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O projecto luz à lupa
Por: Mário Caeiro | Designer e docente na ESAD.CR
LIGHT BLADE
Um Lâmina de Luz atinge o Património
uma obra que é obra
A arte do céu
Alguns artistas, no dealbar da contemporaneidade (a
viragem comunicacional e contextual no início dos anos
60), assumem a obsessão de lidar com o infinito do céu,
traduzindo emoções sublimes, complexas, em objectos
artísticos, isto é, artefactos culturais que traduzem e
incorporam o tema do céu nos seus dispositivos, e o
introduzem nos jogos conceptuais que propõem. Nos
casos mais extremos, isto é, mais decididamente cósmicos no alcance das propostas, esses criadores levamnos a experimentar o firmamento – um outro termo para
dizer o céu, mas que já sugere uma abóbada e menos o
infinito cósmico – como uma espécie de texto gigante,
impossível de apreender mas passível de ser reproduzido
Desenho técnico (vista, planta, secções)
Desenho técnico (pormenor construtivo)
Somos seres cósmicos, relativos ao Universo.
O céu que nos protege é o mesmo que pode esperar,
e sobretudo o que, desde a noite dos tempos, nos espanta
ou nos aterroriza, como no-lo recordam os medos
da infância – quem não se lembra da cena dos trovões
em The Sound of Music?
nas formas da arte. Seja pela cor – as gamas de azuis,
de brancos, de laranjas, roxos ou vermelhos, e claro,
negros, que conhecemos também da pintura –, seja
por uma apropriação ‘materialista’ dos próprios factos
celestes, objectivamente integrados em obras de arte
total. Neste segundo caso incluem-se naturalmente
os expoentes da chamada
Escola de Los Angeles – de
James Turrel a Nancy Holt,
passando pelo célebre
Lightning Field de Walter
de Maria, exemplos célebres – ambos profundos
conhecedores e divulgadores da magia celeste em
todas as suas vertentes,
not the least espirituais.
Walter de Maria será o
caso mais emblemático da
apropriação material do
céu em toda a sua dynamis e espectacularidade,
uma vez que, como um
pequenos deus contemporâneo, ‘rouba’ os raios ao
próprio firmamento. Lighting Field (1977) é um ícone
da land art, uma peça raramente vista mas certamente
hiper-citada, em que o momento hiper-fugaz dos trovões
no deserto do Novo México são os actores principais
numa encenação da natureza que torna esta obra, porventura, das mais imponderáveis da história.
Em Itália, o raio da peça
Entretanto, a história não se faz apenas das fugas para
a frente, radicalizações da estética, as revoluções formais da vanguarda. Devemos prestar atenção também
aos sucessivos momentos de consolidação cultural, às
vezes longe dos holofotes da moda. Itália é um país
onde esta tradição é rica e constante, facto a que não é
alheia a relação dos italianos com o seu passado incomensuravelmente rico ao nível da arte, da arquitectura
e do urbanismo. Mais do que noutros países em que
o património é desvalorizado, até porque é tratado ora
com excesso de zelo proteccionista, ora com desleixo
cultural extremo, raiando a ignorância dos próprios
valores, em Itália temos inúmeros exemplos de uma arte
pública atenta ao passado mas virada para a superação
experimental das dificuldades de relação entre formas
de arte de épocas diferentes. A atenção ao fundamental
não conduz necessariamente ao fundamentalismo.
Fotomontagem (aproximação à tridimensionalidade)
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Desenhando o néon (Nicola e Leonardo Schilirò)
Render (primeira imagem ‘fotográfica’)
Em História da Arte como História da Cidade, Giulio
Carlo Argan aponta caminhos, diversos e muitos
largamente inexplorados (por exemplo em Portugal).
Assim como, hoje, uma curadora e investigadora como
Gisella Gellini (ver. IP, n. 11, Março 2008), amplamente
conhecedora quer da Escola Americana da arte da luz,
quer das neo-vanguardas italianas, é um exemplo de
rigor conceptual, formal na proposição de artefactos
artísticos na cidade histórica. Gellini segue aliás uma
tradição – italiana – rica mas relativamente desvalorizada, a da arte pública institucional, tendendo para
a vanguarda estética mas cuidadosamente integrada
no património. É uma tradição que naturalmente só
poderia vir de um país com o património edificado que
a Itália tem (sendo ‘obrigada’ a preservá-lo e ao mesmo
tempo a revitalizá-lo).
É nestes termos que proponho à atenção a última
peça permanente de Nicola Evangelisti (n. 1972), que
precisamente é uma lâmina de luz apontada a esse céu
infinito que nos abraça todas as noites e todos os dias.
E que estabelece com as arcadas de um edifício histórico
(Villa Reale, Milão), uma relação fascinante. Talvez ela
nos aponte pelo menos uma das vias luminosas para a
light art em Portugal.
A obra é sítio-específica, realizada por ocasião do Salone
del Mobile que integra a Feira Euroluce. Dirigiram o projecto Gisella Gellini e Olívia Spatola, com patrocínio da
cidade de Milão e do Consulado Britânico, que na mesma
altura promoveu a exposição British Design Embassy.
Sinergias que passaram pela parceria com a galeria de
arte contemporânea PaciArte e coordenação técnica e
produção da empresa de iluminação Neon Stile.
O tema
Em Light Blade, salta à vista o traçar luminoso de um
relâmpago. A luz, ainda que capturada numa forma geométrica e obviamente estática no seu desenho, irrompe
no nosso campo visual com a energia de um poderoso
fenómeno atmosférico. Dificilmente, como já vimos,
poderia uma obra de luz ter ressonâncias mais arcaicas
na sua temática, como se estivéssemos a ser recordados
que os relâmpagos de hoje são os mesmos de ontem
e de amanhã, e os mesmos em diferentes partes do
mundo e em diferentes modos de vida. A mesma fugaz
companhia, violenta e fascinante, aqui ‘controlada’ para
ser mantida no confinamento do objecto estético e, no
limite, decorativo.
Primeira imagem – a obra
Dito isto, de que maneira a estrutura física que suporta o
conceito e lhe dá corpo, incorpora aquela dimensão iconográfica? De que forma o homo faber captura e domina
a força cósmica incontrolável do raio e a integra no seu
quotidiano urbano? Como traduz a sua ousadia na forma
urbana? Nas escassas obras de arte pública de Evangelisti (é um artista jovem que tem feito essencialmente
exposições indoor, apenas recentemente expandindo
a sua acção para a cidade), nessa singela definição
simplesmente geométrica do objecto escultórico. E que
aqui é também a introdução de um factor de alteridade,
a de um corpo estranho que, na era da desmaterialização digital, é pelo contrário presença material concreta,
carregada de luz, cor, movimento e energia.
Através desta solução simples, que vive antes do mais
da escala adequada, o artista como que aceita os limites
da sua produtividade e, estoicamente, o que faz é fazer
coincidir o plano do objecto – a artificialidade de uma
estrutura geométrica cuja superfície é espelhada – e o
plano da imagem. A simplicidade das formas ‘puras’ e
a complexidade do acontecimento natural (o seu resto,
que é o desenho). O triângulo do saber humano enquadra
assim, mas também delimita (no seu alcance), o poder
da natureza.
Integração – O efeito da peça
Durante o dia, esta obra comporta-se de uma maneira.
No crepúsculo, de outra. Noite dentro, de outra ainda.
Ao amanhecer, o ciclo recomeça. De dia a obra reflecte a
nossa presença, funciona como um espelho (explorando
os efeitos de transparência e de desdobramento do
espaço proporcionado pelos espelhos). A anoitecer, as
marcas do artifício diluem-se na noite cósmica – mas
também, como sublinho, na noite urbana, do edificado,
da arquitectura.
E é aqui que começa o brilho da solução formal que a
instalação da peça propõe – fruto de uma decisão colectiva entre artista, comissária, galerista e responsáveis
culturais da cidade de Milão. Todas as notas avançadas
Colocando os topos em aço espelhado (Nicola Donatella
e Leonardo Schilirò com o artista, na Neon Stile,
em Bolonha)
até aqui sofrem aqui um twist muito preciso, o que, no
domínio da linguagem da arte urbana é, no fundo, a arte
do diálogo da obra de arte com a sua inscrição no tecido
urbano. O domínio físico da sua retórica.
Em Light Blade, o ethos de atenção fascinada ao
fenómeno da natureza encontra-se com o logos da integração subtil, mas decidida, do objecto na arquitectura
O Artista por si próprio
O gesto simbólico do meu trabalho tende a
construir o espaço tecendo a luz.
Em geral, trabalho a duas dimensões, procurando soluções para conseguir uma ilusória
tridimensionalidade através de efeitos ópticos. Isto leva-me a definir os meus trabalhos
como estruturas espaciais.
Frequentemente, perguntam-me se o meu trabalho pode ser classificado como pintura ou
escultura: em certo sentido, é sempre escultura luminosa. O padrão da luz em superfícies
curvas é um paradoxo que, em matemática,
é confirmado pela teoria da relatividade. O
percurso caótico e não perpendicular da luz
é a minha fonte de inspiração. Criar algo a
partir dos padrões caóticos é uma hipótese
de trabalho para irmos alem da figuração e
penetrarmos noutras dimensões que são colocadas pela ciência mas não percepcionadas
pelo olho humano.
Nicola Evangelisti
Entrevista a Clara Lovisetti in
www.lightingacademy.org/news.php?pcode=0000000529
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uma obra que é obra
A peça montada (foto de dia, perspectivas de dentro e de fora das arcadas)
A noite cai (equilíbrio das luminosidades natural e artificial)
no caso, de uma ‘lâmina de luz’, de ângulos violentos e
presente indelével, nas arcadas de um edifício histórico,
o Villa Reale, na Via Palestro, em Milão. Para o autor, a
peça ecoa a verve interpelativa de Marinetti, chefe-defila dos Futuristas – é un’azione violenta sull’architettura
storica. O resultado, ao nível da comunicação, passa
então, já não apenas pela positiva experiência quotidiana, prolongada pela arte, de um fenómeno fugaz do
quotidiano cósmico; já não apenas pela sugestão da
relação entre forma (triangular) e conteúdo (o traçado
luminoso), mas sim, num suplemento de interesse estético característico da arte genuinamente pública, pelo
efeito emblemático da sua integração na arquitectura.
Isto, é, a ‘obra’ de Evangelisti – que na galeria já era
dotada do seu discurso próprio – passa para outro
NOTA TÉCNICA
A noite adensa-se (a peça afirma-se)
patamar de complexidade. O que não é incompatível,
pelo contrário, é potenciado, pela absoluta simplicidade
e objectividade da operação – a colocação da peça por
forma a criar a ilusão perceptiva de atravessamento (dos
pilares das arcadas pela estrutura).
Depois, há a leveza aparente dos materiais (a nobreza
do espelho veio sempre dessa dimensão de desmaterialização das imagens concretas no plano impossível
do reflexo), que contestam a gravidade e a lógica da
nossa habitual relação com a arquitectura – afinal, não
fazendo sentido acreditarmos que aquela lâmina atravessa a pedra, é aquilo que os nossos olhos nos dizem
que está a acontecer… a suspensão do juízo que esta
peça inequivocamente provoca é parte central do seu
charme como provocação dos hábitos patrimoniais…
Light Blade consiste em componentes de aço inoxidável ocos, cuja superfície é perfurada por forma a deixar passar
a luz interior de ambos os lados (através de um difusor frontal em plexiglas). No interior, a ‘velha’ tecnologia do néon
– luminosidade dinâmica – continua a proporcionar todo o charme da inovação, tornada possível e sublinhada pelo
rigor com que, hoje, é possível recortar metal com uma plotter vectorial.
Em suma – o acontecimento
A forma como Light Blade interrompe a imagem feita da
arquitectura é o seu feito estético. É esse (e)feito que
cria uma continuidade muito contemporânea (mas ainda
Grega!), entre o espaço interno e externo, entre a contingência do humano e a violência (aqui apenas encenada)
do mundo natural; é por isso que a ideia de lâmina faz
aqui tanto sentido, a lâmina corta a arquitectura, mas
também comete um rasgo no espaço. E fá-lo com a
precisão cirúrgica de uma peça que, sendo permanente,
respeita as formalidades da patrimonialização sem
sucumbir à sua letra. Ao nível do projecto como processo
complexo, esse é o seu ponto crítico. E assim, uma obra
de arte integrada num edifício, em diálogo de idades, é
um espaço para exercitarmos a nossa imaginação múltipla, e sobretudo a nossa consciência do tempo, a nossa
relação com a eternidade de que, como aquele raio,
somos a cristalização efémera do instante. n
Light Blade foi apresentada a 22 de Abril de 2009 no âmbito
do Salon del Mobile e da Euroluce. +INFO http://www.lighting
academy.org/news.php?pcode=0000000529
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