ARTIGOS
O Pe. Maia é Doutor em História e membro da Equipe central do CEI-ITAICI. Em
março de 1994, durante encontro da Equipe ampliada, falou sobre o contexto
histórico dos Exercícios Espirituais. O interesse suscitado animou-o a iniciar uma
série de artigos sobre o assunto. As ilustrações são reprodução da obra de
S.Fischer-Fabian, Die deutschen Cäsaren. Stuttgart 1978.
Os "Exercícios Espirituais" de Santo Inácio: Texto e Contexto
(I)
Pe. Pedro Américo Maia, SJ
Introdução
Os "Exercícios Espirituais" (EE), antes de um livro, foram uma práxis e, ainda antes,
uma experiência pessoal. No castelo de Loyola, quando ferido, Iñigo "parava para
pensar". Iñigo ou Inácio de Loyola nasceu em 1491 O processo de sua conversão
espiritual iniciou-se no acidente de Pamplona, onde, ferido de morte, terminou sua
carreira de guerreiro a serviço de um rei temporal. Isto aconteceu em 1522.
É texto, pois, tecido, trama de encadeamentos, que se firmaria entre 1522 até 1548
num texto escrito pronto.
Impossível entender tal texto, distante de nós quase 5 séculos, sem nos
debruçarmos sobre o "contexto", isto é, o conjunto, a "assemblage" que cerca um
texto e do qual depende seu sentido, seu valor. É também "contexto" o conjunto de
circunstâncias nas quais ele se inscreve.
O texto EE inseriu-se num amplo contexto chamado "Cavalaria": ambiente do final
da Idade Média, pórtico dos tempos novos da Renascença, especialmente a partir
de 1492. Será a nossa primeira parte.
Se a "Cavalaria" foi a ambiência na qual nasceu e se formou Inácio de Loyola, a
maior influência cultural que ele teve consubstanciou-se na leitura de "romances de
Cavalaria". Ele mesmo declara ter sido pessoa "mui afeita a este tipo de leitura".
Será a segunda parte desta exposição.
Nascido guerreiro na ambiência da Cavalaria, Inácio passaria por uma experiência
inusitada: no acidente quase fatal de Pamplona, sua vida mudaria de rumo,
exatamente ao perder o "rumo" mundano de sua existência. O "cavaleiro Loyola"
faria uma surpreendente "experiência de Deus". Esta será a terceira parte do nosso
trabalho.
A quarta parte de nossa exposição será verificar a transposição da vida
experienciada na "fôrma" de um texto. O livrinho dos Exercícios tem duas épocas
marcantes na sua estabilização como texto: a época de Manresa, a primeira; a
segunda, é a época parisiense.
E nesta segunda época ou etapa, focalizaremos o pano de fundo para
compreendermos a redação final do livrinho: "Inácio e a reforma protestante". Esta
será a quinta parte de nossa exposição.
No presente artigo, desenvolveremos apenas a primeira parte do nosso projeto.
A idéia da cavalaria como sonho de heroísmo e de amor
O mundo medieval tem como característica as concepções religiosas que a tudo
invadem e explicam. No mundo das idéias do seleto grupo da nobreza, a inspiração
cavaleiresca, ou melhor, o ideal cavaleiresco. Imagem de uma sociedade humana
conduzida por uma inspiração religiosa e por uma inspiração profana dá a este
mundo um colorido todo particular.
A guerra era um estado contínuo de intrigas, de conquistas isoladas ou esparsas
sobre uma região, sobretudo nas regiões mais cobiçadas, devido à sua
prosperidade.
O orgulho era o pecado característico desta época feudal hierárquica. O poder e
riqueza estavam numa dimensão de busca pessoal e exigente; para alguém ser
reconhecido devia apresentar-se publicamente com grande aparato, com numeroso
acompanhamento de fiéis e no brilho de ornamentos preciosos. Isto tudo era para
causar impacto e também para manter acesa a consciência de ser qualquer coisa a
mais. Homenagens, ofertas, fartos banquetes, solene prova de honraria, tudo servia
para mostrar aquela superioridade muito real e legítima.
O Ideal Cavaleiresco
O que é este ideal cavaleiresco? Enquanto ideal de uma vida bela e justa, a
concepção cavalheiresca tem característica singular: ideal estético na sua essência,
composta de fantasia muito variada, plena de emoção heróica. Quer ser um ideal
ético, quer somente valorizar um ideal de vida, colocando-se em relação com a
piedade religiosa e com as virtudes vividas na nobreza. Nem sempre a cavalaria
conseguiu manter o nível deste ideal. Em tal função ética faliu tantas vezes, e sua
origem humana a derrubou, porque no cerne do ideal estava implícito um orgulho
estilizado, de onde os nobres tiraram o sentido da honra.
É a misteriosa mistura de consciência moral e de ambição, que sobrevive no homem
quando já perdeu tudo: fé, amor, esperança. É aquele último sentido de honra que
sobrou na pessoa, e que, bem trabalhado, torna-se fonte de novas forças.
Ambição pessoal que é desejo de glória, uma vontade apaixonada de ser louvado
pela posteridade. Inspiração que não anda separada do culto do herói, porque a vida
cavaleiresca é uma constante imitação.
Piedade, coragem, austeridade, sobriedade e fidelidade era a imagem de um
cavaleiro ideal. Isto não se adquiria sem certa exigência, sem certo ascetismo.
A necessidade de dar ao amor um sentido e uma forma nobre encontra um vasto
campo para se manifestar nas conversas corteses, nos jogos e torneios, nas
canções de gesta. Em todo este espaço, o amor se sublima e se faz romântico. A
concepção cavaleiresca do amor não nasce da literatura mas da vida. O motivo do
cavaleiro e da sua dama amada estava presente nas relações da vida real. O
cavaleiro e a dama, o herói por amor, era o elã impulsionante primitivo e invariável,
que aparece sempre e deve retornar. É a transmutação mais imediata da paixão
sensual numa abnegação ética ou quase ética. Manifesta-se na necessidade de
mostrar a própria coragem à mulher amada, de expor-se aos perigos e de exibir a
própria força, de sofrer, de sangrar, de passar por desafios e grandes dificuldades,
num impulso que cada pessoa conhece desde a própria adolescência. A
manifestação e o exaurimento do desejo, que parece impossível, vem substituído
pela ação heróica, cumprida por amor. O sonho da ação heróica enche de ânimo,
incha o coração de orgulho pessoal, dá vida ao amor.
O que é a Cavalaria?
É uma associação de cavaleiros que não se limita apenas à afirmação e à apologia
dos princípios de fé e daquela ordem social natural e cristã, mas também se
empenha em defender tudo isto a custo da própria vida, combatendo em regular
batalha.
"A cavalaria não foi nem uma instituição nem uma ordem social, nem uma
associação particular, mas, até o século XII, é sinônimo de nobreza feudal. A moral
cavaleiresca é entendida como todo um complexo de deveres que criou uma "moral
profissional", uma ética profissional como possuem todos os afazeres, e cuja moral
se baseou sobre o amor, o valor e a cortesia"1.
O trabalho do cavaleiro era aquele das armas, essa era a sua principal ocupação.
Por isso vivia em constante treinamento e aprendizado. Não era fácil reger aquelas
armaduras pesadíssimas, a lança, a espada, o escudo e a fogosidade do cavalo.
Isto exigia, para se tornar perfeito, um longo treinamento e este adestramento
ocupava o tempo livre do guerreiro.
Para chegar a cavaleiro, o jovem iniciava como uma espécie de noviço, servindo o
guerreiro como valete ou escudeiro. Assim, devia prestar serviço ao cavaleiro e ao
seu senhor, nos castelos, nas viagens, na caça, no polimento das armas, no montar
no cavalo, no apear com desenvoltura e elegância; devia erguer o cavaleiro durante
as quedas nos treinos e torneios, cuidar para que o cavalo estivesse preparado e,
também, incentivar o ânimo do cavaleiro antes das lutas, incutindo-lhe coragem. Ser
escudeiro era um primeiro passo para ser cavaleiro.
Havia também os jogos e torneios que, sob o pretexto de diversão, escondiam os
motivos políticos e diplomáticos, celebrações de vitórias e conquistas, alianças,
noivados, casamentos, investidura de um novo cavaleiro e o encontro dos nobres da
corte, dos jovens e donzelas. Em geral, estes jogos eram realizados após o inverno,
entre abril e maio, num lugar descampado, perto dos castelos e de onde se tivesse
uma boa visão. Nestas ocasiões, os cavaleiros aproveitavam para dar brilho às
armaduras ou negociar outra mais nova, comprar ou trocar cavalos, fazer um
intenso período de adestramento com mais ânimo e motivação.
Os jogos reavivavam os sonhos de glória, desejos e esperanças de um possível
amor; era o momento dos guerreiros novos, armados recentemente, mostrarem-se
aos olhos dos seus, e de modo especial aos olhos da sua dama amada. Era a última
chance do cavaleiro veterano e decadente provar que sua sorte não estava selada,
e refazer suas proezas e bravuras. Os castelos e burgos enchiam-se de hóspedes,
os acampamentos de tendas e bandeiras multicores, formando aí o berço dos
símbolos e da heráldica. Nos jogos se estimulava o orgulho e a honra aristocrática, o
erotismo romântico e o luxo.
A formação do Cavaleiro
Naquela época, a data do nascimento importava pouco, bem menos do que hoje.
Em contrapartida, importava a data de um acontecimento muito mais importante na
existência de um cavaleiro, a cerimônia que, no final da "infância", fazia entrar este
aprendiz no grupo dos adultos, dos homens verdadeiros, na cavalaria, isto é, a "vida
verdadeira". Por "infância" entendia-se, no século XIII, os longos anos durante os
quais o guerreiro prosseguia sua formação).
No "castelo" vivia a equipe dos cavaleiros. Pertenciam à casa do "senhor", à sua
turma. Comiam com ele, dormiam não longe dele, na sala. No combate, estavam a
seu lado, formando esta equipe compacta que se chamava "conroi". Muitos eram
parentes próximos ou remotos do "senhor". O hábito de viver constantemente juntos,
em estreita camaradagem, unia estes homens entre si e os unia ao "Senhor".
Cavaleiros como ele, eles se consideravam seus iguais. Certo dia eles tinham vindo,
ajoelharam-se diante dele, tinham colocado as duas mãos juntas entre as suas em
sinal de submissão. O "senhor", os fez levantar, tornando-os e tomando-os em seus
braços e trocaram entre si o beijo da amizade. Depois, o cavaleiro jurou diante de
Deus de nada fazer que pudesse prejudicar o seu "senhor". Por estes gestos e estas
palavras, cada cavaleiro reconhecia-se como vassalo e ele tornava-se o seu
"senhor".
A palavra "vassalo" evocava um "petit garçon" (=mocinho, rapaz); a palavra
"senhor", um ser idoso. Como parentes eles se deviam mutuamente, durante toda a
sua vida, ajudas e conselhos.
Um "policiamento" e um castigo, mais ou menos severo de acordo com o tipo de
delito, garantia segurança para todos. Os lucros dos trabalhos agrícolas,
especialmente o dinheiro, eram utilizados pelo senhor para equipar melhor seus
amigos, para lhes dar prazer, a fim de que eles o amassem mais e o servissem
melhor.
O "feudalismo" era a organização política e sobre ele repousava a paz do reino.
A aprendizagem
Ao chegar aos 6 ou 7 anos, meninos e meninas não mais se vestiam iguais.
Separavam-se os irmãos das irmãs. Eles deixavam a casa familiar, nela
continuavam as meninas, bem guardadas. Para estas crianças, esta partida de casa
era um "arrancar-se" doloroso. Durante toda sua vida ficavam feridos por esta
ruptura brutal, pela separação da mãe, de suas irmãs, das nutrizes que os tinham
alimentado. Guardavam a nostalgia deste ninho de doçura. A imagem da mãe
perdida os enchia de nostalgia. A relação forte era com a mãe: os filhos crescendo,
sonhavam com a independência, reclamavam dinheiro para viver a seu bel prazer.
As relações com o pai, na cavalaria, não eram fáceis. Daí o costume firmado de
enviar fora os rapazes, para prosseguirem sua educação e aprender seu ofício.
Alguns eram destinados para rezar... Seriam monges ou sacerdotes. O pai é quem
decidia a vocação. Para os pais o negócio bom era casar todas as filhas, mas não
todos os filhos, porque casar um filho era ceder-lhe parte de suas terras, dividir a
herança dos ancestrais. Os pais então, colocavam um ou dois filhos na Igreja.
As escolas de então nada tinham a ver com as de hoje. Reuniam-se os rapazes de
diversas idades em torno de um só mestre, encarregado de instruí-los, pouco a
pouco, no uso dos livros fundamentais do Cristianismo: a Bíblia e seus comentários,
e os textos lidos durante os ofícios religiosos, todos em latim. O ensino tinha apenas
um fim ou meta: preparar para servir a Deus, isto é, exercer uma função que aquela
sociedade julgava capital.
O sistema político feudal repousava todo na amizade entre o senhor e seus
vassalos. Esta amizade, a cerimônia da homenagem é que criava. Era preciso
reaquecê-la constantemente, e mantê-la através de contatos pessoais. Para tanto,
os cavaleiros eram obrigados a permanecerem periodicamente junto ao senhor, ao
qual eles tinham jurado fidelidade, viver alguns dias em sua companhia, durante um
estágio no castelo.
Ou então faziam um estágio mais longo, a partir dos 7 anos, por um período mais ou
menos de 12 anos. Nesta nova casa, o cavaleiro aprendiz tinha de conquistar as
graças de seu novo senhor, como também da esposa do seu senhor, aplicando-se a
tornar-se valente guerreiro.
Para tanto, impunha-se, antes do mais, formar seu corpo, para que fosse listo e
robusto, e seu coração fosse generoso.
Desde a sua chegada familiarizava-se com o cavalo. Aos poucos, aquele que seria o
instrumento mais precioso de seu ofício, o mais frágil e o mais difícil a manejar,
tornava-se-lhe familiar.
Ao mesmo tempo ele se familiarizava com a natureza virgem, então muito mais
exuberante do que hoje. Matas espessas, que se pensavam povoadas de fadas,
gnomos e dragões, podiam ser refúgio de criminosos e foragidos da justiça ou da
Lei. Aí também abundavam os animais de caça, os mais variados. Além da guerra, a
caça era a atividade principal de cavaleiros. Entre os animais, havia as feras,
inimigos figadais do homem. Caçar exigia audácia, muita resistência e o
conhecimento preciso dos hábitos de cada espécie de animal.
O aprendizado do cavaleiro começava pela caça, ao mesmo tempo que a equitação.
No trato com a floresta, nas caçadas, nas vigílias florestais, o rapaz robustecia-se e
se tornava ágil. No século XII, os rapazes tornavam-se maiores aos 14 anos. Eram
já capazes de se casar, de fundarem um novo lar. Normalmente, a educação de um
cavaleiro não terminava ainda. Entrava então na segunda fase, a mais importante.
Então, a partir dos 18 anos, mais ou menos, os jovens poderiam participar de
manobras ou combates militares, servindo ao seu senhor, como escudeiros. Assim
aprendiam a combater, habituando-se às peripécias dos torneios ou das "razzias" e
também aprendiam a se servir das armas.
Neste mundo cavaleiresco, os cavalos eram objeto de tanta consideração como são
hoje os automóveis ou as motos. Os mais ricos procuravam os melhores cavalos, os
mais caros. Às vezes eles se arruinavam para adquirir tais animais. Os negociantes
de cavalos eram os mais prósperos homens de negócios.
Tudo o que dizia respeito à cavalaria tinha na vida cotidiana lugar de destaque,
como hoje a mecânica de carros. As propriedades tinham que dispor de espaços,
nem sempre pequenos, para a manutenção de 100, 200 cavalos ou mais. Porque
cada guerreiro devia ter à sua disposição 5 ou 6 cavalos nobres, de raça. Os piores
ou menos bons, eram chamados de "rocins" e eram para o transporte de cargas.
Os cavalos para o combate tinham de ser sólidos, bons de galope e fortes para
agüentar o cavaleiro e seu equipamento e tanto quanto a sua robustez apreciava-se
também o seu "enduro" em se comportar firme em meio ao tumulto militar.
Entre 14 e 20 anos, os cavaleiros aprendiam a tirar o melhor proveito de seu
instrumental de base: cavalo e armas. E não era fácil adestrar um cavalo fogoso,
valente, dominar seu medo no campo de batalha, sem vacilar, no momento decisivo
do confronto e adquirir na sela a perfeita desenvoltura, indispensável para quem
tinha de manejar a lança, a espada e manobrar sua cavalgadura.
Formar um cavaleiro, um guerreiro na arte da esgrima levava anos. Os cavaleiros
eram formados nos rodeios, dos quais saiam cobertos de feridas e cortes. E as
competições corajosas, nas quais os pretendentes procuravam a estima de seus
senhores, não eram sem acidentes graves: muitos jovens aí perdiam a vida ou
saiam estropiados, perdendo para sempre a chance de serem admitidos entre os
homens de guerra.
A espada dominava a parafernália de um cavaleiro. Mais que o cavalo e as esporas,
era ela o emblema de seus poderes e privilégios. Pesando de 2 a 3 quilos, do
tamanho de um metro, foi concebida para fender o corpo do adversário, a golpe de
talhe, atacando na cabeça e nos membros. Para tanto era ela espessa, pesada e o
seu punho bastante alto, de tal modo que fosse possível segurá-la com as duas
mãos. Tais disposições davam-lhe o aspecto de uma cruz para guerreiros cristãos,
reforçando-lhe seu valor simbólico. O cavaleiro tratava sua espada como uma
pessoa. Como seu assessor adjunto (palafreneiro), sua esposa, como ele próprio, a
espada tinha um nome. Por exemplo, a do rei Arthur, chamava-se "Excalibur".
A lança, haste de madeira bem firme, bem sólida, terminada por uma ponta de ferro,
servia para proteger, de longe, o cavaleiro, da tropa inimiga.
Educação do coração
Para ser guerreiro tinha de adestrar seu corpo, mas tinha também de ser capaz de
esboçar um plano, calcular os riscos, discernir. Como cavaleiro, não tinha apenas de
combater; na corte de seu senhor, devia fazer boa figura, portar-se
convenientemente, dar conselhos preciosos, falar agradavelmente, ser alegre, numa
palavra, amável.
Os livros eram raríssimos, escritos a mão, em pergaminho, ilustrados por iluminuras.
Naqueles tempos, ler um livro equivalia a assistir a um espetáculo. Toda a casa, os
familiares, se reuniam ao redor de um intérprete, ele era atentamente ouvido pois
traduzia do latim para o "romanço", e declamava para ser compreendido, seguido.
Um jogral, um trovador, divertiam a nobreza junto com acrobatas, dançarinos, que
"cantavam" ou encenavam de castelo em castelo, os poemas de grandes escritores.
Cantando e dançando, os membros da casa, do grupo de combate ou da paróquia
se sentiam mais estreitamente unidos e a música servia para transmitir o saber.
Nos feitos e gestas destes heróis se encarnava a moral da cavalaria. Ouvindo suas
proezas, os adolescentes sonhavam imitá-los, assim que recebessem suas armas,
igualando-os nas virtudes.
A "mística"
Todo mundo estava persuadido de que a realidade não se limitava àquilo que se via,
existia um outro mundo, sobrenatural, onde as almas separadas do corpo no
momento da morte, continuariam a viver e neste outro mundo agiam
constantemente sobre a terra. À parte os judeus, todos partilhavam a fé cristã, a
crença no Deus Pai, Filho e Espírito Santo, em Jesus Cristo que haveria de voltar
para julgar os vivos e os mortos ressuscitados e reparti-los entre o céu e o inferno.
Era muito representada, na escultura e pintura, a cena do Juízo Final: cada qual
temia pela sua sorte e se ajoelhava, mãos juntas, como um vassalo, diante do seu
Senhor. Os santos faziam a corte dos céus, e neles se confiava como defensores. E
todos, cavaleiros ou "civis", recomendavam-se aos padres e monges, encarregados
de rezar em seu lugar para alcançar-lhes a misericórdia e salvá-los do inferno.
Em 1220, os cavaleiros começavam a compreender que, para ganhar o paraíso,
simples gestas como as peregrinações, as orações dos outros, não bastavam mais.
Era preciso esforçar-se para viver segundo o Evangelho. Francisco de Assis,
inicialmente entusiasmado pelo ideal cavaleiresco, despojou-se de tudo, ficando nu
diante de seu pai. Depois, vestido de um rude saco e seguido de alguns
companheiros, foi viver como Cristo entre os pobres e leprosos2.
Para conquistar o paraíso, não se poupava nada. Todo senhor, assim que pudesse,
erigia uma capela. Se fosse rico, fazia uma igreja ou um mosteiro. Nestes lugares de
culto, anexos à casa senhorial, os mortos da família eram enterrados. Os jovens aí
aprendiam o latim e guardavam a memória dos seus ou então aí também
ascenderiam na carreira eclesiástica.
As virtudes cavaleirescas
A lealdade: O cavaleiro é antes de tudo um combatente; a guerra é esporte de
equipe; assim, o cavaleiro deve ser mais que tudo, verdadeiro, reto, leal. O primeiro
dever do cavaleiro é saber manter a palavra. Se rompe a confiança que jurou,
acabou sua reputação. A cavalaria é uma fraternidade cujos membros se
entreajudam validamente. Isolado, cada cavaleiro é um homem perigoso... O pior
defeito é a felonia, a ruptura dos engajamentos múltiplos que o empenham. A paz
repousa sobre a lealdade, a virtude cavaleiresca por excelência. Mais vale dar sua
vida do que trair ou fugir em meio à peleja.
Pelo termo "proeza" designava-se o conjunto de qualidades físicas e morais que
fazem a valentia de um guerreiro. Se pesava a robustez física, não valia menos a
força da alma.
A "medida": O equilíbrio entre "proeza" e sabedoria. Sem isto a cavalaria deslizava
para a violência e a desordem. Ensinava-se a reprimir os excessos de cólera, da
inveja, da cupidez, a ser senhor de si mesmo no fogo da ação, falar na sua vez,
ceder o passo aos mais velhos, respeitar a conveniência.
O aprendizado da "medida" conduzia ao cultivo de duas virtudes ou qualidades
suplementares: a "largueza" e a cortesia.
O verdadeiro nobre se conhecia pela sua magnanimidade e sua prodigalidade. Nada
de se apegar às riquezas. Muitos cavaleiros estavam bem próximos dos
cistercienses ou até mesmo viviam como eremitas. O que era conseguido como
presas de guerra era distribuído para os cavaleiros fazerem festa ou ajudar os
menos favorecidos.
A cortesia era a virtude dos cavaleiros no trato com as mulheres: eles as servia
fielmente, lealmente, como vassalos a seu senhor; enfrentavam os maiores perigos
para protegê-las ou encantá-las. Era a esposa de seu senhor que ensinava aos
cavaleiros a dança e os jogos de lazer e de salão.
A investidura: rito cavaleiresco
Uma data indelével na memória era o dia da entrada na cavalaria. Terminado seu
aprendizado, o jovem era investido como cavaleiro, com grande pompa. O chefe da
casa lhe impunha as armas. E o novo cavaleiro ficar-lhe-ia fiel durante toda a vida,
mais que um afilhado ao padrinho de batismo.
Tratava-se de um rito muito sério e grave. O rapaz mudava de vida, como ele o
fizera quando de seu batismo, como o faria quando de seu casamento. E, talvez,
como no fim de seus dias, quando se decidisse a se fazer monge numa abadia. O
cavaleiro era um guerreiro cristão.
Na véspera, o aspirante tomava um senhor banho, passava a noite em oração, na
capela, e tomava, no dia seguinte, a espada que jazia sobre o altar, e recebia a
bênção. Fazia o juramento de se servir da arma que recebia para o serviço de Deus
e para a proteção dos fracos, isto é, pessoas da Igreja, viúvas, órfãos e pobres.
Desta feita adicionava-se um valor novo à cavalaria. O que havia de egoísmo e
arrogância no ideal primitivo, o orgulho de ser o mais forte, o prazer de lançar o
dinheiro pela janela e cortejar as damas, era corrigido pelo dever solene de não
fazer mau uso de sua força e de defender os que não podiam fazê-lo. Era, pois,
santificar a "investidura", colocá-la sob o controle da autoridade divina e impor
limites aos excessos da agressividade dos homens guerreiros, e ajudar assim a se
aproximar do modelo que os bispos e os reunidos para a paz de Deus tinham
tentado impor aos cavaleiros, proibindo-lhes molestar o povo cristão e impondo-lhes
colocaram suas armas ao serviço dos homens da Igreja e dos trabalhadores.
Um gesto famoso, mencionado a respeito desta cerimônia de "sagração", era uma
bofetada, com a mão direita, no pescoço do que estava sendo sagrado. Gesto
análogo intervém no Crisma. Era uma prova simbólica. Verificava que o jovem
estava maduro para figurar entre os adultos, de sorte a permanecer firme nos golpes
duros e perfeito senhor de si mesmo, capaz de receber sem retrucar esta bofetada,
a única que um homem de sua qualidade, ao longo de toda a sua vida podia receber
sem revidar. È bofetada seguia-se à entrega das armas. E depois começava a festa.
A Cruzada
A grande aventura era a Cruzada. A expedição a Terra Santa foi para os cavaleiros,
para todos os celibatários que não sabiam onde usar suas armas, a ocasião de se
esbaldarem. Contra os inimigos de Cristo, podiam, sem escrúpulo, dar livre curso a
seu apetite de atacar e destruir. Porque estas expedições militares foram
acompanhadas de atrocidades. Massacravam-se cruelmente os judeus, e
chacinavam-se os muçulmanos. As Cruzadas foram também execrável explosão do
que hoje chamamos racismo, o ódio cego contra o estrangeiro, à crueldade contra
os fiéis de uma outra religião.
Era grande o investimento financeiro. Hipotecavam os cavaleiros seus bens e suas
terras, longe de ter a certeza de voltarem vivos de tal aventura. Preparavam-se para
a peregrinação como a gente se preparava para a morte, confessando suas faltas.
Conclusão
A cavalaria foi tida como a alma da nova literatura. A Renascença e a Idade
Clássica apaixonaram-se pelas suas proezas; o Romantismo viu nela o núcleo da
fantasia romântica. Na época contemporânea, o cavaleiro medieval goza sempre de
um valor tipológico e de referência sem igual.
A instituição da Cavalaria não deve ser confundida com a aristocracia feudal. Nos
século de X a XI forma-se um grupo social subalterno. Suas características: o
serviço militar e a vassalagem. A noção essencial que a define não é a família, mas
o ofício das armas: os cavaleiros são guerreiros a cavalo.
A divisão da sociedade em três ordens: os que oram, os que lutam e os que
trabalham (especialmente no campo), consagra a função guerreira. Sua missão
ideal é defender o organismo social, garantir sobretudo a proteção aos fracos,
viúvas e órfãos. Engajada nas Cruzadas, a Igreja contribuiu para a elaboração de
uma ética guerreira cristã.
Um grupo socialmente restrito e subordinado, a cavalaria, conseguiu impor seus
valores ao conjunto da sociedade, porque a cavalaria foi uma proposta ideológica
projetada sobre a realidade.
A partir do século XII, a aristocracia feudal assinala ao cavaleiro a função da
restauração da ordem perdida. Graças ao romance cortês, os barões confundem
seu destino de classe com uma missão escatológica universal. Projetam seus
sonhos nos bons tempos do rei Arthur, feito modelo para seus contemporâneos. A
demanda deste personagem invencível que é o cavaleiro errante, uma estratégia
utópica para conjurar as frustrações sociais e seria como que a consciência de uma
classe dominante. O código cavaleiresco seria o discurso de uma classe privilegiada
que se descreve a si mesma como uma criação estética absoluta,
independentemente de toda finalidade prática.
A cavalaria medieval tem raízes distantes e profundas e seu papel funcional é
inseparável de um simbolismo mítico religioso arcaico.
O cavaleiro medieval se servia, para combater, de elementos como o cavalo, armas
e armadura, tudo isto investido de valor esotérico, fazendo do cavaleiro um salvador
por excelência, ao mesmo tempo um candidato para morrer e ressuscitar. A ética
cavaleiresca, os ritos de ordenação, os valores culturais são frutos da sacralização
do guerreiro pelo Cristianismo. E aí existe um "humus" bárbaro. Em última análise,
não se trata tanto de uma sacralização, mas da passagem de uma dimensão do
sagrado para uma outra.
É este fundamento sacral que determina a mística da guerra na "Chanson de
Roland", a origem divina de sua espada, a simbólica da sua morte. A guerra é uma
vocação conferida pela graça de Deus. De seu lado, o romance é atraído pelos
aspectos ligados à "curialização" progressiva do guerreiro, rituais festivos de
ordenação cavaleirescos, aventuras individuais, serviço amoroso, cortesão. Mas o
estado de cavalaria é sempre a garantia da ordem do mundo, estreitamente
associado ao estado de Religião. A ordem da cavalaria é soberana, exceção feita do
serviço divino.
Sem dúvida, grande foi à distância entre o ideal e a realidade da cavalaria. Várias
causas determinaram o seu desaparecimento progressivo: o declínio do espírito da
Cruzada, as guerras nacionais, supressão brutal dos Templários, derrotas
sangrentas, aparecimento da arma de fogo. No entanto, foi neste momento que o
culto de seus valores atinge a maior expansão: a cultura cavaleiresca de fixa,
assume seu estilo, se impõe, difunde largamente seu valor central, valor de alegria e
otimismo.
Foi no século XIV que triunfou o espírito da cavalaria. Seus torneios, suas justas,
suas festas cavaleirescas com seu fausto, marcam o final da Idade Média e o início
dos Tempos Modernos. A cavalaria ofereceu um modelo de conduta e um
fundamento conceitual da ação política. Grandes obras exprimiram este ideal de
valor e cortesia, na definição de Dante3.
No romance "Percival", de Cristiano de Troyes (1182-1191), a Dama do Lago
revelou-lhe o que é a cavalaria: "E quando os fracos não puderam sofrer mais, nem
resistir aos fortes, estabeleceram acima deles, como garantidores e defensores para
protegerem os fracos e os pacíficos e governarem segundo o direito e para que os
fortes deixassem para trás os males que faziam e os ultrajes. Para esta garantia
foram escolhidos os mais válidos em relação ao comum das gentes. Foram os ricos
e os fortes e os belos e os ágeis e os leais e os corajosos e os destemidos. Os que
estavam cheios de bondade do coração e do corpo. De início, quando começou a
ordem da cavalaria, foi atribuído àquele que desejasse ser cavaleiro e tivesse dom
para isso, por direta eleição, que fosse piedoso, sem vilania, bondoso sem perfídia.
E pronto para socorrer os necessitados, pronto e preparado para dominar os ladrões
e os assassinos... Foram designados cavaleiros, além disso, para proteger a Santa
Igreja. Porque ele não deve vingar pelas armas, nem pagar o mal com o mal"4.
NOTAS:
1
Cf. V. E. BRAVETTA, La cavalleria e gli Ordini cavallereschi, Roma, Sales, 1942,
21-22.
2
Cf. Vitorio Mazzuco, OFM Francisco de Assis e o modelo do amor cortêscavaleiresco, Petrópolis, Ed. Vozes, 1994, 136 pp.
3
Cf. Georges Duby, La Chevalerie, Perrin, Paris, 1993, 126 pp.; cf. artigo
"Chevalerie", M. Stanesco, Dictionnaire Universel des Literatures. Paris, PVF, 1994,
I-A-Z, pp. 698-700.
4
- Cf. Georges Duby, "As três ordens ou o imaginário do feudalismo". Lisboa,
Editorial Stampa, 1994, 383 pp., ver principalmente "A cavalaria", pp. 319-383.
Download

01. Os EE de Sto. Inácio- Texto e Contexto (I) MAIA, Pedro Américo