Universidade Federal do Rio de Janeiro
Victor de Oliveira Freitas
2014
UFRJ
FUNDAMENTOS DO PROJETO POLÍTICO DE CÉSAR NA OBRA
COMMENTARII DE BELLO GALLICO
Victor de Oliveira Freitas
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Clássicas.
Orientador: Professora Doutora Vanda Santos
Falseth
Rio de Janeiro
Novembro de 2014
Freitas, Victor de Oliveira
Fundamentos do Projeto Político de César na obra Commentarii de Bello
Gallico/ Victor de Oliveira Freitas. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2014.
viii, 71 f.: 29,7 cm
Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras
Clássicas, 2014.
Orientadora: Vanda Santos Falseth
Referências bibliográficas: 77 – 79.
1. César. 2. Projeto Político. 3. Commentarii de Bello Gallico. I. Vanda
Santos Falseth. II. UFRJ, FL, PPGLC. III. Título
Fundamentos do Projeto Político de César na obra Commentarii de Bello
Gallico
Victor de Oliveira Freitas
Orientadora: Vanda Santos Falseth
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Clássicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Letras Clássicas.
Aprovada por:
_______________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Vanda Santos Falseth – UFRJ
_______________________________________________________________
Professor Doutor Carlos Eduardo Costa Scherer – UFRJ
_______________________________________________________________
Professor Doutor Amós Coêlho da Silva – UERJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Márcia Regina de Faria da Silva – UERJ (Suplente)
_______________________________________________________________
Professora Doutora Alice da Silva Cunha – UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Novembro de 2014
RESUMO
FREITAS, Victor de Oliveira. Fundamentos do projeto político de César na
obra Commentarii de Bello Gallico. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação
(Mestrado em Letras Clássicas). Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2014.
A pesquisa abarca o projeto político cesáreo, escamoteado em De Bello
Gallico e palpável na obra De Bello Ciuile. O foco foram as referências
histórico-culturais, de valor discursivo e retórico, usadas ao longo daquela
narrativa feita por César. De fato, o enfoque em questões daquela natureza
parece contribuir para o advento de uma estratégia de engrandecimento e de
possível autodefesa ante seus adversários. Com isso, foram analisados os
recursos relacionados à autopromoção do general os quais alicerçam e
possibilitam a concretização dos seus anseios políticos. Prestigiado e
aclamado por suas glórias militares, César parece utilizar-se de uma ideologia
conquistadora e de bases históricas de seu povo para empreender seu projeto
político: o de inconteste líder e de missionário da necessária romanização do
mundo antigo. Inicialmente, foram estudados a figura de César, o gênero ao
qual pertence a obra analisada e as bases do projeto político de seu autor.
Seguidamente, foram apresentadas as bases históricas e culturais de que se
valeu e que contribuem para o descortino desses planos políticos. A pesquisa
buscou indicar, ainda, de que modo as evidências de uma autopromoção
viabilizaram as justificativas para ações no campo militar e político, dado o
protagonismo posterior do general na Segunda Guerra Civil da República
Romana.
Palavras-chave: César; projeto político; De Bello Gallico
ABSTRACT
FREITAS, Victor de Oliveira. Fundamentos do projeto político de César na
obra Commentarii de Bello Gallico. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação
(Mestrado em Letras Clássicas). Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2014.
This research covers the Caesarean political project, which is palmed in
De Bello Gallico and palpable in De Bello Ciuile work. It highlights the historical
and cultural references of the discursive and rhetorical value used along that
narrative by Caesar. Indeed, the focus on issues of this nature seems to
contribute to the advent of a strategy of empowerment and self-defense against
his possible opponents. Thus, the Caesarean-related self-promotion resources
which support and enable the achievement of Caesar’s aspirations were
analyzed. Prestigious and acclaimed for his military glories, Caesar seems to
make use of a conquering ideology and the historical basis of his own people to
undertake his political project: to be the unchallenged leader and missionary of
the Roman culture spread around the ancient world. Initially, the Caesar´s
figure, the genre to which the work belongs and the foundations of the political
project of its author were studied. Afterwards, the historical and cultural
foundations which contributed to uncover these political plans were presented.
The research also aims to indicate how the evidence of Caesar’s self-promotion
enables the justification for his military and political actions, given the
subsequent role of the general in the Second Civil War of the Roman Republic.
Keywords: Caesar; political project; De Bello Gallico
À minha família e àqueles que, verdadeiramente, torceram por mim.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), pelo fundamental subisídio à minha pesquisa por meio da concessão
de Bolsa de Mestrado durante o período de vinte meses.
À minha orientadora, Professora Doutora Vanda Santos Falseth, pela
paciência durante todo o tempo da pesquisa, pelas primorosas intervenções,
necessárias à melhor adequação deste trabalho e, principalmente, pela
compreensão diante das inúmeras adversidades por mim enfrentadas.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ,
sobretudo à Professora Doutora Tânia Martins, por todo o suporte e pela
grande benevolência a mim direcionados nos momentos mais espinhosos
dessa longa caminhada.
Ao Professor Doutor Carlos Eduardo da Costa Scherer, pelas palavras
de estímulo, pelos preciosos conselhos, pelos perenes ensinamentos e pela
sincera torcida por esta vitória.
Às minhas grandes amigas, Aline Paixão, Mariana Alfenas e Yamê
Regina Alves, por todo o carinho e por todo o amor com os quais sempre me
receberam e pelas palavras de conforto.
Aos queridos Millena Rocha de Sena, Raquel Carvalho e Tarcísio
Nicácio, pelas contribuições fundamentais para o uso instrumental do francês e
do inglês, respectivamente.
À companheira de pesquisa Vanessa Souza Peres, pela grande
cumplicidade ao longo de todo o curso de Mestrado, pelos vários momentos de
descontração e pelo apoio nos momentos difíceis.
À Camila Reis Portella, pela sincera amizade, pelo genuíno carinho e por
todo o estímulo, sem os quais a minha trajetória teria sido um tanto quanto
mais dura.
Aos meus pais e aos meus irmãos, pelo amor verdadeiro que nutrem por
mim e que impulsiona a minha vida e as minhas escolhas sempre para o
caminho do bem.
Ao amado Danny Augusto de Carvalho Santos, companheiro e amigo,
essencial para muitas das minhas vitórias, por sempre acreditar em mim e em
meu potencial, inclusive nos momentos em que eu mesmo duvidei de minha
capacidade.
A Deus, por me permitir conquistas inúmeras, das quais sequer me
imaginava merecedor.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
10
2. JÚLIO CÉSAR: incontestável líder
13
2.1. Vida pública
14
2.2. De Bello Gallico
18
3. O PROJETO POLÍTICO DE CÉSAR
21
3.1. Bases históricas
24
3.2. Bases culturais
32
3.3. O discurso propagandista de César
41
4. TRADUÇÃO E ANÁLISE DOS DISCURSOS
4.1. Tópicos acerca da natureza do lugar e da cultura dos povos
48
48
4.1.1. Divisão geopolítica da Gália
48
4.1.2. Costume dos Gauleses
49
4.1.3. Religião dos Gauleses
51
4.1.4. Comparação entre Gauleses e Germanos
52
4.1.5. Descrição geográfica das Ilhas Britânicas
54
4.2. Tópicos acerca de eventos históricos e de exaltação a valores
56
4.2.1. Negativa aos Helvécios
56
4.2.2. Preocupações com a República
57
4.2.3. Grande ofensa a Roma
59
4.2.4. Iniciativa de César
61
4.3. Tópicos acerca da perícia militar de César
62
4.3.1. O terror domina os soldados romanos
62
4.3.2. Restabelecimento do ânimo dos soldados romanos
64
4.3.3. Um novo ímpeto para guerrear
67
4.3.4. Uma grande demonstração de virtude
68
4.4. Tópicos acerca da valorização do inimigo
69
4.4.1 O grande valor bélico dos Nérvios
70
4.4.2 Ascendência de Vercingetórige
71
5. CONCLUSÃO
74
6. REFERÊNCIAS
77
1. INTRODUÇÃO
O escopo deste trabalho consiste em uma avaliação acerca das
aspirações políticas de César implícitas na obra Commentarii de Bello Gallico.
Para destrinçá-las, foram tomadas como base a identificação e a análise dos
fundamentos que as sustentam. Para tanto, os principais aportes teóricos
foram as obras L’art de la déformation historique dans les Commentaires de
César, de Michel Rambaud, e Estudos de História da Cultura Clássica, de
Maria Helena da Rocha Pereira.
O estudo tencionado buscou destacar elementos que tornassem
concreto o projeto político cesáreo presente naquela narrativa. Por isso, foram
feitos levantamentos que delimitaram o perfil do autor, a sua trajetória e o
gênero de suas composições. Do mesmo modo, foram observadas as matrizes
históricas e culturais das quais o destemido comandante se apropriou para
viabilizar a implementação de seu programa de poder. Nesse sentido, fez-se
primordial o exame sobre a ressignificação da linguagem, conferida a todo o
enredo, a qual engendra um processo de natureza propagandista não apenas
espetacular, mas também fundamentalmente imprescindível para o logro
almejado por seu mentor. Entende-se que a remodelagem dos fatos, atrelada
ao resgate de importantes episódios históricos e ao respeito a determinados
valores caros aos romanos, associada, ainda, ao investimento na crença de um
ideal missionário, é o eixo para o içamento da figura de César a um patamar de
absoluta liderança dentro do cenário político de Roma.
Para a consolidação das investigações apontadas, vários recortes
cênicos serão apresentados. Inicialmente, constarão de caracteres que fazem
emergir os anseios políticos enraizados no texto, a fim de caracterizá-los. Em
seguida, o foco serão os excertos com ênfase em aspectos geográficos e
culturais, com o propósito de expor a particularidade do lugar e a diversidade
dos povos nele residentes. Também serão cotejados fragmentos fundados em
eventos históricos e em traços glorificantes dos valores romanos, com vias de
sinalizar a existência de um profundo conhecimento sobre as origens da
República e de demonstrar uma grande capacidade para o seu comando. Por
fim, serão balizados os capítulos nos quais a destreza militar de César e a
grande virtude bélica dos inimigos estejam em relevo, para que reste evidente
10
a tentativa de robustecimento da imagem do nobre chefe romano e de
investimento no mito acerca da desmedida complexidade da guerra gaulesa.
Estruturalmente, para a melhor organização da seção destinada à
análise dos discursos, optou-se por manter a numeração adotada pelo texto do
De Bello Gallico na edição inglesa da The Loeb Classical Library, vinculada à
Universidade de Havard, com a indicação do número do livro e do número do
capítulo. O texto latino usado, portanto, é o estabelecido por H.J. Edwards,
publicado por aquela renomada instituição.
Por outro lado, para melhor compreensão dos alicerces históricos do
empreendimento político escamoteado na obra, recorreu-se a diferentes
produções, como Roma Republicana, de Norma Mendes, História de Roma, de
Mário Curtis Giordani, Caio Júlio César, Bellum Ciuile – A Guerra Civil, clássica
tradução de Antonio da Silveira Mendonça, História da Vida Privada e A
Sociedade Romana, ambos de Paul Veyne, e La Sociedad Romana, de L.
Friendlaender.
Foram de igual valia para as ponderações feitas Júlio César – O ditador
democrático, de Luciano Canfora, Imperialismo Greco-romano, de Norberto
Guarniello e Vidas de César, obra organizada por Antonio da Silveira
Mendonça e Ísis Borges da Fonseca que reúne os clássicos produzidos por
Suetônio e Plutarco. Igualmente, para a tradução do original latino, os
dicionários de Ernesto Faria, de Francisco Torrinha e da Editora Porto.
Por fim, para melhor entendimento das peculiaridades quanto ao gênero
explorado por César, foram utilizadas obras consagradas, como História da
Literatura Latina, de Ettore Paratore, Les Genres Littéraires à Rome, de Martin
e Gaillard, e Historia de la Literatura Clásica, de Kenney e Clausen.
O arcabouço teórico montado, então, almeja ratificar as pesquisas feitas,
as quais, por sua vez, objetivaram elucidar o modo pelo qual César articula
todo um aparato para a sua eterificação no imaginário de seus conterrâneos.
Isso indica que a narrativa criada foi cuidadosamente planejada, a fim de que
atuasse como genuína ferramenta de campanha para o cumprimento de seu
grande desejo: ser visto como líder inquestionável e missionário predestinado
do movimento de romanização de todo o mundo antigo. A percepção a respeito
da ascendência e da trajetória política do ilustre romano é essencial para julgar
a validade de seus planos, pois implica que se conceba como suficientemente
11
razoável a ardente cobiça pelo posto máximo de comando, devido à sua tão
nobre estirpe. Reside justamente neste ponto o início efetivo das reflexões a
que nos propusemos.
12
2. JÚLIO CÉSAR: INCONTESTÁVEL LÍDER
Gaius Iulius Caesar nasceu em Roma, de uma família da elite romana,
no ano 100 a.C.. Lendas acerca de sua linhagem, segundo as quais seria a
deusa Vênus, mãe do troiano Enéias, sua antepassada mais remota,
distinguem-no dentre gloriosos cidadãos romanos.
Não bastasse tal ascendência, a Fortuna fez de César, sem dúvidas, o
mais conhecido personagem romano de nosso tempo, pois que não só seus
elevados feitos mas também sua produção intelectual imortalizaram-no para os
romanos e para a humanidade.
Suas produções incluem poesias, discursos e livros sobre a gramática
latina. Merecem referências o poema Iter, descrição de sua viagem de Roma
para a Espanha Ulterior, e um elogio a Terêncio, com menções ao estilo
refinado, embora pouco vigoroso, do comediógrafo. De sua atuação como
orador, nada chegou até os nossos dias, apesar de se saber da existência de
discursos contra um aristocrata, chamado Dolabela. De seus estudos
gramaticais, nasceu De Analogia, obra em dois volumes, de teor um tanto
prescritivo, a qual aconselhava a manutenção da tradição no bom uso da
língua. Entretanto, a sua produção de maior relevo são os Commentarii, obras
que abrangem diversos livros sobre a Guerra da Gália e a Guerra Civil.
Astuto e de rara inteligência, César passou sucessivamente por todos os
empregos inferiores da República, tendo sido posteriormente nomeado
governador da Espanha, onde se notabilizou por sua coragem. Quando
regressou a Roma, foi eleito cônsul. Graças a Pompeu, a quem dera sua filha
Júlia em casamento, obteve o governo das Gálias por um período de cinco
anos. Pela sua bravura, estendeu os limites do império, chegou à Bretanha,
ilha até então ignorada pelos Romanos, e forçou os Germanos a voltar para os
seus próprios territórios.
O choque de interesses fez com que o grande líder travasse uma
batalha pessoal contra aquele que se tornou o seu maior adversário, Pompeu.
Dessa rivalidade, eclodiu uma guerra civil em Roma, vencida por César, que
submeteu a Itália em sessenta dias. A Fortuna, porém, reservava-lhe um
destino duro e cruel: César foi assassinado, em 15 de março de 44 a.C., em
pleno senado, em uma conspiração que contou com a atuação daquele a quem
adotara como um próprio filho, Bruto. Suas últimas palavras, “Tu quoque,
Brute, fili mi?!”, entraram para a história e são constantemente lembradas,
sobretudo em situações que envolvem a traição de pessoas muito próximas.
Dentre suas ações, notabilizaram-se suas atuações como pontifex
maximus, pretor urbano e cônsul. Eternizadas foram suas vitórias na Guerra
Civil, na Guerra da Gália e na batalha de Zela, em que derrotou o Rei Farnaces
do Ponto, ocasião na qual proferiu as célebres palavras “Veni, vidi, vici.”.
A inquestionável importância da figura de César para a grandeza de
Roma é fonte de admiração, seja em função do título dado aos imperadores
romanos, chamados de Caesar, seja em função da habilidade intelectual que
demonstrou ao longo de sua gloriosa vida, tanto como líder quanto como
escritor. São esses elementos que permitem considerá-lo verdadeiro Dux, na
essência do significado do termo, tendo em vista as ações decisivas
empreendidas para a consolidação da Vrbs como centro irradiador de
civilização no mundo antigo.
2.1. Vida pública
A raiz aristocrática de César lhe possibilitou receber uma educação
primorosa, a qual lhe facultaria trilhar um ilustre Cursus Honorum. Ainda
menino, teve sua aprendizagem confiada a escravos gregos, considerados os
melhores por sua imensa cultura e distinta pedagogia. Aprendeu leitura, escrita,
gramática, retórica e grego, tópicos indispensáveis à formação de um romano
de sua estirpe. A língua considerada por excelência a da máxima cultura
favoreceu o enriquecimento intelectual do jovem César, que na adolescência já
estudava as bases do Direito Romano e a Lei das Doze Tábuas.
Sua formação cultural, conforme aponta Accioli, foi complementada por
um mestre gaulês, chamado Marco Antônio Gnifo, e não por um grego; além
disso, deu-se fora de uma escola de retórica, tendo sido ampliada pelo contato
com ex-escravos de elevada cultura.
Cabe notar que, nessa fase da vida em que as impressões são tão vivas,
César se colocara sob a orientação de um gaulês e não de um grego. É
possível que o contato com Gnifo tenha despertado, pela primeira vez,
seu interesse com relação aos gauleses cisalpinos ou transalpinos.
Acentua Warde Fowler, que a influência de um preceptor inteligente e
amável e que compartilha da moradia de seu aluno deve ultrapassar de
14
muito a de um mestre, a cuja casa a criança se contenta em ir cada dia,
à hora das lições. E se considerarmos ter Gnifo ensinado ao jovem
César durante os anos das guerras social e civil, em que foi regulado o
problema da extensão do direito de cidadania romana a italianos e
gauleses da Itália Setentrional, podem supor que a amplitude de vistas
de César nas questões políticas não se desenvolveu sem dever alguma
coisa à nacionalidade e ao caráter de seu professor. (ACCIOLI, 1968, p.
15)
A habilidade intelectual alcançada permitiu a César distinguir-se
posteriormente no cenário político romano. O início de sua vida pública se dá
com o ingresso no serviço militar em 78 a.C., um pré-requisito para o caminho
na magistratura. Como soldado de cavalaria, César luta no exército romano
pela conquista de territórios na Ásia Menor e refugia-se na região até que haja
um cenário político favorável para seu regresso a Roma. Partidário de Mário,
seu tio, o jovem tornara-se inimigo e alvo de perseguições do ditador Sila.
Assim, a necessária permanência junto ao exército funciona como uma espécie
de laboratório para a edificação de sua diferenciada capacidade militar.
Tempos depois, com a morte de Sila e com a cidade sem referências de
comando político, ao retornar, César trata de buscar a adesão e o respeito do
povo. Para tanto, vale-se de seus atributos de oratória e retórica, aperfeiçoadas
em Rodes, sob as lições de Apolônio Mólon. Defensor de Mário, o futuro
general utiliza-se de estratégias de alcance popular, como o proferimento de
discursos contra figuras públicas atuantes no governo de Sila, lembre-se mais
uma vez o ataque a Dolabela. Além disso, vale-se de ações de revigoramento
do partido popular, com destaque para a luta pela restituição dos direitos dos
Tribunos da Plebe. Assim, é aclamado chefe do partido, algo em harmonia com
a inclinação política sempre demonstrada pelas causas populares. Cada vez
mais reconhecido, o sobrinho do antigo cônsul é eleito pelo povo tribunus
militum em 72 a.C. e, três anos mais tarde, é investido pelo senado no cargo de
questor, exercendo-o na província da Hispânia Ulterior. A sua atuação na
região é importante para a consolidação do domínio romano na península
ibérica, tendo em vista a repressão de rebeliões que desafiavam a presença
itálica.
O seu Cursus Honorum tem prosseguimento com sua investidura no
cargo de edil, em 65 a.C., período no qual a cidade passa por transformações
em sua infraestrutura e por obras de embelezamento. Além disso, é nessa
época que começam a se delinear as alianças com Crasso e com Pompeu, as
15
quais culminarão mais tarde com o surgimento do Primeiro Triunvirato em
Roma.
Dois anos depois, César é eleito pontifex maximus e se consagra por
ações de valorização da liberdade e dos direitos populares. O posto de maior
fiador da religião do Estado potencializa o seu acolhimento pelas massas, e, no
mesmo ano, esse ilustre personagem romano é eleito pretor.
Como pretor na província da Hispânia, à sua disposição estão as
ferramentas que lhe permitiriam ascender a cargos insignes da República: um
exército e a fazenda pública. Desse modo, acumula riquezas e se destaca pela
defesa aos pobres, subjugados pelos detentores de grandes propriedades.
Semelhante ao que se vê em Roma, é aclamado pelo povo e atinge uma
popularidade próxima da que possui na Vrbs. A sua atuação como pretor
coincide, porém, com o consulado de Marco Túlio Cícero. Trata-se ainda do
ano de 63 a.C., marcado pela denúncia de uma conspiração contra a
República, arquitetada por Lúcio Sérgio Catilina, o qual foi duramente atacado
pelo então cônsul por meio de discursos proferidos no Senado, conhecidos
como Catilinárias. A oposição de César à condenação à morte sem qualquer
tipo de julgamento dos participantes da conjuração serve de munição a seus
inimigos políticos, os quais tentam associá-lo ao movimento insurreto,
considerado uma grave ameaça à República. Nada, entretanto, nunca foi
provado, e César, depois desse momento conturbado, é nomeado governador
da Hispânia Ulterior.
Em 59 a.C., enfim, torna-se cônsul, tendo como colega Marco Bíbulo,
seu inimigo político. A pouca participação deste no cenário político, talvez para
complicar a atuação de César, foi alvo de piadas da população, a qual dizia os
cônsules serem “Caio” e “Júlio César”. Em vista dos entraves enfrentados,
estrategicamente o ilustre homem aproxima-se de duas outras grandes figuras
republicanas: Pompeu, que havia obtido vitórias e conquistas importantes no
Oriente, e Crasso, considerado o homem mais rico de Roma. Enquanto o
primeiro pelejava com o Senado pela concessão de terras a seus legionários, o
segundo fazia-o para conseguir o comando na guerra contra o Império Persa.
Assim, sendo cônsul César, há a articulação para que se votem leis agrárias
que assegurem aos veteranos e aos proletários lotes de terras alienáveis,
16
somada à ratificação dos atos de Pompeu no Oriente, ações marcantes que
esboçam a aliança futura conhecida por triunvirato.
Após o seu consulado, César obtém o governo da Gália Cisalpina e da
Ilíria por cinco anos. Inicia-se a guerra da Gália, de 58 a.C. a 52 a.C., intervalo
temporal marcado pela eleição da dupla Pompeu e Crasso para o consulado,
pelo fortalecimento da aliança entre os triúnviros e pela prorrogação por mais
cinco anos dos poderes proconsulares de César na Gália, o qual havia cedido
a mão de sua filha em casamento a Pompeu. Quis, entretanto, a Fortuna que
essa aliança se desmantelasse. Com a morte de Júlia e, posteriormente, a de
Crasso, naturalmente os dois triúnviros restantes digladiariam pelo poder
absoluto.
Chega um tempo, contudo, em que o panorama político interno é
conturbado, com embates entre facções armadas, as quais pareciam tentar
fazer imperar a anarquia na Cidade. Ademais, o desejo de César de concorrer
ao consulado de 49 a.C. estando ausente de Roma, a criação de alianças entre
Pompeu e líderes do Senado, assim como a posterior cassação do privilégio
popular do vencedor da Guerra da Gália, somada à destituição de seu
comando militar, originaram um cenário crítico. Deste modo, o caminho
encontrado pelo Senado foi eleger Pompeu cônsul único em 52 a.C.,
deliberação tipificada de um golpe de Estado. O conquistador do Oriente, tendo
sido chamado princeps anos antes por Cícero, restabelece a ordem, é
aclamado pelas instituições políticas e vê apenas um empecilho à sua
soberania: Caio Júlio César.
A decretação do senatus consultum ultimum foi contestada pelos líderes
populares, sem sucesso. Os tribunos da plebe partidários de César, após a
supressão de seus direitos de intercessão e a suspensão de suas garantias,
fogem de Roma e recorrem à clemência do estimado general. Ferido em sua
dignitas e atacado em seu prestígio, César reúne suas tropas e lhes pede o
apoio necessário para invadir e submeter a Itália.
A vitória sobre Pompeu na batalha de Farsália, em 48 a.C., o
assassinato do conquistador do Oriente no Egito, as posteriores ações políticas
e militares na Ásia e na África e a eliminação definitiva de ameaças trazidas por
partidários pompeanos, com vitórias obtidas em Tapso e em Munda, compõem
os capítulos do evento militar que garantiu a César o posto por ele tanto
17
desejado. Atinge-se o degrau máximo de seu Cursus Honorum, e o general
torna-se ditador.
Como ditador, César promoveu transformações marcantes em Roma.
De natureza social, vale frisar a distribuição de terras e de trigo e o combate ao
luxo exagerado dos poderosos. De natureza política, cabe mencionar a criação
de novas colônias e a concessão de direitos que serviram de base para o
processo de romanização dos povos dominados. De natureza cultural, merece
ênfase a criação de um plano de urbanização de Roma e o incentivo às artes
de diversos modos. O trabalho do estadista ofereceu para o Ocidente como
legado para o nosso tempo a criação de um calendário com trezentos e
sessenta e cinco dias, com o acréscimo de um dia para anos bissextos. A
carreira do ditador foi interrompida, entretanto, de maneira abrupta com o seu
assassinato em pleno senado, fato este que se tornou um dos eventos mais
lembrados quando se pensa na magnitude de Roma.
Esse evento, porém, não determinou que as ações políticas de César
fossem esquecidas. Na verdade, graças às sólidas bases firmadas, Roma
viveu no século de Augusto os seus tempos mais áureos, tanto no que diz
respeito às artes, como no que diz respeito ao seu expansionismo. Dessa
forma, embora a esse tempo sem seu idealizador, o projeto político cesariano
pode ser considerado bem-sucedido, visto que a antiga pequena cidade do
tempo de seus antepassados, com importância mínima na região do Lácio,
tornou-se o maior império da história da humanidade, com limites jamais
alcançados por quaisquer outras civilizações.
2.2. Comentarii de Bello Gallico
A obra Commentarii de Bello Gallico, conhecida em português pelo título
“Comentários sobre a Guerra Gaulesa”, reúne sete livros em que César relata
as operações militares desenvolvidas na Guerra da Gália, a qual teve duras
batalhas entre romanos e povos de diferentes etnias e costumes, durante os
anos de 58 a.C. a 52 a.C..
A cada um dos livros que compõem a obra, corresponde uma campanha
militar empreendida por César. Nessa obra, percebe-se seu viés historiador, o
que confere aos fatos narrados uma importância histórica inestimável em
18
função da descrição geográfica da região em que se fundamenta a narrativa e
da riqueza de detalhes quanto aos costumes dos povos nela retratados.
Além disso, é importante pensar a confluência de valores caros ao povo
romano, os quais justificam o acontecimento daquela guerra. Do mesmo modo,
não se pode ignorar que foram utilizados por César para compor sua narrativa
e justificar suas ações políticas. Nesse sentido, vale a referência ao seguinte
provérbio de Virgílio: “Tu regere imperio populus, Romane, memento (haec tibi
erunt artes), pacisque imponere morem, parcere subiectis et debellare
superbos.” (Virg. Em. 6, 851 – 853) “Lembra-te, romano, de reger os povos
pelo império; (estas são as tuas artes) impor o costume da paz; poupar os
vencidos; esmagar os soberbos!”.
As palavras de Virgílio, pela fala do pai de Eneias, representam o lema
de Roma e a missão incutida no íntimo de cada cidadão romano. É em respeito
a essa sentença que César investe em campanhas militares as quais culminam
com a Guerra da Gália, uma vez que o objetivo era proteger as tribos aliadas
de Roma das ações dos Helvécios e dos Germanos.
Todavia, quando se faz uma análise objetiva da obra, há uma tendência
da crítica em considerá-la uma estratégia de autopromoção, com fins de elevar
e consagrar a figura de seu autor, o qual tinha como grande rival Pompeu. De
fato, para lograr êxito quanto ao projeto político mascarado em sua narrativa,
César apela não só para seus grandes feitos e para o uso da 3ª pessoa do
discurso como também para a essência daquele que seria posteriormente o
lema romano, quer por meio de referências aos traços culturais e hábitos de
povos ainda não romanizados, como os Germanos, quer por meio do
enaltecimento às ações romanas de tutela aos povos de alguma maneira já
romanizados. Por fim, ainda como alicerce daquele projeto, nota-se em seu
texto, por diversas vezes, uma exaltação aos povos inimigos.
Igualmente, a crítica assinala uma ampliação empreendida pelo vitorioso
líder à modalidade textual que produziu, tornando-a um gênero da literatura
latina. Entende-se que obras como Commentarii de Bello Gallico componham,
inicialmente, uma modalidade encerrada em uma subclasse da historiografia
romana, chamada commentarius, de antecedência grega, conhecida por
hypomnema.
19
É bom, porém, lembrar que a palavra portuguesa e a latina não
recobrem o mesmo campo semântico, uma vez que entre nós o emprego
corrente do vocábulo pressupõe texto ou matéria sobre o qual discorre.
Em latim, o termo vinculado etimologicamente a mens, teve o sentido de
livro de reflexões, caderno de apontamento, lembrete, diário, texto
escrito ao correr da pena, conciso e destituído de ornamento.
(MENDONÇA, 1999, p. 27)
O estilo cesariano, contudo, imprimiu, não obstante a sua simplicidade,
elegância e maestria à obra, a ponto de Cícero, cultuado por sua inigualável
oratória e domínio da língua latina, considerar imprudência a sua reelaboração
por historiadores. Ressalte-se, nesse sentido, que a formação cultural e a
inteligência privilegiada do famoso general atuaram decisivamente para isso,
pois permitiram o advento de um novo gênero literário e imortalizaram pelas
letras a glória alcançada em campos de batalha.
Sobre essas letras, é importante observar a sobriedade predominante e
a perspicácia persuasiva, sobretudo devido à estratégia de desmembrar a
figura do narrador e a figura do personagem histórico.
Ora, fazê-la participar do discurso autobiográfico como substituto da
primeira pessoa tem como efeito provocar no leitor a ilusão de que a
pessoa cujos fatos se narram e o narrador constituem entidades
diferentes, de que entre eles não há a cumplicidade de alguém que fala
em causa própria. Esse distanciamento e aparente não-envolvimento
dão ares de isenção, descartam suspeitas de favorecimento e
contribuem poderosamente para conferir credibilidade ao relato.
(MENDONÇA, 1999, p. 31, 32)
De pureza artística e latinidade clara e correta, Commentarii de Bello
Gallico está marcada na história da literatura latina. A sua importância como
documento histórico e o seu aspecto monumental fizeram a obra tornar-se
objeto de estudo para diversos especialistas ao longo dos tempos, algo que
perpetua a engenhosidade de seu autor, o qual a produziu lutando contra a
fugacidade do tempo. Ainda que aborde sete anos de batalhas e escaramuças
nas regiões da Gália, estima-se que o livro tenha sido escrito entre 52 a.C. e 51
a.C.; portanto, mais proximamente do fim do conflito que consagrou seu
principal personagem como o Conquistador do Ocidente. Durante aqueles anos
e os anteriores, todavia, com bastante frequência, César enviava relatórios
acerca de suas ações bélicas. O objetivo, segundo apontam estudiosos, era
não se fazer esquecido, sobretudo por causa do imenso prestígio alcançado
por Pompeu após as conquistas no Oriente. Assim, a reunião dos feitos em
batalha na Guerra da Gália atuou como o arremate perfeito para a posterior
concretização do projeto político cesáreo.
20
3. O PROJETO POLÍTICO DE CÉSAR
Ao estudar a obra objeto deste trabalho e associá-la à produção
seguinte do autor em questão, parece bastante elucidativo que o desejo maior
de Júlio César era tornar-se o senhor de toda a Roma.
Para tanto, vale-se de estratégias que lhe possibilitem atingir essa meta
de modo sólido. Assim, atuam de modo cíclico em Commentarii de Bello
Gallico: i) o investimento na ideia de que é a pessoa mais preparada para
exercer a liderança em Roma; ii) a dignificação dos seus feitos na Guerra da
Gália; iii) a exaltação aos inimigos combatidos e iv) o respeito aos valores e ao
passado romanos. Isso torna o projeto cesáreo consistente, de modo que
passa a justificar as posteriores ações do general no que diz respeito às
decisões senatoriais contrárias a seus interesses. Os excertos abaixo em latim
seguidos da minha tradução estão em consonância com as considerações
feitas.
“[I,13] Helvetii repentino eius adventu commoti, cum id, quod ipsi diebus
XX aegerrime confecerant, ut flumen transirent, illum uno die fecisse
intellegerent, legatos ad eum mittunt (...)”1
[I,13] Os Helvécios, balançados com a sua chegada repentina, porque
compreendessem que ele tinha feito em um único dia aquilo que eles
próprios dificilmente teriam conseguido em vinte para atravessarem o rio,
enviam-lhe embaixadores.
A partir do trecho visto, é possível notar a valorização pelo inimigo da
figura cesárea, o respeito por ela despertado. O reconhecimento das grandes
faculdades do general, conforme aponta esse extrato, atende à finalidade de
exaltar a sua capacidade de líder. Aspectos relativos aos costumes dos
antepassados, aos valores e à própria história dos romanos também
constituem importantes recursos, como se pode ver na sequência:
[I,43] Populi Romani hanc esse consuetudinem, ut socios atque amicos
non modo sui nihil deperdere, sed gratia, dignitate, honore auctiores uelit
esse: quod uero ad amicitiam populi Romani attulissent, id iis eripi quis
pati posset?2
[I,43] O costume do povo romano era este: desejar que aliados e amigos,
de modo algum, nada de seu perdessem, mas sim que fosse mais
próspero em reconhecimento, valor e honra. Aquilo, porém, que tivessem
1
CAESAR, C. Julius, The Gallic War, página 20.
2
CAESAR, C. Julius, The Gallic War, página 70.
trazido para a amizade do povo romano, quem poderia suportar que lhes
fosse arrancado?
A passagem acima pauta-se pela exaltação de aspectos valorativos da
cultura romana, sobretudo no que tange à fides. Torna-se perceptível a ação de
tutela em relação aos aliados, algo que era extremamente respeitado e
glorificado pelos romanos. Com isso, a referência a um atributo tão caro a seu
povo não apenas justifica as batalhas empreendidas assim como erige a figura
do vencedor, tornando-a etérea. A seguir, há outra passagem na qual se
percebe o respeito a alianças firmadas, seguido do cuidado em demostrar
conhecimento quanto a episódios importantes da história romana e à atuação
do Senado.
[I,45] Multa ab Caesare in eam sententiam dicta sunt quare negotio
desistere non posset: Neque suam neque populi Romani consuetudinem
pati uti optime merentes socios desereret, neque se iudicare Galliam
potius esse Ariouisti quam populi Romani. Bello superatos esse Aruernos
et Rutenos a Quinto Fabio Maximo, quibus populus Romanus ignouisset
neque in provinciam redegisset neque stipendium imposuisset. Quod si
antiquissimum quodque tempus spectari oporteret, populi Romani
iustissimum esse in Gallia imperium; si iudicium senatus obseruari
oporteret, liberam debere esse Galliam, quam bello uictam suis legibus
uti uoluisset. (CAESAR, 2006, p.74, 75)
[I,45] Muitas coisas foram ditas por César até essa resolução, por isso
não poderia desistir da tarefa: nem o seu costume e nem o do povo
romano permitiam que abandonasse aliados os quais perfeitamente
prestavam serviços. Além disso, ele não julgava que a Gália fosse antes
de Ariovisto que do povo romano. Na guerra, os Avernos e os Rutenos
haviam sido superados por Quinto Fábio Máximo, os quais o povo
romano tinha ignorado, não os tendo reduzido à província e nem lhes
tendo imposto tributo. Quanto a isso, se fosse necessário algum período
mais antigo ser observado, o poder do povo romano na Gália era
justíssimo; se fosse necessária a decisão do senado ser considerada, a
Gália deveria ser livre, a qual, vencida na guerra, as suas leis, haveria
desejado que ela usasse.
Em relevo, está a hombridade de César no que diz respeito à resolução
tomada mediante a uma delicada questão que se interpunha. Novamente, é
possível notar a preocupação em obedecer a princípios básicos para um bom
romano. A Fides é a base, mais uma vez, da ação do general. Igualmente,
desempenha um papel relevante o culto aos feitos de outro eminente cidadão.
A rememoração a Quinto Fábio Máximo e à deliberação do Senado cumpre o
objetivo de mostrar cultura e, dessa forma, trazer caracteres distintivos para o
texto produzido.
É interessante salientar ainda o fato de César apresentar-se de forma
semelhante a um missionário, a quem caberia a incumbência de cumprir com o
22
processo de romanização do mundo antigo. Nesse sentido, é manifesta a
referência a hábitos considerados degradantes pelos romanos e comuns aos
inimigos, com o intuito de balizar os empreendimentos realizados e elevá-los a
categoria de extremamente necessários. Esse recurso pode ser observado no
fragmento latino subsequente, também traduzido por mim:
[VI,21] Germani multum ab hac consuetudine differunt. Nam neque
druides habent, qui rebus divinis praesint, neque sacrificiis student.
Deorum numero eos solos ducunt, quos cernunt et quorum aperte opibus
iuvantur, Solem et Vulcanum et Lunam, reliquos ne fama quidem
acceperunt. Vita omnis in venationibus atque in studiis rei militaris
consistit: ab parvulis labori ac duritiae student. Qui diutissime impuberes
permanserunt, maximam inter suos ferunt laudem: hoc ali staturam, ali
vires nervosque confirmari putant. Intra annum vero vicesimum feminae
notitiam habuisse in turpissimis habent rebus; cuius rei nulla est
occultatio, quod et promiscue in fluminibus perluuntur et pellibus aut
parvis renonum tegimentis utuntur magna corporis parte nuda.
(CAESAR, 2006, p.344, 346)
[VI,21] Os Germanos diferem muito deste costume. De fato, nem
possuem druidas que presidam as questões divinas, nem se aplicam a
sacrifícios. Falam de um número de deuses únicos, que distinguem e por
cujos trabalhos são auxiliados abertamente: Sol, Vulcano e Lua; os
restantes, nem sequer pela fama conheceram. Toda a vida consiste em
caçadas e em paixões pela arte da guerra: dedicam-se desde
pequeninos ao trabalho e à aspereza. Aqueles que permaneceram
castos por muito tempo alcançam entre os seus o máximo louvor:
acreditam que com isso a estatura aumenta, que as forçam aumentam e
que os nervos se restabelecem. Consideram atitudes muito horrendas ter
tido verdadeiramente, antes dos vinte anos, contato com mulher: para
quem o ato de se esconder é nenhum, porque se banham
promiscuamente nos rios e se vestem com peles ou pequenos vestidos
de renas, estando grande parte do corpo nua.
Esses extratos apontam para a ênfase nas gritantes diferenças culturais
entre gauleses e germanos e, consequentemente, entre estes e os romanos. A
descrição daquilo a que se resume a vida dos germanos e o uso de termos
como “promiscue” (promiscuamente) ratificam a tentativa de construção de um
cenário degradante, algo que, com isso, justificaria a necessidade de romanizar
aquele povo.
Assim, com a apresentação de elementos que justificam suas ações
militares e que visam a seu engrandecimento, César procede à conjugação de
uma ação prezada pelo povo romano – a de civilizar o mundo antigo – com
seus anseios políticos. Para concretizá-los, faz-se necessário também
demonstrar um conhecimento histórico profundo acerca de seu povo e uma
cultura vasta, alicerçada em caracteres célebres e dignos de honrarias. Nesse
23
sentido, é válido analisar os pilares histórico e cultural que fomentam o projeto
do autor, os quais serão esmiuçados na sequência.
3.1. Bases históricas
Para descortinar o projeto político de César, é necessário salientar
episódios marcantes da ascensão de Roma, que se tornou senhora de todo o
ocidente conhecido na Antiguidade. De fato, desde a sua fundação até a sua
hegemonia na península itálica e no mediterrâneo, os romanos enfrentaram
inúmeros embates contra diversos povos e cidades. Alguns daqueles choques
ameaçaram a longevidade da cidade ou abalaram suas instituições políticas. A
superação, todavia, de tantos entraves ao crescimento da cidade parece ter
despertado no romano um senso de magnanimidade que o fazia julgar-se o
povo mais importante do orbe terrestre, cuja missão seria doutrinar o mundo.
Há controvérsias acerca do ano e do século em que Roma foi fundada.
Tradicionalmente, acredita-se que a cidade surgiu no século VIII antes de
Cristo, no ano 753. Tem sido comum, todavia, localizar esse evento na
segunda metade do século VI. Para uns, os etruscos, ao efetuarem a
unificação das aldeias existentes nas colinas do Tibre, seriam os responsáveis
pela fundação da Vrbs.3 Para outros, o mérito coube a pastores e camponeses
vindos de Alba Longa, terra do avô de Rômulo, considerado este, pela tradição
literária, o fundador de Roma. De qualquer modo, são unânimes as
considerações acerca das contribuições etruscas para o fortalecimento da
cidade. Com o legado etrusco, Roma adquire maior unidade política, progride
no manejo agrícola, domina tópicos fundamentais de arquitetura, incorpora
inúmeros elementos de cunho religioso à sua fé e amplia o sistema linguístico
de sua própria língua, o latim.
As marcas daquele povo da Etrúria também podem ser percebidas,
conforme aponta a literatura, no regime monárquico da cidade, em virtude de
seus três últimos reis terem sido etruscos. O fim da monarquia com o advento
do regime republicano é um marco fundamental da história romana, pois,
apesar do deliciado momento político, permitirá a reorganização e a
3
GIORDANI, Mario Curtis. Historia de Roma – Antiguidade Clássica II, página 29.
24
consequente união das duas ordens sociais de Roma, os patrícios e os
plebeus. A interdependência entre as duas classes lhes permitirá a coesão
primordial e necessária para a resistência ante os inimigos externos da
península itálica e para a expansão dos limites da cidade, até então reduzida e
sufocada pelos Montes Tiberinos e pela costa da Etrúria.
Sob a égide republicana, Roma vive indiscutíveis progressos e glórias.
Inicialmente, readquire a hegemonia e a supremacia no Lácio, perdidas após a
saída dos etruscos com a queda da monarquia. A batalha no lago Regilo, no
século V antes de Cristo, vencida pelos romanos contra os latinos, permitiu o
surgimento de uma aliança entre ambos os povos, essencial para a Vrbs na
luta contra adversários fortes e ameaçadores: os sabinos, os équos e os
volscos, todos auxiliados pelos etruscos.
No fim do século V, os romanos vencem os volscos, tendo firmado,
provavelmente, um acordo de paz com os sabinos anteriormente, dado que
não se encontrem registros de conflitos militares entre ambos. No início do
século seguinte, sobrepõem-se aos équos e tomam a cidade etrusca de Veios.
Essa vitória permite a Roma acessar a fértil e rica região da Etrúria e, em
aliança com os latinos, desfrutar de uma posição política diferenciada no
Lácio.4 Todavia, anos mais tarde, os romanos experimentaram um desastroso
acontecimento: a invasão da cidade pelos celtas, por volta de 390 a.C..
Carente de fortificações que lhe possibilitassem uma defesa segura contra os
invasores, Roma se fragiliza, e sua população se refugia em Veios e no
Capitólio. Um tratado de paz restabelece a liberdade aos romanos pelo preço
de mil libras de ouro. A humilhação torna-se uma importante lição para a Vrbs,
que investe em suas fortificações a fim de coibir novos saques e se reorganiza
militarmente com base nas vivências de guerra adquiridas. Essas ações
apresentam-se como determinantes para a conquista da Itália Central, o que
possibilita aos romanos estabelecerem definitivamente sua influência na
Etrúria, ainda que somente na parte meridional, e assenhorarem-se do Lácio. O
desejo de conquistas e de expansão é cada vez mais alimentado. Nesse
sentido, a conquista da Campânia representa um importante passo para o
domínio da península itálica, devido à imensa fertilidade agrícola da região e à
4
Ibidem
25
vastidão dos campos, favoráveis ao treinamento e à ampliação da cavalaria.
Entretanto, o sucesso na Campânia não veio sem duras batalhas contra os
samnitas. Os romanos travaram contra esse povo três guerras para obter o
domínio da rica região. A vitória na batalha de Sentinum, em 295 a.C., na qual
Roma venceu um exército de samnitas, gauleses e etruscos, permite que se dê
um grande passo rumo à unificação da Itália.
A próxima etapa da expansão romana é, inquestionavelmente, decisiva
para o surgimento do vasto legado deixado pela Vrbs para o mundo ocidental;
trata-se da conquista da Itália Meridional, com o triunfo sobre Tarento.
Realmente, a anexação da Campânia, feita anteriormente, permitiu a
aproximação românica dos limites territoriais da Magna Grécia ou Itália do Sul,
o que deixou os tarentinos preocupados, devido ao constante e ameaçador
avanço territorial romano. Com a intervenção de Pirro, em favor da metrópole
grega, o rei do Epiro retarda o sucesso de Roma na região. A vitória do epirota
nas batalhas de Heracleia e de Ásculo, com grandes perdas para ambos os
lados, não abala os ânimos dos romanos. Igualmente, a sua retirada da Itália
para lutar contra cartagineses na Sicília favorece a ocupação de Tarento.
Ameaçados pelas investidas romanas, os tarentinos apelam pelo regresso de
Pirro. O seu retorno para a Itália é marcado por sua derrota na batalha de
Benevento, na região da Campânia, em 275 a.C., por seu retorno para a Grécia
e pelo envio de seu lugar-tenente, Milon, para salvaguardar Tarento. Os
romanos, então, não enfrentam grandes dificuldades para ocupar a metrópole
grega, acontecimento que se dá em 272 a.C., e expandir os limites da Vrbs até
a Itália Meridional. A anexação de um importante centro de cultura helenística
permite a Roma desenvolver-se exponencialmente em inúmeros aspectos,
sobretudo no das artes. É a partir do contato estabelecido com Tarento que
começam a surgir as primeiras obras da literatura latina. Além disso, a
hegemonia adquirida naquela região permite aos romanos traçar novas metas,
agora além da península itálica. Para tanto, tornar-se-ia vital para Roma
sobrepujar Cartago.
As Guerras Púnicas, batalhas envolvendo romanos e cartagineses,
consolidaram a Cidade como principal centro econômico e político também do
mediterrâneo e marcaram a destruição de Cartago. A famosa frase “Delenda
Carthago est”, proferida exaustivamente por Catão, indica a ameaça que os
26
púnicos representavam às ambições romanas. Em três oportunidades, houve
embates entre os dois povos. Na Terceira Guerra Púnica, entretanto, ocorre
algo sem precedentes na história de Roma e que representa uma exceção ao
seu processo expansionista ao longo dos tempos: a destruição total de uma
cidade contra a qual os romanos tenham feito campanhas militares. O lendário
episódio da destruição dos alicerces de Cartago e da salinização de seu solo, a
fim de que nada mais ali nascesse, representa a magnitude da rivalidade entre
latinos e púnicos.
O domínio da bacia do mediterrâneo introduz um novo capítulo no
progresso romano, dada à intensificação da influência helênica e à organização
das quatro primeiras províncias naquela região: a da Sicília, a da Sardenha, a
da Hispânia Citerior e a da Hispânia Ulterior. Ademais, permite aos latinos,
afastado o perigo representado por Cartago, buscarem expandir-se rumo ao
oriente.
Vitórias nas três guerras da Macedônia, na guerra da Síria e a anexação
da Grécia e da Ásia são os principais eventos que sinalizam o processo
expansionista rumo ao oriente. A hegemonia latina na região pode ser
percebida com a cessão de dois reinos a Roma: uma feita por Ptolomeu, o
Jovem, cedendo Cirene; outra, por Átalo III, cedendo Pérgamo.
O mapa político da Vrbs, tendo como base o tempo de César, já está
quase totalmente delineado. Restam apenas as conquistas ao norte da
península itálica e a anexação da península ibérica. A primeira foi totalmente
incorporada à civilização romana na primeira metade do século II antes de
Cristo, por meio de um importante processo de romanização da região,
fundamentado em obras de alcance público as quais englobavam o
desbravamento de florestas, a construções de dutos de água e de estradas. A
segunda, após dificílimas batalhas, foi incluída aos limites de Roma em 133
a.C., por Cipião Emiliano. De valor estratégico, aquela anexação permitiu aos
latinos dominar grandes jazidas de minério da área bem como desfrutar de
importante posicionamento geográfico, o qual impediria qualquer possibilidade
de retorno da ameaça cartaginesa e descortinaria aos olhos dos romanos a
possibilidade de expandir-se também para as regiões centrais da Europa, com
a posterior soberania sobre toda a Gália. Em um primeiro momento, contudo,
as forças romanas cuidaram de tentar criar um corredor de comunicação entre
27
a península ibérica e a península itálica. Para tanto, sem qualquer oposição de
Marselha, cidade sob influência romana, são feitas campanhas contra dois
povos celtas: os alóbroges e os avernos. O sucesso contra ambos permitiu às
forças de Roma estenderem-se a territórios entre os Alpes e os Pirineus, cujo
centro comercial era a própria cidade de Marselha. Posteriormente, com a
fundação de Aquae Sextae e a colonização de Narbo, antiga capital dos celtas,
originou-se a província romana da Gália Narbonense.
A
dilatação
dos
limites
do
poderio
romano
trouxe
diversas
consequências em inúmeros aspectos. No campo das artes, a penetração do
helenismo favoreceu avanços na literatura, no Direito, na arquitetura e na
religião. Observam-se também grandes transformações de ordem econômica e
social. O acúmulo de riquezas vindas das áreas conquistadas provoca a
intensificação das desigualdades sociais, sobretudo porque o aumento da mão
de obra escrava causa grande impacto na vida dos camponeses e lhes oprime
na estrutura econômico-social da cidade. Tem-se o surgimento de grandes
latifúndios, explorados pelos ricos com trabalho preferencialmente servil,
associado ao massacre das populações pobres, em virtude das incontáveis
guerras. Politicamente, o senado usufrui de um imenso prestígio e goza de
grande poder. Porém, o imenso desequilíbrio social, causado principalmente
pela questão latifundiária, torna-se o inimigo da estabilidade interna em Roma.
As reformas propostas pelos irmãos Graco, a tentativa de reforma agrária é a
mais marcante, aparecem como alternativa aos graves problemas enfrentados
pelos populares e fazem intensificarem-se o embate entre estes e os
optimates. A morte dos dois, contudo, finaliza uma série de vitórias da plebe.
A guerra contra Jugurta reacende a disputa entre as duas classes
políticas. Nesse contexto, o povo, combalido pelas batalhas e pela opressão
dos mais ricos, aliado à classe equestre, que teve milhares de negotiatores
massacrados na Ásia pelas tropas daquele rei da Numídia, elege cônsul Mário,
que consegue derrotá-lo e aprisioná-lo. É sob seu poder que as legiões se
profissionalizam, pois se torna possível fazer carreira no exército e não mais o
ingresso no serviço militar é feito apenas por cidadãos em condições de
financiá-lo.
5
5
Essa medida provoca transformações profundas no quadro
MENDONÇA, Antônio da Silveira. Bellum Civile – A Guerra Civil, página 20
28
econômico, político e social da cidade. Com a possibilidade de ascensão social
em função da destreza militar demonstrada, os legionários estarão a serviço de
seus comandantes e lhes devotarão, com frequência, mais fidelidade do que ao
próprio Estado. Isso favorecerá a eclosão de guerras civis que decretarão o fim
do regime republicano.
Eleito cônsul pela sexta vez em 100 a.C. após garantir a defesa da
província Narbonense, com a vitória definitiva sobre teutões e cimbros, que
haviam invadido a região em busca de terras, fugidos de um forte terremoto
seguido de maremoto, Mário atinge o ápice de seu prestígio. Há um período de
ligeira tranquilidade, que decai alguns anos depois com a Guerra dos Aliados,
também chamada de Guerra Social ou Guerra Mársica. Ocorrido entre os anos
de 91 e 88 a.C., o conflito pôs em choque a força de povos da península itálica,
desejosos de obter a cidadania romana, e a República. Roma consegue
debelar a revolta após intensos massacres, porém vê a necessidade de adotar
uma política mais liberal de concessão de cidadania, a fim de afastar novos
conflitos.
O imperium do Senado agora se estende a ex-escravos e a indivíduos
sem uma identidade de pátria definida, transformados em cidadãos, os quais
favorecem o revigoramento do partido popular. Novas dissensões políticas se
fazem presentes e, associadas a uma ameaça ao poderio romano no Oriente,
devido à revolta liderada pelo rei do Ponto, Mitridates, sinalizam o surgimento
de mais um delicado período da história romana.
Após ter articulado politicamente a destituição de Sila do comando das
tropas no Oriente, Mário foi perseguido por ele, que havia posto seu exército
para marchar sobre Roma, e se refugiou na África. Sila, por sua vez, depois de
desarticular seus adversários, parte para o Oriente. Ao conter Mitridates, que
ambicionava formar um novo império na região e destituir os príncipes orientais
apoiados por Roma, reestabelece o prestígio romano naquela província;
todavia, o anseio de voltar à Cidade para disputar o poder faz com que não
imponha duras penas aos revoltosos. A esse tempo, Mário havia conseguido
eleger-se cônsul pela sétima vez. Sua morte no início de seu consulado não
fragmentou, porém, a ação de seus partidários, os quais ainda dominavam a
Itália e as províncias ocidentais. O triunfo sobre eles permite a Sila regressar à
Vrbs soberanamente. Amparado por partidários aristocráticos, faz-se ditador e
29
inicia um período de terror na história romana, com assassínios e
expropriações numerosos, sobretudo dos correligionários de Mário, o qual teve
seus troféus derrubados.
Após a renúncia de Sila, em 79 a.C., e a sua morte no ano seguinte,
Roma assiste à ereção no cenário político de duas figuras que haviam
demonstrado grande valor, por causa de seus feitos militares e alinhamento
político com os populares. Trata-se de Crasso e de Pompeu, eleitos cônsules
em 70 a.C., os quais formariam com César o primeiro triunvirato, anos depois.
Crasso, homem de grandes fortunas, atingiu o ápice de sua honra ao
desbaratar uma perigosa revolta de escravos e gladiadores liderados por
Espártaco, em 71 a.C., enquanto Pompeu, tendo obtido um comando na
Hispânia, notabilizou-se por derrotar, em 72 a.C. as tropas de Sertório,
partidário de Mário, naquela província. A partir de um pacto de colaboração
mútua, ambos tornaram-se cônsules. Nos anos seguintes, Pompeu alcança
imenso prestígio e poder em Roma, em virtude dos inúmeros sucessos em
expedições para combater a pirataria no Mediterrâneo e para suplantar
definitivamente Mitridates na Ásia. Ao obter o comando supremo das tropas no
Oriente, não só vence o rei do Ponto mas também expande consideravelmente
os domínios, o poderio e a influência do Estado-império na região.
Em 60 a.C., César alia-se à dupla estrategicamente e consegue elegerse cônsul no ano seguinte. Pompeu desfrutava de uma posição de destaque no
cenário político, e Crasso, no cenário econômico. Apesar de ter demonstrado
seu valor outrora, tendo logrado êxito em assuntos militares e administrativos
na Hispânia, César ainda ocupava um lugar em segundo plano no cenário
político da Cidade. A aliança, portanto, mostrava-se extremamente vantajosa e
consistia em um pacto, sem natureza jurídico-legal, segundo o qual os três
estariam no poder. Para ratificar a união, César dá sua filha Júlia em
casamento a Pompeu e, após o fim de seu consulado, obtém o governo por
cinco anos da Gália Cisalpina e da Ilíria. Em 56 a.C., em uma conferência na
cidade de Lucca, os três reafirmam a validade da aliança, o que favorece a
eleição de Crasso e de Pompeu para o consulado em 55 a.C. e permite que os
poderes de César na Gália se prolonguem por mais cinco anos. Ao fim do
exercício do cargo, os dois obtêm, respectivamente, os governos da Síria e da
Hispânia.
30
Quis a Fortuna, porém, que a fugacidade agisse sobre a ambiciosa
aliança, formada anos antes. A morte de Júlia, principal elo entre César e
Pompeu, em 54 a. C., somada à de Crasso, um ano depois, culminou com o
esfriamento da relação entre os dois maiores personagens de Roma daquela
época. O contexto político é de tensão, devido a lutas armadas entre os grupos
de Clódio, candidato a pretor, e os grupos de Milon, candidato a cônsul. O
agravamento da situação, sobretudo com o assassinato daquele, leva, em 52
a.C., o Senado a nomear cônsul único Pompeu, que não saíra de Roma e
deixara a província da Hispânia sob a administração de seus legados. Nesse
ínterim, César já havia conquistado totalmente a Gália e era o único que
poderia impedir a concretização do desejo pompeiano de se tornar o único
senhor de toda a Roma.
No tempo de César, então, tem-se uma Cidade-estado que se
transformou em um Estado-império ao longo de aproximadamente sete
séculos, devido ao engenho de seus cidadãos e à sua obstinação frente aos
incontáveis desafios que se lhes interpuseram no decorrer dessa magnífica
jornada. Tem-se, ainda, um sistema político e econômico conturbado, pautado
na ambição pelo poder soberano e pela pressão social sobre os populares, os
quais, em sua maioria, possuem como plataforma de ascensão social apenas a
dedicação à carreira militar. As ações de César ante esses problemas, os quais
fizeram agonizante o regime republicano, destacam o desejo de tornar-se o
primeiro cidadão de Roma e atestam a existência de um projeto político, latente
na obra Commentarii de Bellum Ciuile, porém descortinável já em Commentarii
de Bello Gallico. Nestes, parece que o general-autor se coloca como um
missionário romano incumbido de disseminar o cultus e a humanitas para as
regiões e para os povos mais afastados da península itálica. Ademais, ao
narrar os grandiosos feitos empreendidos para submeter os inimigos, viabiliza o
entendimento de que é a figura da qual Roma precisa para não perecer e ver
ruir tudo o que conquistou com tanta dificuldade ao longo de sua história. De
fato, ao memoriar o sucesso alcançado em sua empreitada, César permite que
seja inconteste a sua habilidade como general e também como estadista. A
riqueza alcançada com as vitórias e a gradativa fidelidade do seu exército
constituem imprescindíveis elementos para a concretização dos anseios
políticos cesáreos.
31
Dessa forma, quando o Senado convoca o seu retorno a Roma sem
seus exércitos, o general exige igualdade de tratamento em relação a Pompeu,
o qual não fora obrigado a proceder do mesmo modo. Considerado inimigo da
República diante da recusa feita, César atravessa o rio Rubicão, na fronteira da
Gália Cisalpina com a península, em 49 a.C., e dá início à guerra civil.
A posterior vitória de César no conflito determina a concretização de seu
projeto político, uma vez que o inigualável personagem histórico tornou-se,
enfim, Senhor de toda a Roma. Entretanto, provavelmente esse patamar em
seu Cursus Honorum não seria alcançado se os seus ideais e os seus sonhos
não estivessem pautados em um profundo conhecimento da história de seu
povo e em um louvável respeito por ela. Realmente, um cidadão da
envergadura de César deveria lutar insistentemente para elevar sua dignitas e
prezar para que esta não fosse de algum modo atingida. Isso está na essência
de um verdadeiro romano. Além disso, um genuíno cidadão tinha o dever moral
de respeitar e cultuar os antepassados. Em Commentarii de Bello Gallico,
percebe-se o cuidado de estar em harmonia com os preceitos dignos de louvor
pelos romanos. Há, pontualmente, referência à grandeza da Cidade e às ações
dos predecessores que permitiram a Roma atingir a posição de soberania da
qual já desfrutava à época cesárea.
Assim, com uma obra que demonstra respeito às raízes históricas
romanas e que por diversas vezes as ressalta e as cultua, César conseguiu
encaminhar a realização de seu projeto político e legar para a posteridade a
importância de pautar-se em valores distintivos de um povo para alcançar a
glória eterna.
3.2. Bases Culturais
Para a concretização de seu projeto político, escamoteado na obra
estudada, César vale-se de referências a valores caríssimos a seu povo. O
objetivo
parece
ser
angariar
a
simpatia
popular
e
lançar-se
como
inquestionável líder da difusão da cultura romana no mundo antigo.
Nesse sentido, é pertinente analisar alguns daqueles valores e os seus
desdobramentos no texto cesariano, de modo a compreender mais
precisamente essa estratégia fundamental do projeto político em questão.
32
O primeiro valor moral a ser destacado é a fides, a qual, diferentemente
de muitos outros princípios, não possui uma raiz ideológica grega. Na verdade,
sua essência romana é de certa maneira um adereço para definir e caracterizar
com exatidão esse povo. É com base na fides, por exemplo, que se iniciam as
escaramuças entre romanos e helvécios nos primeiros momentos da Guerra da
Gália. Para defender seus aliados, a quem dera o juramento de proteção e
apoio, Roma, representada por César, inicia o conflito. Assim, é o compromisso
firmado com o outro, sob uma aliança forte e inabalável, que representa tal
valor. A sua extrema importância é ratificada por Cícero em Dos Deveres: “O
Senado era o porto de abrigo de reis, povos e nações, e os nossos
magistrados e generais ansiavam por obter um único título de glória, o de
terem defendido as províncias e os aliados com justiça e fides.”6 Para
estudiosos, é a fides uma das razões que permite aos romanos reunir de
maneira tão impressionante tantos inúmeros povos sob a sua tutela. Sendo,
portanto, um elemento tão fundamental à essência romana, reconhecido e
cultuado pelos distintos cidadãos, não é de causar estranhamento a ênfase a
ele no texto de César. Uma condição indispensável para o exercício do papel
de líder e condutor de um Estado da magnitude de Roma era o respeito e a
exaltação àquele emblemático valor. Isso o general não apenas faz como
também demonstra tê-lo feito ao narrar as suas empresas durante as batalhas
nas regiões gaulesas. Suas ações estão vinculadas necessariamente ao juízo
que se faz dos romanos, conforme indicam as palavras de Políbio, de que esse
é o povo que “respeita o seu dever pela própria fidelidade decorrente do seu
juramento”.7 É igualmente natural entender tamanha obediência de César
àquele valor, haja vista suas implicações morais, políticas e jurídicas. Quanto
ao aspecto moral, cabe ressaltar a fé nos juramentos, a garantia e o
compromisso. Sob o prisma político, o comprometimento entre as partes
envolvidas, ou seja, a tutela estipulada, sobreleva-se. Finalmente, sob o olhar
jurídico, como ilustração, vejam-se as palavras de Cícero, em Dos Deveres: “O
Senado era o porto de abrigo de reis, povos e nações, e os nossos
magistrados e generais ansiavam por obter um único título de glória, o de
6
Dos Deveres II.8.26 e 28 (Res Romanae, p.45)
7
Ibidem
33
terem defendido as províncias e os aliados com justiça e com fides.”8. Na
sequência, ao tratar de um possível desleixo pela fides, sentencia: “Somos
castigados com razão”.9
Entretanto, César não desvincula de suas ações e de seu exercício da
fides outro importante valor romano: a pietas.
Base do dever necessário entre um homem e sua família, inicialmente,
e, por ampliação, entre um homem e sua pátria, a pietas é também um
ornamento moral essencialmente romano. Leia-se, para melhor explicitá-la,
uma passagem ciceroniana: “Tal como o teu avô aqui presente, tal como eu,
que te gerei, Cipião, cultiva a justiça e a pietas, que, devendo ser grande para
com os parentes e aderentes, maior ainda deve ser para com a pátria”. 10 É por
exercício da pietas que Otávio persegue os assassinos de César, algo que
destaca a raiz familiar desse valor. Por outro lado, a apropriação feita pelos
romanos da lenda de Eneias, o qual tinha como principal atributo ser pius,
reitera a raiz cívica daquele princípio. A construção, anos mais tarde, de um
texto épico cujo alicerce é a pietas, celebrada com a ação de Júpiter de
conceder aos Romanos, como apanágio, aquela excelsa virtude, eterniza um
povo que se tornou referência para a humanidade por causa de sua singular
obediência a deveres de um cidadão verdadeiramente comprometido com a
coletividade à qual pertence. A lenda de Enéias e a crença na pietas como um
compromisso com os deuses, com a pátria e com a família possibilitam a
convicção dos romanos de que têm uma missão, de que foram escolhidos
pelos deuses para empreender o processo de humanização do mundo antigo.
O uso desse ideal missionário por César é recorrente em De Bello Gallico,
sobretudo no modo como se refere a povos afastados da província. Dessa
forma, o relevo dado àquele ideal, fundado na pietas, configura um produtivo
recurso para a execução dos anseios políticos do autor, sobretudo porque se
acha cumulada a outras ideias morais agradáveis aos romanos. É válido
marcar ainda que o general demonstra verdadeiro dever com a pátria e com a
família. O esforço gigantesco dispensado para pacificar a Gália e o
8
Dos Deveres: II. 8.26 e 28 (Res Romanae, p. 45)
9
Ibidem
10
A República: VI.16 (Res Romanae, p.31)
34
restabelecimento dos troféus de Mário, derrubados por Sila, quando se torna,
enfim, o primeiro homem de Roma, parecem comprovar isso.
Por fim, sobre o alcance de tão nobre virtude, não se deve esquecer o
modo como está eternizada no Canto VI da Eneida por meio da referência ao
padecimento no Tártaro daqueles que ofenderam não apenas esse sentimento
mas também a elementar fides. Além disso, o seu distanciamento em relação à
glória pessoal, por se tratar do cumprimento de um dever do indivíduo para
com os deuses, a pátria e a família, configura um ideal missionário, o que está
sugerido no passo a passo de César dentro da obra analisada.
Conjugada àquele célebre valor está a gloria, que tem por objetivo o
alcance do reconhecimento dos homens de bem. De certo, esse era um dos
fins a que se propôs César ao longo de seu Cursus Honorum. A sua vida
política parece ter estado pautada pelo anseio de louvor público quanto a suas
qualidades de cidadão. Cícero, nas Filipicas I. 1229, define a gloria como “A
fama pelos atos bons e grandes serviços para com a res publica, que se
comprovam, quer pelo testemunho dos homens notáveis, quer pelo da
multidão.”. Esse valor, portanto, parece ser o norteador dos planos cesáreos,
tendo em vista a essência política e social que o caracteriza e as implicações
positivas de quando é alcançado a serviço da res publica, pois está associado
à ovação e, principalmente, ao triunfo. Além disso, não está rasamente
associado à fama, pois enquanto esta se liga essencialmente à reputação, ao
que se diz de uma pessoa ou coisa, a gloria consiste em falar correntemente
de alguém com louvor.11
Para alcançá-la, no entanto, é necessário que se haja estabelecido a
honor, valor de matiz marcadamente político e também com implicações na
esfera social. Por meio da honor, um homem buscava o reconhecimento
público de suas virtudes. Pode-se dizer que a finalidade era a publicidade da
virtuosidade de um indivíduo. Assim, além de gravitas, a qual se refere a uma
conduta ilibada, era fundamental a proclamação de uma postura tida como
exemplar. Atesta-se, com isso, a aproximação entre honor e gloria. Contudo,
não se deve confundi-las. Enquanto a primeira restringe-se ao campo da
probidade, da qualidade de um homem honesto, a segunda amplifica-se e diz
11
KNOCHE, U. Vom Selbstverstandnis der Romer, páginas 25-27.
35
respeito a um homem grandioso, realizador de grandes feitos, sobretudo
aqueles em benefício da res publica.
A este ponto, torna-se produtivo destacar a noção de dignitas, bastante
próxima da de honor. Sedimentada basicamente na esfera política, possui
envolvimento com o exercício de cargos nobres na república. Para
compreender melhor o seu alcance, é preciso ater-se ao esforço empreendido
pelo romano para sobrelevar a sua dignitas.
Os historiadores modernos nos lembram que para um romano aristocrata
era uma obrigação e ponto de honra esforçar-se por manter e intensificar
a própria dignitas, defendendo-a contra ataques dos que viessem a
contestá-la. (MENDONÇA, 1999, p. 23)
Dessa forma, nota-se que a dignitas tem relações com o prestígio, com a
reputação do indivíduo. Um cidadão nobre deve criar para si uma imagem que
corresponda a de um verdadeiro romano, o qual seja cumpridor de seus
deveres e desejoso de alcançar os mais altos graus em seu Cursus Honorum.
Nesse sentido, é inevitável associar a essência dessa noção a Júlio César. A
trajetória do estadista demonstra uma preocupação pulsante com o
fortalecimento e com a dilatação de sua dignitas, tendo sido esta, ao que
parece, a mola-mestra de seu percurso. Ademais, além de motivação, foi
usada como justificativa para a guerra contra Pompeu. É em defesa de sua
dignitas que o grande general exorta suas tropas à batalha.
Na sua fala à tropa, ele a exorta a defender a honra (dignitas) e o
prestígio (existimatio) de seu comandante sob cuja direção vitoriosa
obtivera inúmeros êxitos militares e pacificara a Gália e a Germânia.
(MENDONÇA, 1999, p.22)
A excessiva apreciação da dignitas pelo general é encontrada em sua
outra importante obra, Commentarii de Bello Ciuile. No trecho: “Sibi semper
primam fuisse dignitatem uitaque potiorem. (...)”12 – Para si, a dignitas sempre
fora primordial e mais importante do que a vida. – está documentado o imenso
cuidado tido com esse grande valor, marco cultural romano. O orador Cícero
vem confirmá-lo em uma de suas epístolas: “E tudo isso ele diz fazer por amor
da dignitas”.13
Ao analisar, portanto, as bases para as ações de César narradas em
suas duas mais importantes obras, é possível perceber a distinção dada à fides
12
CAESAR, Commentarii de Bello Civuile (I-9.2), in: Mendonça, Antônio da Silveira. Bellum
Civile – A Guerra Civil, página 52.
13
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica, página 340.
36
e à dignitas, dois excelsos valores e elementos culturais romanos, algo que se
perceberá rotineiro quando está em discussão um atributo dileto para esse
povo. Em Commentarii de Bello Gallico, a primeira é a razão aparente para
alegar o ingresso de César na Guerra da Gália; em Commentarii de Bello
Ciuile, atribuem-se a dignitas a invasão à Vrbs e o consequente início da
Guerra Civil. Destarte, parece pertinente refletir se o uso daqueles dois valores
como
argumento
para
esses
livros
não
constituiria
uma
estratégia
marcadamente política adotada pelo estadista. Como resultado, o objetivo
seria, a partir de elementos cruciais à composição de um grande cidadão
romano, justificar e enaltecer suas ações, angariar simpatizantes e acentuar o
respeito alcançado.
A este ponto, é necessário pensar também o papel da auctoritas,
conceito genuinamente romano em virtude da ausência de um equivalente
exato em grego. A noção vinculada a tal conceito é de natureza intrínseca e se
desdobra por meio do peso da pessoa ou da corporação que toma uma
determinada decisão. Com isso, deduz-se que sua implicação é de natureza
política e moral, o que a associa a dignitas e confere ao seu detentor um
prestígio capaz de conduzir hordas inteiras a uma dada direção. Na obra Dos
poderes de Gneu Pompeu, Cícero demonstra o valor da auctoritas ao tratar das
ações de Pompeu para conter os avanços de Mitridates e de Tigranes na Ásia:
“E já que a auctoritas vale muito também na direção da guerra e no comando
militar, não é certamente duvidoso para ninguém que este general é quem mais
pode na matéria.”. Assim, entende-se também que esse valor está agregado a
elementos inerentes ao indivíduo, como a destreza e o talento, por exemplo.
Do mesmo modo que se pôde associá-lo ao general Pompeu, é naturalmente
possível conferi-lo a César. São diversos os recortes cênicos nos quais a figura
cesárea distingue-se na avaliação dos inimigos e se lhes interpõe à marcha.
Então, o peso e, consequentemente, o respeito existentes pavimentam os
caminhos rumo às mais diversas vitórias e às mais nobres conquistas.
Outrossim, ao rememorar a personalidade do vencedor da guerra
gaulesa, é requisito primordial a abordagem de um importante conceito: a
virtus. De natureza complexa, devido à simbiose greco-romana que a constitui,
encontra-se ordinariamente associada a honor. É válido referir que ambas
possuíam um templo dedicado a seu culto desde a Segunda Guerra Púnica e
37
estavam representadas em moedas romanas. Entretanto, Karl Büchner
esclarece que enquanto esta é exterior, aquela é interior a quem a possui.
14
Além disso, a consagração a virtus, atestada pela sua presença no escudo de
ouro do príncipe Augusto e no Arco de Tito, demonstra que o romano a sentia
como um valor fundamental ao seu povo.
Comungado com a sua correspondente grega, a aretê, aquele distinto
elemento para os romanos sofre um processo de evolução em seu significado
ao longo do tempo, sob influência da noção helênica. Assim, incorpora
acepções relativas ao campo das ações bélicas, ao das qualidades de caráter,
ao uso ajustado da palavra e ao uso literal de “virtude”, como a entendemos
modernamente. Contudo, a noção de excelência, relativa ao cumprimento do
propósito ou da função à qual o indivíduo se destina, parece bastante profícua
quando associada a César bem como, naturalmente, a ideia de força, coragem
e valentia, no que tange ao enfrentamento de adversidades. Do mesmo modo,
parece bastante acurado o tratamento que lhe é dado por Lucílio em um
fragmento apontado por Maria Helena da Rocha Pereira.
Virtus, Albino, é atribuir o verdadeiro preço às coisas no meio das quais
nos encontramos, com quem vivemos;
virtus é para um homem saber o valor de cada coisa,
virtus é saber o que para o homem é recto, o que é útil, honesto, o que é
bom, como o que é mau, o que é inútil, feio, desonesto;
virtus é saber marcar o termo e medida ao ganho,
virtus é ser capaz de fixar o valor das riquezas,
virtus é dar aquilo que por si só é devido à honra, ser adversário e
inimigo dos homens de costumes maus, e, ao invés, defensor dos
homens de costumes bons, a estes prezá-los, a estes querer-lhes bem,
ser seu amigo; e, além disso, pôr em primeiro lugar o bem da pátria, em
segundo o dos pais, e, em terceiro e último, o nosso. (PEREIRA, 2002,
p. 398)
De tradição aristocrática, por estabelecer como ordem de prioridades
primeiro a res publica, depois a família e por último o indivíduo, o dístico final
condensa o pensamento vigente entre os cidadãos que almejavam vencer os
principais obstáculos até obter notoriedade no cenário político romano. Assim,
ao ponderar os feitos de César em batalhas da guerra gaulesa e ao considerar
os principais pontos de seu projeto político, depreende-se que a virtus é mais
um valor romano o qual o general esmera-se fortemente em demonstrar, tal
como o faz em relação à fides, à pietas e à dignitas; isso porque os pontos
14
Altrömische und horazische Virtus, in: Römische Wertbegriffe, apud PEREIRA, 2002, página
381.
38
frisados por Lucílio sintetizam a trajetória cesariana, a qual parece ter sido
pautada pelo cuidado em preservar-se em um caminho que o imortalizasse na
honra e na glória e em afastar-se daquele que o destinasse a uma atuação
secundária ou ofuscada dentro do jogo político, econômico e social de Roma,
ainda que, para tanto, fosse necessária a execução de táticas as quais viessem
a ser questionadas por seus pares.
Outros importantes valores férteis no campo de associações a César os
quais requerem avaliação são a clementia e a grauitas. Quanto a esta,
entende-se que corresponde ao comportamento de um homem público
investido de dignitas. Envolvida em uma áurea que engloba a austeridade, a
retidão, o pleno domínio das faculdades de um ser e o exemplo de postura, a
grauitas culmina por ser o ideal esperado de um político romano, sendo,
portanto, na esfera política que possui maior relevância. Identificada como uma
virtude nacional por Cícero no discurso em defesa de Séstio, percebe-se estar
em oposição à levitas dos gregos. Quanto à clementia, reconhece-se estar
intrínseca a distintos personagens da história romana. Por isso, figura entre as
qualidades que sustentava a auctoritas augustana e está inevitavelmente
ligada a César, em honra de quem se erigiu um templo dedicado à Clementia
Caesaris. Atributo dotado de cunho estratégico, sobretudo em situações de
conflitos armados, pode ser usado para fins de propaganda, devido à
possibilidade de angariar a simpatia do povo. Nesse aspecto, valeu-se César
de sua clementia para tornar-se ditador e para consagrar-se em Roma. Em
virtude desse nobre predicado, ao comandante foram conferidas por Salústio a
mansidão, a misericórdia e a capacidade de dar e de perdoar. A clemência
cesárea foi também eternizada e reconhecida por Cícero em um de seus mais
célebres discursos, em defesa de Marcelo.
Tamanha mansidão, clementia tão inusitada e inaudita, tamanho
comedimento para quem está no cume do poder absoluto, uma
sensatez, finalmente, tão incrível e quase divina, não posso passá-la em
silêncio (...). E assim, Gaio César, os louvores dos teus feitos bélicos
serão certamente celebrados, não só em nossa literatura, mas na
literatura e língua de quase todos os povos, e jamais época alguma
calará os teus louvores. (Defesa de Marcelo, 1.1; 3.9, apud PEREIRA,
2002, p. 359, 360)
Assim, vislumbra-se o importante cerne político que constitui esse ilustre
apanágio romano e que serviu como base para a relação junto aos povos
dominados. Grandes imperadores utilizaram-se da clementia para manter a
39
popularidade e para garantir a governabilidade. Isso pode ser observado ao se
analisarem vultos como César, Augusto e Nero e é atestado por Sêneca, em
Da Clemência, ao sentenciar que a clementia acrescenta a honra e a
segurança dos imperantes, funciona como ornamento dos impérios e garante a
sua salvaguarda, o que a torna, portanto, honrosa para um governante. 15
Por fim, no que tange à observância dos valores romanos que
perpassam pelo projeto político de César, é primordial abordar o Mos maiorum.
Sabe-se que este corresponde ao conjunto de costumes e tradições dos
antepassados e que serve de fundamento para o modo de vida dos romanos.
Ênio indicou que o Estado Romano se apoiava nos costumes e nos varões
antigos. Assim sendo, é patente a crença de que a glória de Roma se
assentava na observância daqueles costumes e de que a educação de
qualquer nobre cidadão deveria estar pautada em um padrão de conduta
dirigido pela virtus, pela dignitas, pela gloria, associada à fides e à honor, e
pela grauitas. Além disso, um bom cidadão era detentor da clementia e da
sapientia, para que seus julgamentos não fossem guiados excessivamente pela
emoção e para que a indulgência regesse a aplicação de castigos.
O Mos maiorum representava a conjunção de elementos que favoreciam
a existência de uma sociedade equilibrada, direcionada por uma forma de
governo mais moderada. Esse éthos foi associado ao período áureo
republicano de Roma e esteve em contraste com uma aparente decadência de
costumes no primeiro século do regime imperial. De qualquer modo,
pressupunha-se o costume dos antepassados ser uma ética orientadora dos
aristocratas a qual legitimava e disciplinava suas ações bem como orientava as
práticas políticas e religiosas no Estado. Paschoud, no contexto do século IV
da era cristã, sinaliza que o respeito aos antepassados era o coração da
identidade pagã, devido ao hábito herdado de celebrar ritos para garantir a
perenidade do Estado.16 Isso evidencia a sobrevivência desse conceito através
dos tempos e ratifica a sua importância para os romanos. A valorização a ele
dada está presente nas obras dos mais cultuados autores latinos. Como
15
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica, página 363.
PASCHOUD, F. Les étapes d‟une perte d‟identité : les défenseurs du paganisme officiel face
au naufrage de leur monde (312-410). In :BARZANO, A. ; BEARZOT, C. Et al. Identità e valori
fattori di aggregazione e fattori di crisi nell’esperienza política antica. Roma: L‟Erma di
Bretschnheider, 2001. p. 236.
16
40
recurso ilustrativo, segue-se uma análise salustiana em Da Conjuração de
Catilina, destacada por Maria Helena da Rocha Pereira.
Na paz e na guerra, cultivavam-se os bons costumes; a concórdia era
máxima, e mínima a avareza; entre eles, o direito e o bem não valiam
mais pela força das leis do que pela natureza: disputas, discórdias, rixas,
exercitavam-nas com os inimigos; os cidadãos lutavam uns com os
outros em valor; nas ações de graças aos deuses eram magníficos,
parcos em casa, leais para com os amigos. Com estas duas qualidades,
a audácia na guerra, a justiça, quando a paz sobrevinha, cuidavam de si
e do Estado. (PEREIRA, 2002, p. 348)
Aproximar todos os aspectos ligados ao Mos maiorum da ação política
de César permite conjecturar a existência de uma estratégia para angariar a
simpatia dos romanos, algo que auxiliaria na conquista do maior objetivo
daquele poderoso ícone: consolidar-se como grande senhor de toda a Roma.
Logo, é natural que haja ao longo da obra estudada referências àqueles
costumes, pois a posição social desfrutada pelo autor exige a demonstração de
respeito e de ações práticas coerentes com aquilo que os seus concidadãos
consideravam adequado a um indivíduo desejoso de ser reconhecido como
verdadeiro líder, apto a guiar uma cidade-império da importância de Roma, a
qual àquela época, já se assenhorava de todo o mundo.
Igualmente, estruturar uma obra em que se narram grandes feitos, os
quais culminaram com expansões fundamentais para o crescimento e para o
prestígio experimentado por Roma no I século antes da era cristã, parece
configurar uma produtiva ação propagandista empreendida pelo autor. Por isso,
faz-se imperioso tratar de aspectos ligados à autopromoção de César na obra
Commentarii de Bello Gallico.
3.3. O discurso propagandista de César
Ao longo da história, diversos estudiosos dedicaram-se à tarefa de
analisar os commentarii de César a fim de traçar um perfil das obras, elencálas em um determinado gênero e, sobretudo, relacioná-las a um propósito de
honorificência de seu autor. Houve também aqueles que buscaram apontar
possíveis falhas históricas em seus relatos, os quais, para alguns, pertenceriam
a um estilo literário menor, carente de vigor estilístico e pobre artisticamente.
Contudo, é crucial inseri-los em seu contexto de produção, a qual está
intimamente imbricada a caracteres políticos, como, igualmente, associá-los à
41
jornada de vida de seu genitor. De modo oportuno, sobrevêm as palavras de
Jacques Gaillard:
O título Commentarius não é, assim, totalmente despropositado, na
medida em que os dois textos se destinam a trazer César como uma boa
lembrança junto da opinião romana. O que é, evidentemente, um gesto
de propaganda, embora levada a cabo com uma fabulosa habilidade, já
que, como disse um investigador moderno, em César a deformação
histórica se assemelha a uma arte. Tudo se joga no nível dos
pormenores, da maneira de dizer e de contar, sob o verniz impecável de
um estilo frio e impassível. É em vão que procuramos nestas obras o
mais ínfimo passo eivado de sectarismo, o mais leve erguer de voz, a
mais insignificante profissão de fé: César cria para si mesmo uma
legitimidade pessoal fundamentada na serena autoridade de um “homem
de situação” que avalia rigorosamente quanto um livro bem feito pode
impor uma imagem de marca bem concebida. (GAILLARD, 1992, p.77)
As considerações feitas por Gaillard indicam o viés personalista da obra,
dotado de estratégicas marcas propagandistas, as quais buscam cravejar a
figura de César na vida cotidiana e na memória dos romanos. Embora
essencialmente vistos como meros informes de feitos com intenções
documentais, os commentarii metamorfoseiam-se com o engenho virtuoso do
general, em razão da natureza política que lhes revigora. Desse modo, aquilo
que seria originalmente árido em estilo revela-se fértil ao apelar para elementos
históricos e culturais agradáveis aos seus compatriotas; aquilo que seria
primitivamente burocrático e sucinto apresenta-se singular e lúcido ao ser
construído em 3ª pessoa para fazer referência ao próprio narrador e
personagem das façanhas expostas. Com isso, conquista-se com menos
dificuldade a simpatia do povo e se trabalha no fortalecimento de um apanágio
por todos estimado: a dignitas, conforme apontam Kenney e Clausen:
La publicación de los Commentarii estaba calculada para apoyar su
demanda de gratitud a sus concidadanos y mostrar su dignitas, la
cualidad romana de la hazaña que merece reconocimiento de su gran
realización. Como hizo el Agricola de Tácito, también apelaría a la
imaginación de un público educado, fascinado por lo remoto y
desconocido, como era la Galia. (KENNEY et CLAUSEN, 1982, p. 316)
O matiz político, portanto, engendra a produção literária de César,
especialmente os Comentários, segundo se pôde observar a partir do que foi
discutido ao longo deste trabalho. Admite-se, de modo complementar, que o
traço
propagandista
é
um
importante
recurso
para
o
processo
de
autopromoção do autor, a qual funciona como um dos pilares do seu projeto.
Nesse sentido, parece adequado refletir acerca dos elementos que permitem a
sobrelevação do personagem central daqueles relatos, tendo em vista ser esse
o mecanismo que alimenta a propaganda em torno de si. Assim, é possível
42
conceber mais criticamente a sua escolha pelo governo das Gálias, por
exemplo. Com efeito, assenhorar-se de uma região que mexia com o
imaginário popular e onde, quarenta anos antes, seu tio, Caio Mário, triunfara
contra celtas e germânicos configura um estratagema magnífico. O
restabelecimento dos troféus comemorativos daquelas vitórias sinalizavam a
intenção de evocar sentimentos de simpatia à sua figura e consolidavam seu
desejo de ser um novo Mário, porém com maior poder e com prerrogativas
maiores. Comandar a Gália, então, caracteriza uma medida dotada de
marketing político, pois tem por objetivo difundir, sob aspecto favorável, a
imagem do general. Segundo Luciano Canfora, “a escolha da Gália era uma
escolha, acima de tudo, de imagem hábil e eficaz. Uma evocação do “melhor”
Mário, patrimônio de todo o “povo romano”
17”
e está associada a uma relação
frutífera de César com as populações da Gália Transpadana, por quem já havia
intercedido em favor da concessão do direito de cidadania romana.
Com igual propósito de engrandecer sua figura, o futuro ditador recorre à
dignificação de seus próprios feitos em batalha e, pontualmente, enaltece o
vigor de seus inimigos campais. Outra ação também de caráter publicitário
consiste na hábil narração sobre as campanhas realizadas na Britânia, região
até então ignorada pelos romanos. Segundo estudiosos, a deformação
realizada nos relatórios sobre essas expedições pretendia alinhar o sucesso lá
obtido àquele experimentado por Pompeu no Oriente. A preocupação quanto
ao prestígio junto à opinião pública em Roma e na Itália seria o combustível
para o cumprimento de uma operação militar tão ousada e perigosa. Há,
porém, pesquisadores que duvidam de seu verdadeiro sucesso, porquanto não
existem registros de que destacamentos militares foram deixados naquela
região ou de que os tributos imputados tenham sido alguma vez pagos. 18 Por
fim, o audacioso exercício cesáreo, o qual foi documentado por Tácito,
possibilitou a efetiva dominação latina que ocorreria cerca de cem anos mais
tarde:
“(...) de fato, o deificado Júlio César foi o primeiro romano que penetrou
na Britânia à frente dum exército: estabeleceu relações com os nativos
após derrotá-los na batalha e tornou-se dono da costa e pode ser
17
CANFORA, Luciano. Júlio César: o ditador democrático, página 124.
18
CANFORA, Luciano. Júlio César: o ditador democrático, página 144.
43
considerado que ele no-la indicou, mas não no-la entregou”. (TACITUS,
2011, p.23)
Ainda no que diz respeito às empreitadas militares e às batalhas
travadas durante a Guerra da Gália, são passíveis de associação com uma
tentativa propagandista a impassibilidade aos extremos massacres ocorridos,
não obstante às críticas dos opositores ao modelo conquistador apregoado por
César, entre os quais se projeta Catão, e a ocultação do número preciso de
inimigos abatidos. Enquanto o Senado concedia diversos dias de supplicatio
em resposta às vitórias do valoroso sobrinho de Mário, aquele austero senador
buscava alertar seus pares para o aterrador genocídio de populações gaulesas
no arrastado conflito, ao apelar para a violação dos Direitos das Gentes contra
usipetos e tecnetérios. O general, então, com uma carta insuflada de
mordacidade dirigida a seu adversário, ratifica as motivações que sustentam a
guerra gaulesa, ao passo que obtém como resposta a frase de Catão no
Senado: “bem mais que os filhos dos britanos e dos celtas, vós deveis temer
César”.19 É certo que o chefe militar tinha consciência da necessidade de
possuir um contrapeso à glória de Pompeu, haja vista o empenho demonstrado
em subjugar toda a Gália, ainda que configurassem um ônus à sua conquista a
perda e a escravização de incontáveis vidas. Plutarco menciona a soma de um
milhão de mortos mais um milhão de escravos. A submissão de tantos
indivíduos é vista por muitos contemporâneos a César como insígnia de
grandeza e aptidão. Nesse sentido, a referência a multidões de prisioneiros ou
de mortos parece mais um vestígio da tentativa de afamar o autor da obra,
tendo em vista que, com certa facilidade, isso proporcionaria a adesão de
terceiros.
Finalmente, ao abordar as ferramentas que conferem um caráter
propagandista ao discurso que fecunda Commentarii de Bello Gallico, é
imprescindível discutir alguns recursos apresentados por Rambaud em L’art de
la déformation historique dans les commentaires de César, os quais
descortinam o traquejo do general para honorificar suas ações bélicas e tornálas perenes.
Preliminarmente, compete sinalizar que César, para a composição dos
commentarii, utilizou-se de seus próprios relatos ao senado. Quanto a isso, o
19
PLUTARCO, Catão jovem (51,4), apud CANFORA, 2002, página 158.
44
manual francês supracitado esclarece que estes são apresentados sem marcas
cronológicas especiais quando passam a constar dos livros que formariam
aquelas obras e que seriam disponibilizados para os leitores. Esse mecanismo
contribui para que coexistam nelas dois estratos: o dos relatos e o dos
commentarii, embora não estejam definidos os critérios para estruturá-los.
Entende-se, então, que o relato militar se mistura aos recursos necessários a
uma composição narrativa, o que torna difícil a separação entre fato histórico e
fato narrativo, de caráter ficcional. Como consequência, eclodem nos livros
dois tons: o técnico e o pitoresco, de natureza dramática. Este último,
desprezado na estrutura dos relatórios enviados ao senado, é um ardiloso
aditivo para a imposição do ponto de vista desejado pelo general ou para o
desvio da curiosidade do leitor, pois que constitui um apelo para a sua
sensibilidade literária por meio de representações cintilantes. 20
Além disso, César constrói uma narrativa justificada, na qual apresenta a
história segundo seus próprios interesses. Para tanto, elabora um texto
carregado de elementos estimados por oradores e assentado na ênfase
apenas para batalhas que sublimariam a sua figura, sem preocupações com a
verdade histórica. Ademais, o autor promove no arranjo narrativo dos
commentarii um encadeamento das batalhas travadas, com a união de
campanhas e guerras, na busca por provar que fora forçado a atacar. Assim,
os relatos serviriam para desculpar seus eventuais fracassos e legitimar suas
iniciativas.
Ainda no que tange aos instrumentos explorados para a sua
autopromoção, o chefe romano vale-se também daquilo a que Rambaud
chama “forma aritmética de hipérbole”. O uso, portanto, de grandes cifras para
referir-se à horda de inimigos abatidos ou presos incorre em tentativa de
engrandecimento. A imprecisão numérica, em expressões como “dezenas de
milhares”, “centenas” ou “milhares”, também têm parte nesse processo. De
modo semelhante, atua a tática do “exagero por imprecisão”, com a recorrência
de quantificadores como “muito”, “bastante” e “grande”, para fins iguais de
persuasão e propaganda. Desempenha papel central, outrossim, a repetição,
devido à ostensiva multiplicação do enunciado, a fim de fixar uma ideia no
RAMBAUD, Michel. L’art de la deformation historique dans les Commentaires de César,
página 90.
20
45
leitor, algo feito, rotineiramente, contíguo a referências de matizes históricas.
Não se pode ignorar também a mais elementar reincidência na obra: a do
nome de César, o que Rambaud sentencia ser o fundamento da verdadeira
glória. 21
De
cunho
eminentemente
persuasivo
e
consequentemente
propagandista, alastram-se na obra estratégias relacionadas ao volume dos
enunciados. Rambaud assinala serem esforços para chamar a atenção do
leitor para determinado episódio. Com isso, o uso de construções sintáticas
que alongam as sentenças torna-se imprescindível. O objetivo, portanto, seria
prolongar a permanência do espectador diante de algumas ações narradas,
principalmente aquelas passíveis de glorificar a figura de César e de suas
legiões. O aumento da densidade de certas passagens dos livros era feito com
o apelo a justaposições ou a redundâncias, por meio do emprego de palavras
com sentidos próximos, ou, ainda, com a utilização de palavras antônimas.
Com assaz frequência, técnicas para o aumento de volume eram exploradas
em fragmentos que tinham nuance histórica ou que se debruçavam sobre o
impacto oriundo do contato com as diferentes culturas. Isso confirmaria não
apenas o desejo de desviar a atenção do leitor mas também a ambição por
criar em torno do nobre chefe uma áurea de erudição e de aptidão doutrinária,
essenciais para a investidura no cargo de líder único de Roma. Por fim, é
oportuno frisar que os Livros I e VII são os mais extensos de Commentarii de
Bello Gallico, exatamente porque um concentra-se em justificar a intervenção
militar ante as ações helvéticas e o outro magistralmente focaliza a dispersão
da conjuração gaulesa liderada por Vercingetórige e o derradeiro triunfo
romano para a glória eterna de seu notável general.
Componentes eficazes na empreitada para enredar o receptor da obra
são, da mesma forma, os apontamentos feitos à governança eficaz de César
nas províncias que lhe foram atribuídas. A isso, soma-se o cartaz em torno da
velocidade com a qual subjuga seus adversários ou com que constrói
aparelhos de guerra vitais para as suas vitórias. Merece relevo ainda o
investimento na ideia de que a Fortuna fazia-se a sua fiel companheira no
curso dos acontecimentos que compõem o longo período que o ilustre romano
RAMBAUD, Michel. L’art de la deformation historique dans les Commentaires de César,
página 196, 198, 200, 201 e 202.
21
46
permanece nas regiões de conflito. Como arremate, a vazão a caracteres de
feições religiosas garante a infalibilidade do ataque publicitário que distingue a
obra. De fato, César explora circunstâncias que suscitariam a crença em sua
magnânima ascendência divina, remontada a Vênus, ou que denotariam
possíveis intervenções dos deuses nas diversas pelejas executadas. Sendo
assim, não se poderia abdicar do traço supersticioso que deveria movimentar a
narrativa. Rambaud alude à preponderância de um sentimento religioso em três
diferentes momentos: no massacre aos Tigurinos, nos discursos para as
legiões e para os Helvécios e no mérito de Quinto Cícero na defesa de seu
acampamento.22
As investigações propostas evidenciam, portanto, o envergamento
divulgador que marca Commentarii de Bello Gallico e revelam um robusto pilar
de sustentação das ambições políticas de seu autor. Para consolidar o estudo
acerca delas, é pertinente analisar alguns recortes cênicos da obra, os quais
serão distribuídos na próxima seção deste trabalho.
RAMBAUD, Michel. L’art de la deformation historique dans les Commentaires de César,
páginas 250, 252, 265 e 266.
22
47
4. TRADUÇÃO E ANÁLISE DOS DISCURSOS
Esta seção do trabalho será dedicada à apresentação de fragmentos da
obra estudada a fim de tornar mais palpável o programa político de César,
abafado em uma narrativa que, a princípio, constaria apenas de meros relatos
de batalha ao Senado Romano.
4.1. Tópicos acerca da natureza do lugar e da cultura dos povos
Descrições geográficas e avaliações sobre as culturas locais são
recorrentes em Commentarii de Bello Gallico e convergem para a concepção
de um painel com representações fascinantes que elevam a figura daquele que
as narra. Os excertos seguintes salientam isso.
4.1.1. Divisão geopolítica da Gália
[I,1] Gallia est omnis divisa in partes tres, quarum unam incolunt Belgae,
aliam Aquitani, tertiam qui ipsorum lingua Celtae, nostra Galli appellantur.
Hi omnes lingua, institutis, legibus inter se differunt. Gallos ab Aquitanis
Garumna flumen, a Belgis Matrona et Sequana dividit. Horum omnium
fortissimi sunt Belgae, propterea quod a cultu atque humanitate
provinciae longissime absunt, minimeque ad eos mercatores saepe
commeant atque ea quae ad effeminandos animos pertinent important,
proximique sunt Germanis, qui trans Rhenum incolunt, quibuscum
continenter bellum gerunt. Qua de causa Helvetii quoque reliquos Gallos
virtute praecedunt, quod fere cotidianis proeliis cum Germanis
contendunt, cum aut suis finibus eos prohibent aut ipsi in eorum finibus
bellum gerunt. Eorum una pars, quam Gallos obtinere dictum est, initium
capit a flumine Rhodano, continetur Garumna flumine, Oceano, finibus
Belgarum; attingit etiam ab Sequanis et Helvetiis flumen Rhenum; vergit
ad septentriones. Belgae ab extremis Galliae finibus oriuntur; pertinent ad
inferiorem partem fluminis Rheni; spectant in septentrionem et orientem
solem. Aquitania a Garumna flumine ad Pyrenaeos montes et eam
partem Oceani quae est ad Hispaniam pertinet; spectat inter occasum
solis et septentriones. (CAESAR, 2006, p.02)
[I,1] Toda a Gália está dividida em três partes, das quais uma habitam os
Belgas, uma outra os Aquitanos, a terceira aqueles que pela língua deles
próprios são chamados Celtas; pela nossa, Gauleses. Todos estes, na
língua, nos costumes e nas leis diferem entre si. O rio Garona separa os
Gauleses dos Aquitanos; o Marne e o Sena separam os Gauleses dos
Belgas. De todos estes, os Belgas são os mais fortes, pois estão muito
afastados da educação e da civilização da província e muito raramente
os mercadores vão até eles e importam essas coisas que servem para
enfraquecer os ânimos. Além disso, estão próximos dos Germanos, que
habitam além do Reno e com quem fazem guerras continuamente. Por
causa disso, igualmente os Helvécios superam em coragem os Gauleses
restantes, porque travam com os Germanos lutas quase diárias, seja
quando os afastam de seus territórios, seja quando eles próprios fazem
guerra no território daqueles. Uma dessas partes, que se disse os
Gauleses ocuparem, começa no rio Ródano, atinge o rio Garona, o
Oceano e os territórios Belgas; chega também até o rio Reno, do lado
dos Séquanos e dos Helvécios; volta-se para as regiões setentrionais.
Os Belgas provêm dos territórios extremos da Gália; estendem-se até a
parte inferior do rio Reno; estão voltados para o norte e para o oriente. A
Aquitânia estende-se do rio Garona até os montes Pirineus e a parte do
Oceano que está junto da Hispânia; localiza-se entre o oeste e as
regiões setentrionais.
O item inaugural da obra tem o compromisso de introduzir o leitor nas
regiões de conflito. Por isso, é esperada a sua ênfase em referências à
natureza do lugar e aos atributos de quem o habita. A precisão das
informações relativas à geografia e à cultura locais atua como importante
acervo histórico e serve de base para relevantes estudos arqueológicos
contemporaneamente. Todavia, cabe frisar o diagnóstico feito por César sobre
as populações daquele território. Eram diversas quanto ao costume e à língua.
A distância em relação à província
e a necessidade de guerrear
constantemente para sobreviver tornam mais forte uma delas. A construção
desse cenário hostil e complexo parece propor um alerta aos espectadores
acerca das dificuldades que as batalhas trariam. Nesse sentido, quanto mais
impactado ficassem com a desconhecida Gália, mais valor teriam as investidas
de quem guiou Roma àquelas grandiosas conquistas.
O trabalho em torno do exótico a fim de fascinar o receptor da obra e,
consequentemente, de demonstrar as aptidões do comandante romano na
consecução de vitórias e subjugação das imensas hordas inimigas é bastante
florescente ao longo da narrativa que apresenta as diversas campanhas
militares empreendidas. Percebe-se, então, que isso revela um interessante
vestígio da inclinação política das composições elaboradas, porquanto
convergem para a ideia de que César reúne uma série de qualidades
indispensáveis a um cidadão de sua patente, desejoso de ser o único líder
entre os seus concidadãos. O advento do magnífico, seja pela fluência de
ingredientes relacionados à geografia, seja pela relacionada à cultura, é
também a tônica dos fragmentos subsequentes.
4.1.2. Costume dos Gauleses
49
[VI,13] In omni Gallia eorum hominum, qui aliquo sunt numero atque
honore, genera sunt duo. Nam plebes paene seruorum habetur loco,
quae nihil audet per se, nullo adhibetur consilio. Plerique, cum aut aere
alieno aut magnitudine tributorum aut iniuria potentiorum premuntur, sese
in seruitutem dicant nobilibus: in hos eadem omnia sunt iura, quae
dominis in servos. Sed de his duobus generibus alterum est druidum,
alterum equitum. Illi rebus diuinis intersunt, sacrificia publica ac privata
procurant, religiones interpretantur: ad hos magnus adulescentium
numerus disciplinae causa concurrit, magnoque hi sunt apud eos honore.
Nam fere de omnibus controuersiis publicis priuatisque constituunt, et, si
quod est admissum facinus, si caedes facta, si de hereditate, de finibus
controuersia est, idem decernunt, praemia poenasque constituunt; si qui
aut priuatus aut populus eorum decreto non stetit, sacrificiis interdicunt.
Haec poena apud eos est gravissima. Quibus ita est interdictum, hi
numero impiorum ac sceleratorum habentur, his omnes decedunt, aditum
sermonemque defugiunt, ne quid ex contagione incommodi accipiant,
neque his petentibus ius redditur neque honos ullus communicatur. His
autem omnibus druidibus praeest unus, qui summam inter eos habet
auctoritatem. Hoc mortuo aut si qui ex reliquis excellit dignitate succedit,
aut, si sunt plures pares, suffragio druidum, nonnumquam etiam armis de
principatu contendunt. Hi certo anni tempore in finibus Carnutum, quae
regio totius Galliae media habetur, considunt in loco consecrato. Huc
omnes undique, qui controversias habent, conueniunt eorumque decretis
iudiciisque parent. Disciplina in Britannia reperta atque inde in Galliam
translata esse existimatur, et nunc, qui diligentius eam rem cognoscere
uolunt, plerumque illo discendi causa proficiscuntur. (CAESAR, 2006,
p.334 e 336)
[VI,13] Em toda a Gália, há duas categorias desses homens que têm
alguma reputação e honra. De fato, a plebe é tida quase na condição de
servos, que nada deliberam por si, em nenhum conselho é admitida. A
maior parte, quando, ou pelo bronze alheio, ou pela magnitude dos
tributos, ou pela injustiça dos mais poderosos, é oprimida, dedica-se em
servidão aos mais nobres. Há para estes todos os mesmos direitos que
os senhores têm sobre os servos. Mas, daquelas duas categorias, uma é
dos druidas; outra, dos cavaleiros. Aqueles estão presentes nas
questões divinas, ocupam-se dos sacrifícios públicos e privados,
explicam os cultos: a este recorre um grande número de adolescentes
para instruir-se e aqueles têm junto a estes grande honra. Com efeito,
geralmente decidem sobre disputas públicas e privadas e, porque, se um
crime foi cometido, se um massacre feito, se a disputa é sobre limites ou
sobre herança, eles mesmos julgam, determinam as penas e as
indenizações; se alguém, seja cidadão comum, seja povo, não obedece
à decisão deles, proíbem dos sacrifícios. É esta entre eles a pena mais
grave. Assim, aqueles que têm a interdição, estes são tidos na conta dos
ímpios e criminosos; todos se afastam deles, evitam a conversa, a
aproximação, para que não sofram algo de prejudicial a partir do contato;
e, nem quando estes pedem, a justiça é feita, bem como honra alguma
lhe é concedida. No entanto, um, que entre eles têm a maior autoridade,
preside todos estes druidas. Morto este, ou é substituído, se algum
dentre os restantes sobressai em dignidade, ou, pelo voto dos druidas,
se há muitos iguais em mérito, algum é eleito; lutam, algumas vezes até
com armas, por causa do poder. Estes, em certo momento do ano,
reúnem-se nos limites dos Carnutos, região que é considerada a
intermediária de toda a Gália, em um local sagrado. Para este ponto, de
todas as partes, todos que possuem litígios afluem e obedecem às
sentenças e às decisões deles. Acredita-se que a doutrina tenha sido
descoberta na Britânia e, daquele lugar, tenha sido transplantada para a
Gália, e agora, aqueles que querem conhecer mais exatamente a
matéria partem para lá várias vezes a fim de aprender.
50
O capítulo inicia-se com a exposição sobre o papel social destinado à
plebe entre os gauleses: servir aos mais nobres. A sua escravização e a
ausência de representação política junto àquelas populações podem ser tidas
como uma marca do primitivismo das instituições gálicas, se comparadas às
romanas, haja vista a criação do cargo de Tribuno da Plebe ser bastante
anterior ao tempo de César. Isso somado à referência à suposta origem
britânica dos cultos praticados e ao destaque de que desfrutam os druidas na
organização daquela sociedade provocam choque e interesse. Desse modo, a
romanização daquela região tende a ser entendida como necessária, dado o
pensamento comum entre os romanos de que possuíam uma missão dessa
natureza. Ao demonstrar uma sólida lucidez da vasta cultura dos inúmeros
povos da Gália, César naturalmente é alçado ao posto de chefe ideal para o
sucesso daquela empresa. Nesse ponto, é importante ressaltar o modo como o
autor estende as sentenças que apresentam esse conteúdo, principalmente
com construções sintaticamente paralelas e com expressões semanticamente
próximas, a fim de prender o leitor àquela passagem. Com isso, os sucessos
alcançados contra aqueles que, aliados a Cimbros e Teutões, no passado,
haviam trazido graves transtornos a Roma, com a invasão à Península Itálica,
seriam um fértil mecanismo para a eterificação de sua figura, o que fortaleceria
seu projeto político.
Não se podem ignorar também o seu conhecimento sobre outros traços
culturais importantes, como a religião, e a estratégia de opor os costumes dos
gauleses e dos germanos, algo que valoriza ainda mais o triunfo das legiões
romanas e de quem as dirigia, sobretudo em função da complexidade que
distinguia aqueles povos e da dificuldade que impunham ao imperium dos
romanos.
4.1.3. Religião dos Gauleses
[VI,17] Deum maxime Mercurium colunt. Huius sunt plurima simulacra:
hunc omnium inuentorem artium ferunt, hunc uiarum atque itinerum
ducem, hunc ad quaestus pecuniae mercaturasque habere uim
maximam arbitrantur. Post hunc Apollinem et Martem et Iouem et
Mineruam. De his eandem fere, quam reliquae gentes, habent
opinionem: Apollinem morbos depellere, Mineruam operum atque
artificiorum initia tradere, Iouem imperium caelestium tenere, Martem
bella regere. Huic, cum proelio dimicare constituerunt, ea quae bello
51
ceperint plerumque deuouent: cum superauerunt, animalia capta
immolant reliquasque res in unum locum conferunt. Multis in ciuitatibus
harum rerum exstructos tumulos locis consecratis conspicari licet; neque
saepe accidit, ut neglecta quispiam religione aut capta apud se occultare
aut posita tollere auderet, grauissimumque ei rei supplicium cum cruciatu
constitutum est. (CAESAR, 2006, p.340 e 342)
[VI,17] Cultuam principalmente o deus Mercúrio. Existem muitas imagens
dele: acreditam que ele é o inventor de todas as artes, o guia das
estradas e das viagens; julgam-no ter o maior poder para questões de
dinheiro e para mercadorias. Depois dele, cultuam Apolo, Marte, Júpiter
e Minerva. Sobre estes, têm quase a mesma opinião que os povos
restantes: que Apolo afasta as doenças, que Minerva carrega os
princípios das artes e dos trabalhos, que Júpiter possui o império
celestial, que Marte rege as guerras. A este, quando decidem lutar uma
batalha, consagram aquelas coisas quem tenham obtido na guerra:
quando vencem, imolam os animais capturados e conduzem as coisas
restantes para um único lugar. Em muitas cidades, nos locais
consagrados, pode-se avistar montanhas dessas coisas; e nem com
frequência aconteceu de alguém que ousasse, ignorada a religião, ou
roubar as coisas capturadas ou destruir as depositadas; e decidiu-se a
punição mais grave para essa atitude com a tortura.
Novamente, o conhecimento de causa ergue-se como o principal
subsídio para a crença de que César é o missionário de que os romanos
precisam para verem cumprida a tarefa civilizatória que acreditavam possuir.
Apesar dos vários elementos comuns à religião romana, sobressai no
fragmento exposto o predomínio do culto a um deus em detrimento à adoração
maior ao deus soberano, Júpiter. Além disso, o fim dado aos espólios de guerra
é particular, assim como o tratamento a quem de algum modo o desvirtue. O
impacto cultural não é ostensivo, entretanto funciona de apoio à frutífera
confrontação com os teutônicos feita poucos capítulos adiante, o que servirá
para impressionar os espectadores acerca dos desafios que as batalhas
poderiam suscitar.
4.1.4. Comparação entre Gauleses e Germanos
[VI,24] Ac fuit antea tempus, cum Germanos Galli uirtute superarent, ultro
bella inferrent, propter hominum multitudinem agrique inopiam trans
Rhenum colonias mitterent. Itaque ea quae fertilissima Germaniae sunt
loca circum Hercyniam siluam, quam Eratostheni et quibusdam Graecis
fama notam esse uideo, quam illi Orcyniam appellant, Volcae Tectosages
occupauerunt atque ibi consederunt; quae gens ad hoc tempus his
sedibus sese continet summamque habet iustitiae et bellicae laudis
opinionem. Nunc quod in eadem inopia, egestate, patientia qua Germani
permanent, eodem uictu et cultu corporis utuntur; Gallis autem
prouinciarum propinquitas et transmarinarum rerum notitia multa ad
copiam atque usus largitur, paulatim adsuefacti superari multisque uicti
proeliis ne se quidem ipsi cum illis uirtute comparant. (CAESAR, 2006,
p.348 e 350)
52
[VI,24] E houve antes um tempo, quando os Gauleses superavam os
Germanos em coragem, no qual levavam a guerra espontaneamente,
enviavam colônias para além do Reno, por causa da multidão de
homens e carência de campos. Assim os Volscos e os Tectosages
ocuparam os locais que são os mais férteis da Germânia, próximo à
floresta Hercínia, a qual eu vejo ser conhecida pela fama de alguns
gregos e de Erastótenes, à qual chamavam de Orcínia, e ali se fixaram;
Essa nação, até este tempo, permanece nestes lugares e tem a suma
consideração de justiça e de louvor guerreiro. Agora, porque estão na
mesma carência, penúria e paciência em que permanecem os
Germanos, usam do mesmo cuidado e sustento do corpo; por outro lado,
a proximidade da província e o conhecimento de ações transmarinas e,
sobretudo, o uso dão abundância aos Gauleses em muitas coisas.
Paulatinamente habituados a serem superados e vencidos em muitos
combates, na verdade, eles próprios não se comparam com aqueles em
coragem.
O trecho acima parece ser uma tentativa de traçar um panorama do
processo histórico de ocupação da Gália por gauleses e germanos, agregado à
destreza bélica de ambos. Remonta-se, então, a um tempo antigo, quando
aqueles sobrepujavam estes. O ímpeto dos primeiros é ressaltado e pode ser
considerado valoroso, pois ocuparam as posições campais mais férteis do
território inimigo. Lembre-se também a referência, no Livro I, ao massacre que
impuseram ao cônsul romano Lúcio Cássio e às suas tropas em 107 a.C.,
episódio que motivou a resposta negativa à solicitação dos Helvécios para
atravessar a província romana da Gália Narbonense. Conjugado à astúcia
gaulesa está o aporte cultural, em 1ª pessoa do singular, com a menção ao
eminente grego Erastóstenes, que chamava Orcínia à floresta Hercínia. A
preferência pelo abandono da 3ª pessoa e da efusiva repetição de seu nome
parece um sobressalto bastante pontual de um aspecto de pessoalização que
assentaria a extensa e culta bagagem que o nobre romano possuía. O
fragmento, finalmente, encerra-se com o veredicto a respeito da superioridade
guerreira dos germanos, não obstante a maior civilidade dos gauleses. A
projeção dada à capacidade bélica daqueles não é razão para surpresa, a
julgar pela exaltação de seu furor e de seu engenho militar em outros
momentos da obra. O louvor às qualidades dos inimigos, o vigor destrinçador
assumido pela narrativa para apresentar seus distintivos culturais e o culto à
celeridade com a qual são derrotados surgem encadeados, o que estimula o
vulto conquistador e doutrinador de César e confere, por consequência, um tom
propagandista a suas composições. A nuança publicizante da necessidade de
romanização está discretamente colocada por meio da atestação de que os
53
gauleses são mais abundantes do que seus adversários em diversas outras
áreas, em virtude de sua proximidade com a província. Com isso, parece
possível deduzir que a dominação executada posteriormente por César
resultava em um instrumento de civilização daquela região e, sendo o general
capaz de empreendê-la de modo tão extraordinário, era razoável que suas
aspirações políticas de liderança única fossem vistas ao menos como um
desejo plausível, e não como um delírio de vaidade injustificada.
4.1.5. Descrição geográfica das Ilhas Britânicas
[V,13] Insula natura triquetra, cuius unum latus est contra Galliam. Huius
lateris alter angulus, qui est ad Cantium, quo fere omnes ex Gallia naues
appelluntur, ad orientem solem, inferior ad meridiem spectat. Hoc pertinet
circiter milia passuum quingenta. Alterum uergit ad Hispaniam atque
occidentem solem; qua ex parte est Hibernia, dimidio minor, ut
aestimatur, quam Britannia, sed pari spatio transmissus atque ex Gallia
est in Britanniam. In hoc medio cursu et insula, quae appellatur Mona:
complures praetera minores subiectae insulae existimantur, de quibus
insulis nonnuli scripserunt dies continuos triginta sub bruma esse
noctem. Nos nihil de eo percontationibus reperiebamus, nisi certis ex
aqua mensuris breuiores esse quam in continenti noctes uidebamus.
Huius est longitudo lateris, ut fert illorum opinio, septingentorum milium.
Tertium est contra septentriones; cui parti nulla est obiecta terra, sed eius
angulus lateris maxime ad Germaniam spectat. Hoc milia passuum
octingenta in longitudinem esse existimatur. Ita omnis insula est in
circuitu uiciens centum milium passuum.
[V,14] Ex his omnibus longe sunt humanissimi qui Cantium incolunt, quae
regio est maritima omnis, neque multum a Gallica differunt consuetudine.
Interiores plerique frumenta non serunt, sed lacte et carne uiuunt
pellibusque sunt uestiti. Omnes uero se Britanni uitro inficiunt, quod
caeruleum efficit colorem, atque hoc horridiores sunt in pugna aspectu;
capilloque sunt promisso atque omni parte corporis rasa praeter caput et
labrum superius. Vxores habent deni duodenique inter se communes et
maxime fratres cum fratribus parentesque cum liberis; sed qui sunt ex his
nati, eorum habentur liberi, quo primum uirgo quaeque deducta est.
(CAESAR, 2006, p. 250, 252)
[V,13] A ilha é de natureza triangular e um de seus lados está contra a
Gália. Deste lado, o outro ângulo, que está junto ao Kent, por isso
geralmente todos os navios oriundos da Gália ali aportam, está voltado
para o oriente; o inferior, para o sul. Este lado tem cerca de quinhentos
mil passos. O outro pende para a Hispânia e para o ocidente; contra
essa parte, está a Hibérnia, metade menor, como se considera, do que a
Britânia, mas o trajeto entre eles e o da Gália à Britânia é semelhante em
extensão. No meio deste caminho, há uma ilha, a qual é chamada Mona:
várias ilhas menores próximas, além disso, estima-se haver; sobre essas
ilhas, alguns escreveram ser noite trinta dias seguidos no inverno. Nada
sobre isso, com nossas interrogações, encontramos, exceto, por certos
relógios de água, que nos pareceu as noites serem mais breves do que
no continente. A longitude deste lado é, conforme a opinião deles
próprios, de setecentos mil passos. O terceiro lado está contra o norte; a
54
cuja parte nenhuma terra se interpõe, mas desse lado um ângulo está
voltado principalmente para a Germânia. Estima-se que a sua extensão
seja de oitenta mil passos. Assim, toda a ilha tem em circunferência vinte
vezes cem mil passos.
[V,14] De todos estes, os mais civilizados são os que habitam Kent,
região toda marítima, e não muito se diferem dos gauleses em costume.
A grande parte dos interiores não semeia trigo, mas do leite e da carne
vivem e vestem-se com peles. Todos os Britanos, porém, impregnam-se
com pastel, o que torna a sua cor azulada e os deixa com o mais horrível
aspecto na batalha; têm cabelos longos e todo o corpo raspado, exceto a
cabeça e o lábio superior. Dez a doze homens têm em comum as
esposas, principalmente irmãos com irmãos e pais com filhos; mas os
que delas nascem são considerados filhos daqueles que primeiro as
desposaram.
O advento do extraordinário é cultivado com a descrição detalhada do
território e com um parecer sobre a cultura local. A preocupação de César em
subsidiar a fantasia de seus conterrâneos em relação ao desconhecido é
bastante comum ao longo da obra. Isso ganha contornos mais vivazes,
entretanto, nos livros IV e V, com a especial ênfase dada à aventura romana
naquelas ilhas. O retrato espacial minuciosamente apresentado localiza o leitor
sobre as ações desenroladas e parece convidá-lo a imaginar-se no centro
daquilo que lhe é descortinado aos olhos. Além de convidativo, o relato
consolida o perfil de exímio explorador do comandante, contribui para a
massificação de seu papel de líder e o torna depositário de autoridade,
faculdades imprescindíveis a alguém com as suas ambições políticas. Embora
não tenha conquistado territórios para Roma naquela localidade, as expedições
realizadas e as relações estabelecidas devido às vitórias obtidas em combate
garantiram a formação de vínculos comerciais duradouros e inseriram a ilha em
uma zona de influência romana. Isso foi possível com a cessão do trono ao
aliado Mandubrácio, após importante triunfo sobre o rival Cassivelauno.
Quanto ao aspecto cultural, é conveniente o realce a hábitos privados
incomuns aos romanos e à práxis bélica atemorizante. O objetivo pode ser a
magnificação
da
operação
militar
realizada
e,
consequentemente,
a
impericibilidade da glória obtida com a vitória. Paralelamente, também se pode
cogitar a busca pela ratificação de uma tarefa civilizatória cabível aos romanos,
da qual o general é um grande entusiasta e de cujos efeitos se vale para
corroborar sua conduta. A extensão das frases que concretizam o conflito de
culturas surge novamente como um recurso útil ao fortalecimento dos
propósitos narrativos de seu autor. A tática de enfatizar as peculiaridades dos
55
adversários foi usada, conforme se apontou anteriormente, para retratar os
gauleses mais afastados do contato com a província e os germanos, que, por
sua ferocidade belicosa e por seus hábitos considerados degradantes,
valorizaram significativamente o êxito de César.
4.2. Tópicos acerca de eventos históricos e de exaltação a valores
O acréscimo de referentes históricos, somado a pontuais alusões a
valores distintivos dos romanos, preenche importante espaço na obra. Isso vem
acompanhado também, em certos capítulos, de uma tentativa de demonstrar
uma ampla perícia militar de César. É imperioso, por conseguinte, analisar
essas estratégias para que se proceda ao exame acurado dos pilares políticos
da narrativa elaborada.
4.2.1. Negativa aos Helvécios
[I,8] Interea ea legione quam secum habebat, militibusque qui ex
provincia conuenerant, a lacu Lemanno, qui in flumen Rhodanum influit,
ad montem Iuram, qui fines Sequanorum ab Helvetiis diuidit, milia
passuum decem nouem murum in altitudinem pedum sedecim
fossamque perducit. Eo opere perfecto praesidia disponit, castella
communit, quo facilius, si se inuito transire conarentur, prohibere possit.
Vbi ea dies quam constituerat cum legatis uenit, et legati ad eum
reuerterunt, negat se more et exemplo populi Romani posse iter ulli per
prouinciam dare et, si uim facere conentur, prohibiturum ostendit. Helvetii
ea spe deiecti nauibus, iunctis ratibusque compluribus factis, alii uadis
Rhodani, qua minima altitudo fluminis erat, nonnumquam interdiu,
saepius noctu, si perrumpere possent conati, operis munitione et militum
concursu et telis repulsi hoc conatu destiterunt. (CAESAR, 2006, p.12 e
14)
[I,8] Durante esse tempo, com a legião que tinha consigo, e com os
soldados oriundos da província que se reuniram, do lago Lemano, que
deságua no rio Ródano, até o monte Jura, que separa os limites dos
Séquanos dos Helvécios, ergue um muro de dezesseis pés de altitude e
dezenove mil passos de comprimento, protegido por um fosso. Realizada
a obra, distribui as guarnições, fortifica as praças-fortes, para que mais
facilmente, se tentassem atravessar contra a sua vontade, pudesse
proibir. Quando chega o dia que fixara com os embaixadores, e os
embaixadores a ele retornaram, diz que ele não pode, segundo o
costume e o exemplo do povo romano, dar caminho a alguém pela
província e, caso tentem fazê-lo contra a sua vontade, anuncia que
haveria de repelir. Os Helvécios, privados dessa esperança, uns com
navios, juntos às muitas jangadas feitas, outros pelos vaus do Ródano,
nos quais a profundidade era a menor, algumas vezes durante o dia,
mais frequentemente durante a noite, tentados se poderiam transpor os
obstáculos, seja pela fortificação da obra, seja pela intervenção dos
soldados, repelidos pelos dardos, desistiram dessa tentativa.
56
Em relevo, no excerto em questão, está a justificativa para a proibição
da passagem dos Helvécios pela província romana, dado que para César isso
poderia vir a representar não apenas uma ameaça à segurança da República,
como também uma grave ofensa ao imperium de Roma em toda aquela região.
Para subsidiar a decisão tomada, há a articulação prévia de todo um aparato
militar e um apelo a caracteres de matiz histórico-cultural para a sustentação
do que foi deliberado. A isso se agrega também a eficiência dos métodos de
segurança cumpridos, pois a conclusão da cena narrada enfatiza a desistência
helvética frente à habilidade de defesa desenvolvida pelo valoroso general.
Assim, fica evidente o apelo para a perícia militar de César e o cuidado em
ressaltar que as ações executadas estão em consonância com um projeto
maior: o de garantia da soberania romana e de defesa dos interesses da
República. Para tanto, não surpreende que seja esmiuçada a magnitude da
obra construída e detalhado o cenário onde isso ocorre. Esses recursos, na
verdade, apenas reforçam a nossa proposta de demonstrar que a estrutura
narrativa de Commentarii de Bello Gallico é extremamente planejada e atende
a um propósito claro de robustecimento da figura de seu autor. Os próximos
recortes cênicos sinalizam uma preocupação com a integridade da República
assim como buscam justificar a necessidade de empreender a guerra e de
tratar severamente quaisquer inimigos que ousassem atacar de alguma
maneira a honra romana.
4.2.2. Preocupações com a República
[I,10] Caesari renuntiatur Helvetiis esse in animo per agrum Sequanorum
et Aeduorum iter in Santonum fines facere, qui non longe a Tolosatium
finibus absunt, quae ciuitas est in prouincia. Id si fieret, intellegebat
magno cum periculo prouinciae futurum, ut homines bellicosos, populi
Romani inimicos, locis patentibus maximeque frumentariis finitimos
haberet. Ob eas causas ei munitioni quam fecerat T. Labienum legatum
praeficit; ipse in Italiam magnis itineribus contendit duasque ibi legiones
conscribit et tres, quae circum Aquileiam hiemabant, ex hibernis educit
et, qua proximum iter in ulteriorem Galliam per Alpes erat, cum his
quinque legionibus ire contendit. Ibi Ceutrones et Graioceli et Caturiges
locis superioribus occupatis itinere exercitum prohibere conantur.
Compluribus his proeliis pulsis ab Ocelo, quod est oppidum citerioris
prouinciae extremum, in fines Vocontiorum ulterioris prouinciae die
septimo peruenit; inde in Allobrogum fines, ab Allobrogibus in
Segusiauos exercitum ducit. Hi sunt extra prouinciam trans Rhodanum
primi. (CAESAR, 2006, p.14 e 16)
57
[I,10] Expõe-se a César que os Helvécios tencionavam fazer caminho
pelo campo dos Séquanos e dos Éduos, para os limites dos Santões,
que não distam muito dos limites dos Tolosates, cidade que está na
província. Se isso acontecesse, entendia haver de ser com grande
perigo para a província que teria homens belicosos, inimigos do povo
romano, vizinhos a locais vastos principalmente em cereais. Por esses
motivos, coloca à frente da fortificação que fizera o lugar-tenente T.
Labieno; ele próprio marcha para a Itália rapidamente e ali alista duas
legiões, retira dos quartéis de inverno três, que nos arredores de Aquileia
invernavam, e para a Gália Ulterior, por onde o caminho pelos Alpes era
mais curto, com estas cinco legiões, dirige-se. Ali, os Ceutrões, os
Graios, os Ocelos e os Canturiges, ocupados os lugares mais altos,
tentam impedir o exército no caminho. Repelidos estes em muitos
combates, de Ocelo, que é a extrema cidade da província citerior, aos
limites dos Vocôncios, que é a extrema cidade da província ulterior, vai
em sete dias; dali conduz o exército para os limites dos Alógrobos; dos
Alógrobos, para os Segusiavos. Estes são os primeiros fora da província,
além do Ródano.
As linhas acima apresentam elementos bastante caros ao público
romano, a saber: a demonstração de preocupação com a segurança da
República e a referência aos diversos povos existentes na região da Gália, os
quais, devido à imensa diversidade, tornavam a plena dominação daquela
localidade pelos romanos um antigo e constante problema. Além disso, mais
uma vez, há um apelo à manifestação de profundo conhecimento da geografia
do lugar, o que reveste a narrativa de um conteúdo de relevância para os seus
contemporâneos como também para a posteridade e abastece o enredo com
recursos voltados para o deleite. Igualmente, não se deve perder de vista que
os capítulos inaugurais do texto cesariano preocupam-se em legitimar as
batalhas nas quais os exércitos romanos se encontram envolvidos. Dessa
forma,
é
suficientemente
natural
que
se
espere
uma
busca
pela
imprescindibilidade da guerra gaulesa, seja por meio de um argumento acerca
da seguridade republicana, seja por meio de uma resposta a um ataque leviano
por parte do inimigo. Independentemente da estratégia de construção da linha
argumentativa, o objetivo maior parece facilmente palpável: incutir no leitor a
indubitável capacidade de César para ser o gestor único de Roma. Nesse
sentido, não causa espanto a velocidade atribuída a diversos feitos de guerra
do exército comandado pelo general. São magistrais aparatos de defesa
construídos em um tempo escasso, grandes e desafiadoras distâncias
percorridas em pouquíssimos dias e muitos combates realizados contra
incontáveis povos. A ligeireza com a qual percorre tantos feitos pouco permite
ao leitor a reflexão cuidadosa sobre eles. A rapidez, então, que contamina a
58
narrativa parece ter como propósito também suscitar a impressão de uma
incrível habilidade e uma inabalável eficácia para a resolução de problemas.
4.2.3. Grande ofensa a Roma
[III,9] Veneti reliquaeque item ciuitates cognito Caesaris aduentu, simul
quod quantum in se facinus admisissent intellegebant, legatos, quod
nomen ad omnes nationes sanctum inuiolatumque semper fuisset,
retentos ab se et in uincla coniectos, pro magnitudine periculi bellum
parare et maxime ea quae ad usum nauium pertinent prouidere instituunt,
hoc maiore spe, quod multum natura loci confidebant. (CAESAR, 2006,
p.148 e 150)
[III,9] Os Vênetos e, do mesmo modo, as demais cidades, conhecida a
chegada de César, ao mesmo tempo, porque entendiam quão grande
crime tinham cometido contra ele, retendo consigo e lançando às
cadeias embaixadores, nome que para todas as nações sempre fora
santo e inviolável, resolvem preparar a guerra segundo a grandeza do
perigo e providenciar principalmente as coisas que se referem ao uso de
navios, com maior esperança, porque confiavam muito na natureza do
lugar.
A violação da honra romana com o tratamento dado aos seus
embaixadores é apresentada como razão para uma resposta severa aos
inimigos, dado tamanho ultraje sofrido. Os cuidados dos adversários na
preparação da batalha e os seus profundos conhecimentos sobre a natureza
local reforçam as dificuldades enfrentadas pelos romanos, mas tornam
imperioso, do mesmo modo, uma ação exemplar à ofensa cometida, conforme
demonstra a cena abaixo.
[III,10] Erant hae difficultates belli gerendi quas supra ostendimus, sed
multa Caesarem tamen ad id bellum incitabant: iniuriae retentorum
equitum Romanorum, rebellio facta post deditionem, defectio datis
obsidibus, tot ciuitatum coniuratio, in primis, ne hac parte neglecta
reliquae nationes sibi idem licere arbitrarentur. Itaque cum intellegeret
omnes fere Gallos nouis rebus studere et ad bellum mobiliter celeriterque
excitari, omnes autem homines natura libertati studere et condicionem
seruitutis odisse, priusquam plures ciuitates conspirarent, partiendum sibi
ac latius distribuendum exercitum putauit. (CAESAR, 2006, 150 e 152)
[III,10] Eram estas as dificuldades de fazer a guerra que apresentamos
acima, mas muitas coisas incitavam César, todavia, a essa guerra: as
ofensas aos cavaleiros romanos presos, a rebelião feita após a rendição,
a deserção, depois de dados os reféns, a conspiração de tantas cidades
e, principalmente, negligenciada esta parte, que os povos restantes
julgassem lhes ser lícito fazer o mesmo. Por isso, porque compreendia
que quase todos os gauleses desejavam um novo estado de coisas e
eram excitados viva e rapidamente para a guerra, todos os homens, por
outro lado, desejavam a liberdade por natureza e odiavam a condição de
escravidão, julgou que deveria dividir para si e distribuir mais vastamente
o exército, antes que muitas cidades conspirassem.
59
Estão apontados os fundamentos para um tratamento mais áspero às
cidades conspiradoras, sendo a violação dos direitos dos cavaleiros e
embaixadores romanos o principal. A preocupação em desbaratar e
desestimular possíveis conjurações também sobressai no capítulo em questão
e está em consonância com o dever de zelar pelo bem-estar da República. Há,
portanto, uma ação que resgata a medida a ser dada à pietas, dileto valor
romano outrora apontado em nossas análises. Da mesma forma, são feitas
considerações sobre a flexibilidade do caráter dos gauleses, apresentados
como homens de pouca austeridade e, por esse motivo, de ânimo imprevisível.
Os juízos de valor que imbuíam estereótipos aos mais diversos povos contra os
quais lutou atuam como importante instrumento de adesão ao ideal civilizatório
manifestado por César em sua obra e contribuem para a construção de um
quadro degradante e pitoresco a ser incutido na mente de seus leitores. Assim,
percebe-se que a narrativa é constituída por um recorrente processo cíclico de
ludíbrio de seu receptor, pois que apela para emblemáticos valores romanos,
para uma admirável ideologia civilizadora e para o alçamento de seu autor para
o posto de líder inconfundível e extremamente capacitado para o cumprimento
do destino de Roma. Por isso, não tende a parecer temerária, ao se considerar
os propósitos de César, a aparente impiedade destinada aos inimigos em
certos episódios que compõem o conjunto de fatos da duradoura guerra
gaulesa. O próximo extrato ilustra isso.
[III, 16] Itaque se suaque omnia Caesari dediderunt. In quos eo grauius
Caesar uindicandum statuit, quo diligentius in reliquum tempus a barbaris
ius legatorum conseruaretur. Itaque omni senatu necato reliquos sub
corona uendidit. (CAESAR, 2006, p.160)
[III,16] Por isso, entregaram-se a César, assim como todas as suas
coisas. César resolveu puni-los mais severamente, a fim de que o direito
dos embaixadores fosse mais diligentemente conservado pelos bárbaros
durante o tempo restante. Portanto, morto todo o senado, vendeu os
restantes como escravos.
Está claramente descortinada a severidade com que foram tratados os
inimigos, em virtude do atentado aos direitos dos embaixadores. Conforme
sinalizam as próprias palavras do general, o objetivo é garantir um diligente
respeito a uma figura que sempre foi considerada inviolável junto a todas as
nações. Não é involuntário, por isso, o uso pejorativo do termo “bárbaros”,
alinhado ao atraso moral experimentado por tais povos. Com isso, não é
desmedida também a pena capital imposta a todo o senado e a subjugação à
60
condição de escravos atribuída a todos os restantes. Parece que, nesse caso,
a meta é instituir um exemplo de austeridade a ser seguido e validar a atuação
romana na guerra, a qual esporadicamente fora questionada por eminentes
concidadãos opositores de César.
4.2.4. Iniciativa de César
A referência a episódios históricos subsidia a demonstração de uma
admirável habilidade militar e contribui para o fortalecimento do projeto
dissecado em nossas análises. O próximo recorte as corrobora.
[I,33] His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit
pollicitusque est sibi eam rem curae futuram: magnam se habere spem et
beneficio suo et auctoritate adductum Ariouistum finem iniuriis facturum.
Hac oratione habita concilium dimisit. Et secundum ea multae res eum
hortabantur quare sibi eam rem cogitandam et suscipiendam putaret, in
primis, quod Aeduos, fratres consanguineosque saepe numero a senatu
appellatos, in seruitute atque in dicione uidebat Germanorum teneri
eorumque obsides esse apud Ariouistum ac Sequanos intellegebat; quod
in tanto imperio populi Romani turpissimum sibi et rei publicae esse
arbitrabatur. Paulatim autem Germanos consuescere Rhenum transire et
in Galliam magnam eorum multitudinem uenire populo Romano
periculosum uidebat; neque sibi homines feros ac barbaros temperaturos
existimabat quin, cum omnem Galliam occupauissent, ut ante Cimbri
Teutonique fecissent, in prouinciam exirent atque inde in Italiam
contenderent, praesertim cum Sequanos a prouincia nostra Rhodanus
diuideret; quibus rebus quam maturrime occurrendum putabat. Ipse
autem Ariouistus tantos sibi spiritus, tantam arrogantiam sumpserat, ut
ferendus non uideretur. (CAESAR, 2006, p. 50 e 52)
[1,33] Conhecidas estas coisas, César fortaleceu com palavras os
ânimos dos gauleses e prometeu tomar para si a direção daquela
situação: ele tinha grande esperança de que, convencido por seu favor e
por sua autoridade, Ariovisto haveria de pôr fim às injustiças. Proferido
este discurso, encerrou a assembleia. E depois disso, muitas coisas o
impeliam a julgar que o negócio deveria ser ponderado por si e que
deveria ser tomado a seu cargo, primeiramente porque via os Éduos,
muitas vezes chamados irmãos e consanguíneos pelo Senado, sob o
jugo e a direção dos Germanos, e sabia que os reféns daqueles estavam
em poder de Ariovisto e dos Séquanos; o que acreditava ser muito
vergonhoso para si e para a República, dado o tamanho poder do povo
romano. Por outro lado, via ser perigoso para o povo romano os
Germanos, paulatinamente, acostumarem-se a atravessarem o Reno e
vir uma grande multidão deles para a Gália; e nem pensava que homens
ferozes e bárbaros haveriam de conter-se, que, tendo ocupado toda a
Gália, como os Cimbros e os Teutões tinham feito, não sairiam para a
província e dali se estenderiam para a Itália, sobretudo porque apenas o
Ródano separaria de nossa província os Séquanos; considerava que
deveria lutar contra estas coisas o quanto antes. O próprio Ariovisto,
todavia, tomara para si tanto orgulho e tamanha arrogância, que não era
de suportar.
61
O trecho reproduzido contém importantes recursos retóricos que atuam
no revigoramento dos anseios políticos do experimentado comandante. Assim,
as palavras embebidas de confiança acerca de sua influência para o desfecho
da contenda existente, as manifestações da pietas e da fides, respectivamente
em relação à preocupação com a segurança da República, devido a um
possível avanço bárbaro, e à vergonhosa situação dos Éduos, aliados
históricos do povo romano, somadas à referência a um fato histórico de
extrema relevância, constituem elementos que atuam de modo consistente na
construção da figura de um valoroso líder, o qual reúne caracteres
imprescindíveis para o exercício da liderança.
Além disso, é válido ressaltar a estratégia de enaltecimento dos atributos
bélicos dos inimigos, por meio de uma comparação com o memorável feito de
Cimbros e Teutões, povos que aterrorizaram os romanos com a invasão à
Península Itálica no tempo de Mário. César via nos Germanos o mesmo ímpeto
ameaçador daqueles ousados povos que no passado tantos transtornos
trouxeram a Roma. A lembrança desse episódio não é aleatória, haja vista que
contribui para a propagação da ideia de que os feitos do general na guerra
gaulesa foram extraordinários, contra adversários de grande valor guerreiro e
para a proteção e exaltação da República Romana. O tratamento dado à
circunstância também merece menção, pois é tida como vergonhosa tanto para
o general como para Roma. Parece saltar aos olhos, nesse caso, a tentativa
de, mais uma vez, justificar as ações do exército no conflito e de provar para os
seus compatriotas o compromisso assumido pela firme defesa da república e
de seus aliados.
4.3. Tópicos acerca da perícia militar de César
Os capítulos seguintes certificam a virtude militar cesariana e buscam,
do mesmo modo que nos anteriormente apresentados, içar o distinto romano
ao patamar de representante absoluto da República e missionário ideal para a
execução do processo de romanização do mundo antigo.
4.3.1. O terror domina os soldados romanos
62
[I,39] Dum paucos dies ad Vesontionem rei frumentariae commeatusque
causa moratur, ex percontatione nostrorum uocibusque Gallorum ac
mercatorum, qui ingenti magnitudine corporum Germanos, incredibili
uirtute atque exercitatione in armis esse praedicabant (saepe numero
sese cum his congressos ne uultum quidem atque aciem oculorum
dicebant ferre potuisse), tantus subito timor omnem exercitum occupauit
ut non mediocriter omnium mentes animosque perturbaret. Hic primum
ortus est a tribunis militum, praefectis, reliquisque, qui ex urbe amicitiae
causa Caesarem secuti non magnum in re militari usum habebant:
quorum alius alia causa illata, quam sibi ad proficiscendum necessariam
esse diceret, petebat, ut eius uoluntate discedere liceret; nonnulli pudore
adducti, ut timoris suspicionem uitarent, remanebant. Hi neque uultum
fingere neque interdum lacrimas tenere poterant: abditi in tabernaculis
aut suum fatum querebantur, aut cum familiaribus suis commune
periculum miserabantur. Vulgo totis castris testamenta obsignabantur.
Horum uocibus ac timore paulatim etiam ei, qui magnum in castris usum
habebant, milites centurionesque quique equitatui praeerant,
perturbabantur. Qui se ex his minus timidos existimari uolebant, non se
hostem uereri, sed angustias itineris et magnitudinem siluarum, quae
intercederent inter ipsos atque Ariouistum, aut rem frumentariam, ut satis
commode supportari posset, timere dicebant. Nonnulli etiam Caesari
nuntiabant, cum castra moueri ac signa ferri iussisset, non fore dicto
audientes milites neque propter timorem signa laturos. (CAESAR, 2006,
p. 58 e 60)
[I,39] Durante o tempo em que se demora alguns dias em Vesonção,
devido ao transportes de víveres e de trigo, pelo questionamento dos
nossos e as conversas dos gauleses e dos mercadores, que informavam
serem os germanos de uma desmedida magnitude de corpos e de
incrível valor e destreza nas armas (diziam que, muitas vezes contra eles
combatendo, não podiam sequer suportar o semblante e a vivacidade
dos olhos), de súbito, tamanho temor tomou todo o exército, que
grandemente perturbaria os ânimos e os pensamentos de todos. Nasceu
este, primeiramente, dos tribunos militares, dos comandantes e dos
restantes, os quais, seguindo César desde a cidade por causa da
amizade, não possuíam grande experiência na arte militar: cada um dos
quais, apresentada outra razão, que dizia ser-lhe necessária para partir,
pedia que lhe fosse lícito retirar-se, com o seu consentimento; alguns,
levados pela vergonha, permaneciam para que evitassem a suspeita de
temor. Estes nem podiam fingir o semblante nem, às vezes, conter as
lágrimas: recolhidos nas tendas, ora lamentavam o seu destino, ora
lastimavam com seus familiares o perigo comum. Indistintamente, em
todos os acampamentos, testamentos eram assinados. Aos poucos,
também, os soldados e centuriões e aqueles que comandavam a
cavalaria, que possuíam grande experiência nos acampamentos, eram
perturbados pelas conversas e pelo medo destes. Os que dentre estes
queriam ser considerados menos receosos, diziam não temer o inimigo,
mas os desfiladeiros do caminho e a magnitude das florestas, os quais
se interpusessem entre eles próprios e Ariovisto, ou diziam temer a
provisão de trigo, como poderia ser transportado bastante comodamente.
Alguns, ainda, anunciavam a César que, embora ordenasse que os
acampamentos fossem movidos e os estandartes levantados, os
soldados que ouvissem a ordem não haveriam de obedecer nem
haveriam de levantar os estandartes, devido ao medo.
O capítulo acima constrói um surpreendente cenário de adversidades
para a ação militar de César, com relevo para a afamada destreza germânica e
para o inusitado pavor romano. A atenção dispensada à estrutura psicológica
63
do exército, por meio da minuciosa descrição dos ânimos de seus membros,
tende a causar o mesmo temor e a mesma preocupação nos leitores da
narrativa. Igualmente, parece haver a tentativa de ilustrar uma situação de
insucesso praticamente irreversível, a qual apenas um líder da envergadura de
César poderia reverter. O uso de períodos longos torna o capítulo inchado e
prende o receptor ao texto, assim como cria uma imensa expectativa em
relação aos fatos subsequentes. A referência ao ânimo profundamente abalado
dos soldados, os quais pareciam certos de suas mortes, ressalta a grandeza da
ação de César para superar esse desafio. Isso porque os romanos sempre
foram conhecidos por sua imensa coragem, por sua distinta honra e por seu
intenso vigor militar. Logo, a aparente desconstrução desse estereótipo torna
mais louvável a posterior vitória alcançada ante os germanos e sobreleva a
figura do general romano, cravejando-a no imaginário de seus conterrâneos.
A próxima cena revela o modo célebre pelo qual César restabelece o
desejo de guerrear dos seus comandados, algo que valoriza ainda mais a
estratégia de desestruturação da bravura romana adotada anteriormente.
4.3.2. Restabelecimento do ânimo dos soldados romanos
[I,40] Haec cum animaduertisset, conuocato consilio omniumque ordinum
ad id consilium adhibitis centurionibus uehementer eos incusauit:
primum, quod aut quam in partem aut quo consilio ducerentur sibi
quaerendum aut cogitandum putarent. Ariouistum se consule cupidissime
populi Romani amicitiam appetisse: cur hunc tam temere quisquam ab
officio discessurum iudicaret? Sibi quidem persuaderi cognitis suis
postulatis atque aequitate condicionum perspecta eum neque suam
neque populi Romani gratiam repudiaturum. Quod si furore atque
amentia impulsum bellum intulisset, quid tandem uererentur? Aut cur de
sua uirtute aut de ipsius diligentia desperarent? Factum eius hostis
periculum patrum nostrorum memoria, cum Cimbris et Teutonis a Gaio
Mario pulsis non minorem laudem exercitus quam ipse imperator meritus
uidebatur; factum etiam nuper in Italia seruili tumultu, quos tamen aliquid
usus ac disciplina, quae a nobis accepissent, subleuarent. Ex quo iudicari
posse, quantum haberet in se boni constantia, propterea quod, quos
aliquamdiu inermes sine causa timuissent, hos postea armatos ac
uictores superassent. Denique hos esse eosdem, quibuscum saepe
numero Helvetii congressi non solum in suis, sed etiam in illorum finibus
plerumque superarint, qui tamen pares esse nostro exercitui non
potuerint. Si quos aduersum proelium et fuga Gallorum commoueret, hos,
si quaererent, reperire posse diuturnitate belli defatigatis Gallis
Ariouistum, cum multos menses castris se ac paludibus tenuisset neque
sui potestatem fecisset, desperantes iam de pugna et dispersos subito
adortum magis ratione et consilio quam uirtute uicisse. Cui rationi contra
homines barbaros atque imperitos locus fuisset, hac ne ipsum quidem
sperare nostros exercitus capi posse. Qui suum timorem in rei
64
frumentariae simulationem angustiasque itineris conferrent, facere
arroganter, cum aut de officio imperatoris desperare aut praescribere
uiderentur. Haec sibi esse curae: frumentum Sequanos, Leucos,
Lingones subministrare, iamque esse in agris frumenta matura; de itinere
ipsos breui tempore iudicaturos. Quod non fore dicto audientes neque
signa laturi dicantur, nihil se ea re commoueri: scire enim, quibuscumque
exercitus dicto audiens non fuerit, aut male re gesta fortunam defuisse,
aut aliquo facinore comperto auaritiam esse conuictam: suam
innocentiam perpetua uita, felicitatem Helvetiorum bello esse
perspectam. Itaque se quod in longiorem diem collaturus fuisset
repraesentaturum et proxima nocte de quarta uigilia castra moturum, ut
quam primum intellegere posset, utrum apud eos pudor atque officium an
timor ualeret. Quod si praeterea nemo sequatur, tamen se cum sola
decima legione iturum, de qua non dubitet, sibique eam praetoriam
cohortem futuram. Huic legioni Caesar et indulserat praecipue et propter
uirtutem confidebat maxime. (CAESAR, 2006, p.60 e 62)
[I,40] Tendo notado estas coisas, convocada uma assembleia e a ela
admitidos os centuriões de todas as ordens, acusou-os veementemente:
primeiramente, porque imaginavam que deveriam ponderar ou procurar
saber para qual região ou com qual deliberação seriam conduzidos por
ele. Sendo ele cônsul, Ariovisto tinha desejado muito avidamente a
amizade do povo romano: por que alguém pensaria que este haveria de
romper de modo tão inconsequente com suas obrigações? Na verdade,
ele estava convencido, conhecidas suas postulações e manifestada a
equidade das condições, de que Ariovisto não haveria de rejeitar a sua
gratidão, tampouco a do povo romano. Porém, se impelido pelo furor e
pela loucura, tivesse levado a guerra, o que temeriam, afinal? Por que
não contariam com seu valor ou com o zelo dele próprio? A experiência
desses inimigos fora testada no tempo de nossos pais, quando Cimbros
e Teutões foram expulsos por Gaio Mário e o exército parecia ter
merecido um louvor não menor que o do próprio imperador; também, há
pouco, fora testada na Itália, em uma rebelião de escravos, a quem, em
certa medida, todavia, ajudariam a destreza e a disciplina, que tinham
recebido de nós. A partir disso, pode-se avaliar o quanto de bom tinha
em si a constância, porque àqueles que, desarmados, durante algum
tempo, sem motivo, tinham temido, posteriormente armados e vitoriosos,
tinha-os superado. Finalmente, eram estes os mesmos contra os quais
os Helvécios, variadas vezes, tinham combatido, tendo vencido não
apenas em seus territórios, mas também nos territórios daqueles, os
quais, entretanto, não puderam ser iguais ao nosso exército. Se a
alguns impressionava o combate infeliz e a fuga dos Gauleses, eles, se
quisessem, poderiam verificar que, esgotados os gauleses pela duração
da guerra, Ariovisto os vencera mais por cálculo e astúcia do que por
valor, tendo permanecido muitos meses nos acampamentos e nos
pântanos e não permitindo a alguém atacá-lo. Ele próprio certamente
não esperava que nossos exércitos pudessem ser surpreendidos por
esta artimanha, a qual logrou êxito em razão do lugar e por ter sido
contra homens bárbaros e inexperientes. Aqueles que atribuíam o seu
temor à suposta falta de suprimentos e aos desafios do caminho faziam
com arrogância, parecendo ou duvidar da destreza do general ou
prescrever o seu dever. Estas coisas estavam ao seu cuidado: os
Séquanos, os Leucos e os Liugões forneceriam o pão, e os trigos já
estavam maduros nos campos; acerca do caminho, em breve tempo,
eles próprios haveriam de julgar. Quanto a não obedecerem ao que
fosse ordenado e a não levantarem os estandartes, isso em nada o
abalava: sabia, de fato, que a todos aqueles a quem o exército não tenha
obedecido, ou lhes faltara sorte, por mal gerida a guerra, ou, descoberto
algum crime, fora reconhecida a avareza: a sua virtude fora demonstrada
durante toda a sua vida, a sua sorte, provada na guerra dos Helvécios.
65
Por isso, aquilo que demandaria um tempo maior, resolveu-se que
haveria de executar imediatamente; e na próxima noite, a partir da quarta
vigília, haveria de mover os acampamentos, a fim de que pudesse saber
o quanto antes se junto a eles valeria mais a honra e o dever ou o temor.
Quanto a isso, se, ainda, ninguém o seguisse, marcharia, todavia,
apenas com a 10ª legião, da qual não duvidava, e a qual seria para ele
uma corte pretoriana. César não só tratava com distinção esta legião
como também confiava nela ao máximo, por causa de seu valor.
O ponto inicial do capítulo assinala um investimento na necessidade da
forte confiança que deve nortear a relação entre os comandados e o seu
comandante. Assim, César aponta serem infundadas as especulações a
respeito do direcionamento e do desfecho da guerra. Em vista disso, resgata
episódios históricos relevantes para a restauração do ímpeto dos seus
militares. A oportuna menção ao período de seu consulado, quando se
manifestou o grande desejo de Ariovisto pela amizade do povo romano,
agregada à reafirmação de seu zelo pelo exército, constitui a primeira ação
para o revigoramento do ânimo dos combatentes. Em seguida, o comentário
sobre a glória alcançada pelas tropas de Mário no exitoso embate contra os
povos invasores, considerada tão grandiosa quanto a do próprio general,
descortina a intenção de arruinar o mito sobre a intensidade guerreira dos
germanos, tão temida naquele momento pelos romanos. Por isso, são
recordadas as batalhas bem-sucedidas, em que os latinos contribuíram,
inclusive, para o aperfeiçoamento da tática daqueles inimigos. As vitórias dos
Helvécios
sobre
aqueles
adversários
também
são
peças
da
linha
argumentativa criada, assim como a inexperiência dos gauleses, fator
determinante para a derrota por eles experimentada. Como os primeiros foram
superados magistralmente por esses mesmos soldados, sob a condução do
próprio César, e porque os últimos eram bárbaros, resta evidente a busca por
provar que não há motivo para fobias e que o triunfo é perfeitamente possível.
A enumeração das provisões e a serenidade demonstrada diante das prováveis
deserções pavimentam um desfecho bastante motivador para o discurso. Por
conseguinte, ganha evidência uma síntese das qualidades demonstradas pelo
general ao longo de toda a sua trajetória, as quais o livrariam de uma avareza
profundamente prejudicial à condução das legiões. Do mesmo modo, a
convocação ao cumprimento do dever e à observância da honra como
expediente contra o temor funciona instrumentalmente para reavivar a avidez
bélica dos legionários. Estratégia derradeira, a exaltação à 10ª legião romana é
66
a centelha que permite inflamar o exército por completo, haja vista o estímulo
tácito à comprovação de virtudes provocado por tal ação. O esforço dispensado
por cada um, então, para impressionar o general garante não somente o
sucesso no campo de batalha, mas também coopera para a consolidação da
lendária habilidade militar de César no imaginário popular.
4.3.3. Um novo ímpeto para guerrear
[I,41] Hac oratione habita mirum in modum conuersae sunt omnium
mentes, summaque alacritas et cupiditas belli gerendi innata est,
princepsque decima legio per tribunos militum ei gratias egit, quod de se
optimum iudicium fecisset, seque esse ad bellum gerendum
paratissimam confirmauit. Deinde reliquae legiones cum tribunis militum
et primorum ordinum centurionibus egerunt, uti Caesari satis facerent: se
neque umquam dubitasse neque timuisse neque de summa belli suum
iudicium sed imperatoris esse existimauisse. (CAESAR, 2006, p.64 e 66)
[I,41] Proferido este discurso, de modo admirável transformaram-se os
ânimos de todos, e o maior ardor e desejo de guerrear nasceu, e a
décima legião foi a primeira, por meio dos tribunos militares, a render
graças a César, porque havia feito de si um ótimo parecer, e confirmou
estar preparadíssima para pelejar. Em seguida, as demais legiões
articularam-se com os tribunos militares e com os centuriões das
primeiras filas para darem satisfação a César: “que eles nunca tinham
duvidado, nem tinham temido ou sequer tinham julgado ser deles o
comando da guerra, mas sim do general.
As linhas acima confirmam a engenhosidade de César para recapturar a
confiança dos soldados e para assegurar a unidade das legiões sob seu
comando. Quanto à estrutura narrativa, tem-se o apelo para a sensibilidade do
leitor devido à apresentação de um cenário eminentemente adverso em um
capítulo anterior, seguido de sua magnífica transformação no capítulo seguinte.
A transição da profunda dificuldade para a elevada glória materializa o espectro
de Virtus do general, o que concorre para a consolidação de seu poder de
liderança no imaginário dos romanos. A manifestação de reconhecimento
acerca do responsável pelo comando da guerra e o pedido de desculpas ao
comandante assinalam o bom resultado alcançado por meio da exortação feita.
Os fragmentos seguintes reforçam a importância da conclamação ao combate
para o conseguimento de triunfos. Além disso, expõem circunstâncias
desfavoráveis para os romanos nas quais se fez necessária a intervenção
direta de César, mediante uma corajosa atuação na frente de batalha.
[II,21] Milites non longiore oratione cohortatus, quam uti suae pristinae
uirtutis memoriam retinerent neu perturbarentur animo hostiumque
67
impetum fortiter sustinerent, quod non longius hostes aberant quam quo
telum adici posset, proelii committendi signum dedit. Atque in alteram
item cohortandi causa profectus pugnantibus occurrit. Temporis tanta fuit
exiguitas hostiumque tam paratus ad dimicandum animus, ut non modo
ad insignia accommodanda, sed etiam ad galeas induendas scutisque
tegimenta detrahenda tempus defuerit. Quam quisque ab opere in
partem casu deuenit quaeque prima signa conspexit, ad haec constitit,
ne in quaerendis suis pugnandi tempus dimitteret. (CAESAR, 2006,
p.114 e 116)
[II,21] Exortando os soldados com um discurso não muito longo, para
que guardassem a lembrança de seu antigo valor, não se perturbassem
no ânimo e sustivessem o ímpeto dos inimigos, porque estes não se
encontravam mais longe do que para onde um dardo pudesse ser
atirado, deu ordem para iniciar o combate. E avançando para outra parte
a fim de igualmente exortá-la, correu ao encontro dos que lutavam.
Tamanha foi a exiguidade do tempo e o ânimo dos inimigos tão
preparado para combater, que não só faltou tempo para acomodar as
insígnias do exército como também para colocar os capacetes e retirar a
proteção aos escudos.
Novamente, a motivação atua como fator decisivo para os rumos do
combate. O esforço pelo refazimento do ânimo dos soldados fundamenta o
excerto exposto e está aliado a um discurso agradável a qualquer romano: o da
constante utilidade de se recordar o antigo valor desse povo. A temeridade
suscitada pela escassez de tempo para uma cuidadosa organização da
atuação em batalha coloca-se mais uma vez como um desafio à destreza
militar de César, a qual será o eixo arrebatador do próximo trecho.
4.3.4. Uma grande demonstração de virtude
[II,25] Caesar ab decimae legionis cohortatione ad dextrum cornu
profectus, ubi suos urgeri signisque in unum locum collatis duodecimae
legionis confertos milites sibi ipsos ad pugnam esse impedimento uidit,
quartae cohortis omnibus centurionibus occisis signiferoque interfecto,
signo amisso, reliquarum cohortium omnibus fere centurionibus aut
uulneratis aut occisis, in his primipilo P. Sextio Baculo, fortissimo uiro,
multis grauibusque uulneribus confecto, ut iam se sustinere non posset,
reliquos esse tardiores et nonnullos ab nouissimis deserto loco proelio
excedere ac tela uitare, hostes neque a fronte ex inferiore loco subeuntes
intermittere et ab utroque latere instare et rem esse in angusto uidit
neque ullum esse subsidium, quod submitti posset, scuto ab nouissimis
uni militi detracto, quod ipse eo sine scuto uenerat, in primam aciem
processit centurionibusque nominatim appellatis reliquos cohortatus
milites signa inferre et manipulos laxare iussit, quo facilius gladiis uti
possent. Cuius aduentu spe illata militibus ac redintegrato animo, cum
pro se quisque in conspectu imperatoris etiam in extremis suis rebus
operam nauare cuperet, paulum hostium impetus tardatus est. (CAESAR,
2006, p.120 e 122)
[II,25] César, depois da exortação à décima legião, passou para a ala
direita, onde, reunidos os estandartes da duodécima legião em um único
local, viu os seus serem apertados e os soldados, amontoados,
68
causarem eles próprios impedimento a si para a luta. Vendo que
estavam mortos todos os centuriões da quarta corte, morto o portabandeira, perdido o estandarte, ou mortos ou feridos quase todos os
centuriões das cortes restantes, entre estes o primipilar P. Séxtio Baculo,
homem fortíssimo, atingido por muitas e graves feridas, de modo que já
não podia se sustentar, vendo que os restantes estavam mais remissos
e que alguns da retaguarda, abandonando o local, retiravam-se do
combate e evitavam os dardos; vendo que os inimigos que subiam da
parte frontal, a partir de um local inferior, não deixavam de avançar e de
atacar por um e outro lado; vendo que as coisas estavam em um ponto
delicado e que não havia nenhum corpo auxiliar que pudesse ser
enviado, subtraído o escudo a um soldado da retaguarda, porque ele
próprio tinha vindo sem escudo, avançou para a primeira linha e,
chamados os centuriões pelo nome, exortando os demais soldados,
ordenou afrouxar os manípulos e atacar, para que mais facilmente
pudessem fazer uso das espadas. Com a chegada deste, levada a
esperança aos soldados e restabelecido o ânimo, porque cada um, além
disso, desejasse mostrar serviço à vista do general, em uma situação
extrema, retardou-se um pouco o ímpeto dos inimigos.
Está patente a construção de um quadro assustadoramente grave para a
salvaguarda de todos os membros do exército e do próprio general. A
enumeração de tantas dificuldades e a contabilização de tantas mortes,
inclusive a de um integrante reconhecido por seu valor, alicerçam a
composição dessa passagem. Esse processo possibilita um posterior
enaltecimento da figura de César, em consequência da importância do triunfo
obtido. Com isso, nota-se um claro movimento propagandista, sobretudo pela
referencia à grande metamorfose do ânimo dos combatentes a partir das ações
de seu comandante em uma situação tão extrema. O incentivo ao combate, a
participação na primeira linha de batalha sem arma defensiva e a genuína
coragem são os elementos típicos de uma narrativa ficcional a fim de estruturar
um enredo pautado no extraordinário. Tem-se, portanto, uma obra que, apesar
de se enquadrar em um gênero estéril no que tange à inventividade,
caracteriza-se pela transcendência a modelos prévios, algo razoável para o
intento político escamoteado em sua trama. O investimento na formulação de
painéis plenamente desfavoráveis, desconstruídos pela intervenção decisiva e
brilhante do nobre líder, almeja acentuar a competência bélica deste e,
consequentemente, elevar a sua reputação junto a seu povo. Para isso,
contribuem outra vez a impessoalidade do discurso, a ausência de marcas
cronológicas especiais e a impassibilidade diante de perigosas campanhas
militares.
4.4. Tópicos acerca da valorização do inimigo
69
As últimas análises visam expor de que maneira a técnica de exaltação
das faculdades dos adversários colabora para o fortalecimento dos ideais
políticos de César. De fato, a catalogação de circunstâncias nas quais se
constatava o imenso valor dos oponentes fertiliza a ideia de que apenas César,
por causa de sua estirpe e inegável engenho, poderia obter o comando da
árdua tarefa de anexação da Gália ao poderio de Roma. A glória colossal
experimentada em função das vitórias conquistadas aproxima-o de sua
fundamental meta: tornar-se o líder máximo dos romanos.
4.4.1 O grande valor bélico dos Nérvios
[II,27] Horum aduentu tanta rerum commutatio est facta, ut nostri etiam
qui uulneribus confecti procubuissent, scutis innixi proelium
redintegrarent; tum calones perterritos hostes conspicati etiam inermes
armatis occurrerunt; equites uero, ut turpitudinem fugae uirtute delerent,
omnibus in locis pugnant quo se legionariis militibus praeferrent. At
hostes etiam in extrema spe salutis tantam uirtutem praestiterunt, ut, cum
primi eorum cecidissent, proximi iacentibus insisterent atque ex eorum
corporibus pugnarent; his deiectis et coaceruatis cadaueribus, qui
superessent, ut ex tumulo, tela in nostros conicerent et pila intercepta
remitterent: ut non nequiquam tantae uirtutis homines iudicari deberet
ausos esse transire latissimum flumen, ascendere altissimas ripas, subire
iniquissimum locum; quae facilia ex difficillimis animi magnitudo
redegerat. (CAESAR, 2006, p.122 e 124)
[II,27] Com a chegada destes, houve uma tamanha transformação das
coisas que os nossos, até aqueles que destruídos pelas feridas tinham
tombado, apoiados nos escudos, recomeçavam o combate; então, os
criados, mesmo desarmados, vendo os inimigos atemorizados,
atacaram-nos armados; os cavaleiros, na verdade, para que apagassem
a torpeza da fuga com o valor, combatiam em todos os lugares para que
excedessem os soldados legionários. Mas os inimigos também
demonstraram tamanho valor na extrema esperança de se salvarem que,
porque os primeiros deles tivessem caído, apoiavam-se sobre os que
jaziam e lutavam sobre os corpos deles, derrubados estes e amontoados
os cadáveres, aqueles que sobreviviam, como de uma colina, atiravam
dardos contra os nossos e relançavam os dardos interceptados: de modo
que não se deve julgar que, em vão, homens de tanto valor ousariam
atravessar um rio tão largo, escalar montanhas tão altas, subir um lugar
muito acidentado; essas coisas que a grandeza do ânimo tinham tornado
de tão difíceis, fáceis.
O extrato apresentado celebra o ardor guerreiro dos adversários,
contudo reitera a força do discurso exortativo de César, destacado em seções
anteriores. Os desdobramentos narrativos da batalha ilustrada estão fundados
na busca por um deslumbramento em relação à bravura dos romanos diante de
tamanha adversidade. Essa fascinação causada pelo derradeiro esforço das
legiões para conter o avanço oponente é essencial para que o processo de
70
valorização do inimigo tenha um grande impacto. Assim, não é inconsciente a
preliminar menção ao restabelecimento do ânimo dos soldados, os quais,
apoiados em seus escudos, retomaram a batalha. Igualmente, o empenho dos
cavaleiros para superar os legionários e para demonstrar grande virtude
acentua o rumo extraordinário que fomenta a cena descrita. Dessa forma, a
atenção dispensada à habilidade militar dos Nérvios é algo complementar aos
recursos textuais usados, os quais objetivam ressaltar a imensa dedicação dos
romanos àquele combate. Agregados, consolidam o propósito de sugerir que a
guerra da Gália exigia de César uma capacidade de liderança excepcional e
representava uma meta de especial interesse para a perenidade de Roma.
Cabe ressaltar o modo como é demonstrado o predicado bélico dos rivais. A
elaboração de sentenças regidas por um matiz poético é evidente e enseja um
encantador traço inventivo. Essa inundação lírica é escassa na obra e surge
em situações pontuais, a fim de modelar o espírito dos seus receptores. O
autor, então, descortina, inicialmente, fatos sabidamente aprazíveis a seus
leitores e, em seguida, arremata o capítulo com a exposição de eventos guiada
pelo sublime. Os admiráveis feitos daquele povo obstinado são relatados com
uma imensa carga de respeito. A vitória romana se torna, por isso, ainda mais
emblemática e abastece o projeto político do comandante por diferentes vias:
pela comprovação, mais uma vez, de sua imensurável arte militar e pela
sugestão da vasta complexidade do conflito. Ambas, contudo, atuam em um
movimento para o engrandecimento de César, o que lhes confere um caráter
fundamentalmente propagandista. As palavras que encerram celebremente o
presente episódio sustentam as análises feitas, pois mostram o que a grandeza
do ânimo é capaz de superar, não obstante a aparente intransponível
dificuldade.
4.4.2 Ascendência de Vercingetórige
[VII, 4] Simili ratione ibi Vercingetorix, Celtilli filius, Aruernus, summae
potentiae adulescens, cuius pater principatum Galliae totius obtinuerat et
ob eam causam, quod regnum appetebat, ab ciuitate erat interfectus,
conuocatis suis clientibus facile incendit. Cognito eius consilio ad arma
concurritur. Prohibetur ab Gobannitione, patruo suo, reliquisque
principibus, qui hanc temptandam fortunam non existimabant; expellitur
ex oppido Gergouia; non destitit tamen atque in agris habet dilectum
egentium ac perditorum. Hac coacta manu, quoscumque adit ex ciuitate
ad suam sententiam perducit; hortatur ut communis libertatis causa arma
capiant, magnisque coactis copiis aduersarios suos a quibus paulo ante
71
erat eiectus expellit ex ciuitate. Rex ab suis appellatur. Dimittit quoque
uersus legationes; obtestatur ut in fide maneant. Celeriter sibi Senones,
Parisios, Pictones, Cadurcos, Turonos, Aulercos, Lemouices, Andos
reliquosque omnes qui Oceanum attingunt adiungit: omnium consensu
ad eum defertur imperium. Qua oblata potestate omnibus his ciuitatibus
obsides imperat, certum numerum militum ad se celeriter adduci iubet,
armorum quantum quaeque ciuitas domi quodque ante tempus efficiat
constituit; in primis equitatui studet. Summae diligentiae summam imperi
seueritatem addit; magnitudine supplici dubitantes cogit. Nam maiore
commisso delicto igni atque omnibus tormentis necat, leuiore de causa
auribus desectis aut singulis effossis oculis domum remittit, ut sint reliquis
documento et magnitudine poenae perterreant alios. (CAESAR, 2006,
p.384 e 386)
[VII, 4] Pelo mesmo motivo aí Vercingetórige, filho de Celtilo, arverno,
jovem do mais elevado poder, cujo pai tinha obtido o domínio de toda a
Gália e, por esta razão – porque ambicionava o reinado – tinha sido
morto pelos cidadãos, tendo convocado seus clientes, facilmente
inflamou-os. Conhecida a sua resolução, corre-se para as armas. É
impedido por Gobanicião, seu tio, e pelos chefes restantes, que não
achavam que essa sorte devesse ser tentada; é expulso da cidade de
Gergóvia; não desiste, contudo, e nos campos faz o alistamento de
homens indigentes e arruinados. Reunida essa tropa, conquista para sua
causa todos aqueles dentre os cidadãos que ele encontra; exorta para
que peguem as armas em defesa da liberdade comum e, tendo reunido
muitas tropas, expulsa da cidade seus adversários, pelos quais tinha
sido banido pouco tempo antes. É aclamado rei pelos seus
simpatizantes. Envia também embaixadores a eles; roga que
permaneçam na lealdade. Rapidamente, coloca junto a si os Senones,
os Parísios, os Pictones, os Cadurcos, os Turonos, os Aulercos, os
Lemovices, os Andos e todos os restantes que tocam o oceano; com o
consentimento de todos, o poder é concedido a ele. Oferecido este
poder, exige reféns de todas estas cidades, ordena que um número
exato de soldados seja conduzido rapidamente até ele, estabelece
quantas armas cada cidade deve produzir em seu território e antes de
qual data; dedica atenção especial principalmente à cavalaria. À mais
intensa dedicação, ele acrescenta a maior severidade do comando;
reúne os indecisos através do rigor do castigo. De fato, cometido um
delito mais grave, ele mata pelo fogo e por todos os suplícios; por um
motivo mais leve, tendo cortado as orelhas ou furado um olho, manda de
volta para casa para que sirvam de exemplo aos restantes e para que
aterrorizem os outros pelo rigor da pena.
O item se inicia com a definição do perfil de Vercingetórige. É pertinente
mencionar a alusão à sua ascendência nobre e a seu poder de manipulação
sobre os gauleses. Isso se soma ao reconhecimento acerca da extrema
habilidade de comando do adversário, o que o torna ainda mais ameaçador.
Diferentemente, no entanto, de um mero processo de valorização e de
reconhecimento das virtudes dos adversários feitos anteriormente, há no
corrente excerto a identificação de um genuíno líder, capaz de mobilizar
multidões para a consecução de fins previamente estabelecidos. Todos os
combates feitos até aquele momento não haviam erigido a figura de qualquer
comandante que pudesse sequer ser aproximado da nobreza de César. Nesse
72
sentido, Vercingetórige constitui um dado novo, pois conjuga a tenacidade dos
inimigos ao comando estratégico de legiões. A sua habilidade exortativa
alimenta um movimento insurgente que demandou dos romanos uma
gigantesca dedicação para debelá-lo e que ameaçou consideravelmente a
consagração cesárea na região. Além disso, semelhante à maneira com que os
feitos do eminente romano são narrados, imprimindo-se uma velocidade com a
qual, de modo impressionante, os êxitos são alcançados, o sucesso do chefe
gaulês para comungar os diversos povos daquela localidade é igualmente
espantoso. Logo, parece bastante manifesta a diligência a partir da qual é
revelada a natureza do oponente, a fim de sobrevalorizá-lo e identicamente
proporcionar o atingimento de resultados pretendidos em episódios anteriores,
a saber: apropriar-se de um discurso propagandista que torna etérea a figura
do glorioso representante romano, em razão das decisivas vitórias obtidas,
cultuar sua perícia militar e alçá-lo ao patamar de timoneiro absoluto dos
destinos de Roma.
Por fim, as últimas palavras a respeito do direcionamento dado pelo
adversário ao movimento que comanda encerram a necessidade da
intervenção romana na Gália. A severidade do caudilho gaulês em relação a
seus aliados e subordinados denota um matiz tirano em seu perfil. Assim
sendo, a atuação de César veste-se de caracteres combativos louvados por
seu povo, tão marcado na memória pela perversa tirania de Sila. Outra vez, o
propósito de romanização é sutilmente evocado, afinal o terror provocado pelas
graves punições instituídas por Vercingetórige é passível de atribuição a
indivíduos bárbaros e carentes de urbanidade, cabendo aos romanos, por isso,
materializados na figura de César, civilizá-los. Resta evidente, então, que ao
discurso de exaltação da virtude guerreira do inimigo acrescenta-se o de
urgência do cumprimento da missão dos romanos. Ambos, todavia, confluem
para o intento último de tonificação do vulto do estimado general.
73
5. CONCLUSÃO
A trajetória de César foi marcada por acontecimentos que habitam o
imaginário da humanidade ainda no cenário contemporâneo. O posto de
destaque que o valoroso general ocupou na Antiguidade foi paulatinamente
galgado, tendo sido a sua habilidade no manejo da palavra um recurso
fundamental para os triunfos experimentados. Toda a sua formação intelectual,
portanto, foi decisiva para que a sua incontestável arte militar se tornasse o
principal distintivo de sua personalidade.
O exame a que se dedicou o presente trabalho permitiu não apenas
diagnosticar a existência de grandes aspirações políticas no eixo narrativo de
Commentarii de Bello Gallico. Permitiu também identificar os pilares que as
sustentam e que posteriormente creditaram ao grande vencedor do conflito o
comando absoluto do imperium de Roma. Para a cidade, significou mais uma
anexação a seu já vasto horizonte. Para César, um avanço significativo para o
cumprimento de seu grande objetivo.
Ademais, foi possível observar a transformação empreendida pelo autor
no gênero commentarius, uma modalidade encerrada em uma subclasse da
historiografia romana e de antecedência grega. A aridez típica de um texto que
se propõe a relatar ações ao Senado cede lugar a uma composição que, em
variados momentos, é contaminada por um matiz poético e ficcional capaz de
atribuir a seu articulador o poder de modelar fatos históricos de acordo com
suas conveniências e ambições. Para tanto, a adesão à linguagem impessoal e
a repetição do próprio nome ante cada episódio magnífico e marcante das
batalhas da guerra são artifícios bastante produtivos e atendem ao expediente
da propaganda. Não obstante a vocação para as armas fosse mais gritante, o
talento artístico de César não pode ser subestimado, sobretudo porque é a sua
competência também como escritor que possibilita amplificar o alcance de seus
memoráveis feitos como militar.
A remodelagem dos fatos minimizou os reveses que ameaçaram o seu
triunfo final e esteve associada à incorporação magistral de incontáveis
elementos agradáveis ao grande público romano. Conforme se almejou
demonstrar, a narrativa construída está assentada no uso de recursos que
atuam de modo cíclico para o fortalecimento político de César. As repetidas
marcas de caráter histórico e a constante obediência e apologia a valores
morais emblemáticos colocam-se como técnicas determinantes para que o
sobrinho de Mário seja visto como um predestinado para a efetivação da
lendária missão atribuída a seu povo.
Os duros nove anos de combate em solo gaulês aparentemente lhe
relegaram certo ostracismo em relação à dinâmica da política em Roma. Então,
tornava-se intensamente necessário fazer-se presente no quotidiano dos
cidadãos, bem como igualar-se em prestígio a Pompeu, àquela época muito
aclamado por todos devido a seu êxito no Oriente. A estratégia adotada foi a de
sugerir que as escaramuças na Gália eram excessivamente impetuosas e
complexas e os inimigos, bárbaros ferozes e de ilimitada virtude beligerante.
Com isso, elevar a altíssimos graus os adversários parece ser, na verdade, um
louvor ao próprio general romano, uma vez que, após a apresentação das mais
embaraçosas dificuldades, a sua intervenção saneava os campos onde quase
se viram manchadas a honra e a glória dos romanos. Isso porque a adulação
ao inimigo suscita a exigência de que um líder ainda mais valoroso atue para
garantir a segurança da República e o respeito à sua primorosa história. Assim,
o enredo firma-se como uma manifesta proposta de celebração a César e de
cravejamento de sua figura na vida política da cidade.
Parece irrefutável, portanto, que o projeto político subentendido em
Commentarii de Bello Gallico possui fundamentos dignos de uma valiosa
reflexão. A incorporação de um discurso pautado no respeito a fatos históricos
relevantes e na veneração a valores notoriamente simbólicos, associada a uma
militância propagandista e a uma recodificação da linguagem empregada,
integra a tentativa de provar que o seu difusor é o cidadão mais apto a conduzir
Roma ao absoluto império do mundo antigo. O investimento em seu potencial
missionário, com a inserção de dados chocantes da cultura dos diversos povos
daquela região, é também um recurso útil para favorecer a consecução dos
objetivos referidos. Por consequência, César brinda seus conterrâneos com as
incríveis vitórias conquistadas e com uma brilhante narrativa para eternizá-las.
As suas composições ajudaram a posteridade a dimensionar a grandeza do
ícone em que o excepcional comandante se transformou. Do mesmo modo,
permitiram que, independente dos desdobramentos do pós-guerra, fosse
plantada na mente das pessoas uma pretensa única verdade: a de que César
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foi um cidadão profundamente comprometido com aquilo que se julgava dever
ser a verdadeira essência do homem romano.
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Victor de Oliveira Freitas