundo compreensível à poderosa figura que permanecia em pé, no centro da imagem, no único ponto a partir do qual era desenhada.
Esse estilo cognitivo se estendeu até a fotografia e a vídeo eletrônica, mas como as tecnologias disponíveis no mundo contemporâneo redefinem os conceitos de espaço, tempo, memória, produção e distribuição do conhecimento, estamos em
um momento que busca uma outra epistemologia e se necessitamos de outro modo de pensamento, consequentemente
também necessitamos de outra visualidade.”
4.3. O CHEIRO DA ARTE
A exposição O Cheiro da Arte irá explorar o uso do cheiro na arte como estratégia de interpretação. Obras como Olor
a nuevo buscam no cheiro, enquanto suporte artístico, uma forma de promover a legitimidade da produção artística
latino-americana através da expansão da relação do público com a obra de arte para além do sentido tido como hegemônico nesse campo desde o Renascimento, isto é, a visão. Sobre tal hegemonia, Gaudêncio Fidelis (2015, p. 9) afirma:
“Praticamente toda a produção artística ocidental está fundamentada no olhar como seu dispositivo constituinte em detrimento dos outros sentidos. O domínio ocularcentrista (ou seja, aquele fundamentado exclusivamente no olhar e em
seus deslocamentos) sobre a produção artística que colaborou para canonizar determinou o estabelecimento de todas as
premissas do cânone ocidental, reprimindo consideravelmente qualquer manifestação artística que não estivesse fundamentada na visão. O olho tornou-se, assim, o dispositivo articulador da percepção, da justificação da estética, dos fundamentos da ideologia e das articulações da política da arte, ao longo da história da arte, gravitando em torno dele toda a
experiência artística e passando a ser o centro geracional da arte no ocidente.”
Em Olor a nuevo, Fritzia Irízar usa o cheiro para induzir ao público uma possibilidade de discussão a respeito de temas
como consumo, capitalismo, obsolescência, etc., de uma maneira extremamente simples, quase minimalista, buscando uma estética antiocular que permite uma amplitude de possibilidades interpretativas que desafiam a noção lugarcomum de que “uma imagem vale mil palavras”, uma vez que temos, nesse caso, “um cheiro que vale mil imagens”.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
5. REFERÊNCIAS
AMADOR, E. Fritzia Irízar: la vendedora de dinero. 2002. Disponível em: <http://www.fritziairizar.com/#!la-vendedora-de-dinero/c1nlo>. Acesso em: 1º jul. 2015.
ARKEL, H.V. Onde está o dinheiro? Porto Alegre: Dacasa Editora, 2002.
GROY, B. Sobre lo nuevo. 2002. Disponível em: <http://www.uoc.edu/artnodes/esp/art/groys1002/groys1002.html>.
Acesso em: 1º jul. 2015.
PATTO, A. Arte y capital. Disponível em: <http://www.fritziairizar.com/#!arte-y-capital/c17cy>. Acesso em: 1º jul. 2015.
ROLNIK, S. Geopolítica da cafetinagem. 2006. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/
SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em: 1º jul. 2015.
TORREBLANCA, A. La seduccíon de lo nuevo. Disponível em: <http://www.fritziairizar.com/#!olor-a-nuevo/cbdw>.
Acesso em: 1º jul. 2015.
SARDELICH, M.E. Leitura de imagens e cultura visual: desenredando conceitos para a prática educativa. Revista Educar, Curitiba, Editora UFPR, n. 27, p. 203-219, jan./jun. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0104-40602006000100013>. Acesso em: 1º jul. 2015.
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PEDAGÓGICO
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Cortesia da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Trepante, versão 1
Ano: 1964-1965
Artista: Lygia Clark (1920, Belo Horizonte - 1988, Rio de Janeiro, Brasil)
Suporte: escultura em alumínio, dimensões variáveis (aproximadamente 263x146 cm)
Palavras-chave: neoconcretismo, proposição, gestos, sensorial.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
Bicho, 1960 - Lygia Clark (1920, Belo Horizonte- 1988, Rio de Janeiro-Brasil)
Alumínio. Dimensões variáveis.
Descrições
“Trepante”, assim como boa parte da produção de Lygia Clark, não se limita à forma/ao objeto exposto, mas inclui
também o espaço interativo, abandonando o personagem “telespectador” e incluindo a participatividade em relação
à obra e ao público. Trata-se de chapas maleáveis de aço, latão, cobre cortadas em forma circular e orgânica que se
entrelaçam em pedras, galhos, árvores.
“A série ‘Trepantes’ foi a derivação da questão espacial da série ‘Bichos’, sendo diferenciado dos mesmos por não
possuírem dobradiças. São chapas de aço e latão, cobre ou borracha recortadas, que partem sempre de formas circulares chegando ao resultado orgânico do espaço, podendo ser enroscados em pedras, galhos ou grandes árvores. Os
trepantes de borracha, também chamados de obra mole devido à maleabilidade da borracha, apresentavam caráter
praticamente banal a ponto de ser chamado ‘obra de arte para se chutar’.”
Texto integral disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
“‘Trepante’, o orgânico que se agarra em um suporte ou caixa ou tronco ou ainda um portal.”
“O ‘Trepante’ é ainda a volta ao objeto com participação do espectador. Se expressa colado a qualquer suporte
como portais, caixas, troncos, etc.”
Diários de Lygia Clark, 17 de março de 1969. Disponível AQUI. Acesso em: 07 jul. 2015.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Biografia
Lygia Clark, mineira de Belo Horizonte, nascida em 1920, começa os estudos em artes no ano de 1947, orientada por
Roberto Burle Marx e Zélia Salgado. Vai a Paris em 1950, estudando com Arpad Szènes, Dobrinsky e Fernand Léger.
Nesse momento, seu trabalho tem como temática escadas e desenhos de seus filhos. Em 1952, realiza sua primeira
exposição individual no Institute Endoplastique (Paris), retornando logo depois ao Rio de Janeiro e expondo no Ministério da Educação e da Cultura.
É uma das fundadoras do Grupo Frente, apresentando as pinturas “Superfícies Moduladas” (1955-1957) e “Planos em
Superfície Modulada” (1957-1958), que propunham um escape ao espaço claustrofóbico da moldura, com figuras
geométricas que se projetam para além do suporte. Com a obra “Composições”, participa da Bienal de Veneza em
1954. Em 1968, retorna a expor na Bienal com toda a sua trajetória artística até então. A artista assina, em 1959, o
Manifesto Neoconcreto, compondo a I Exposição de Arte Neocontreta com “Unidades” (1959), em que moldura e tela
confudem-se intencionalmente.
Procurando cada vez mais transcender os suportes usados, Lygia apresenta “Casulos” (1959), peça de metal com dobradiças que buscam uma tridimensionalidade mais próxima do espaço-mundo. Logo no ano seguinte, nasce a série
Bichos: esculturas de alumínio, também com dobradiças, cuja proposta é que o espectador tenha papel ativo, modelando e descobrindo as possibilidades de formas que o “corpo” pode tomar. Assim, torna-se uma das pioneiras na arte
participativa mundial. Recebe o prêmio de melhor escultora nacional na VI Bienal de São Paulo com Bichos.
Gradualmente, Lygia Clark traz materiais cada vez mais transgressores do espaço, chegando ao ponto de, após “Obra
Mole” (1964), integrar o corpo do espectador em “Caminhando” (1964) como intrínseco à obra. O objeto perde valor
diante da experiência com ele produzida. Forma-se com Lygia um novo paradigma no cenário artístico brasileiro. A
palavra de ordem é “transformação”. Seu trabalho parece escapar sem dificuldades do categórico, caracterizando uma
artista atemporal e sem lócus definido na história da arte.
Após uma série de exposições, mostras e instalações, como “A Casa é o Corpo” (1968) e “Roupa-Corpo-Roupa: O Eu e
o Tu” (1967), desenvolve proposições de experimentação sensorial em grupo, como “Arquiteturas Biológicas” (1969),
“Rede de Elástico” (1974), “Baba Antropofágica” (1973) e “Relaxação” (1974). Lygia Clark abandona tais proposições
para dar início a uma dinâmica de abordagem terapuetica individual, assim que volta em definitivo ao Rio de Janeiro
em 1976. Sua intencionalidade com esse projeto, segundo ela mesma, é:
“Se a pessoa, depois de fazer essa série de coisas que eu dou, se ela consegue viver de uma maneira mais livre, usar
o corpo de uma maneira mais sensual, se expressar melhor, amar melhor, comer melhor, isso no fundo me interessa
muito mais como resultado do que a própria coisa em si que eu proponho a vocês” (Cf. O Mundo de Lygia Clark, 1973,
filme dirigido por Eduardo Clark, PLUG Produções).
No início dos anos oitenta, diminui sua produção. Publica “Livro Obra” em 1986 e tem uma sala de exposição no Palácio Imperial do Rio de Janeiro dedicada a uma retrospectiva da sua trajetória e de Hélio Oiticica. Dois anos depois,
em abril, Lygia Clark falece.
Mais informações sobre a trajetória de Lygia Clark e sua influência no âmbito artístico na atualidade estão disponíveis AQUI. Acesso
em: 10 ago. 2015.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
Lygia Clark se autodenominava uma “não artista”. Portanto, é seguro dizer que ela foi uma das mais importantes e
influentes não artistas brasileiras do século XX. Sua trajetória colocou-a em contato com movimentos importantes
da história das artes contemporâneas nacionais e também a aproximou da educação – ou melhor, da não eduPOSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
cação, o que soa como um bom termo para fins de proporcionar uma experiência educativa não tradicional, não
linear e não restritiva.
3.1. GRUPO FRENTE
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural
Disponível AQUI. Acesso em: 07 jul. 2015.
Marco histórico do movimento construtivo no Brasil, o Grupo Frente, sob a liderança do artista carioca Ivan Serpa
(1923-1973), um dos precursores da abstração geométrica no Brasil, abre sua primeira exposição em 1954, na Galeria
do Ibeu, no Rio de Janeiro. Participam da mostra, apresentada pelo crítico Ferreira Gullar (1930- ), os artistas Aluísio
Carvão (1920-2001), Carlos Val (1937- ), Décio Vieira (1922-1988), Ivan Serpa, João José da Silva Costa (1931- ), Lygia
Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004) e Vicent Ibberson, a maioria alunos ou ex-alunos de Serpa nos cursos do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Apesar de informados pelas discussões em torno da abstração
e da arte concreta, com obras que trabalham sobretudo no registro da abstração geométrica, o grupo não se caracteriza por uma posição estilística única, sendo o elo de união entre seus integrantes a rejeição à pintura modernista
brasileira de caráter figurativo e nacionalista.
A abertura a outras formas de manifestação artística e uma maior liberdade em relação às teorias concretas de um
Max Bill (1908-1994), por exemplo, torna-se mais patente na segunda exposição do grupo, em 1955, no MAM/RJ. Aos
fundadores do grupo unem-se outros sete artistas: Abraham Palatnik (1928- ), César Oiticica (1939- ), Franz Weissmann (1911-2005), Hélio Oiticica (1937-1980), Rubem Ludolf (1932-2010), Elisa Martins da Silveira (1912-2001) e Emil
Baruch (1920- ). Além da diversidade no que se refere às técnicas e aos materiais utilizados (pastel, xilogravura, objeto
cinético, colagem etc.), percebe-se também uma certa variação de estilos, como a pintura primitiva de Elisa Martins e
a construção geométrica lírica e repleta de nuances de Décio Vieira. Como nota o crítico Mário Pedrosa (1900-1981),
em texto de apresentação dessa segunda mostra, não se trata “de uma panelinha fechada, nem muito menos uma
academia onde se ensinam e se aprendem regrinhas e receitas para fazer abstracionismo, concretismo, expressionismo (...) e outros ismos”. Ao contrário, aos olhos do crítico, o respeito à “liberdade de criação” é o postulado pelo qual
lutam acima de tudo.
Para os artistas do Grupo Frente, a linguagem geométrica é, antes de qualquer coisa, um campo aberto à experiência
e à indagação. A independência e a individualidade com que tratavam os postulados teóricos da arte concreta estão
no centro da crítica que o grupo concreto de São Paulo, principalmente o artista e porta-voz do movimento paulista
Waldemar Cordeiro (1925-1973), faz ao grupo. A rigor, esses artistas não podem ser chamados de concretos em sentido estrito, pois de início ignoram a noção de objeto artístico como exercício de concreção racional de uma ideia, cuja
execução deve ser previamente guiada por leis claras e inteligíveis, de preferência cálculos matemáticos. No entanto,
é essa autonomia e certa dose de experimentação presente no Grupo Frente que garante o desenvolvimento singular
que as poéticas construtivas vão conhecer nos trabalhos de alguns de seus integrantes ainda na segunda metade da
década de 1950. Cabe lembrar das Superfícies Moduladas de Lygia Clark, das esculturas de Weissmann – em que o
vazio passa a ser elemento ativo das estruturas –, das séries de relevos, poemas-objetos e poemas-luz e dos Tecelares
de Lygia Pape, e das experiências cinéticas de Palatnik.
As últimas exposições do grupo ocorrem em 1956, em Resende e Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro. A 1ª
Exposição Nacional de Arte Concreta, organizada pelos concretos de São Paulo com a colaboração do grupo carioca – que ocorre em dezembro de 1956 e fevereiro de 1957 no MAM/SP em São Paulo e no Ministério da Educação e
Cultura (MEC) no Rio de Janeiro, respectivamente – torna evidente a distância entre os dois núcleos concretistas. Sua
repercussão, tanto por parte do público quanto dos artistas, marca o início de uma nova fase da arte concreta brasileira, exigindo dos artistas cariocas uma tomada de posição mais definida diante das ideias veiculadas pelos concretos
paulistas. A exposição também ajuda a revelar a amplitude que a arte abstrato-geométrica de matriz construtiva e
concreta havia adquirido no Brasil. Após a mostra, o Grupo Frente simultaneamente rompe com os artistas de São
Paulo e começa a se desintegrar. Dois anos depois, alguns de seus integrantes iriam se agrupar para iniciar o Movimento Neoconcreto, um dos mais significativos da arte brasileira.
3.2. NEOCONCRETISMO
“Na arte neoconcreta, há outra espécie de revalorização do gesto expressivo. O gesto não é o gesto do artista quando cria,
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mas sim é o próprio diálogo da obra com o espectador. O que este gesto acrescenta é de grande importância, pois ele faz
com que o homem comum se aperceba imediatamente da vivenciado seu sentido interior. A obra cria uma espécie de exercício para desenvolver esse sentido expressivo dentro dele. Seria uma espécie de oração somada à participação integral
dele no próprio ritual. O espectador já não se projeta se identificando com a obra. Ele vive a obra e vivendo a natureza dela
ele vive ele próprio, dentro dele. Experiência primeira. Somos novos primitivos de uma nova era e recomeçamos a viver o
ritual, o gesto expressivo, mas já dentro de um conceito totalmente diferente de todas as outras épocas.”
Diário de Lygia Clark (1960). Disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
O movimento neoconcretista na arte brasileira se dá a partir de março de 1959, com a publicação do Manifesto Neoconcreto em contrapartida ao movimento concreto que surgira em 1950, o qual teve como representantes o Grupo
Frente e o Grupo Ruptura; respectivamente, do Rio de Janeiro e São Paulo.
No contexto de gênesis do concretismo, percebemos uma conotação desenvolvimentista e alta legitimação da indústria. Da arte vemos afastado o lirismo e simbolismo, enquanto se aproxima o trabalho artístico do industrial. O quadro
ou o suporte – trabalhado com elementos plásticos, como planos e cores – quer dizer nada senão ele mesmo. Aquém
das pautas em comum, evidencia-se a dicotomia entre concretismo carioca e paulista. Enquanto em São Paulo predominam os conceitos de visualidade da forma pura, os cariocas articulam fortemente a arte e a vida (distanciando-se
da noção industrializada da arte), valorizando a intuição no processo artístico.
Publicado em 1959, o Manifesto Neoconcretista, assinado por Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann,
Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, procura romper com o dogmatismo estabelecido pelo
concretismo, em busca de maior liberdade de experimentação, um retorno à expressividade e à subjetivação. Procura
também incorporar efetivamente o observador, que deixa de ser passivo e torna-se essencial e participante ativo da
obra. Em suma, a intenção era de resgatar o humanismo para a arte, em contraposição a, segundo início do manifesto
de 59: “particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista”. O neoconcretismo
se torna um divisor de águas na história da arte moderna brasileira, sendo um ponto de ruptura bruto.
Mais informações acerca do neoconcretismo brasileiro estão disponíveis AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
3.2.1. MANIFESTO NEOCONCRETO
“A expressão neoconcreto é uma tomada de posição em face da arte não figurativa ‘geométrica’ (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, Escola de Ulm) e particularmente em face da arteconcreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. Trabalhando no campo da pintura, escultura, gravura e literatura, os artistas que participam dessa I Exposição
Neoconcreta encontraram-se, por força de suas experiências, na contingência de rever as posições teóricas adotadas até
aqui em face da arte concreta, uma vez que nenhuma delas ‘compreende’ satisfatoriamente as possibilidades expressivas
abertas por estas experiências.
Nascida com o cubismo, de uma reação à dissolvência impressionista da linguagem pictórica, era natural que a arte dita
geométrica se colocasse numa posição diametralmente oposta às facilidades técnicas e alusivas da pintura corrente. As
novas conquistas da física e da mecânica, abrindo uma perspectiva ampla para o pensamento objetivo, incentivariam, nos
continuadores dessa revolução, a tendência à racionalização cada vez maior dos processos e dos propósitos da pintura.
Uma noção mecanicista de construção invadiria a linguagem dos pintores e dos escultores, gerando, por sua vez, reações
igualmente extremistas, de caráter retrógrado como o realismo mágico ouirracionalista como Dadá e o surrealismo. Não
resta dúvida, entretanto, de que, por trás de suasteorias que consagravam a objetividade da ciência e a precisão da mecânica, os verdadeiros artistas – como é o caso, por exemplo, de Mondrian ou Pevsner – construíam sua obra e, no corpo a
corpo com a expressão, superaram, muitas vezes, os limites impostos pela teoria. Mas a obra desses artistas tem sido até
hoje interpretada na base dos princípios teóricos, que essa obra mesma negou.
Propomos uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos demais movimentos afins, na base de suas
conquistas de expressão e dando prevalência à obra sobre a teoria. Se pretendermos entender a pintura de Mondrian pelas
suas teorias, seremos obrigados a escolher entre as duas. Ou bem a profecia de uma total integração da arte na vida cotidiana parece-nos possível e vemos na obra de Mondrian os primeiros passos nesse sentido ou essa integração nos parece
cada vez mais remota e a sua obra se nos mostra frustrada. Ou bem a vertical e a horizontal são mesmo os ritmos fundamentais do universo e a obra de Mondrian é a aplicação desse princípio universal ou o princípio é falho e sua obra se revela
fundada sobre uma ilusão. Mas a verdade éque a obra de Mondrian aí está, viva e fecunda, acima dessas contradições
teóricas. De nada nos servirá ver em Mondrian o destrutor da superfície, do plano e da linha, se não atentamos para onovo
espaço que essa destruição construiu.
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O mesmo se pode dizer de Vantongerloo ou de Pevsner. Não importam que equações matemáticas estão na raiz de
urna escultura ou de um quadro de Vantongerloo, desde que só à experiência direta da percepção a obra entrega a
‘significação’ de seus ritmos e de suas cores.
Se Pevsner partiu ou não de figuras da geometria descritiva é uma questão sem interesse em face do novo espaço que
as suas esculturas fazem nascer e da expressão cósmico-orgânica que, através dele, suas formas revelam. Terá interesse
cultural específico determinar as aproximações entre osobjetos artísticos e os instrumentos científicos, entre a intuição
do artista e o pensamento objetivodo físico e do engenheiro. Mas, do ponto de vista estético, a obra começa a interessar
precisamente pelo que nela há que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações existenciais
que ela a um tempo funda e revela.
Malevitch, por ter reconhecido o primado da ‘pura sensibilidade na arte’, salvou as suas definições teóricas das limitações
do racionalismo e do mecanicismo, dando a sua pintura uma dimensão transcendente que lhe garante hoje uma notável
atualidade. Mas Malevitch pagou caro pela coragem de se opor, simultaneamente, ao figurativismo e à abstração mecanicista, tendo sido considerado até hoje, por certos teóricos racionalistas, como um ingênuo que não compreenderabem o
verdadeiro sentido da nova plástica. Na verdade, Malevitch já exprimia, dentro da pintura ‘geométrica’, uma insatisfação,
uma vontade de transcendência do racional e do sensorial que hojese manifesta de maneira irreprimível.
O neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem
estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão,
incorporando as novas dimensões ‘verbais’ criadas pela arte não figurativa construtiva. O racionalismo rouba à arte toda a
autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a uma significação existencial, emotiva,
afetiva – são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. Na verdade, em nome de preconceitos que hoje
a filosofia denuncia (M. Merleau-Ponty, E. Cassirer, S. Langer) – e que ruem em todos os campos, a começar pela biologia
moderna, que supera o mecanismo pavloviano – os concretos racionalistas ainda veem o homem como uma máquina
entre máquinas e procuram limitar a arte à expressão dessa realidade teórica.
Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquina’ nem como ‘objeto’, mas como um quase corpus, isto é, um ser cuja
realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se
dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre
o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt
objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que emerge nela pela primeira vez. Se tivéssemos que buscar
um símile para a obra de arte, não o poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas, como S. Lanoer e W. Wleidlé, nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não bastaria para
expressar a realidade específica do organismo estético.
É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o transcende ao fundar nele uma significação nova – que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, estrutura, cor, etc., não são suficientes para compreender
a obra de arte, para dar conta de sua ‘realidade’. A dificuldade de uma terminologia precisa para exprimir um mundo que
não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada.
A influência da tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, a ponto de hoje, invertendo-se os papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo dessas noções objetivas para aplicá-las como método
criativo. Inevitavelmente, os artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori, limitados que estão por um
método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do
espectador uma reação de estímulo e reflexo: fala ao olho como instrumento e não olho como um modo humano de ter o
mundo e se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo.
É porque a obra de arte transcende o espaço mecânico que, nela, as noções de causa e efeitoperdem qualquer validez,
e as noções de tempo, espaço, forma, cor estão de tal modo integradas – pelo fato mesmo de que não preexistiam,
como noções, à obra – que seria impossível falar delas como de termos decomponíveis. A arte neoconcreta, afirmando
a integração absoluta desses elementos, acredita que o vocabulário ‘geométrico’ que utiliza pode assumir a expressão
de realidades humanas complexas, tal como o provam muitas das obras de Mondrian, Malevitch, Pevsner, Gabo, Sofia
Taueber-Arp etc. Se mesmo esses artistas às vezes confundiam o conceito de forma-mecânica com o de forma-expressiva, urge esclarecer que, na linguagem da arte, as formas ditas geométricas perdem o caráter objetivo da geometria para
se fazerem veículo da imaginação.
A Gestalt, sendo ainda uma psicologia causalista, também é insuficiente para nos fazer compreender esse fenômeno que
dissolve o espaço e a forma como realidades causalmente determináveis e os dá como tempo – como espacialização da
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obra. Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando
o impulso quea gerou e de que ela era já a origem. E se essa descrição nos remete igualmente à experiência primeira – plena – do real, é que a arte neoconcreta não pretende nada menos que reacender essa experiência. A arte neoconcreta funda
um novo ‘espaço’ expressivo.
Essa posição é igualmente válida para a poesia neoconcreta que denuncia, na poesia concreta, o mesmo objetivismo mecanicista da pintura. Os poetas concretos racionalistas também puseram como ideal de sua arte a imitação da máquina.
Também para eles o espaço e o tempo não são mais que relações exteriores entre palavras-objeto. Ora, se assim é, a página
se reduz a um espaço gráfico e a palavra a um elemento desse espaço. Como na pintura, o visual aqui se reduz ao ótico e o
poema não ultrapassa a dimensão gráfica. A poesia neoconcreta rejeita tais noções espúrias e, fiel à natureza mesma da
linguagem, afirma o poema como um ser temporal. No tempo e não no espaço a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa. A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo. Não se trata,
evidentemente, de voltar ao conceito de tempo da poesia discursiva, porque enquanto nesta a linguagem flui em sucessão,
na poesia neoconcreta a linguagem se abre em duração. Consequentemente, ao contrário do concretismo racionalista,
que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, a poesia neoconcreta devolve-a à sua condição de
‘verbo’, isto é, de modo humano de representaçãodo real. Na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura.
Por sua vez, a prosa neoconcreta, abrindo um novo campo para as experiências expressivas, recupera a linguagem como
fluxo, superando suas contingências sintáticas e dando um sentido novo, mais amplo, a certas soluções tidas até aqui equivocadamente como poesia. É assim que, na pintura como na poesia, na prosa como na escultura e na gravura, a arteneoconcreta reafirma a independência da criação artística em face do conhecimento prático (moral, política, indústria etc.).
Os participantes desta I Exposição Neoconcreta não constituem um ‘grupo’. Não os ligam princípios dogmáticos. A afinidade
evidente das pesquisas que realizam em vários campos os aproximou e os reuniu aqui. O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e eles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou.
Amílcar de Castro
Ferreira Gullar
Franz Weissmann
Lygia Clark
Lygia Pape
Reynaldo Jardim
Theon Spanudis”
Publicado em 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, serve como abertura da 1ª Exposição de Arte Neoconcreta, no MAM/RJ,
na qual fica clara a distância entre o grupo de Gullar e os concretistas de São Paulo. Disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
3.3. BABA ANTROPOFÁGICA E OUTRAS PROPOSIÇÕES
“Somos os propositores; somos o molde; a vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido da nossa existência.
Somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos; estamos a nosso dispor.
Somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação.
Somos os propositores: não lhes propomos nem o passado nem o futuro, mas o agora.”
Lygia Clark (1980, p. 31) Disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
Texto
“Lygia provoca a participação do espectador com a obra. Ela desenvolveu um trabalho de sensibilização chamado ‘Nostalgia do corpo’ e desenvolvia através do contato de objetos com o corpo, a relaxação e a percepção das sensações.
Entre objetos comuns e plásticos ela convida que cada um invente e participe. A pessoa cria uma relação com os objetos
através da textura, peso, tamanho, etc.”¹
O desejo de Lygia Clark em se vincular com a vida se expressa em proposições (termo que ela utilizava) como os
“Objetos sensoriais” (1966-1968), nos quais usava objetos da vida cotidiana (água, conchas, borrachas, sementes,
bolas de pingue-pongue, linhas), que tinham na interação com o espectador a sua razão de ser, ressignificando
o papel do público em instituições de arte.
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Em 1972, Lygia Clark foi convidada a ministrar um curso de comunicação gestual na Sorbonne. Em suas aulas, propôs
experiências coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos, que transformavam os estudantes em objetos de suas
próprias sensações, integrando-se assim arte e vida, incorporando a criatividade do outro e dando ao propositor o
suporte para que se exprima. A experiência Baba Antropofágica foi realizada em 1973, sendo descrita no site da Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark:
“Um grupo de participantes leva carreteis de linha à boca e, lentamente, todos vão desenrolando os fios de várias cores com
as mãos para recobrir o corpo de outro participante, que está deitado no chão. Ao final, os participantes se enroscam com
a ‘baba’ de fios.”¹
No mesmo site, temos o depoimento da (não) artista, em entrevista concedida em 1980:
“Era um sonho da minha vida inteira. Eu abria a boca, tirava uma substância de dentro da boca, e ia botando para fora e ia
perdendo a substância, eu ficava muito angustiada, não falava, um dia, depois que fiz as máscaras sensoriais, eu me lembrei
de fazer uma máscara que tivesse uma carretilha e que a baba fosse engolida, mas só de eu pensar nisso acabei realizando
um carretel na boca das pessoas. Nunca mais eu sonhei. Aí tive outro sonho: eu continuava a tirar a baba e, de repente, toda
aquela parte... que saiu, virou um tubo de borracha e eu improvisei outra vez o tubo de borracha. Nunca mais eu sonhei isso.”¹
Outras proposições de Lygia Clark incluem Natureza Cega (1966), Pedra e Ar (1966), Livro Sensorial (1966), Ping-Pong
(1966), Desenhe com o Dedo (1966), Água e Conchas (1966), Respire Comigo (1966), Diálogo com as Mãos (1966), Máscaras Sensoriais (1967), Máscara Abismo (1968), Camisa de Força (1968), Óculos (1968), Luvas Sensoriais (1967), Casal (1969),
todas da série Objetos Sensoriais. Após essa série, outros experimentos de interação seguiram, como as séries Roupa Corpo Roupa, Nostalgia do Corpo, Arquitetura Biológica, Fantasmática do Corpo, Estruturação do Self, entre outras.
¹ Proposições completas e demais informações disponíveis AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
4. REFERÊNCIAS
FIDELIS. G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
GULLAR, F. Manifesto Neoconcreto. Jornal do Brasil, 1959. Disponível em: <http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/Manifesto%20neoconcreto.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2015.
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Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil. Compra Governo do Estado de São Paulo, 1980
Fotografia: Isabella Matheus
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: O Porco
Ano: 1967
Artista: Nelson Leirner (1932, São Paulo, Brasil)
Suporte: porco empalhado, presunto, engradado de madeira
Dimensões: 83 x 159 x 62cm
Palavras-chave: paradoxo, arte conceitual, mercado, marketing, capitalismo, representação, indústria.
Descrição
O Porco é uma obra de apropriação que foi criada pelo artista Nelson Leirner no ano de 1967, com o objetivo de enviar
o trabalho ao júri do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal. A peça consiste em um engradado de madeira que
carrega em seu interior um porco empalhado com um presunto pendurado em seu pescoço.
Diversos críticos e historiadores da arte indicam nesse trabalho a intenção do artista de discutir, no âmbito público, o processo de industrialização que se dá a partir da transformação de algo natural em um produto a ser comercializado por meio do trabalho humano, já que a obra foi acompanhada por outro trabalho, chamado Tronco
com cadeira (1964).
A importância desse trabalho, entretanto, vai além dessas questões presentes na obra. Leirner criou O Porco para
torná-lo, posteriormente, parte de um trabalho chamado o Happening da crítica, um episódio bastante interessante
na história da arte brasileira. Após ter sua obra aceita pelo júri do salão, Leirner publicou um texto no Jornal da Tarde,
questionando o júri acerca dos critérios de aceitação da obra.
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O paradoxo criado pelo artista foi inédito na arte brasileira. A utilização de um canal de comunicação de massa (o jornal impresso) deu ao artista a grande oportunidade de apresentar sua obra a um público muito maior do que aquele
que visitaria a exposição em Brasília, podendo ser considerada uma estratégia de marketing pessoal. Além disso, as
cartas trocadas entre o grupo de críticos e o artista explicitam aos leitores as inúmeras transformações ocorridas não
apenas nos critérios de legitimação de obras de arte, mas também no modo de atuação dos artistas e dos críticos que,
em vez de avaliar uma peça exclusivamente a partir de parâmetros específicos à sua linguagem e técnica, passam a
avaliar mais amplamente os desdobramentos interpretativos que emanam das obras, podendo, inclusive, ser questionados pelos criadores dos trabalhos.
Sua contribuição para a área específica da arte é o fato de difundir a noção de que o artista pode atuar como um
propositor de objetos de interpretação livre, deixando à crítica especializada e aos públicos a possibilidade de
atuar de maneira ativa, agregando aos trabalhos uma série de sentidos que excedem as intenções do artista, sem
a necessidade de limitar suas possibilidades poéticas, políticas e estéticas. E principalmente: embora existam especialistas em arte contemporânea, qualquer pessoa pode relacionar-se com as obras e criar sentidos a partir da
vivência com os trabalhos.
Ao mesmo tempo, outro importante aspecto do episódio é o fato de ter sido uma espécie de convite público ao
questionamento das instituições públicas, com compromissos políticos para além de benefícios pessoais, em um
momento de profunda crise de liberdades individuais devido ao regime ditatorial de governo vigente.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
O artista Nelson Leirner (São Paulo, 1932) marcou a história da arte brasileira como uma figura irreverente, irônica e
bastante crítica em relação às instituições de arte e às estruturas sociais. Após experimentar a pintura no início de sua
carreira, na década de 1960, passa a utilizar objetos para fazer suas obras, criando esculturas e obras que, aos poucos,
demonstravam a intenção do artista em incluir a participação do público, como, por exemplo, na obra Você faz parte
(1966), em que um espelho faz com que a imagem do observador se projete como parte da obra.
Foi um dos fundadores do Grupo Rex em São Paulo, coletivo artístico que promovia performances, happenings, publicações e uma série de ações públicas com o objetivo de questionar de forma radical as relações entre arte, mercado,
instituições e públicos. Ainda na década de 1960, Nelson Leirner explora os processos industriais para criar alguns dos
primeiros múltiplos da arte brasileira, na Série Homenagem a Fontana (1967), em um momento em que sua pesquisa
diante da matéria e da forma, como também dos processos industriais de transformação de matéria-prima em produtos, leva-o a criar a obra O Porco, parte integrante de seu Happening da crítica.
A partir dos anos 1970, passa a experimentar as linguagens do design, do cinema experimental, do desenho e da instalação, retomando elementos da cultura popular brasileira. Dos anos 1980 em diante, utiliza uma série de objetos e
elementos considerados de pouco valor e até mesmo banais, associados à cultura do kitsch. Realiza obras de alto teor
crítico em relação à situação política do país. Nos anos 2000, com a ironia e o humor sempre presentes nos happenings, aparece em obras que exploram a linguagem da pintura e o tema da história da arte ocidental, em uma uma série
de reproduções de importantes obras da história da arte ocidental e do construtivismo brasileiro.
Atuou como professor universitário na fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) entre os anos de 1977 e 1997 e
no Parque Lage, em 1998, tendo influenciado com seu jeito irreverente e rigor artístico pelo menos duas gerações de
artistas em formação.
Uma biografia e a trajetória mais detalhada a respeito do artista são apresentadas no livro Nelson Leirner: a arte do
avesso, de Agnaldo Farias, Lilia Moritz Schwarcz e Piero Leirner, publicado pela Editora Andrea Jakobsson Estúdio.
Disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
2.1. OUTRAS OBRAS
Demais obras podem ser consultadas no site do artista, disponível AQUI. Acesso em: 10 ago. 2015.
Segue a lista recomendada para a consulta de obras:
Tronco com cadeira (1964), cadeira e tronco, dimensões variáveis
Pôr-do-sol (1962) – óleo sobre madeira, 144x10x8cm
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Você faz parte II (1964) – madeira, aço cromado e espelho, 111,3x111,3x10,2cm
Responda... se puder (1965) – óleo sobre madeira, metal e papel, 111x111cm
Que horas são, Dona Cândida? (1965) – metal e madeira, 220x220cm
Homenagem a Fontana I, II e III (1967) – lona e zíper, 180x126cm
Cubo de dados (1970) – plástico, 7x7x7cm
Xeque-mate (esfinge) e Xeque-mate (tartaruga) (1983) – gesso e ferro, 10x20x10cm
Santa Ceia (1990) – gesso, aço inox e granito, 18,5x34x18cm
Futebol (2000) – técnica mista, 123x83x22cm
Colares (1998-2009) – técnica mista, 65x45cm
Eu e Manet (2011) – colagem sobre fotografia, 175x220cm
Santa Ceia (2012) – colagem sobre fotografia, 115x235cm
O preço da arte (2012) – técnica mista, 55x65x20cm
Missa móvel (2008) – técnica mista, 80x22cm
Série “Dow Jones” (2007) – stickers sobre fotografia, 90x120cm
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
O Porco foi apresentado pela primeira vez no IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em 1967, para o qual foi
submetido em conjunto com outra obra, Tronco com cadeira (1964), com a qual compartilhava a mesma proposição,
conforme observado por Chiarelli (2002, p. 107): “explicitar/discutir a transformação do objeto natural em produto
industrial”. Esse envio em conjunto, somado aos fatos que o sucederam, formam uma “terceira obra”, a qual Leirner
chama de Happening da crítica. No que se refere ao contexto histórico da trajetória de Nelson Leirner, é relevante discutir a sua relação de oposição ao regime militar ditatorial brasileiro.
3.1. HAPPENING DA CRÍTICA (1967)
Almejando fazer um tipo de arte que pudesse ter a força de tornar o espectador de arte participante e até mesmo
co-criador, nos anos 1960, artistas do mundo todo começaram a realizar ações públicas que se assemelhavam ao caráter teatral das já bem conhecidas performances, porém previam dois elementos de imprevisibilidade para o seu desenvolvimento: a participação pública e a duração indeterminada. Em 1959, o artista norte-americano Allan Kaprow
(1927-2006) chamou esse tipo de arte de “happening” (“acontecimento”) e pesquisou suas características, realizando
ele mesmo uma série de trabalhos e textos em torno desse tipo de prática.
Nas décadas de 1960 e 1970, Nelson Leirner realizou muitos trabalhos explorando o formato de happenings a fim de
de provocar a participação pública em discussões acerca de acontecimentos planejados em pauta e modos de circulação, geralmente levando a meios de comunicação diversos a narrativa sobre o acontecimento artístico que havia
proposto como forma de provocação. Um dos episódios de provocação à autoridade da crítica de arte causados por
Leirner foi o Happening da crítica, obra que integra O Porco, Tronco com cadeira e uma série de provocações entre
o júri do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal e Leirner, quando ele questiona publicamente os critérios de
seleção de sua própria obra. Deixando de lado por ora os meandros da discussão travada, vale ressaltar o fato de que
são raríssimos episódios desses na arte brasileira e a relevância desse ato.
“Questionar critérios é forçar efetivamente as instituições – representadas por críticos e curadores – para que definam, explicitem e, portanto, socializem seus mecanismos de seleção, suas políticas culturais.” (Chiarelli, 2002, p. 106)
A crítica de Leirner é bipolar no sentido que não se dirige apenas aos críticos, curadores e jurados, mas também aos
próprios artistas que se permitem ser enquadrados nas definições atribuídas às suas obras, principalmente por receio
de não fazer parte do ciclo, de não integrar mais exposições, etc. Assim, deixam corromper a essência de seu trabalho.
Em síntese, a sua intenção é cristalizar as regras e as dinâmicas no âmbito artístico, na medida em que expõe as figuras
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cruciais de um salão a uma situação constrangedora.
Leirner e seus colaboradores compreendiam essas ações como dispositivos pedagógicos para abordar direta ou
indiretamente temas sociais e políticos, explorando seu potencial para questionar instituições culturais e estimular os públicos a questionar o contexto vigente.
Mais detalhes e reflexões acerca de Happening da crítica estão disponíveis no texto “Qual o critério? Contra o poder
da crítica e das instituições”.
Fonte: Nelson Leirner: a arte e a não arte, de Tadeu Chiarelli (2002, p. 105-113). Disponível AQUI. Acesso em: 12 ago. 2015.
O mundo da cultura1 não é estático. Assim como a antropologia simbólica, que hoje estuda a atividade humana em
um sentido amplo e simbólico – e não sai mais em busca de tribos “não civilizadas” para estudar a humanidade em
um momento mais básico de vida –, o crítico de arte ou o acadêmico que estuda as artes visuais também avançou,
acompanhando os movimentos artísticos conforme vão ocorrendo. Nesse sentido, hoje se observa mais um esforço
de compreender simbolicamente determinada obra do que de julgá-la.
Embora tal processo possa parecer óbvio para artistas, críticos, curadores, diretores de museus, pesquisadores e estudantes de artes visuais, isso não significa que não existam barreiras entre o público geral (não o público específico) e
as artes visuais como um todo, haja vista que, apesar de haver artistas que chegam a esse público através de interações profissionais com outras áreas (em especial publicidade e design), ao contrário de outras “artes”, como cinema,
música e, em menor grau, o teatro, as artes visuais padecem de um distanciamento que, para ser superado, requer de
parte desses agentes envolvidos com a arte uma criatividade tão grande quanto a que é necessária para a elaboração
das obras.
O Happening da crítica, mesmo que não tenha tido uma intenção educacional, acaba funcionando como tal, já que se
transformou em um case obrigatório para o estudo da arte contemporânea brasileira. Os desdobramentos da carta
original de Leirner ao Jornal da Tarde descrevem todo um processo de trabalho que vai do artista aos críticos de arte,
passando pelo público que será exposto ao resultado desse processo, a mídia especializada, os estudantes de arte,
os novos artistas, os produtores de exposições, enfim, o campo das artes visuais contemporâneas em sua totalidade.
Quem lê todas as respostas, tanto do júri quanto do artista, publicadas nos jornais da época, passa a ter consciência de
que não se pode mais afirmar “eu não entendo de arte contemporânea”. Mesmo que não conheça os artistas, nem os
movimentos, nem as obras que os compõem, saberá que, a partir de determinados momentos no século XX, a crítica
não mais se atém a julgar criticamente a obra de arte, visto que também há uma tendência, por parte dos artistas,
a se limitar a explicitar apenas a proposição, deixando para a crítica a possibilidade de explorar os desdobramentos
provindos de tal obra e para o público a liberdade de elaborar suas próprias interpretações, conforme a subjetividade
de cada um. Não que esta seja uma regra; afinal, no âmbito de interpretação de uma obra de arte, como, por exemplo,
O Porco ou, melhor ainda, o Happening da crítica (que deve sim ser interpretado como uma obra de Leirner, com um
impacto ainda maior do que o porco e o tronco), não existem respostas corretas.
Não seria de se estranhar, caso Matéria e forma tivesse sido negada a participar do Salão de Arte Moderna, que (conforme apontado por Frederico Morais, em sua resposta publicada no Diário de Notícias em 14 de janeiro de 1968)
Leirner tivesse mandado uma carta muito similar ao Jornal da Tarde, porém indagando o porquê de sua obra ter sido
recusada (o que, segundo a resposta de Morais, teria ocorrido exatamente pelo mesmo motivo de ter sido aceita).
O que Leirner conseguiu, usando bom humor e um surpreendente senso de marketing pessoal, foi polemizar um
assunto aproximando-o de um público não específico, já que os leitores de um jornal não fazem parte do mesmo
grupo. O legado do Happening da crítica é uma verdadeira aula de arte contemporânea, uma fatia da história do meio
artístico, curatorial e museológico brasileiro.
Deve-se ter em mente que, em termos de um trabalho intelectual, provocações e críticas têm o papel de retirar o sujeito
de sua zona de conforto. Um intelectual que não recebe críticas ou um crítico que não tem o seu trabalho questionado
tendem a acreditar que estão sempre certos, o que dá margem ao risco de interpretações deterministas, conclusões que
tendem a confundir o público, fazendo-o cair na falsa crença de que podemos chegar a um ponto final no que se refere
ao pensamento humano.2 Da mesma forma, um artista necessita da interação crítica e do público para desenvolver-se.
1. Aqui se entende por cultura a sua definição antropológica contemporânea, isto é, mais do que atividades tidas como “culturais” no sentido de ligadas às artes, a
cultura abrange todos os segmentos da intervenção humana no mundo natural, social, das ideias, etc.
2. Como o célebre caso de Francis Fukuyama.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
35
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
3.2. LEIRNER E OS ANOS DE CHUMBO
A produção de Nelson Leirner começa a despontar com maior força e vitalidade justamente a partir de 1965, momento
em que a arte e a cultura começaram a sentir os reflexos da forte censura exercida pelo regime ditatorial implantado
no país em 1964. Nas duas décadas em que em que atuavam os órgãos oficiais de controle geral das liberdades civis do
regime, os artistas conheciam o rigor do exame de conteúdos de obras de arte, literatura, dança, cinema, teatro e música.
Eles precisaram adaptar seus trabalhos para burlar não apenas a crise econômica, mas especialmente a tensão exercida
pela censura e a perseguição de qualquer pessoa que pudesse vir a se tornar suspeita de boicote ao regime.
Esse contexto de grande insatisfação e da necessidade de posicionamento alimentou de muitas formas a produção
de Leirner, que desenvolveu maneiras cada vez mais sofisticadas de utilizar o humor, o deboche e a ironia como artista
para contestar as instituições públicas e o status quo, enquanto como cidadão participava de todos os movimentos,
boicotes e ajuda a pessoas que tiveram de se esconder.
A trajetória de Leirner durante os anos de chumbo pode ser acompanhada no texto “Uma linha dura... Não dura: Nelson Leirner e os anos de repressão”.
Fonte: Nelson Leirner: a arte e a não arte, de Tadeu Chiarelli (2002, p. 133-157). Disponível AQUI. Acesso em: 12 ago. 2015.
4. DIÁLOGOS COM A 10ª BIENAL DO MERCOSUL - MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
O Porco (1967), de Nelson Leirner, no âmbito da 10ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul – Mensagens de Uma nova
América, faz parte da exposição Marginália da Forma, que, por sua vez, integra o Campo III – O Desapagamento dos
Trópicos. A seguir, apresentamos algumas considerações a respeito da inserção dessa obra em tal contexto.
4.1. O DESAPAGAMENTO DOS TRÓPICOS
Tomando como base a “estratégia” adotada por Leirner em seu Happening da crítica3 (1967), pode-se afirmar que, em
termos de entendimento acerca de como se constitui a história da arte contemporânea, o artista demonstra uma
capacidade admirável de protagonizar as rupturas necessárias para dar visibilidade (e legibilidade) à sua obra. Conforme destaca Gaudêncio Fidelis (2015, p. 11):
“Os museus e a academia são instâncias institucionais determinantes na constituição da história da arte, assim como podemos considerá-los os grandes responsáveis por determinar aquilo que ganhará visibilidade ou permanecerá na obscuridade de suas reservas técnicas, ou até mesmo o que não chegará a entrar em seu interior, ou ainda ascender ao patamar
das narrativas hegemônicas. Ao mesmo tempo, essas instâncias são responsáveis por assegurar o patrimônio artístico
para gerações futuras e constituem plataformas de extrema relevância para definir um campo de legibilidade para a arte
e sua história.”
Tal demonstração de know-how permite a Leirner acrescentar à sua produção artística uma relevância histórica que o
torna vitorioso em relação às adversidades comumente enfrentadas por artistas latino-americanos que, assim como
ele, tiveram (e tem) de “resistir às intempéries políticas e econômicas pelas quais historicamente esses países estão
submetidos ou à crítica insolvência institucional de que padecem”, como afirma Fidelis (2015, p. 6).
A partir da obra O Porco, enfrentamento e resistência passariam a ser constantes no trabalho artístico de Nelson Leirner, que demonstrou um posicionamento contrário ao regime militar iniciado em 1964, conforme vimos no item 3.2.
4.2. MARGINÁLIA DA FORMA
A exposição Marginália da Forma tem seu sentido constituído em assinalar um conjunto de obras que se mantiveram
à margem do interesse da crítica. O Porco, por sua vez, através do anteriormente mencionado Happening da crítica,
forçou sua inscrição na narrativa da história da arte brasileira (e, por consequência, latino-americana) contemporânea.
O mesmo, aliás, pode-se dizer da produção do artista como um todo, que se aproveita de “um verdadeiro labirinto de
escolhas e possibilidades”, conforme salienta Gaudêncio Fidelis (2015) ao se referir à obra Tropicália, de Hélio Oiticica.
3. Ver item 3.1 deste relatório.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Pode-se afirmar que Nelson Leirner mantém-se propositalmente à margem – ou que sua obra caracteriza-se por
um posicionamento consciente fora das convenções artísticas, políticas e estéticas observadas em trabalhos que se
adaptam mais facilmente ao interesse da crítica e da historiografia e, por essa exata razão, inscreve-se à narrativa da
história da arte latino-americana de uma forma avessa, porém eficaz.
Seu posicionamento nessa exposição, em conjunto com outras obras e outros artistas que também compartilham de
estratégias similares, enfrentando, cada um à sua maneira, as dificuldades impostas por questões sociais, políticas e
econômicas no âmbito das artes latino-americanas, colabora para legitimar esse conjunto como um todo a partir de
sua inclusão em uma grande mostra como a 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de Uma Nova América.
5. REFERÊNCIAS
CHIARELLI, T. Nelson Leirner: arte e não arte. São Paulo: Editora Galeria Brito Cimino, 2002.
FARIAS, A.; SCHWARCZ, L.M.; LEIRNER, P. Nelson Leirner: a arte do avesso. Rio de Janeiro: Editora Andrea Jakobsson
Estúdio, 2012.
FIDELIS, G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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OBRA DE REFERÊNCIA PARA TRABALHO PEDAGÓGICO
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Coleção COLTEJER S.A. em exposição no Museu de Antioquia, Colômbia
Fotografia: Cortesia do Museu de Antioquia, Colômbia
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Dioxazine
Ano: 1970
Artista: Rogelio Polesello (Buenos Aires, Argentina, 1939-2014)
Suporte: lâmina de acrílico
Dimensões: 104,5x100,2x4,8cm
Palavras-chave: arte geométrica, arte óptica, tecnologia.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
Physichromie nr.463, 1969 - Carlos Cruz-Diez (1923, Caracas-Venezuela)
Tinta acrílica e lâminas de PVC em madeira. 62 x 61 x 4 cm.
Descrição
A obra Dioxazinese constitui-se em uma placa de acrílico com formas circulares convexas espelhadas. Essa placa não
só permite ver através dela, como também insere o observador na obra e modifica todo o ambiente no qual se encontra. Na Bienal de Coltejer, a obra acabava incluindo mais três pinturas, modificando-as e integrando a placa com elas.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Rogelio Polessello, pintor e escultor argentino, estudou arte na Academia Nacional de Belas Artes. Protagonizou a renovação abstrata durante os anos 1960, sendo membro da vertente geométrica. Participou do Grupo Arte Generativa
e é considerado um dois maiores expoentes da Op Art na América Latina.
Começou a expor em 1950, tendo sua primeira individual em 1959. Nos anos 1960, expõe em vários países latino-americanos e em diversas cidades importantes, como Washington, Paris, México, Madri e Nova York. Sua carreira é
consolidada de fato em 1965.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Suas obras estão expostas tanto em museus quanto em leilões nacionais e internacionais. Foi convidado por Pipino
e Márquez Córdoba a participar da Primeira Fundação Bienal. Expôs ao lado de Osvaldo Borda, Victor Chab, Lublin
Lea, Peluffo Marta e Carlos Silva, entre outros. Participou do Primeiro Festival of Contemporary Forms argentino. Em
1968, fez parte da exposição Beyond Geometry, organizada em Nova York no centro de Relações Interamericanas
pelo Instituto Di Tella, além da montagem da nova mostra, realizada no Museu Nacional de Belas Artes da Argentina.
A exposição Surrealismo na Argentina, de 1969, organizada por Aldo Pellegrini, também contou com a presença de
Rogelio Polessello.
Foi premiado nacional e internacionalmente, tendo recebido o Prêmio “Ver e estimativa” (1960), o Primeiro Prêmio
Braque (1968), o Prêmio Konex (1982), o Primeiro Prêmio Nacional (1986) e o Prêmio Nacional de Artes (2003).
Em 6 de julho de 2014, Polesello faleceu em Buenos Aires, vítima de infarto.
Informações disponíveis AQUI e AQUI. Acesso em: 23 jul. 2015.
2.1. OUTRAS OBRAS
Não há uma boa quantidade de galerias on-line a respeito da obra de Rogelio Polesello, ao menos não que sejam
muito completas. Segue o link do site Christie’s, com transações de obras do artista, e do Artnet, com algum material
complementar.
Christie’s, acesse AQUI. Acesso em: 14 ago. 2015.
Artnet, acesse AQUI. Acesso em: 14 ago. 2015.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
A obra de Rogelio Polesello transita por duas escolas: a arte óptica e a arte geométrica, que serão analisadas neste
item. Antes, porém, é de grande valor analisar as Bienais de Arte Coltejer (consideradas um marco na história da arte
latino-americana), ocorridas na Colômbia entre 1968 e 1972, uma vez que Dioxazine foi exposta na segunda edição da
mostra em 1970. Seguem dois textos sobre essas bienais (um mais descritivo, outro mais elaborado), contendo uma
análise com base em conceitos de arte e tecnologia.
3.1. 68-70-72: BIENALES DE ARTE COLTEJER
Artigo: descrição das Bienais de Coltejer para a exposição retrospectiva 68 70 72 Bienales de Arte Coltejer, realizada no
Museu de Antioquia.
Disponível AQUI. Acesso em: 27 jul. 2015.
Tradução e adaptação do Núcleo de Documentação e Pesquisa (NDP) – Fundação Bienal Mercosul.
Apresentação
Entre 1968 e 1972, Medellín foi sede de três bienais de arte promovidas por Coltejer, empresa vinculada à organização
e ao patrocínio desses eventos que marcaram a história da arte latino-americana. O impacto das bienais na esfera
artística e social da época foi ampliado e evidencia-se, por exemplo, na realização do Coloquio de Arte No Objetual e
na criação do Museo de Arte Moderno de Medellín.
A história da coleção de arte de Coltejer está estreitamente vinculada às bienais que permitiram à empresa consolidar um conjunto diverso de obras firmadas por importantes artistas nacionais e internacionais e desenvolvidas em
distintas técnicas e suportes.
O conjunto de obras exibidas constitui apenas uma mostra parcial dos participantes na I Bienal Iberoamericana de
Pintura de Coltejer (1968), a II Bienal de Arte Coltejer de Medellín (1970) e a III Bienal de Arte Coltejer de Medellín (1972). A
mostra, organizada de maneira cronológica, está conformada por peças que pertencem à coleção da empresa, muitas
delas ganhadoras de prêmios ou menções, e por obras do patrimônio que guarda o Museo de Antioquia, ligadas em
linguagem e temporalidade às históricas mostras.
A exposição inclui também um espaço documental que põe em comum o impacto midiático das bienais no contexto
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
39
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
nacional, seu reflexo na imprensa internacional e as narrativas produzidas pelo evento, expressas em catálogos, cursos, folhetos, peças promocionais, fotografias, textos críticos e testemunhos de alguns dos gestores.
Nosso propósito é incentivar, a partir dessa mostra, diversas investigações sobre o surgimento, o desenvolvimento e
o impacto das bienais, eventos que transformaram a história da arte moderna na Colômbia.
As Bienais
I Bienal Iberoamericana de Pintura de Coltejer
Realizou-se por iniciativa de Leonel Estrada e contou com o apoio de Rodrigo Uribe Echavarría, presidente de Coltejer.
Foi precedida de dois eventos artísticos: a exposição Arte Nuevo para Medellín, organizada por Samuel Vásquez, e
Artistas Residentes em Cali, liderada pela empresa têxtil para comemorar seus 60 anos de trajetória.
Essa bienal contou com a participação de 180 obras de 93 artistas: 37 colombianos e 56 internacionais convocados
através da embaixadas. Realizou-se no edifício de física da recém-construída Universidade de Antiquia. O júri foi composto por Jean Clarence Lambert, Alexander Cirici Pellicer e Dickens Castro.
II Bienal de Arte Coltejer de Medellín
A segunda bienal de arte foi inaugurada no dia 1º de maio de 1970. A troca de nome expressou o interesse em contar
com um espectro mais amplo de artistas e obras.
Participaram dessa edição 25 países, com um total de 324 obras de 171 artistas, 40 deles colombianos. A exposição foi
realizada no Museo Universitario de La Universidad de Antioquia. O júri foi composto por Giulio Carlo Argan, Vicente
Aguilera Cerni, Lawrence Alloway, Dário Ruiz e Germán Rubiano. A bienal teve um amplo componente pedagógico,
composto por textos, eventos culturais e atividades acadêmicas como os cursos de arte atual.
III Bienal de Arte Coltejer de Medellín
Realizou-se no recém-construído edifício Coltejer, onde foram expostas 600 obras de 220 artistas. Nessa versão, os
prêmios foram de aquisição e contou-se com a assessoria de Jasia Reichardt, Gillo Dorfles e Brian O’Doherty.
A bienal teve um caráter didático e interdisciplinar que pretendia facilitar o diálogo entre o artista e o público. As
obras dividiram-se em quatro grupos: arte figurativa, arte não figurativa, arte conceitual e arte tecnológica e científica.
Artigo: Bienales de Arte Coltejer – También una convergencia entre arte y tecnología (de Isabel Restrepo Acevedo1).
Revista Universidad de Antioquia, n. 319.
“A finales de los años sesenta, y muy particularmente durante los setenta, la ciudad de Medellín fue testigo de una
serie de exposiciones artísticas bastante novedosas, que sirvieron de referencia fundamental para el desarrollo posterior de propuestas artísticas locales, que se insertaron, con gran fuerza y pertinencia, en las dinámicas de exploración estética establecidas por el arte contemporáneo global. Me refiero a las Bienales de Arte Coltejer, Medellín, las
cuales lograron reunir obras de artistas nacionales e internacionales, que daban cuenta de indagaciones y rupturas
disciplinares al interior del arte. Estas rupturas han sido entendidas por algunos críticos y teóricos como una suerte
de derramamiento formal, es decir, como una serie de disoluciones de los límites convencionales de medios como la
pintura, la escultura y el grabado – límites determinados bajo las consideraciones del arte moderno. En este sentido,
las bienales, especialmente las de 1970 y 1972, sirvieron de puerta de entrada a exploraciones artísticas desarrolladas
bajo otros medios, como instalaciones, arte óptico y cinético, video, arte tecnológico y computarizado, entre otros.
Como elementos comunes de gran parte de las obras de dichas bienales, se encuentran el carácter híbrido de los medios seleccionados, y la expresión de nuevas dinámicas en su producción y recepción. Es importante señalar también
que muchas de las obras allí expuestas implicaban la integración del espectador o de los dispositivos tecnológicos
como elementos activos en su conformación. De esta forma se rompía con la fijeza de la obra acabada y se introducía
el aspecto procesual, en virtud de lo cual la obra deviene experiencia interactiva. En este sentido las experiencias se
convertían en enunciados formales de nuevas dinámicas artísticas, en las cuales el acto creativo del artista se abría a
1. Isabel Restrepo Acevedo (Colômbia): profesora asociada de la Facultad de Artes de la Universidad de Antioquia. Líder del grupo de investigación Hipertrópico:
convergencia entre arte y tecnología, de la misma institución. Es candidata a doctora en Artes de la Facultad de Artes de la Universidad de Antioquia, magíster en Multimedia de San Diego State University, USA, (MFA in Arts), y maestra en Artes Plásticas de la Universidad Nacional de Colombia, sede Medellín. En sus investigaciones
y propuestas artísticas se articulan cuestionamientos artísticos, tecnológicos y sociales.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
la emergencia de acciones creativas compartidas con los espectadores o con los dispositivos o medios. Esta apertura
es de vital importancia para el análisis y comprensión de las prácticas digitales y tecnológicas posteriores.
El interés particular del presente texto esmostrar que muchas de las características queasumimos como propias de
las prácticas artísticasdigitales y tecnológicas actuales estaban ya presentes en algunas exploraciones artísticas desde
lasegunda mitad del siglo XX, y Medellín pudo presenciarlas en el marco de las bienales. Con esto propongo que la reflexión sobre la convergenciaentre arte y tecnología, y particularmente sobrelas prácticas artísticas digitales actuales,
conlleva una serie de relaciones históricas, que no solo responden a desarrollos tecnológicos sino también aexploraciones estéticas desarrolladas por el arte.
Pero ¿de dónde viene este planteamiento? Para responder esta inquietud, me gustaría hablarde la exposición que
visité en el año 2012 en el New Museum, de Nueva York, titulada Ghosts in the machine (Fantasmas en la máquina).
Allí se hizo explícito el interés por facilitar un espaciode exposición y reflexión histórica sobre la convergencia entre
arte, tecnología y cultura. La variedad de medios de las obras que constituían la muestra incluía el arte óptico y cinético – Jesús Rafael Soto, Victor Vasarely, Julian Stanczak, Julio Le Parc, entre otros; películas y dibujos computarizados
– Lillian F. Schwartz, David R. Garrison, George Nees, Sylvia Roubaud, etc.; dispositivos tecnológicos – instalaciones
y, muy particularmente, videoinstalaciones, como las de Stan van der Beek, Otto Piene y AldoTambellini. Finalmente,
cabe resaltar la presencia de dibujos, esquemas y diagramas que se alimentan del lenguaje proyectual de las ciencias
y la ingeniería. En muchos casos las obras de la exposición mostraban una integración de la tecnología con el arte,
sobrepasando su utilización como herramienta e incluyéndola como elemento formal o medio de expresión. En otros,
las obras insinuaban búsquedas que más tarde serían potenciadas por la utilización de nuevas tecnologías.
La experiencia de primera mano frente a las obras seleccionadas en Ghosts in the machine, sumada a la indagación
sobre las Bienales de ArteColtejer, Medellín (1970 y 1972), me permitió descubrir grandes similitudes entre ambos
eventos, sobre todo en lo referente a las experimentaciones artísticas y tecnológicas. De las bienales puede decirse
que han servido de referente enel desarrollo y reflexión sobre el arte contemporáneo en Medellín, y para la experimentación einclusión de la tecnología en el arte. En ellas el público asistente tuvo contacto con obras de arteóptico y
cinético – Luis Tomasello, Jesús RafaelSoto y Rogelio Polesello; instalaciones – Julio Le Parc, Carlos Colombino, Ruben
Gerchman, entre otros; obras mecánicas, lumínicas o tecnológicas – Gyorgy Kepes, Lygia Clark, Feliza Bursztyn, etc.;
propuestas de arte computarizado – Charles Csuri, William Allan Fetter –, así como con las obras de la exposición Arte
y cibernética, incluida como un módulo expositivo paralelo a la bienal de 1970. Finalmente, hay que señalar las producciones de videoarte realizadas por Les Levine y Earl Reibak.
Llama la atención que las obras que pueden ser ubicadas en la convergencia entre arte y tecnología enfatizaban la
participación activa delespectador o de los dispositivos. Eran obras dinámicas y procesuales que posibilitaban múltiples configuraciones, y que sirven de antecedente paraentender la emergencia de acciones creativas enlos espacios
de interacción digitales y tecnológicos actuales.
A pesar de que las bienales constituyeron un espacio introductorio en la ciudad, con gran influencia y resonancia en
los desarrollos posteriores del arte local, su importancia como antecedentefundamental para el análisis de la convergencia entre arte y tecnología en nuestro medio no hasido abordada. Esta situación ha generado que las bienales se
conviertan en una especie de antesalasilenciosa, aspecto que no les quita su relevancia. Al contrario, este aspecto
justifica la necesidadde iniciar estudios serios que permitan medir su importancia, no solo como activadoras de experimentaciones artísticas innovadoras en nuestro medio, sino también como acontecimientos esenciales para el
análisis histórico sobre la convergencia entre arte y tecnología.
Entonces, con el presente análisis planteoalgunas características que encuentro comunes entre algunas de las obras
de estas bienales y las prácticas culturales desarrolladas actualmente através de la integración tecnológica. En particular, propongo un puente analítico que conecte prácticas artísticas que, aunque distanciadas temporalmente, se
relacionan en el tipo de inquietudes generadas sobre la relación entre artey tecnología. Para construir esta conexión
establezco los siguientes paralelos iniciales:
I. Variabilidad en la percepción de la obra y modularidad formal
Si bien es cierto que el arte digital contemporáneo,en general, ha detonado la explosión de un sin número de propuestas que implican el movimientodel espectador como agente activo, es posible advertir este tipo de inclusión en obras
provenientes del arte óptico. En el marco de la bienal de 1970, por ejemplo, los asistentes a la exposición pudieron visualizar de forma activa y lúdica exploraciones ópticas bidimensionales, dotadas de ungran dinamismo, que expresaban
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
una especie debúsqueda de espacialidad de las unidades discretas constitutivas, permitiendo múltiples lecturas,dadas
por la relación entre el movimiento corporal del espectador en el espacio y la composición modular de dichas obras.
Por ejemplo Atmosphèrecromoplastique, del artista Luis Tomasello, dejaba entrever una invitación a la experiencia corporal del espectador, aspecto que también constituye un elemento fundamental en muchos de los espacios de interacción digital propuestos por el arte actualmente. Por otro lado, en la condición modular de este tipo de obras opticas se
advierte un proceso formal que antecede las lógicas de programación requeridas por las prácticas artísticas digitales.
II. El espectador en la obra
Uno de los efectos más atractivos de las prácticas digitales contemporáneas tiene que ver conla forma como posibilitan la creación de espacios de interacción que no solo incluyen al espectador activamente, sino que generan en él un
sentido de presencia en la pantalla. Esta posibilidad de integración tiene antecedentes importantes en exploraciones
como las realizadas en el marco dela bienal de 1970 por el artista Rogelio Polesello, quien, al utilizar pantallas y lentes
acrílicos como elementos intermediarios entre el espectador y la obra, implicaba al espectador a través de su reflejo.
La obra Dioxazine estaba constituida por tres pinturas y tres paneles especulares, que nosolo permitían ver las pinturas a través de ellos –dinamizando de esta forma la experiencia perceptiva –, sino que también generaban un juego
de reflejos del espectador, que de cierta forma lo convertían en parte de la obra.
En el ámbito de los espacios de interacción digital actuales, este sentido de integración y presencia del espectador en
la pantalla, posible gracias a la utilización de sistemas de monitoreo remoto digitales, ha sido trabajado por artistasde
Medellín como Lina Crespo, Jorge Ocampo, Isabel Restrepo y Mauricio Velásquez.
III. La interacción del espectador en la (re)configuración de la obra
La posibilidad de brindar al espectador un potencial activo en la (re)configuración de la obraes un aspecto que ha
estado presente en distintos medios del arte contemporáneo. En este tipo de exploraciones se proponen espacios
de interacción que remplazan el rol contemplativo de la recepción por uno más protagónico y, de cierta forma, más
creativo. Desde esta perspectiva, surgen otras denominaciones para el receptor, como interactor, participante, actuante, navegador, entre otros. Ejemplos de este tipo de propuestas tuvieron presencia en nuestra ciudad en el marco
de las bienales. Por ejemplo, la artista Lygia Clark presentó, en la II Bienal de Arte Coltejer, en 1970, una obra interactiva
denominada Bichos, en la que, como señala la artista, no existía pasividad entre elespectador y el bicho. Los bichos
eran unas figuras realizadas en placas metálicas que podían tener múltiples configuraciones, como resultado de la
manipulación del espectador y de la estructura base del bicho; de este modo se integraban el gesto del espectador
y el del bicho.
Esta posibilidad interactiva ha sido desarrollada con tal fuerza en el ámbito de la producción digital, que el término ha
sido asimilado como si fuese una característica propia de su medio, y seha convertido en una de las formas de exploración estética entre artistas, colectivos y grupos de investigación. Su fuerza ha implicado que se piense en su adición
a los currículos de formación de artistas en las universidades. Obras como Terror nocturno, de Julián Bedoya, implican
al espectador activamente en la construcción narrativa y la visualización de los elementos, a partir de la selección y
activación de distintos objetos gráficos que invitan a la interacción.
IV. La autonomía de los dispositivos
Llama la atención que en 1972 la artista colombiana Feliza Bursztyn introduce un dispositivo mecánico en la obra
Construcción en movimiento, presentada en Medellín en el marco de la bienal. En esta obra se le adjudica al dispositivo tecnológico cierta vitalidad, dado que la pieza escultórica está dotada de un movimiento constante yautónomo,
generado por un dispositivo eléctrico escondido debajo de una manta. La obra de Bursztyn introduce posibilidades
de interacción con la tecnología, mediante la generación o modificación de contenidos artísticos.
Un uso posterior de los dispositivos tecnológicos que parecen integrarse autónomamente en el proceso creativo,
aparece en las experimentaciones tituladas Naturalezas móviles, realizadas por el artista Yosman Botero en el año
2009. La reapropiación que el artista hace de un dispositivo de reloj de cuerda en la obra número 2 de la serie da
cuenta de cierta autonomía del dispositivo, no solo por su movimiento sino también por la forma como este se convierte en el agente activo que propicia el desdibujamiento del elemento gráfico (una silla), esbozado con un hilo rojo.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
V. El uso de los computadores como herramienta para la creación audiovisual
El protagonismo de dispositivos tecnológicos para la generación de contenidos artísticos tiene otra posibilidad de
análisis cuando se piensa en la utilización de computadores, aspecto que en lasartes se conoce con denominaciones
emergentes como “arte digital” o “nuevos medios”. A pesar de que este tipo de experimentaciones comienzan adarse
en nuestra ciudad en la última década del siglo xx, y adquieren mayor auge en los últimos años, la ciudad tuvo una
referencia inicial de estetipo de exploraciones en las bienales, mediante el trabajo de artistas como Charles Csuri y de
la exposición Arte y cibernética, ambos en el marcode la bienal de 1970. Asimismo, en la bienal de 1972 se expuso la
obra de uno de los pioneros delo que en su momento se llamó “gráficas computarizadas”. Me refiero al artista estadounidense William Allan Fetter, cuya obra Animación humana por computador consistía en la impresión de una serie de
gráficos modulares, en los cuales parecían acoplarse en un mismo plano los fotogramas requeridos para un segmento
de la animación de un cuerpo.
En las bienales, los ejemplos de gráficos computarizados requerían el trabajo colaborativo entre artistas e ingenieros.
Más tarde, con los avances en computación se popularizaron una serie de programas para la creación y manipulación
de imágenes digitales, que le daban autonomía al artista en la utilización del computador. Comoresultado de esto
emergen varios artistas que utilizan el computador para realizar procesos audiovisuales bastante diversos. La artista
Lindy María Márquez, por ejemplo, genera narrativas autobiográficas en formatos diversos, que integran múltiples
estrategias gráficas provenientes de medios como la fotografía, la pintura, el collage, el dibujo,etc., aspecto que se
evidencia en la imagen gráfica Nieve blanca, realizada en 2011.
Con los paralelos y anotaciones expuestos anteriormente, espero contribuir a la construcción de un análisis sobre la
convergencia entre arte y tecnología en nuestro medio, a partir de la relación entre dos momentos históricos. A pesar
dela distancia temporal entre los procesos digitales y tecnológicos en el arte local actual y las obras tecnológicas expuestas en las bienales, es fundamental señalar las resonancias, influencias y paralelos entre las obras desarrolladas
en ambos momentos. De esta forma deseo subrayar la importancia de las bienales como acontecimientos seminales
para la inclusión de la tecnología en el arte. Aunque el objetivo explícito de estas exposiciones no fue el de contribuir
a la construcción de una perspectiva histórica sobre la integración entre arte, tecnología y sociedad – como fue el
caso de la exposición Ghosts in the machine –, sí abonaron el terreno para desarrollos posteriores, pues brindaron elementos y referencias importantes en la apertura hacia una producción artística más experimental e interdisciplinar.
Por tanto, es posible decir que en las Bienales de Arte Coltejer, Medellín, encontramos no solo las primeras referencias
de asuntos que muchos han denominado como nuevos medios en el arte actual, sino también ejemplos de exploración en los que emergen cuestionamientos similares a muchas de las exploraciones artísticas y culturales actuales,
respecto a esa convergencia entre arte y tecnología. Este análisis apenas comienza en nuestro medio, y son muchas
las reflexiones por desarrollar.
3.2. OP ART
O termo “Op Art” é usado para descrever a arte que explora a falibilidade do olho e o uso de ilusões ópticas.
A expressão “op art” vem do inglês (optical art) e significa “arte óptica”. Defendia para a arte “menos expressão e
mais visualização”. Apesar do rigor com que é construída, simboliza um mundo mutável e instável, que nunca se
mantém o mesmo.
Os trabalhos de Op Art costumam ser abstratos, e muitas das peças mais conhecidas usam apenas o preto e o
branco. Quando são observados, dão a impressão de movimento, clarões ou vibração, parecendo por vezes inchar
ou deformar-se.
Apesar de ter ganho força na metade da década de 1950, a Op Art passou por um desenvolvimento relativamente
lento. Ela não tem o ímpeto atual e o apelo emocional da Pop Art; em comparação, parece excessivamente cerebral e
sistemática, mais próxima das ciências do que das humanidades. Por outro lado, suas possibilidades parecem ser tão
ilimitadas quanto as da ciência e da tecnologia.
O termo surgiu pela primeira vez na Time Magazine em outubro de 1964, embora já se produzissem há alguns anos
trabalhos que hoje podem ser descritos como “Op Art”. Sugeriu-se que trabalhos de Victor Vasarely, dos anos 1930,
tais como Zebra (1938), que é inteiramente composto por listras diagonais a preto e branco, curvadas de tal modo que
dão a impressão tridimensional de uma zebra sentada, devem ser consideradas as primeiras obras dessa natureza.
Em 1965, inaugurou-se em Nova York uma exposição chamada The Responsive Eye (O Olho que Responde), composta
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
inteiramente por trabalhos de Op Art. Essa exposição foi fumdamental para dar visibilidade à Op Art, e muitos dos
artistas hoje considerados importantes nesse estilo exibiram lá seus trabalhos. Em seguida, a Op Art tornou-se tremendamente popular, e suas imagens foram usadas em vários contextos comerciais. Bridget Riley tentou processar
uma empresa americana, sem sucesso, por usar um dos seus quadros como base para um padrão de tecido.
Bridget Riley é talvez a artista mais conhecida dessa vertente. Inspirando-se em Vasarely, pintou uma série de quadros
só com linhas pretas e brancas. No entanto, em vez de dar a impressão de um objecto do mundo real, os seus quadros
comumente deixavam a impressão de movimento ou cor.
Mais tarde, Bridget Riley produziu trabalhos coloridos, e outros artistas de Op Art também trabalharam com cor, embora esses trabalhos tendam a ser menos conhecidos. Contrastes violentos de cor por vezes são usados para produzir
ilusões de movimento similares às obtidas a preto e branco.
Características conceituais
A razão da Op Art é a representação do movimento através da pintura apenas com a utilização de elementos gráficos.
A alteração das cidades modernas e o sofrimento do homem com a alteração constante em seus ritmos de vida também são uma preocupação constante. A vida agitada das cidades contribuiu para a percepção do movimento como
elemento constituinte da cultura visual do artista. Outro fator fundamental para a criação da Op Art foi a evolução da
ciência, que está presente em praticamente todos os trabalhos, baseando-se principalmente nos estudos psicológicos sobre a vida moderna e da Física sobre a Óptica.
Técnica
A dinâmica da pintura na Op Art é alcançada com a oposição de estruturas idênticas que interagem umas com as
outras, produzindo o efeito óptico. Diferentes níveis de iluminação também são utilizados constantemente, criando
a ilusão de perspectiva. A interação de cores, baseado nos grandes contrastes (preto e branco) ou na utilização de
cores complementares, é a matéria-prima da Op Art. A técnica “moire”, aplicada no trabalho Current, de Bridget Riley,
é um bom exemplo. Nela, há a criação de um espaço móvel, produzindo um efeito denominado “whipblast” (explosão
do chicote). Essa técnica, assim como a maior parte das técnicas utilizadas na Op Art, exploram as possibilidades do
fenômeno óptico na criação de volumes e formas virtuais.
Principais expoentes
Ad Reinhardt – pintor norte-americano, nascido em Nova York. Artista e teórico, é mais conhecido por suas pinturas
em preto, que marcam sua fase artística posterior a 1960. Adepto do minimalismo, utilizava apenas o preto e suas
variações para compor suas obras, rejeitando os atributos convencionais da pintura.
Keneth Noland – pintor norte-americano, nascido na Carolina do Norte. Empregou listras e cores básicas em suas
obras. Enfatiza o plano da tela utilizando cores uniformes. Em seu trabalho, a cor é o objetivo. Seus trabalhos mais
recentes abandonaram as cores básicas, pasando a usar cores modificadas em vários tons.
Bridget Riley – pintora inglesa, associada também ao movimento Pop Art. O seu estilo é marcado por listras que se
sobrepõem, curvas onduladas, discos concêntricos e quadrados ou triângulos que se repetem. Devido à organização
sequencial e à relação de cores de suas obras, ocorre a criação de sensações ópticas de ritmo nas superfícies, que
parecem vibrar.
Outros artistas Op Art dignos de nota são, por exemplo, Alexander Calder, Youri Messen-Jaschin e Victor Vasarely,
sendo ele o pioneiro no aprimoramento dessa técnica.
Fonte: Wikipédia.
Disponível AQUI. Acesso em: 14 ago. 2015.
3.3. ABSTRAÇÃO GEOMÉTRICA
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.
Disponível AQUI. Acesso em: 27 jul. 2015.
Boa parte da arte abstrata no século XX é orientada pelas pesquisas geométricas e pela simplificação da forma. As
primeiras manifestações dessa vertente podem ser identificadas nas vanguardas europeias de 1910 e 1920, como, por
exemplo, o construtivismo russo e a Bauhaus.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Na Rússia, com a Revolução de 1917, a ideologia libertária vanguardista toma traços particulares. No contexto revolucionário, os artistas são mobilizados na direção de produções concretas para o povo. Pintar e esculpir tornam-se ações
norteadas pela ideia de construir, não de representar – aproximando-se da arquitetura. Surge a defesa de uma arte
livre de finalidades práticas e comprometida com a pureza da visualidade plástica.
“Trata-se de investigar a estrutura da imagem com o auxílio de formas geométricas básicas – quadrado, retângulo,
círculo, cruz e triângulo – e de pequena gama de cores. Ver, entre outros, Quadrado Preto Suprematista, 1914/1915 e
Quadrado Branco sobre Fundo Branco, 1918.”
A nova plasticidade rejeita a ideia de arte como representação, abolindo o espaço pictórico tridimensional. Mondrian
influencia, junto com Theo van Doesburg, na revista De Stijl (O Estilo), as características do movimento. Abole-se o
espaço pictórico tridimensional; a linha curva é recusada, assim como as texturas e a modelagem; perdem-se os
detalhes e a variedade da natureza, buscando-se o princípio universal sob a aparência do mundo. São construções
mínimas que priorizam a linha reta, o retângulo e as cores primárias.
O período que se segue após a Segunda Guerra Mundial é marcado por diversas manifestações do abstracionismo,
como o informalismo. A Europa e os Estados Unidos mantêm diálogo; um artista acabava muitas vezes adotando mais
de uma manifestação abstrata, sendo difícil a categorização e as classificações mais concisas.
Em contexto brasileiro, a abstração geométrica é correlacionada aos movimentos concretistas de São Paulo (Grupo
Ruptura) e Rio de Janeiro (Grupo Frente). Os dois grupos têm posições divergentes sobre arte, o que se evidencia na
Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo, o que marca o início do neoconcretismo que rompe com o movimento concreto. Nem sempre o abstracionismo geométrico forma grupos organizados, podendo ser acompanhados
em obras de artistas distintos.
4. REFERÊNCIAS
ACEVEDO, I.R. Bienales de Arte Coltejer: también una convergencia entre arte y tecnología. Revista Universidad de
Antioquia, Colômbia, n. 319, p. 109-115, jan./mar. 2015. Disponível em: <https://www.museodeantioquia.co/exposicion/68-70-72-bienales-de-arte-de-coltejer/>.
FIDELIS, G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
POLESELLO, R. Progressiones: catálogo de exibição. Salas Nacionales de Cultura. Buenos Aires: Palais de Glace, 1995.
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OBRA DE REFERÊNCIA PARA TRABALHO PEDAGÓGICO
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Acervo do Centro de Arte Contemporânea Inhotim
Fotografia: Carlos Stein - vivafoto
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Máquina do Mundo
Ano: 2005
Artista: Laura Vinci (1962, São Paulo, Brasil)
Suporte: instalação (dosadora, correia transportadora e pó de mármore – no caso da 5ª Bienal, areia)
Dimensões: variáveis
Palavras-chave: matéria, transitoriedade, arte conceitual.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
NhaNhá, 2014 - Niura Bellavinha (1960, Belo Horizonte-Brasil)
Filme média metragem. Duração 32’48”, Cor e som.
Descrição
A forma do pó (Gaudêncio Fidelis, 2005, p. 98)
“O trabalho de Laura Vinci, intitulado Máquina do Mundo, é uma instalação constituída por uma esteira rolante que
transporta areia de um lado ao outro do espaço onde se encontra.
Nada mais disforme que a areia. Suas partículas não aderem umas às outras e, além de se espalharem facilmente pelo
espaço, contaminam o ambiente com seus minúsculos fragmentos. A arte sempre foi o primado da forma, ou melhor, da produtividade da forma. Nesse trabalho, Laura Vinci expõe dois aspectos importantes do universo artístico:
o processo de formalização e a produtividade simbólica. Ambos são necessários para a existência do objeto artístico,
mas a máquina que a artista criou só move o pó de um lado a outro. Embora ponha em evidência o tempo como uma
categoria relacionada à produtividade, uma não parece estar ligada à outra nesse trabalho. Sem propósito e nenhuma
lógica aparente, ao movimentar a areia de um lado ao outro, o trabalho o faz na busca de uma formalização mínima,
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nunca alcançada. O objeto artístico há muito aspira mover-se. Ao menos funcionar, seja pela própria representação
do momento, seja pela imagem em movimento, seja até por obras cinéticas. Esse trabalho, em sua funcionalidade
produtiva, realiza essa vontade. Nele há uma grande potência poética que se materializa na súbita e fugaz possibilidade de que algo se realizará pelo acúmulo e transporte da areia. Em um mundo no qual somos incapazes de produzir
movimentos e ações descompromissadas, a máquina criada por Laura Vinci desconcerta ao lembrar que a arte é construída por gestos mais simbólicos do que produtivos e que a experiência artística é uma reacomodação simbólica
expressa na materialidade das coisas.”
Fonte: Catálogo da 5ª Bienal do Mercosul | Histórias da Arte e do Espaço | Tomo: Da Escultura à Instalação.
Máquina do Mundo, 2005, V Bienal do Mercosul, Porto Alegre
“Mostrei pela primeira vez a versão maior de Máquina do mundo na V Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. Como a
exposição ocorreu à beira do rio Guaíba, no antigo cais do porto, achei que seria possível usar a areia do próprio rio.
Naquelas condições, o ‘eterno retorno’ de que se tratava a obra era ainda mais evidente, pois a areia que nela circulava
tinha vindo dali e para ali voltaria.”
Fonte: WISNIK, G. et al. Laura Vinci. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.
Disponível AQUI. Acesso em: 18 ago. 2015.
Biografia
“Maria Laura Vinci de Moraes (São Paulo-SP, 1962). Escultora, artista intermídia, pintora, desenhista e gravadora. Forma-se em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, em 1987. No início, dedica-se à pintura e, em seguida, desenvolve obras tridimensionais de metal e pedra. Começa a criar instalações, como
o trabalho apresentado no evento Arte Cidade: A Cidade e Suas Histórias, em 1997. Realiza a cenografia da peça
Cacilda!, dirigida por José Celso Martinez Corrêa (1937), no Teatro Oficina, em São Paulo, em 1998. Desde 2000, ministra cursos livres de pintura e escultura e participa de workshops em várias instituições culturais de São Paulo, como
o Instituto Tomie Ohtake. Conclui, em 2000, o mestrado em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA/USP). Participa do Projeto Residência Externa-Sertões/Teatro Oficina, com direção
de José Celso Martinez Corrêa, coordenando as oficinas de cenário, figurino e direção de arte, entre 2000 e 2001. Em
2003, é publicado o livro Laura Vinci, pela Edusp. Com o The South Project, faz residência na Escola de Belas Artes da
Universidade RMIT, em Melbourne, Austrália, em 2005.”
Comentário crítico
Laura Vinci inicia sua carreira artística como pintura. Suas pintuas, em 1987, caracterizam-se por não ter molduras ou
chassis, sendo densas e encorpadas. Cria, nas telas, vincos irregulares, verticais, não alinhados com as bordas. Essas
características também se traduzem para suas esculturas. Inicialmente, são formadas por hastes de ferro e demais
materiais; encrespadas, ásperas, irregulares – semelhantes às pinturas, talham o ambiente verticalmente. Em 1994,
realiza esculturas pretas, em que o chão é mais valorizado como espaço. São lisas e com sinuosidades delicadas, tendendo ao grafismo; ao fim, o conjunto assemelha-se a riscos e traços no solo.
Aos poucos, Laura estabelece um contato forte entre sua produção e a matéria física do ambiente. No evento Arte/
Cidade 3, em 1997, em um edifício abandonado, ela deposita uma grande quantidade de areia fina, que escapa para
o andar inferior através de um furo em uma laje. A instalação remete à passagem de tempo, lembrando uma ampulheta, mas também às condições de fluidez da matéria na natureza.
Em 2000, no Centro Universitário Maria Antonia (CEUMA), Laura Vinci põe uma grande camada de pó de mármore
e peças orgânicas, também de mármore, entre o pó. A instalação confunde pó e peças através da cor e da matéria,
formando um jogo entre de texturas – arenosa e sólida – e de estruturas.
No Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, no ano de 2003, a artista ocupa os ambientes do espaço
com o conjunto de instalações denominado “Estados”. No primeiro nível, o subsolo, um refrigerador enorme ativado
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pelo público solidifica com gelo um poema de autoria da artista. Na parte central do prédio, ela instala bacias de
vidro transparentes – algumas com água e outras vazias – interligadas por tubos de cobre e resistências elétricas,
esquentando a água que umidifica o ambiente. As marcas dos últimos trabalhos de Laura Vinci são a interatividade, a
transitoriedade, a matéria, o ambiente em mudança e a metamorfose.
2.1. OUTRAS OBRAS
Um portfólio bastante completo está disponível AQUI, no site da Galeria Nara Roesler. Acesso em: 18 ago. 2015.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
A instalação de Laura Vinci busca inspiração no célebre poema A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Seguem referências e análises acerca do poema e da obra. A seguir, retomaremos um caso que, alguns anos após
a exposição da artista na 5ª Bienal do Mercosul, gerou polêmica em Porto Alegre: a escassez de areia – uma vez que a
artista usou areia do Guaíba para a sua obra durante aquela edição.
3.1. DRUMMOND, ANTES DE LAURA VINCI
A máquina do mundo
Carlos Drummond de Andrade
Disponível AQUI. Acesso em: 28 jul. 2015.
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima – esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de
São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José
Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, p. 300.
(Fim do trecho citado)
Máquina do mundo
Fonte: portfólio da artista.
Disponível AQUI. Acesso em: 28 jul. 2015.
“A transferência da matéria pó é feita horizontalmente e através da máquina, um novo componente que peguei emprestado do poema a “Máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade: “no sono rancoroso dos minérios, / dá
volta ao mundo e torna a se engolfar, / na estranha ordem geométrica de tudo”. A minha máquina transporta quase
que unitariamente cada grão de mármore, num silêncio de minério, como se carregasse para lá e para cá, em pó, a
história da escultura. Todo aquele mármore talvez guarde, na sua pilha, possíveis esculturas eternas. E talvez comente,
grão por grão, a nossa precária transitoriedade.”
3.2. EM SÃO PAULO FALTA ÁGUA; EM PORTO ALEGRE, AREIA
Em 2013, curiosamente o ano da 9ª Bienal do Mercosul, a falta de areia para a construção civil causou polêmica em
Porto Alegre. Apresentamos aqui uma reportagem da época e uma atualização da situação, expressa em uma reportagem deste ano (2015).
Estoque de areia na Grande Porto Alegre está perto do fim e ameaça obras
Fonte: Zero Hora on-line.
Disponível AQUI. Acesso em: 18 ago. 2015.
Após uma década, Fepam autorizará extração de areia do Guaíba
Fonte: Correio do Povo on-line.
Disponível AQUI. Acesso em: 18 ago. 2015.
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4. REFERÊNCIAS
DOMINGUES, T. da C.A. Uma leitura do poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade. Revista
Linguagem e Cultura: Múltiplos Olhares, UNEC, 2007.
FIDELIS. Gaudêncio. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
WISNIK, G.; MAMMI, L.; DUARTE, P.S.; NAVES, R.; PALHARES, T. Laura Vinci. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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Cortesia do artista
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: 80 Gramos
Ano: 2015
Artista: Gabriel de la Mora (1968, Colina, México | Vive e trabalha na cidade do México)
Suporte: poeira recolhida na casa do artista, comprimida sob pressão
Dimensões: 12x10x10 cm
Palavras-chave: documento, transformação.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Gabriel de la Mora (nascido em Colina, México, 1968 – reside e trabalha na Cidade do México), coleciona fotografias,
ferramentas, resíduos materiais, documentos encontrados, cabelo e papéis velhos, entre outros objetos inclassificáveis que persistem entre o fantástico, o macabro e o repulsivo. Em seu ateliê – uma mistura de gabinete de curiosidades e laboratório forense – ocorre um cruzamento entre a sua acumulação e o seu instinto vital, um impulso
que submete o passado ao escrutínio do presente. Através de rigorosos procedimentos formais e das metodologias
conceituais da arte contemporânea, como se fosse um alquimista, reinscreve esses resíduos, nos quais o passado sobrevive, em um modus operandi sistemático que remete a atenção ao detalhe que é típica do exame de digitais feito
por um detetive ou criminologista.
Gabriel de la Mora estudou arquitetura e, subsequentemente, realizou mestrado em Belas Artes em Pintura no Instituto Pratt de Nova York. Seu trabalho consiste em questionar e experimentar os limites intersticiais entre pintura,
desenho e escultura. Em suas mãos, essas mídias primordiais de experiência simbólica tornam-se registros que
tendem à abstração formalista e a índices autobiográficos. Associando linguagens construtivistas com descobertas fortuitas, evocando a experiência dadaísta, ele atualiza a ótica minimalista/conceitual para revelar o íntimo e o
pessoal no âmbito da convenção universal da abstração modernista.
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Mais que pintor, escultor ou ilustrador, Gabriel de la Mora é um artista que trabalha com ideias, possibilidades e conceitos. Nesse sentido, a categoria metafísica do tempo torna-se um fator fundamental em cada uma de suas obras.
Para ele, uma obra de arte pretende sobreviver à pessoa que a cria. Ela aspira à eternidade, já que os desejos da vida
são uma clara evidência de um desejo de morte inexorável. Lá existe um objetivo principal de um artista que tem de
lidar com a luta por equilíbrio entre o conceitual e o formal para significar o universal. Desde o surgimento de uma
ideia até a sua execução em superfícies monocromáticas, linhas, volumes, documentos e registros de seus processos,
os materiais e as ideias também se misturam, dando origem não apenas a obras de arte, mas a um arquivo no qual
o artista obsessivamente protege a passagem do tempo. A obra de Gabriel de la Mora é uma constelação de índices
para a criação de uma totalidade metafísica. Nessa totalidade, o oculto, o misterioso e o ilusório – isto é, as experiências que tendem à alienação – nos são apresentados como familiares.
Fonte: site do artista.
Traduzido pela equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul.
Disponível AQUI. Acesso em: 18 ago. 2015.
2.1. OUTRAS OBRAS
O artista dispõe de uma galeria virtual com grande disponibilidade de imagens em boa qualidade. Sugere-se a consulta das séries, em especial Pelo I e Pelo II, disponível AQUI. Acesso em: 17 ago. 2015.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
3.1. A ARTE COMO DOCUMENTO
Fonte: Entrevista com Gabriel de la Mora por Maria Minera (do livro Pulsión y método, sobre o artista). Traduzido pela
equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul.
MM: Aby Warburg, o grande teórico da arte, foi o primeiro a ver na arte a possibilidade do documento. Depois de
escutá-lo, parece-me que em tua obra essa noção se faz muito clara, concorda?
GM: Totalmente! A arte é documento porque há uma correspondência com a realidade: a realidade da obra. Havia um
professor no mestrado que dizia que na arte, e sobretudo na arte contemporânea, o que um artista diz tem de ser:
é a verdade. E, por isso, talvez exista a possibilidade, no meu caso, de que algum dia chegue alguém mais obsessivo
que eu e que se disponha, por exemplo, a contar o número de nós de certa peça feita com cabelos e comprove que o
que eu disse era verdade. E é assim com tudo: se digo que é o cabelo exumado de meu pai, é porque de fato o é, ou
que há 38.242 fios, é porque de fato o há. A arte é, nesse sentido, o documento que permanece, de uma ação, de um
processo, de um depoimento (...). Sempre vai haver uma margem de erro, a partir de então, mas eu tento reduzi-lo ao
mínimo. E tudo está arquivado, pois o processo é também importante. De tudo o que eu faço no ateliê, tento deixar
um registro, um testemunho, e essa parte posteriormente nunca é divulgado, mas para mim é fundamental (...)
MM: A busca pela precisão é, de fato, um aspecto em tua obra que se relaciona estreitamente com a ideia de arte
como documento. Também a ânsia pela reconstrução. Penso, por exemplo, em Memoria I y III, na bússola de questões, que seriam o oposto de um retrato falado; é feito de memória e, portanto, falível. Aqui há uma reconstrução
fidedigna, rigorosa, mais parecida com a que seria feita por um arqueólogo ou, de fato, um criminalista. Como se
dá essa reconstrução? O que pretende?
GM: Sobretudo trazer à luz o que de outro modo se perderia. E, sem dúvida, interessa-me a fidelidade com que
se pode chegar a se reconstruir “os fatos”. Daí o recurso das tomografias, por exemplo, que são uma ferramenta
médica de grande precisão. O que me interessou foi tratá-las como fotografias de um momento, porque o crânio
também vai mudando ao longo dos anos. Gostei também de que, apesar de sempre relacionarmos o crânio com a
morte, aqui se tratava, na maioria dos casos, de “retratos” de pessoas vivas, de gente que nunca veria seu próprio
crânio, pois esse, na qualidade de resíduo final, está somente reservado ao futuro. E também era muito curioso
comparar esses crânios com o crânio de meu falecido pai, já que eram perceptivelmente diferentes. A ideia era,
em parte, reunir minha família: os vivos e os mortos a partir de um elemento em comum: o crânio, o interior de
cada um. Eu diria que não poderia ter feito um retrato mais puro do que esse. Por isso recorri à tecnologia médica
e forense, porque a ideia era reproduzir os crânios com toda exatidão, ou seja, escala 1:1. Uma reconstrução assim
seria impossível quarenta anos atrás, mas agora a tecnologia havia avançado muito e me parecia interessante que
a arte – que, afinal, é um reflexo de sua época – possa fazer uso dela. E, é claro, não descarto a possibilidade de
que, daqui a vinte anos, o método que usei se torne obsoleto.
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3.2. GABINETE DE CURIOSIDADES
O hábito de Gabriel de la Mora em colecionar itens curiosos e transformá-los metodicamente, através de proposições
de arte contemporânea, remete a uma prática antiga, a do “gabinete de curiosidades”, que vem a ser, não por coincidência, o precursor dos museus. Apresentamos a seguir uma descrição desses ambientes.
“Os gabinetes de curiosidades ou quartos das maravilhas designam os lugares em que, durante a época das
grandes explorações e descobrimentos do século XVI e século XVII, colecionava-se uma multiplicidade de objetos
raros ou estranhos dos três ramos da biologia considerados na época: animalia, vegetalia e mineralia, além das
realizações humanas.
Em geral, os gabinetes de curiosidades eram uma exposição de curiosidades e achados procedentes de novas explorações ou instrumentos tecnicamente avançados, como foi o caso da coleção do Tsar Pedro, o Grande. Em outros
casos, eram amostras de quadros e pinturas, sendo este o caso do arquiduque Leopoldo Guillermo, podendo ser
considerados como os precursores dos atuais museus de arte.
Apareceram durante o Renascimento na Europa. Os gabinetes de curiosidades são os antecessores diretos dos museus. Tiveram um papel fundamental para o desenvolvimento da ciência moderna, embora refletissem a opinião
popular do tempo (não era raro encontrar sangue seco de dragão ou esqueletos de animais míticos). A edição de
catálogos, geralmente ilustrados, permitia acessar e difundir o conteúdo para os cientistas da época.
Os gabinetes de curiosidades desapareceram durante os séculos XVIII e XIX, sendo substituídos por instituições oficiais e coleções privadas. Os objetos considerados mais interessantes foram transferidos para museus de artes e de
história natural que começaram a ser fundados. Tiveram grande importância no estudo precoce de certas disciplinas
de biologia ao criar coleções de fósseis, conchas e insetos.
Elementos históricos
∙ Ole Worm (1588-1654) constituiu um famoso gabinete de curiosidades cujo inventário ilustrado foi publicado em
1655, sob o título Museum Wormianum.
∙ Georg Everhard Rumphius (1627-1702) elaborou um livro e um catálogo de seu gabinete.
∙ Albertus Seba (1665-1736) constituiu um gabinete de curiosidades cujo catálogo publicou a partir de 1710.
∙ Sir Hans Sloane (1660-1753) reuniu um dos maiores gabinetes de curiosidade do mundo. Foi a origem da criação do
Museu Britânico.
∙ René-Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757) montou o maior gabinete da França. Após a sua morte, foi integrado ao Gabinete Real.
∙ Em 1760, Sir James Darcy Lever começou a acumular uma imensa coleção que o levou à ruína. Devido à recusa do
governo britânico de comprá-la, foi dispersa.
Organização das coleções
Nos gabinetes de curiosidades, as coleções podiam ser organizadas em quatro categorias (nomeadas em latim):
∙ artificialia, onde eram agrupados objetos criados ou modificados pela mão humana (antiguidades, obras de arte,
etc.);
∙ naturalia, onde eram agrupados objetos naturais e criaturas;
∙ exotica, onde eram agrupados animais exóticos e plantas ;
∙ scientifica, onde eram agrupados os instrumentos científicos.
Gabinetes de curiosidades europeus
Os gabinetes de curiosidades ou quartos de maravilhas eram conhecidos como “Cabinets de curiosités” na França,
“Wunderkammern” na Alemanha e na Áustria, “Wonder Chambers” na Grã-Bretanha e “Kunstkammer” na Dinamarca.
Principais gabinetes de curiosidades da Europa
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
∙ O gabinete de curiosidades do Colégio Romano iniciado pelo jesuíta Athanase Kircher, que em 1615 recebeu a doação de objetos curiosos pertencentes a Alfonso Donnini. O gabinete era famoso em toda a Europa.
∙ O Kuntskammer de Ole Worm criado em 1654 na cidade de Copenhagen.
∙ O de Rodofo II de Habsburgo. No castelo de Praga, o imperador reuniu os trabalhos dos melhores artistas dos três
centros mais importantes da época renascentista: Itália, Países Baxos e Alemanha.
∙ O de Francesco Calceolari, naturalista do século XVI.
∙ O de Conde Moscardo. O livro Cose più notabili é um itinerário por seu gabinete de curiosidades.”
Fonte: Wikipédia.
Disponível AQUI. Acesso em: 30 jul. 2015.
Observação: no verbete do mesmo assunto, no Wikipédia em inglês, as informações estão bem mais completas. Disponível AQUI.
3.3. PERGUNTE AO PÓ
Sobre a matéria-prima de 25 cm³ Polvo II, a poeira, e conforme veremos no item 4, cabe aqui uma referência mais detalhada, útil tanto na compreensão da proposição do artista quanto na elaboração de propostas educativas.
“A poeira consiste de partículas na atmosfera que provêm de diversas origens, tais como solo, poeira levantada pelo
clima (o processo eólico), erupções vulcânicas e poluição. A poeira – presente em residências, escritórios e outros
ambientes humanos – contém pequenas quantidades de pólen, pelos humanos e de outros animais, fibras têxteis,
fibras de papel, minerais do solo externo, células de pele humana, partículas de meteorito queimadas, além de muitos
outros materiais que podem ser encontrados no ambiente local.
Os ácaros domésticos estão presentes em quaisquer ambientes internos onde os seres humanos vivam. Testes positivos para alergias a ácaros são extremamente comuns entre asmáticos. Trata-se de aracnídeos microscópicos cuja
principal fonte de alimentação são células de pele humana morta, embora não sobrevivam em pessoas vivas. Suas fezes e outras substâncias alérgicas produzidas por eles são os constituintes majoritários da poeira doméstica; contudo,
por serem muito pesados, não permanecem muito tempo suspensos no ar. São geralmente encontrados no chão ou
em outras superfícies até que sejam perturbados. Pode demorar de vinte minutos até duas horas para que os ácaros
se acomodem novamente.
Os ácaros são uma espécie que faz ninhos e prefere um clima escuro, quente e úmido. Eles se reproduzem em colchões, camas, estofados e tapetes. Suas fezes contêm enzimas que são lançadas quando em contato com uma superfície molhada, o que pode ocorrer quando alguém aspira, e essas enzimas podem matar células no corpo humano.
Os ácaros não representavam um problema até que os seres humanos começaram a usar têxteis, como cobertores e
roupas.
A poeira atmosférica ou poeira trazida pelo vento, também conhecida como poeira eólica, vem de regiões secas e
áridas, onde ventos em alta velocidade são capazes de remover sedimentos, esvaziando superfícies suscetíveis. Isso
inclui áreas onde o pastoreio, o arado, o uso de veículos e outras atividades humanas tenham desestabilizado mais
a terra, embora nem todas as áreas de origem tenham sido afetadas por impactos antropogênicos. Um terço da área
de terra global é coberto por superfícies que produzem poeira, compostas de regiões hiper-áridas, como o Saara, que
cobre 0,9 bilhões de hectares, e a regiões áridas, que ocupam 5,2 bilhões de hectares.
A poeira na atmosfera é produzida por saltação1 e jateamento de grãos do tamanho de areia, sendo transportada
pela troposfera. Essa poeira transportada via aérea é considerada um aerossol após estar na atmosfera, podendo provocar um forte forçamento radiativo2 local. A poeira do Saara, em particular, pode ser transportada e depositada até
o Caribe e a Amazônia, afetar a temperatura do ar, causar resfriamento marítimo e alterar os índices pluviométricos.”
Fonte: Wikipédia em inglês.
Tradução realizada pela equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul.
Disponível AQUI. Acesso em: 31 jul. 2015.
1. Processo de transporte de carga sólida por águas correntes, segundo o qual cada partícula desloca-se por saltos sucessivos no fundo do leito do rio. É um processo
de transporte que se situa entre o rolamento e a suspensão.
2. Perturbação do balanço da energia incidente e da energia emergente do planeta Terra. É medida por watts/M²/período. Pode ser positiva, causando o aquecimento
da troposfera e da superfície da Terra, ou negativa, causando o resfriamento da troposfera e da superfície terrestre.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
4. DIÁLOGOS COM A 10ª BIENAL - MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
No contexto da 10ª Bienal do Mercosul, a obra 80 Gramos situa-se no Campo III – O Desapagamento dos Trópicos e,
nesse campo, insere-se na exposição intitulada A Poeira e o Mundo dos Objetos.
O Desapagamento dos Trópicos, conforme indica o título, é um eixo cujo objetivo será tornar evidente o trabalho de
artistas latino-americanos que usualmente são ignorados pela história da arte, a qual, segundo Gaudêncio Fidelis
(2015, p. 11), “é constituída de inúmeros pontos cegos e uma considerável trajetória de exclusões”. Com isso, almeja-se, por meio de eventos como as bienais, “[...] formar um conjunto de obras que juntas mostram-se determinantes
para formar uma história da arte, que muitas vezes podemos considerar paralela à história da arte oficial estabelecida
pela academia ou pelas instituições museológicas” (Fidelis, 2015, p. 11).
Esse dasapagamento – ou, em outras palavras, essa inclusão – traduz-se na proposta curatorial de modo poético
quando esta escolhe a poeira como foco do trabalho artístico na exposição A Poeira e o Mundo dos Objetos. De
acordo com a proposta curatorial de Fidelis (2015, p. 12), devido à sua natureza3, ao fato de ser “feita” de diversos tipos
de partículas, “a poeira é não discriminatória [...] e, portanto, excepcionalmente inclusiva”.
5. REFERÊNCIAS
DE LA MORA, G. Pulsión y método. México: Turner Libros, 2011.
FIDELIS, G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
PALMA, F.R. Gabriel de la Mora originalmente falso. México: Literal Publishing, 2013.
3. Conforme item 3.3 deste relatório.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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OBRA DE REFERÊNCIA PARA TRABALHO PEDAGÓGICO
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Cortesia da artista
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Acoso
Ano: 2006
Artista: Kukuli Velarde (1962, Cusco, Peru | reside e trabalha em Filadélfia, Pensilvânia)
Suporte: instalação, esculturas de cerâmica
Dimensões: variáveis*
Palavras-chave: cerâmica, instalação, colonialismo, assédio, exotização.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
NhaNhá, 2014 - Niura Bellavinha (1960, Belo Horizonte-Brasil)
Filme média metragem. Duração 32’48”, Cor e som.
Descrição
Na instalação intitulada Acoso, Kukuli Velarde agrupa esculturas com inspiração pré-colombiana que fazem parte de
uma série chamada Plunder me, baby. Essas esculturas, todas com o rosto da artista, são batizadas com títulos pejorativos, expressões que, conforme ela aponta, são ouvidas por descendentes de povos indígenas na América Latina.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Com declaradas referências tanto histórico-conceituais quanto pictóricas pré-colombianas, Kukuli Velarde produz
a instalação alocando imagens de cerâmica (todas mulheres) dentro e fora de uma cuba de vidro, as quais recebem
flashes acompanhados de som de obturadores de máquina de fotografia. Simultaneamente, comentários gravados,
como “Qué lindo! Bien peruanito, no? Si pues, lindos…”, são reproduzidos no ambiente. Segundo Kukuli Velarde:
“Las figuras se ubican como si fueran trofeos expuestos en un museo tomados como objetos etnográficos de valor
arqueológico. Los títulos de las piezas también llaman la atención ya que sugieren un desafío contra los prejuicios de
la sociedad peruana y la imposición del colonialismo europeo. La artista refiere al respecto:
La génesis de mi trabajo parte desde el momento en que me pongo a pensar ¿cómo fue para el artista peruano el momento en que el imperio es conquistado y las demandas estéticas se transformaron? Pienso que hasta ese entonces
todas las culturas del Perú gozaban de un desarrollo cercano a la estética física de la gente porque la estética de los
objetos está determinada por la estética personal”.
Fonte: Desafiando la colonialidad. Entrevista con Kukuli Velarde, artista peruana ganadora de la Beca Guggenheim 2015.
Disponível AQUI. Acesso em: 04 ago. 2015.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
Fonte: Saatchi Art.
Traduzido e adaptado pela equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul.
Disponível AQUI. Acesso em: 11 ago. 2015.
Artista peruana com cidadania norte-americana, Kukuli Velarde nasceu em 1962. Já adulta, deixa o Peru consciente de
suas questões raciais, sociais, culturais e econômicas, indo estudar no Hunter College da Universidade de Nova York.
Segundo a artista, a sociedade peruana foi formada pelo violento encontro entre duas correntes culturais: o mundo
europeu e o mundo indígena. Ela declara que a sua formação cultural é a soma de uma contínua hibridização – um
contexto cultural definido, redefinido e atormentado pelas influências simultâneas de eras pré-colombianas, coloniais e republicanas. A cultura latino-americana em sua maior expressão: laços de família e a artista, como resultado,
constituem, unidos, a moldura da qual seu trabalho evolui. Sua obra adota, de um ponto de vista geral, a moda do diálogo, seguindo o caminho cultural do discurso popular latino-americano ocidentalizado. Em tal contexto, é comum
falar abertamente, mesmo que isso se torne dramaticamente doloroso. Seu objetivo é tornar o seu trabalho empático
e compartilhar a sua intimidade com o público. Em sua visão, a comunicação franca torna-nos vulneráveis, embora
possa reforçar a interação e aprofundar laços. Ela não se importa em se tornar “vulnerável” se, nesse processo, pontos
em comum forem estabelecidos e um relacionamento for criado com o espectador. Suas mídias são pintura em placas
de alumínio, instalações com desenhos em paredes e/ou vídeos e instalações cerâmicas. Em 2015, recebe a bolsa da
Fundação Memorial John Simon Guggenheim.
2.1. OUTRAS OBRAS
I. PLUNDER ME, BABY
A instalação Acoso utiliza cinco esculturas da série Plunder me, baby. Aqui são apresentadas as imagens e descrições
delas. Destaca-se aqui o fato de que cada uma possui um título (constituído por uma descrição pejorativa de um descendente ameríndio) e uma descrição fictícia, aludindo às épocas e civilizações pré-colombianas.
Fonte: Plunder me, baby.
Traduzido pela equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul. Disponível AQUI.
Acesso em: 14 ago. 2015.
Um grupo de dançarinos coloridos passa por nós conversando e rindo. Eu tenho 10 anos e quero saber o que estão
dizendo; pergunto à Lorenza, minha babá de 16 anos oriunda de uma pequena vila peruana. Sua mão direita abana
nervosamente em frente de seu rosto como se tentasse afugentar o fantasma de algum ancestral inoportuno. Ela olha
para mim com raiva enquanto repete cuidadosamente como se fosse um mantra, uma lição que, acredito, precisa ser
aprendida: “Eu”, ela diz, “não falo Quechua”. Sua voz, tingida pelo som de 500 anos de colonização, treme presa em sua
garganta, enquanto ela tenta desesperadamente amaciar seu sotaque.
Lorenza. Quando Cristóvão Colombo descobriu a ignorância da Europa, legiões de aventureiros vieram empreender
uma conquista do “Novo Mundo”. A troca a ser realizada era simples: seus avanços filosóficos, sociais e econômicos
por ouro e prata, “cultura” por “recursos naturais”. Parece que estávamos apenas andando por aí nus e sujos, cometendo pecados e sendo estúpidos, prontos para sermos promovidos a uma esfera cultural melhor.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
A troca foi boa para você, Lorenza? Os xingamentos, as humilhações, a falta de oportunidade, o desespero, a pobreza
valeram a pena para você? O que a fez escolher a segurança de uma realidade “exclusivamente espanhola”? O que a
fez sentir-se inadequada e inferior? Será que você sabe que as obras de arte dos artistas pré-colombianos são caros
itens de colecionador, lindamente exibidos nos melhores museus do mundo ocidental, definitivamente bem respeitados e completamente admirados... Espólios de guerra?
Lorenza, sinto muito que muitos acreditam que a oferta valeu apena, enquanto você permanece invisível em uma
sociedade neurótica que freneticamente renega o que o espelho diz. Eu dedico a você esse trabalho: uma instalação
de peças cerâmicas reminiscentes da arte pré-colombiana nas estantes. Elas estão acordadas e sabem que estão sendo observadas. Elas podem ser muito bem cuidadas, como animais exóticos em um zoológico, mas estão enjauladas,
desprovidas de contexto e significado. Cada uma é intitulada com nomes pejorativos, os mesmos que você, e muitos
como você e eu aguentaram por conta de nossa herança indígena. Todas elas possuem meu rosto, pois eu me tornei
cada uma delas para reivindicar propriedade e para abordar os xingamentos com resistência. Elas mostram, em suas
atitudes e gestos, o espírito rebelde que nunca deveria abandonar nossos corações. Não mais peões passivos em sua
própria história, elas são nós.
Devemos abraçar nossa história para poder entender suas consequências, e finalmente poder erguer nossas cabeças
com dignidade. Afinal de contas, somos todos de uma única raça, você sabe qual? Amais desumana, a raça humana.
II. CADÁVERES
A série Cadáveres consiste de autorretratos em acrílico e óleo sobre placa de alumínio, todos em tamanho natural
(1,21x1,82cm).
III. INSTALAÇÕES DE DESENHO
São instalações cujo ato de desenhá-las consiste em uma performance. Após o período de exposição, elas são apagadas (a parede é repintada). Por vezes, são acompanhadas de trabalho em vídeo.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
Acoso é uma obra que permite interpretações bastante variadas e relevantes ao contexto latino-americano. Se, por
um lado, ela tem como referência a arte cerâmica pré-colombiana, por outro, sua inspiração tem raízes no racismo
sofrido pelos descendentes dos povos ameríndios.
Cabem aqui, portanto, duas fontes de informação. A primeira é um resumo informativo acerca da arte cerâmica pré-colombiana, uma vez que, na série Plunder me, baby, a artista elaborou esculturas inspiradas nesse período artístico,
conferindo-lhes nomes pejorativos inspirados em situações de preconceito sofridas pelos descendentes dos povos
ameríndios e, além disso, acrescentando a esses títulos datas fictícias, conforme a técnica usada pela artista em cada
obra, referenciando às tecnologias utilizadas pelos artesãos em cada período da história da arte cerâmica pré-colombiana. A segunda fonte de informação é o debate a respeito do racismo, especialmente do racismo relativo aos povos
ameríndios, que será analisado aqui sob a forma de um artigo.
3.1. CIVILIZAÇÕES E ARTE PRÉ-COLOMBIANA
A arte pré-colombiana possibilita uma ampla gama de análises históricas, antropológicas, técnicas e estéticas. A relevância desse assunto para o presente relatório justifica-se pelo fato de que, na obra em questão (e na série com a qual
a compôs), a artista busca inspiração na cerâmica dos povos ameríndios pré-coloniais – a qual Kukuli Velarde emula
de uma maneira recontextualizada para dar conta de sua proposição. Por ser este um assunto extremamente complexo, aqui se faz necessário resumi-lo para restringir sua abrangência aos temas tratados em Acoso.
3.1.1. ARTE-CIÊNCIA CERÂMICA
A cerâmica tem suas origens nos períodos mais remotos das civilizações humanas: os itens cerâmicos mais antigos datam
de 25 mil anos antes de Cristo. É uma técnica multifacetada, que, de acordo com Cárcamo e Luz (2014), se relaciona com:
“(...) forma e cor, textura e esmalte, o fogo e as técnicas de cozimento, a geologia e a extração de argilas, a química e
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
a matemática (...), a mineralogia e a cristalografia, a arqueologia e as ciências antropológicas, a religião e a medicina
(...), enfim, não há dúvida alguma de que se trata de uma arte-ciência que se relaciona com quase todos os ramos e
aspectos da cultura humana (...). ”
Essa ampla gama de relações, somada ao distante momento histórico em que a cerâmica passa a ser uma atividade
humana, sustenta a noção de que, sem essa atividade, não teríamos a indústria como um todo, já que atividades
essenciais como a metalurgia necessitaram de conhecimentos prévios desenvolvidos pela arte cerâmica, tais como a
cocção sob altas temperaturas, a construção de fornos e recipientes refratários.
Ao contrário de outros ramos de atividade humana, que foram impulsionados por atividades científicas e/ou militares, a cerâmica tem seu início na confecção de peças duplamente classificáveis entre itens de utilidade e obras de arte.
Portanto, é um caso especial na história humana, visto que a arte cerâmica permite uma interpretação que sinaliza
um movimento que parte da arte para então chegar a todos os ramos da atividade humana industrial, incluindo a
engenharia e a indústria militar.
3.1.2. CIVILIZAÇÕES ANDINAS PRÉ-COLOMBIANAS
A partir do entendimento da cerâmica como uma arte-ciência que precede diversas outras técnicas, e de sua evidente
importância cultural para os povos pré-colombianos, propomos um rápido apanhado da história desse período, já
que a temática, no caso do Brasil, costuma ser vista de maneira extremamente superficial nos currículos escolares.
Fonte: Wikipédia.
Disponível AQUI. Acesso em: 17 ago. 2015.
“As civilizações andinas compunham um mosaico de diferentes culturas independentes que se desenvolveram no
entorno da Cordilheira dos Andes, da Colômbia ao deserto de Atacama, na América do Sul. Elas se baseiam principalmente nas culturas do Peru Antigo e em algumas outras, como Tiahuanaco.
O Império Inca foi a última entidade política soberana que emergiu das civilizações andinas antes da conquista pelos
espanhóis. O Império Inca era uma ‘colcha de retalhos’ de línguas, culturas e povos. Os componentes do império não
eram uniformes, nem as culturas locais totalmente integradas. Por exemplo, a cultura chimu usava dinheiro em seu
comércio, enquanto o Império Inca como um todo tinha uma economia baseada na troca e na tributação de produtos
de luxo e de trabalho. As porções de Chachapoya que haviam sido conquistadas eram quase abertamente hostis aos
incas, e os nobres incas rejeitaram uma oferta de refúgio no seu reino após problemas com os espanhóis.
O domínio espanhol exterminou ou transformou muitos elementos das antigas civilizações andinas, principalmente
a religião, o idioma e a arquitetura.
A maior parte dos arqueólogos, historiadores e antropólogos contemporâneos está de acordo com as mesmas linhas
gerais da história andina antiga, incluindo sua cronologia, o momento e o tipo de influência que ela exerceu.
A mais influente dessas propostas cronológicas é, sem dúvida, a cronologia proposta por Dorothy Menzel e John
Rowe, que nada mais é do que uma afinação da cronologia de Lanning que levanta uma divisão em horizontes e
intermédios. De acordo com Lanning, os horizontes são períodos de integração regional em que existia uma cultura
dominante em um território muito amplo que se sobrepõe as culturas locais. Esse seria o caso de Huari e do Império
Inca, bem como, em menor medida, o da cultura Chavin. Já os intermédios seriam momentos de florescimento regional, nos quais existem marcantes diferenças entre uma sociedade e outra. A tudo isso se antecede um “período inicial”,
caracterizado pelo surgimento da cerâmica e pela edificação de templos.
∙ Horizonte temprano (‘inicial’), ao qual pertencem as culturas Chavín, Paracas, Cupisnique e Pucará.
∙ Intermédio temprano (‘inicial’), ao qual pertencem as culturas Moche, Nazca, Recuay, Cajamarca, Tiahuanaco, Lima,
Vicús e Huarpa.
∙ Horizonte médio, ao qual pertencem as culturas Huari, Tiahuanaco, Pachacámac e Lambayeque.
∙ Intermédio tardio, ao qual pertencem as culturas Chimú, Chincha, Chachapoyas, Colla, Lupaca, Chiribaya, Maranga,
Cajamarca, Huamachuco, Huanca e Chancay.
∙ Horizonte tardio, ao qual pertence o Império Inca.”
Quanto aos períodos históricos do Peru, o arqueólogo Rafael Larco Hoyle propôs, em 1950, um quadro de sete épocas
peruanas, conforme fonte a seguir:
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Museo Larco – Tesoros del antiguo Perú (catálogo de instituição).
Disponível AQUI. Acesso em: 17 ago. 2015.
Cada uma dessas épocas, assim como o estilo de arte cerâmica correspondente, foi estudada por Kukuli Velarde para
a elaboração da série Plunder me, baby, da qual se originaram as esculturas da instalação Acoso. Vale destacar que a
artista procurou realizar obras que correspondessem a diferentes épocas, locais e culturas pré-colombianas, seguindo
as descobertas arqueológicas de Larco (por vezes, mesclando-as), conforme podemos constatar observando cada
uma das esculturas e suas descrições no site da artista (todas reproduzidas no item 2.2.).
3.1.3. CERÂMICA PRÉ-COLOMBIANA PERUANA
Fonte: Museo Larco – Tesoros del antiguo Perú (catálogo de instituição).
“Os antigos povoadores do Peru foram grandes ceramistas e o arqueólogo tem em suas mãos essa grande fonte
de informação para fazer um estudo minucioso de todas as culturas da pré-história peruana. A cerâmica reflete de
uma forma notável o estado cultural dos povos que a produziram. Além disso, a cerâmica escultórica, pictórica e, em
especial, a cenográfica são um livro aberto, e suas múltiplas páginas de grande interesse se abrem, tomadas de informações para o pesquisador. A cerâmica é o melhor meio para todo estudo cronológico” (Rafael Larco Hoyle. Épocas
peruanas, 1963, p. 17).”
As obras de arte [cerâmica pré-colombiana peruana] que encontramos nos museus não costumam ser objetos de
uso cotidiano. Embora algumas de suas formas utilitárias pudessem sugerir tal uso, suas verdadeiras finalidades eram
mais espirituais do que terrenas.
Dentre os usos dessas peças, destacam-se: objetos cerimoniais, oferendas funerárias, meios de difusão ideológica, meios
de expressão religiosa e obras artísticas, estas consumidas na época por indivíduos de posição social mais elevada.
No caso especial do Peru Antigo, a cerâmica cerimonial evidencia claramente a existência de duas tradições estilísticas: a tradição norte, na qual se destaca a ênfase que os artistas atribuíram ao desenvolvimento da escultura, o trabalho frequentemente monocromático ou duotônico e o formato típico de estribo; e a tradição sul, na qual se destaca o
domínio da pintura e o uso de uma gama muito ampla de cores, além do formato característico de alça de bico duplo.
3.2. PRECONCEITO, RACISMO, EXCLUSÃO E DESIGUALDADE EM RELAÇÃO AOS POVOS AMERÍNDIOS
Um aspecto marcante da obra de Kukuli Velarde é a sua identificação com os povos nativos peruanos e o caráter de
contestação em relação às condições de exclusão econômica, social e política sofridas por esses povos.
Acrescentados aos direitos de gênero e classe, os de raça e etnia sustentam vários sistemas e mecanismos culturais,
econômicos e sociais de dominação através dos quais se impede o acesso igualitário desses povos tanto a direitos
quanto a bens materiais e simbólicos.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), os povos indígenas do continente latino-americano são os mais desfavorecidos da região. Um estudo publicado pela entidade em 2002 revela:
“[...] de um ponto de vista político, a ‘categoria índio’ é o reflexo extremo da dominação colonial à qual foi submetido
determinado grupo humano. Tal categoria conjuga simultaneamente aspectos biológicos (raciais e racistas) e culturais. Ser índio refletiria uma condição de subordinação e negação de um grupo humano em relação a outro que se
autodenomina como superior.”
Essa situação é denominada pelo estudo de “colonialismo interno”, e trazê-la à tona é desmistificar a noção de uma
real integração e da ausência de racismo. Algo que, em termos de Brasil, vem aos poucos desaparecendo de antigos
discursos que, ao comparar situações latino-americanas com situações de racismo em outros países, onde há uma
segregação mais evidente, menos velada, chegavam erroneamente à conclusão de que “no Brasil não há racismo”.
A situação de desigualdade racial tem como aliadas posturas de assimilação cultural, difundidas sob o disfarce da
educação, sob o pretexto de que é necessário haver a assimilação e a integração de grupos étnico-raciais de forma a
construir uma “identidade nacional”, mesmo que isso vá em direção oposta ao reconhecimento da diversidade e ao
respeito aos direitos coletivos das minorias.
Os povos ameríndios têm sido historicamente excluídos não apenas do acesso a bens materiais e simbólicos, aos
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
quais toda sociedade deveria ter iguais oportunidades de acesso, mas também dos processos de aquisição ou reconhecimento de direitos específicos, tais como o direito a uma identidade própria, uma língua e uma cultura. Tais
direitos somam-se a demandas de caráter econômico e social, incluindo aquelas que se relacionam à aquisição de
direitos políticos enquanto marco legal.
Em termos demográficos, se, por um lado, os povos de origem constituem apenas 5% da população total da região,
em certos países tal percentagem aumenta consideravelmente: 81% na Bolívia, 50% na Guatemala, 40% no Peru, 35%
no Equador e 13% no México.
A maior parte dessa população vive em situação de miséria extrema. Além de sofrer discriminação e racismo, essa população perdeu, ao longo do século XIX, grande parte de suas terras, devido à implantação da noção de propriedade
privada territorial.
Essa população ainda passa constantemente por um êxodo, movimentando-se das reservas para as áreas urbanas,
onde constituem verdadeiros bairros indígenas, evidentes em cidades como Cidade do México, Bogotá, Santiago e
Lima. Nesse movimento, a subsistência da população ameríndia passa de uma situação de troca de bens e serviços
e adentra uma lógica salarial, o que acaba transformando tais bairros em guetos. Como essa população não possui
direitos garantidos de identidade e nacionalidade, ela provém de áreas em que não há garantia de educação. Com a
migração para áreas urbanas, a população indígena enfrenta dificuldades em termos de qualificação para o trabalho,
sendo obrigada a trabalhar em setores com menor remuneração, sem direitos trabalhistas.
A questão da falta de qualificação para o trabalho passa também pela educação, uma vez que a exclusão dos povos indígenas dos sistemas educativos manifesta-se com evidência nos altos níveis de analfabetismo, especialmente
entre grupos mais velhos. O problema do acesso se dá por uma série de fatores, visto que, até o início da década de
1990, raramente as questões de multiculturalismo e linguagem eram pautadas nos currículos escolares (o que explica
o problema ser maior com estratos mais velhos da população em questão). Antes disso, a educação para os povos
indígenas tinha apenas uma função instrumental para a cultura dominante, procurando, através da absorção e intervenção das culturas ameríndias, chegar à antes mencionada identidade nacional.
Em termos de saúde, a exclusão por via do preconceito e a subsequente segregação das minorias em guetos, aliada
à situação de miséria extrema e à falta de serviços básicos de saneamento e saúde, acabam por elevar os índices de
doenças entre os povos de origem indígena.
3.2.1. PEC 215
No Brasil, a situação de preconceito e exclusão dos povos originários segue a mesma lógica, sendo agravada pelo
fato de que aqui, proporcionalmente, a população indígena ocupa uma parcela bastante menor da sociedade, o que
acaba aumentando o problema.
Um caso bastante recente e de grave importância é o da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, criada
pela chamada “bancada ruralista” do Congresso Nacional, que transfere a competência da União na demarcação
de terras indígenas para o Congresso e possibilita a revisão das terras já demarcadas, além de alterar os critérios
e procedimentos para a demarcação dessas áreas, que passariam a ser regulamentadas por lei, e não mais por
decreto, como são agora.
Alvo de protestos em escala nacional por parte de comunidades indígenas e organizações de diversos tipos, a PEC
215 vem na “onda conservadora” (para não dizer fascista) que é característica do Congresso Nacional brasileiro nesta
metade de década. Já foi considerada inconstitucional, e o fato de ter sido proposta justamente por deputados cujas
campanhas foram financiadas por grandes empresas do agronegócio é notável.
Como o assunto é polêmico, não caberá aqui uma análise mais aprofundada. Porém, a equipe de pesquisa da 10ª Bienal do Mercosul considera a temática de grande importância, devendo ser tratada com os alunos em aula. Através de
rápida pesquisa em qualquer ferramenta on-line de buscas, apresenta diversas interpretações, defendidas por lados
bastante opostos, todas disponíveis para que se tenha uma noção bastante ampla do assunto.
4. REFERÊNCIAS
4.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PACHAS, U.H. Museo Larco: tesoros del antiguo Perú. Asociación Rafael Larco Hoyle, 2010.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Patrimonio: Kukuli Velarde. Instituto Cultural Peruano Norteamericano, 2013.
4.2. REFERÊNCIAS ON-LINE
http://www.infoartes.pe/desafiando-la-colonialidad-entrevista-con-kukuli-velarde-artista-peruana-ganadora-de-la-beca-guggenheim-2015/
http://www.blouinartinfo.com/artists/227296-kukuli-velarde
https://www.youtube.com/watch?v=WIRwGcxHLEo
http://www.saatchiart.com/Kukuli
http://www.dspace.uce.edu.ec/handle/25000/2535
http://www.cepal.org/es/publicaciones/10800-la-equidad-y-la-exclusion-de-los-pueblos-indigenas-y-afrodescendientes-en
http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37050/S1420783_es.pdf
https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/category/pec-215/
http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2013/10/pec-215-enteda-a-proposta-muda-a-demarcacao-das-terras-indigenas
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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OBRA DE REFERÊNCIA PARA TRABALHO PEDAGÓGICO
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Nuestra Señora de Guadalupe, Patrona de la Nueva España
Ano: século XVIII
Artista: anônimo
Suporte: óleo sobre tela
Dimensões: 201 x 121 cm (sem moldura) / 231 x 146,5 x 7,4 cm (com moldura)
Palavras-chave: sincretismo, arte religiosa.
Obra relacionada na 10ª Bienal:
Virgen Cerro, 2014 - Autor Anônimo
Óleo sobre tela, 92 x 72 cm. Acervo Museo Nacional de Arte La Paz - Fundación Cultural Banco Central de Bolivia, Bolivia
Descrição
Pintada por um anônimo novo hispano durante o século XVIII, a pintura Nuestra Señora de Guadalupe, Patrona de la
Nueva España, pertencente ao acervo do Museu da Basílica de Guadalupe, no México, apresenta diversas simbologias
que apontam para um sincretismo católico de imagens/símbolos europeias e ameríndias.
A pintura apresenta uma composição triangular composta pela imagem da virgem ao centro, flanqueada por duas
figuras que representam, respectivamente, Europa e América, cada uma pisando em cima de ilhas separadas. A imagem da virgem reproduz a pintura original entregue por São Juan Diego ao Bispo Juan de Zumárraga, que teria sido
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
pintada por milagre no manto do santo e que também serve como “ponte intercontinental”, um elo entre as duas
“ilhas” que representam os dois continentes.
O manto da virgem, coberto de estrelas, faz alusão à deusa Coatlicue, divindade de origem asteca cuja lenda conta
que seus filhos, após conspirarem contra sua vida e serem derrotados, tornaram-se a estrelas (o mito de Coatlicue será
apresentado no item 3.3.). É relevante destacar o fato de que, na linguagem asteca Náhuatl, o termo Tonantzín (que
significa “nossa mãe”) é também utilizado em relação a Coatlicue e que ela é mãe de deuses, em especial do deus
da guerra e padroeiro da capital Tenochtitlán, Huitzilopochtli (outro fato que facilitou a conexão entre Coatlicue e a
Virgem Maria, que por sua vez é também mãe de uma divindade).
Ao redor da virgem, quatro imagens menores representam diferentes episódios da história da sua aparição, o que
atribui à obra uma característica de metalinguagem (uma pintura sobre a pintura de uma pintura).
Abaixo da virgem, vemos a águia pousada sobre um cacto, comendo uma serpente, o que serve de referência ao
mito fundador da cidade asteca de Tenochtitlan – que, além de ser o Brasão de Armas do México, também remete ao
manto de São Diego, dado que ele é uma tilma, isto é, um manto indígena de baixa qualidade, feito a partir do cacto.
Além disso, à direita da virgem, lê-se a inscrição em latim “non fecit taliter omni nationi”, ou seja, “não havia feito isso com
nenhuma outra nação”, que teria sido dita pelo Papa Benedito XIV ao ver a pintura e saber do ocorrido.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
A obra é de autoria desconhecida.
2.1. OUTRAS OBRAS
Apesar de não existirem dados sobre o artista, Nuestra Señora... faz parte de um conjunto bastante extenso de obras
inspiradas na Virgem de Guadalupe original.
Na bibliografia, indicamos dois links para o aprofundamento do assunto: uma obra de 1959 que catalogou diversas
dessas obras e uma galeria com diversos exemplos.
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
Nuestra Señora... é uma pintura carregada de simbolismos, que pode ser interpretada tanto em termos teológicos
quanto em termos de uma análise histórica do sincretismo religioso no continente americano. Apresentaremos uma
análise da história da imagem original de Nossa Senhora de Guadalupe, que, além de exemplo prático de tal sincretismo, é fonte inspiradora e razão de ser da obra aqui estudada.
3.1. SINCRETISMO RELIGIOSO
O sincretismo religioso é um processo decorrente de intercâmbios culturais. Em alguns casos, acontece de forma
espontânea e, em outros, por meio de intervenção oficial. Nesse processo, procura-se superar uma situação de crise
cultural resultante da colisão entre duas ou mais tradições religiosas. A intenção é criar um ambiente de harmonia
entre diferentes culturas, ou facilitar a aceitação de imposições da cultura dominante pela cultura dominada.
O sincretismo é um processo alheio à proposta de abstração da comunhão de cultos através do reconhecimento de
uma divindade em comum, sendo que a via de comunicação são os produtos culturais da religião. Quando duas culturas distintas entram em contato, há o risco de conflito, e o sincretismo surge como estratégia de superação de crise,
processo que se dá em duas etapas: acomodação e assimilação.
Durante a acomodação, não se produz nenhuma troca entre as culturas, e sim um ajuste exterior. A acomodação de
culturas pode ser interpretada como tomada de consciência por parte dos indivíduos de cada uma das culturas da
existência de uma coabitação, em um mesmo espaço vital, de duas tradições diferentes. Podem ocorrer trocas em níveis menos profundos de cada cultura com o objetivo de tornar a relação mais fácil, mas todos os indivíduos mantêm
os valores de sua cultura original.
Durante a assimilação, afetam-se as culturas em conflito, que se mesclaram através de uma interpretação. Os indivíduos
pertencentes a diferentes culturas não se fecham em seus valores originais, mas se abrem, aceitando e adquirindo novos
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
costumes. Trata-se de um processo bastante lento e inconsciente. A assimilação é produzida pelo surgimento de uma
história em comum para ambas as tradições. Os indivíduos vivem no mesmo cotidiano de duas tradições diferentes,
porém formam um novo grupo, constituído a partir da integração de diferentes indivíduos a um novo âmbito social.
O sincretismo aparece como política e prática cultural da Igreja Católica. A ironia da destruição de símbolos para a
posterior construção de espaços de adoração católica que ainda mantêm alguns desses símbolos pagãos não é novidade da “Nova Espanha”. Símbolos de culturas gregas e romanas reaparecem como precursores da vinda de Cristo
em diversas manifestações culturais sincréticas ao longa da história da Igreja. De fato, essa política católica viu-se
ampliada no novo mundo, o que fica expresso no fato de que primeiros clérigos colonizadores tiveram como projeto
a destruição das culturas indígenas, mas eventualmente se observa, na cultura crioula1, o desejo de criar uma pré-história cristã para a Nova Espanha.
Ao final do século XVI, a casta crioula passou a se apropriar da história e dos mitos pré-hispânicos, exaltando o seu
passado indígena (apesar de desdenhar essa característica no presente). Uma das maneirs pelas quais realizavam isso
era usar o Barroco como instrumento de contraconquista. Tal movimento, expresso no caso da Virgem, confirma a
ideia de que o sincretismo não se dá unicamente de um lado para o outro, ou seja, de dominante para dominado. Ele
é, de fato, uma via de mão dupla, uma relação desigual entre desiguais, na qual os dominados também buscam o seu
espaço através da criação de uma nova identidade, algo que indica o início de um movimento em direção à segunda
fase do sincretismo, isto é,, a assimilação.
Do lado dos dominantes (os espanhóis e a Igreja), o sincretismo religioso, no caso da Nossa Senhora de Guadalupe, é
mais do que uma forma de conciliação, pois busca na cultura ameríndia a justificativa para a implantação do cristianismo na Nova Espanha, recorrendo à noção de que (“non fecit taliter omni nationi”) os povos deste continente mantinham
uma relação direta com os israelitas, sendo eles, também, um povo escolhido por Deus.
3.2. NOSSA SENHORA DE GUADALUPE
Em termos teológicos, Nossa Senhora de Guadalupe é uma aparição da Virgem Maria que teria ocorrido em 9 de
dezembro 1531, quando o santo Juan Diego Cuauhtlatoatzin, que tinha origem indígena, mas havia sido convertido
à fé católica, teve, no Monte Tepeyac (na Cidade do México), uma visão de Nossa Senhora, que teria pedido a ele que
falasse com o bispo franciscano Juan de Zumárraga para que construísse uma igreja naquele lugar. O bispo, porém,
não acreditou nele e pediu que produzisse provas concretas.
No dia 12 de dezembro, teria tido outra visão da Virgem, que o incumbiu de subir ao Monte Tepeyac e trazer flores.
Apesar de estar no meio do inverno, São Diego encontrou as flores e as enrolou em seu “Tilma” (espécie de manto
ameríndio feito a partir do cacto). A Virgem, então, teria mandado que apresentasse as flores ao bispo como prova
de sua aparição. Quando o bispo e o santo abriram o manto, foram surpreendidos por uma imagem da Virgem de
Guadalupe, que a partir daquele momento se transformou no coração espiritual da Igreja no México.
Analisar a adoração à Nossa Senhora de Guadalupe como fato político originado pelo sincretismo religioso católico
no Novo Mundo torna-se algo mais claro quando vemos que a imagem original, exibida permanentemente na Basílica de Guadalupe no México, costuma estar acompanhada da bandeira do país (cujo Brasão de Armas contém outro
simbolismo de expressivo sincronismo, a águia com a serpente no bico, mito fundador da capital Asteca de Tenochtitlan), evidenciando o lugar da imagem como símbolo nacional, suas relações com a Europa e a América pré-hispânica.
3.3. O MITO DE COATLICUE
Coatlicue é uma deusa da mitologia asteca que representa a fertilidade, matrona da vida e da morte e guia do renascimento. Seu nome significa “aquela com saia de serpentes”, o que torna fácil o reconhecimento de sua figura. A escultura de Coatlicue encontra-se no Museo Nacional de Antropologia na Cidade do México, tem cerca de dois metros e
possui uma figura imponente, tanto pela composição geral quanto pelo fato de se inclinar para frente, transmitindo
uma impressão ameaçadora. Possui inúmeras cobras sobre o corpo e na saia, inclusive substituindo membros do
corpo, como as mãos e a cabeça. Seu peito aparece coberto por um colar com mãos, corações e caveira de sacrifícios
1. A chamada casta ou cultura crioula é formada pelos crioulos, indivíduos de descendência europeia nascidos no Novo Mundo, que compunham a oligarquia neo-espanhola da América Colonial - oligarquia esta completamente consciente de seu próprio estado de colonizados.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
realizados em sua homenagem. A cabeça, composta por duas serpentes, mostra a dualidade cosmológica da cultura
pré-colombiana, com intrínseca relação entre vida e morte, os ciclos, duas caras do mesmo conceito. A escultura foi
redescoberta em 1790, ficando por 200 anos na obscuridade. Antonio León y Gama (historiador, astrônomo, intelectual) ilustrou e propôs uma interpretação da peça. Contudo, a imagem da deusa foi considerada pagã e muito aterrorizadora pelos crioulos e europeus – por mais que os indígenas mexicanos a venerassem, foi enterrada no pátio da
Universidade do México. Foi desenterrada somente no século XX, sendo uma das peças mais importantes do Museo
Nacional de Antropologia.
O mito principal que envolve Coatlicue narra o nascimento do deus patrono do povo asteca, Huitzilopochtli. Embora
apresente detalhes variáveis, sua essência permanece mútua entre as versões. Mãe de Coyolxauhqui e dos quinhentos Centzon Huitznáhuac, pagava penitência varrendo a montanha de Coatepec, quando um dia se maravilha com
uma plumagem caindo dos céus, a qual colocou no seu seio. Terminando de varrer, procurou a pluma e não a encontrou; descobre-se, então, grávida do deus Huitzilopochtli. Essa gravidez misteriosa deixou Coyolxauhqui furiosa
e ela organizou um plano com seus irmãos para assassinar a mãe. Entretanto, um dos irmãos revelou o plano à mãe
Coatlicue, que ficou compreensivelmente assustada; seu filho Huitzilopochtli, ainda no ventre, consolou-a assegurando que tudo ficaria bem. Quando Coyolxauhqui aproximou-se de Coatlicue, o menino nasceu já adulto e portando
uma arma, com a qual decapita sua irmã, jogando sua cabeça para o céu, que acaba tornando-se a lua, enquanto seu
corpo vai parar em pedaços ao pé da montanha. Os outros irmãos acabam tornando-se estrelas depois de dizimados.
Na cosmologia asteca, tal fato repete-se diariamente toda vez que a noite cai.
4. POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS
As possibilidades pedagógicas dessa obra podem abranger, de modo transdisciplinar, aulas de história, artes, geografia e sociologia, abordando vários assuntos: a história da América colonial (e pré-colonial), as relações sociais
dessa colônia até os dias de hoje (situações sociais com relação aos povos de origem ameríndia e/ou africana) e o
sincretismo religioso e/ou cultural, expresso tanto no caso da Nova Espanha quanto no caso do Brasil, sintetizado nas
religiões afro-brasileiras, bem como as relações que elas estabelecem entre divindades de origem africana e santos/
santas da Igreja Católica.
5. REFERÊNCIAS
6.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ZAMORA, L.P. The inorditate eye: New World barroque and Latin American fiction. Chicago: University of Chicago
Press, 2006.
FIDELIS, G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
MORENO, J.G. Iconografia Guadalupana. México: Editorial Jus, 1959. Disponível em: <https://archive.org/details/iconografiaguada00gonz>. Acesso em: 20 ago. 2015.
6.2. REFERÊNCIAS ON-LINE
O impacto guadalupano na arte pictórica.
Disponível em: <http://www.preguntasantoral.es/2014/12/virgen-guadalupe-mexico-ix/>.
Wikipédia: Nuestra Señora de Guadalupe (México). Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Nuestra_Se%C3%B1ora_de_Guadalupe_(M%C3%A9xico) >.
Iconografia Guadalupana (galeria de imagens).
Disponível em: <http://www.proyectoguadalupe.com/iconos.html>.
Detalhamento da estátua de Coatlicue (em vídeo).
Disponível em: <https://www.khanacademy.org/humanities/art-americas/early-cultures/aztec-mexica/v/coatlicue>.
Wikipédia: Coatlicue.
Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Coatlicue>.
Wikipédia: a estátua (monólito) de Coatlicue.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Coatlicue_statue>.
Khan Academy: Coatlicue.
Disponível em: <https://es.khanacademy.org/humanities/art-americas/early-cultures/aztec-mexica/a/coatlicue>.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
1. INFORMAÇÕES GERAIS
Nome da obra: Experiência nº 3 - New Look
Ano: 1956
Artista: Flávio de Carvalho (1899, Barra Mansa, RJ - 1973, Valinhos, SP, Brasil)
Suporte: roupa
Dimensões: indefinidas
Palavras-chave: performance, moda, subversão, modernismo.
Descrição
Foi na tarde de quinta-feira, 18 de outubro de 1956, que Flávio de Carvalho realizou o happening que ele chamou de
Experiência nº 3. Jornalistas e curiosos formavam uma pequena multidão à espera do artista na porta de seu escritório,
pois o evento havia sido divulgado à imprensa. Assim, por volta das três horas da tarde, Flávio de Carvalho caminha
da Rua Barão de Itapetinga, através das ruas Marconi, Sete de Abril e a Praça Ramos de Azevedo – retornando ao seu
escritório – trajando uma veste desenvolvida denominada New Look de Verão (uma clara referência ao modelo famoso
de autoria de Christian Dior em seu desfile de estreia como estilista em 1947); uma roupa desenvolvida para o homem
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
dos trópicos adequada ao clima tropical. O traje é formado por um saiote, uma blusa de mangas curtas e folgadas,
um chapéu de abas largas – todas peças em tecidos leves – sandálias e meia-calça arrastão. O que causou rebuliço e
chamava a atenção era a integração da saia à indumentária masculina, em uma época na qual as calças eram praticamente obrigatórias para os homens.
O traje é resultado das publicações que desenvolvera sobre moda no Diário de São Paulo de 4 de março e 21 de outubro do mesmo ano da experiência, sob o título “A moda e o novo homem”. As publicações analisavam as transformações da moda ao longo do tempo, no que ele chamaria de “dialética da moda”. Também compunha a Experiência nº 3
a análise do evento pela imprensa.
Disponível AQUI e AQUI. Acesso em: 20 ago. 2015.
2. (MINI) BIOGRAFIA/PERFIL DO ARTISTA
O artista Flávio Resende de Carvalho (Amparo da Barra Mansa, RJ, 1899 – Valinhos, SP, 1973) foi pintor, desenhista,
arquiteto, cenógrafo, decorador, escritor, teatrólogo e engenheiro, podendo ainda atender a mais categorias. Com
apenas um ano de idade, muda-se para São Paulo e, aos 12 anos, estuda em Paris. Muda-se para a Inglaterra em 1914
e dá início em 1918 ao curso de engenharia civil em Newcastle. Simultaneamente, também principia o curso noturno
de artes na King Edward the Seventh School of Fine Arts.
Em 1922, ao concluir o curso de engenharia, volta a residir em São Paulo, logo após a Semana de Arte Moderna. De
forma arrojada e provocadora, realiza várias atividades artísticas e intelectuais. Embora nunca tenha sido aprovado
em concursos públicos para exercer a função de arquiteto em São Paulo, seus projetos são considerados pioneiros da
arquitetura moderna brasileira, como o conjunto de casas da Alameda Lorena (1936) e da fazenda Capuava (1939),
sendo o projeto da fazenda o que mais expressava suas ideias de arquitetura, ou seja, a decoração importava tanto
quanto a estrutura da casa da fazenda.
É no ano de 1931 que realiza, impulsionado por seus estudos antropológicos e psicanalíticos, o que chama de Experiência nº 2. Foi uma polêmica ação que consistia em caminhar na direção contrária de uma procissão de Corpus Christi
com uma boina verde na cabeça com o objetivo de estudar a reação dos fiéis. O artista acabou sendo quase linchado
pela multidão, tendo sofrendo forte hostilização. Por fim, precisou de proteção policial. Publicou um livro sobre esse
ato intitulado Experiência nº 2: uma possível teoria e uma experiência, ilustrado por ele mesmo.
Abre um ateliê em 1932, onde funda, em parceria com Antonio Gomide, Di Cavalcanti e Carlos Prado, o Clube dos
Artistas Modernos. Cria também o Teatro da Experiência, com o qual encena a peça de sua autoria Bailado do Deus
Morto, que integra teatro e dança, a qual se enquadra nas manifestações dadaístas e surrealistas, inovando o figurino
e a cena teatral brasileira. Além disso, negros compõem a maior parte dos papéis do elenco. Apenas em 1934 é que
tem sua primeira exposição individual realizada, fechada pela polícia e com cinco obras apreendidas sob a acusação
de atentado ao pudor; consegue posteriormente reabrir a exposição por ordem judicial. As pinturas de Flávio de
Carvalho costumam ser classificadas como expressionistas, ainda que apresentem aspectos surrealistas. Sua temática
mais frequente é o retrato, no qual procura exprimir aspectos emotivos e psicológicos. No ano de 1947, registra a
morte de sua mãe na série de desenhos Série Trágica.
Após a publicação de uma série de artigos sobre moda, entre março e outubro de 1956, no Diário de São Paulo, causa espanto e escândalo ao passear com sua roupa New Look de Verão, que consiste em uma saia e blusa de mangas
curtas e folgadas. Flávio se torna evidente por ser um dos primeiros artistas multimídia brasileiros, destacando-se
em suas atuações e performances.
Disponível AQUI. Acesso em: 20 ago. 2015.
2.1. OUTRAS OBRAS
Não há galerias on-line que apresentem a obra de Flávio de Carvalho de maneira unificada. O
link do site Mercado Arte Blog contém texto biográfico do artista e algumas obras selecionadas.
Disponível AQUI. Acesso em: 20 ago. 2015.
Também há uma seleção de obras em que Flávio de Carvalho retrata mulheres.
Disponível AQUI. Acesso em: 20 ago. 2015.
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
3. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MARCO CONCEITUAL
3.1. MODERNISMO
Flávio de Carvalho é, indiscutivelmente, uma das figuras mais marcantes do modernismo brasileiro, contendo em sua
produção boa dose expressionista característica da época. O modernismo, e no âmbito dele também o expressionismo, é um movimento de contexto internacional com proposições cosmopolitas; convém, portanto, compreender os
seus elementos básicos a fim de complementar a trajetória de Flávio.
O termo “modernismo” é genérico para designar as correntes artísticas que surgem entre a última década do século XIX e
o início do século XX. Elas acompanham, segundo Argan (1988), o esforço progressista econômico e tecnológico que marca a ascensão da civilização industrial. O momento é marcado pelo abandono dos modelos clássicos, pela aspiração a uma
linguagem mais cosmopolita e pelo esforço em interpretar a espiritualidade em compasso com a inspiração industrial.
A pintura modernista inclui a discussão da função psicológica, social e profissional do artista, o que nada mais é
que um indicativo da crise do seu posto palpável na sociedade. A sociedade moderna, contudo, não fomenta uma
demanda por artistas que tragam à tona problemas, mas sim artistas condizentes ao tempo progressista e com ares
de avanço em que se enquadravam. É o momento em que começam a se formar, nos Estados Unidos, as grandes coleções e a especulação do mercado artístico, que fogem dos meios oficiais de crítica – na época, os jornais –, ousando
em novas análises na produção moderna.
O público assume artistas prediletos a partir de seu tipo psicológico, bem dizer, praticamente a personagem que
representam descritos por Argan como “[...] assumem o ar de iniciados, gênios inspirados e rebeldes, mas geralmente
estão prontos a fazer todas as concessões” (p. 208).
O expressionismo tem berço na Alemanha e na França na primeira década do século XX. Na França, o movimento
“fauves” (Feras) e, na Alemanha, o “Die Brücke” (A Ponte) deram base ao expressionismo, os quais encaminharam respectivamente o Cubismo e o Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul). Os dois países aparecem com essas tendências justamente em oposição ao impressionismo. Enquanto o impressionismo procurara expressar uma impressão do mundo,
o expressionismo buscou moldar um mundo novo. É importante frisar que o expressionismo não busca uma subjetividade similar ao surrealismo, que surge pouco tempo depois. Por mais que expressionistas e impressionistas formem
uma dicotomia, ambos trabalham no plano do real; enquanto a arte da impressão torna-se sujeita às sensações que o
mundo transmite, a arte da expressão subjetiva o mundo, molda e expressa sua subjetividade nesse sentido. Assim, a
grande diferença em relação ao surrealismo é o seu caráter onírico e a formação de mundos desconexos do plano real.
A dialética que forma a arte expressionista se expande também para dentro do modernismo, procurando ultrapassar
seu ecletismo, discriminando impulsos nitidamente progressistas, o que por sua vez concede ares mais subversivos
ao movimento. Difere também ao se pretender mais internacional do que a linguagem cosmopolita moderna, livre
da utopia de progresso universal.
ARGAN, G.C. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Frederico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. Vol. XXIV, 709p., ilustrações coloridas.
3.2. CLUBE DOS ARTISTAS MODERNOS
O idealizador e principal animador do Clube dos Artistas Modernos (CAM) foi Flávio de Carvalho. Foi uma entidade cultural fundada na cidade de São Paulo em 24 de novembro de 1932. O CAM durou por um ano, agenciando
manifestações artísticas relativas ao ideário modernista. Localizava-se onde eram, até então, os ateliês de Flávio, Di
Cavalcanti, Antônio Gomide e Carlos Prado, na Rua Pedro Lessa. Sua estrutura contou com um grande salão expositivo, concertos, conferências e também com uma biblioteca e bar; tornou-se, assim, um grande ponto de encontro de
intelectuais paulistanos.
Sua direção era numerosa: simultaneamente, diversas pessoas dividiram-se entre comissões para administrar o local,
conferindo caráter de, podemos dizer, horizontalidade democrática. Sua fundação ocorre concomitante à da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), que era composta pelos nomes mais expressivos do modernismo em São Paulo e
elementos da elite econômica local. A princípio, a organização de um grupo que procurasse a disseminação da arte
moderna era comum aos dois grupos, mas suas diferenças internas acabaram por formar as duas entidades distintas,
por mais que houvesse pessoas que transitassem entre os dois.
A SPAM pareceu ser mais elitista, aristocrática, porém mais sólida; o CAM foi mais democrático, com maior vivacidade,
causando um movimento entusiástico de arte e inteligência. O que mais marcou o CAM – além da postura de esquerPOSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
71
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
da crítica diante do Estado e da Igreja – foi seu caráter de anarquia, festividade, irreverência e quebra de tabus, o que
condiz diretamente com a personalidade de Flávio de Carvalho.
O fenômeno de formação das duas entidades alude à necessidade de artistas em se fortalecerem através do associativismo, preservando sua atuação. No sudeste brasileiro, isso acaba tornando-se tendência e referência para a formação
de outros grupos de grande importância, como o Grupo Santa Helena (1934), a Família Artística Paulista (1937), o
Clube da Cultura Moderna (1935). Diante de todos os grupos – com interpretações diferentes sobre como lidar com a
relação entre tradição e inovação –, o CAM assumia uma postura altamente vanguardista e experimentalista.
Foi no CAM que Flávio de Carvalho produziu seu Teatro da Experiência com a polêmica peça “Bailado do Deus Morto”,
escrita e dirigida por ele mesmo, sendo esta a única peça encenada no local. A peça é acusada de atentado ao pudor
e, após três apresentações, o teatro foi fechado por intervenção policial.
Depois disso, o CAM foi cada vez mais vigiado e, com problemas financeiros graves, teve de fechar suas portas. Entretanto, Flávio mantém-se ocupando uma posição de peso na cena cultural por longo tempo.
Disponível AQUI. Acesso em: 20 ago. 2015.
3.3. TRÍPLICE TEMPORAL
É fascinante a transitoriedade temporal que Flávio de Carvalho consagra em sua produção entre passado, presente e futuro. As tramas conceituais que ele constrói estão estreitamente ligadas às convicções antropofágicas que
compartilhava com Oswald de Andrade, que, por sua vez, propõe uma visão transversal do processo histórico – ou
seja, uma relação de ação baseada no passado, contextualizada no presente pelo que diz respeito ao futuro.
Flávio preocupava-se com a moda do homem no presente; sua crítica apoiava-se na condição de persistência do
modo de vestir incoerente com a realidade brasileira tropical, baseada na manutenção da calça e do colete – também
das cores mortas e sombrias –, hábito definido por ele como advindo da sociedade do século XVII, que entra em desacordo com os conhecimentos então atuais e com o desenvolvimento cerebral.
O nome do traje que apresenta no happening Experiência nº 3 é New Look, que alude ao novo, e novo pertence ao
presente. Ainda assim, foi tachado inúmeras vezes como um traje do futuro, o que não deixa de corresponder à sua
personalidade e produção. Foi pioneiro na prática do happening até mesmo antes dos europeus e norte-americanos,
visto como o precursor da arte contemporânea, superando os aspectos performáticos dadaístas e surrealistas, apontando práticas que viriam a ser mais reconhecidas internacionalmente nos anos 1960 e 1970.
Ao mesmo tempo em que critica determinado modo passado, é no passado que encontra argumentos para manter o
mapa conceitual de New Look como legítimo, voltando a um período ao qual não temos mais vivência. Uma das contestações que recebe, por exemplo, vem de Cláudio Souto, que alega a calça ser um costume profundamente enraizado no homem. Flávio rebate a falácia alegando que, durante a história, diversas vezes o homem usou saia ou saiote,
sem adquirir por isso caráter mais efeminado, como os guerreiros gregos e romanos, os trabalhadores de engenho
pernambucanos no século XIX e, além deles, os próprios kilts irlandeses durante a atualidade asseguram seu discurso.
A própria mídia confere tal aparato ao descrever as vestes durante o happening, como as palavras de um jornalista do
Correio Populas recordando o momento:
“O porte, com traje e tudo, parecia de um patrício romano ou de um imperador.”
Seguindo descrição do chapéu e da gola, respectivamente:
[...[ “lembrava os que eram usados pelos espanhóis que conquistaram a América.”
[...] “no mais puro estilo renascença.”
Enquanto o jornal O Cruzeiro via ali:
[...] “um misto de roupa da Idade Média, com saiote e blusa rendada.”
Ainda assim, o argumento do artista não pretende assegurar a masculinidade do homem, mas pensar na equanimidade de vestimenta do homem e da mulher, haja vista a popularização da calça jeans.
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
72
MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
Conforme desenvolve seu pensamento, elabora um pensamento eloquente para não provocar nostalgia do passado,
mas sim uma espécie de afastamento da imersão da civilização para elucidar, à distância, o plano do ambiente no qual
está situado a fim de perceber as mutações sem a visão acostumada de habitante local. Acreditava que o passado
sempre acabava por marcar indícios do que será o futuro.
4. DIÁLOGOS COM A 10ª BIENAL - MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
No contexto da 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de Uma Nova América, a obra Experiência nº3 – New Look –
Traje do Novo Homem dos Trópicos integrará o Campo II – A Insurgência dos Sentidos, que faz parte da mostra
Aparatos do Corpo.
4.1. INSURGÊNCIA DOS SENTIDOS
A proposta curatorial sugere neste campo proporcionar uma aproximação entre visitante e a obra através da exploração de sentidos marginalizados na arte – olfato, tato, paladar – além da visão. Assim, expande-se o espectro interpretativo, como explicita Gaudêncio Fidelis (2015, p. 6):
“Este segmento expositivo visa expandir diversas vias que permitem outras formas de encontro entre o visitante e a
obra. O contato com os trabalhos artísticos através da exploração de outros sentidos além da visão permitem à exposição introduzir campos de expansão interpretativos não tradicionais, voltados para a uma relação multidirecional da
percepção entre o espectador e a obra de arte.”
4.2. APARATOS DO CORPO
Neste campo expositivo, estão incluídas as obras que relacionadas às vestimentas e aos acessórios. Esses elementos
desempenham um importante papel na história da arte, conforme explica Fidelis (2015, p. 10):
“Na história da arte, vestimentas, acessórios e outros mecanismos vêm sendo explorados na representação de pinturas, objetos e através da própria história da moda. A indumentária reflete o status de poder, atribuições mágicas,
rituais religiosos, códigos culturais e barreiras sociais, entre outros inúmeros atributos. Códigos de vestimenta e seu
aparato são instrumentais para discutir questões da história da arte, tais como derivação cultural, hibridismo, influências transnacionais, pós-colonialismo e exotismo que ultrapassam a constituição da arte através dos tempos.”
Nesse sentido, pensando-se em toda a trama conceitual de New Look, fica evidente a forte relação da obra com a proposta curatorial para além do aspecto físico da obra. Ela representa uma gama de códigos culturais, barreiras e tabus
sociais exploradas e o exotismo do happening cultivado. Fidelis (2015, p. 11) destaca a esse respeito:
“Na América Latina (assim como em outras regiões do mundo), as relações do corpo com a indumentária atravessaram inúmeras mudanças e se viram refletidas na produção pictórica, na escultura, na estatuária, na performance e em
outras propostas que assinalam a imensa contribuição destes países para a arte a cultura mundial desde a história da
arte, passando pelas festas populares,como o carnaval, as procissões religiosas e outros rituais.”
5. REFERÊNCIAS
5.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARGAN, G.C. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Vol. XXIV, 709p., ilustrações coloridas.
FIDELIS, G. Projeto Curatorial para a 10ª Bienal do Mercosul: Mensagens de Uma Nova América. 2015.
5.2. REFERÊNCIAS ON-LINE
http://mariantonia.prceu.usp.br/celeuma/?q=revista/4/dossie/fl%C3%A1vio-de-carvalho-arqueologia-e-contemporaneidade
https://www.mercadoarte.com.br/blog/flavio-de-carvalho/
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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MENSAGENS DE UMA NOVA AMÉRICA
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9016/flavio-de-carvalho
https://www.youtube.com/watch?v=-leomv-l7WU
http://www.raulmendessilva.com.br/brasilarte/temas/clube_dos_artistas_modernos.html
POSSIBILIDADES DO IMPOSSÍVEL
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