Julho| 2015
Zona do Euro: austeridade, recuperação e além
A partir da crise financeira em 2008 e 2009, a zona do euro apresentou um ciclo econômico em forma de “W”: uma primeira forte queda em 2009, seguida
de uma recuperação em 2010 e 2011 e, a partir daí, dois anos de queda, puxados pela crise da dívida soberana nos países periféricos. Em 2014, a região voltou a
apresentar crescimento real do PIB (0,9% em relação a 2013) e, com o crescimento da atividade projetado para este ano, deve ultrapassar em termos reais o nível
de PIB de 2008. Ou seja, em termos de PIB, somente sete anos depois a região volta aos patamares pré-crise. A tendência de recuperação do crescimento é uma
boa notícia, apesar de estar sendo impulsionada por alguns choques positivos de curto prazo e também pela política monetária bastante frouxa do Banco Central
Europeu (BCE).
Em decorrência das medidas de forte aperto fiscal e também das reformas estruturais nos países periféricos, que deprimiram a demanda agregada da
região e elevaram muito o desemprego, a inflação apresentou uma trajetória de queda a partir de meados de 2013. A partir daí, ela passou a ficar bem abaixo da
meta do BCE, que estabelece que a inflação deve ser próxima, mas inferior a 2% ao ano. Como forma de estimular a demanda agregada, o banco central passou a
tomar uma série de medidas de afrouxamento monetário, começando com cortes nas taxas de juros de suas operações de liquidez.
Após baixar os juros ao mínimo possível, o BCE decidiu, em meados de 2014, por um programa de empréstimos de longo prazo direcionados a crédito, as
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chamadas TLTROs , com o objetivo de impulsionar a criação de crédito, que estava então em trajetória declinante, especialmente o direcionado a empresas não
financeiras. Esse programa buscava também resolver o problema da inflação declinante, que então surpreendia negativamente o mercado a cada divulgação. A
questão do crédito é especialmente relevante na região, pois o crédito bancário responde por aproximadamente 80% da dívida das empresas. Em países como os
Estados Unidos, por outro lado, o crédito bancário representa perto de 10%, pois nesses casos há um mercado de capitais mais desenvolvido.
Conforme as surpresas inflacionárias negativas foram se sucedendo, a preocupação do conselho do BCE com relação a um período prolongado de inflação
muito baixa (apelidado de lowflation) foi aumentando, inclusive em razão do risco decorrente de a região passar a apresentar deflação após algum choque. Dessa
forma, a autoridade monetária decidiu por uma abordagem mais intervencionista e, a partir de outubro do ano passado, passou a comprar títulos colateralizados
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por ativos (ABS e covered bonds). Como esses títulos derivam seu fluxo de pagamentos de uma cesta de ativos, que no caso incluem também letras de crédito,
hipotecas, dívidas de cartão de crédito, etc., a compra desses títulos por parte do BCE estimula a geração de crédito novo. Esse crédito, por sua vez, será
direcionado para a criação de novos ativos que poderão colateralizar novos títulos, que poderão também ser comprados.
No entanto, o que realmente fez o BCE tomar uma medida mais agressiva foi a queda abrupta no preço do petróleo no fim de 2014. Com inflação e
expectativas já rodando em patamares muito baixos, muito abaixo da meta do banco central, o choque de baixa no preço do petróleo derrubou a inflação europeia,
que chegou a um mínimo de -0,6% acumulado nos 12 meses até janeiro de 2015. Apesar de ser um choque de nível de preços, cujo efeito na inflação tenderia a se
dissipar com o tempo, a grande preocupação era que, em um ambiente de recessão e inflação baixa, a queda no preço do petróleo se disseminaria para o restante
da economia. Isso porque empresas, competindo por pouca demanda, em vez de lucrarem mais com a queda no preço desse insumo, repassariam essa queda ao
preço cobrado dos consumidores. Por sua vez, isso poderia contaminar as expectativas de inflação que, ao caírem, implicariam em um aumento das taxas de juros
real, ou seja, um aperto monetário.
O BCE então decidiu anunciar seu pacote de compra de títulos em larga escala (também conhecido como afrouxamento quantitativo, QE, na sigla em
inglês), que foi denominado simplesmente como Asset Purchase Program (APP). Na reunião de 22 de janeiro deste ano, o conselho da autoridade monetária decidiu
por ampla maioria pela adoção de um pacote que incluía compras de títulos soberanos e supranacionais, bem como de covered bonds e ABS, títulos que já vinham
sendo comprados desde outubro de 2014. O pacote colocou uma meta de compras de €60 bilhões por mês, divididos entre países de acordo com a proporção de
cada país no capital do BCE, sendo que a maior parte das compras é de títulos soberanos. O programa deve durar de março deste ano até setembro de 2016 ou até
que ao menos se veja um ajuste sustentado na trajetória de inflação, de acordo com o banco central. Isso deve significar um programa de ao menos €1,1 trilhão ao
longo de um ano e sete meses.
Com o APP o BCE busca atuar principalmente sobre dois canais de transmissão da política monetária. Ao comprar títulos públicos de diversas maturidades,
o BCE eleva o preço desses títulos e assim exerce pressão para baixo sobre a curva de juros de cada país. Dessa forma, ao atuar deprimindo a curva de juros, essas
compras levarão investidores a arbitrarem a diferença de retorno em relação a outros ativos, tanto dentro quanto fora da zona do euro. Quando investidores buscam
ativos fora da região, isso gera uma pressão para a desvalorização do euro, levando assim ao primeiro canal importante pelo qual o programa atua: desvalorização
cambial e consequente ganho de competitividade vis-à-vis outros parceiros comerciais. Além disso, investidores buscam outros tipos de ativos mais arriscados
dentro da zona do euro, como títulos de mais longo prazo, ações e imóveis, o que acaba por elevar o preço desses. Essa alta dos preços de ativos implica em um
efeito benéfico sobre o balanço dos agentes econômicos, em particular dos bancos, que assim podem ter um maior espaço para empréstimos para a economia real.
Julho| 2015
Desta forma, a postura da política monetária hoje é extremamente acomodatícia. Até o fim do mês de junho, o BCE já havia comprado aproximadamente
€240 bilhões pelo APP. Essa posição vem paulatinamente melhorando as condições do mercado de crédito da região, embora as restrições na oferta ainda sejam
significativas. Além desse fator, a desvalorização do euro, o choque positivo sobre a atividade trazido pela queda no preço do petróleo e a redução do efeito
contracionista da política fiscal tendem a contribuir positivamente ao crescimento. As projeções de crescimento do mercado para este ano se encontram em torno
de 1,5%, em linha com a projeção do BCE.
Logicamente, a recuperação em 2015 não é um evento garantido e certamente há riscos para esse cenário. O principal deles é justamente o desfecho da
crise na Grécia. Apesar de representar apenas 2% do PIB da zona do euro, a incerteza decorrente do impasse do país com seus credores e dos riscos de contágio
para outras economias mais frágeis da região pode pesar sobre a atividade no terceiro trimestre. Ao que tudo indica, até a metade do ano, pelo menos, o impacto
sobre a atividade parece ter sido baixo.
Já para os anos de 2016 e 2017, o cenário de crescimento e inflação envolve mais incerteza. Com seu forte afrouxamento monetário, o BCE busca fechar o
hiato do produto ainda substancial da região. A grande questão é saber quando exatamente esse hiato será fechado e quando será possível ver uma alta na taxa de
inflação. O BCE acredita que isso se dará logo, em razão das restrições estruturais da economia europeia, o que torna a taxa de desemprego estrutural
relativamente alta e o crescimento potencial da economia muito baixo (1% em sua estimativa). No entanto, se as experiências dos outros países com programas
de QE como Estados Unidos, Reino Unido e Japão são de alguma utilidade, é muito provável que, conforme a região se recupere, as restrições estruturais
diminuam, a taxa natural de desemprego caia, e assim não haja pressões inflacionárias mesmo com uma política monetária muito frouxa. Caso esse cenário seja o
correto, então a inflação da região deve se recuperar um pouco no fim deste ano, mas se manter ainda baixa ao longo dos próximos dois anos.
No longo prazo, a garantia do crescimento dependerá de fatores estruturais e é por isso que há um foco muito grande das autoridades agora na
implementação de reformas e na promoção de maior convergência entre as economias do euro. Esse ponto é de vital importância para a estabilidade da união
monetária no longo prazo e um grande desafio de coordenação para as lideranças da região.
Felipe Mazin
Analista do Opportunity e Mestre em Economia pela PUC-Rio.
1
Sigla em inglês, Targeted Long-Term Refinancing Operations (Operações Direcionadas de Refinanciamento de Longo Prazo).
2
Sigla em inglês, Asset-Backed Securities (Títulos Colateralizados por Ativos).
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