Reflexões sobre as diversidades sexuais na saúde: uma revisão de literatura – Bruno Vitiritti Ferreira
Zanardo/UFMS; Sonia Maria Oliveira de Andrade/UFMS
REFLEXÕES SOBRE AS DIVERSIDADES SEXUAIS NA SAÚDE:
UMA REVISÃO DE LITERATURA
ZANARDO, Bruno Vitiritti Ferreira.
Graduando em Medicina do 8° semestre pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.
ANDRADE, Sonia Maria Oliveira de.
Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora da Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
RESUMO
O ato de cuidar exercido pelos trabalhadores em saúde é sempre uma ação que envolve valores,
mitos, pré-conceitos e, muitas vezes, discriminação. Reconhecer essa relação nem sempre amistosa
é um pressuposto importante para que não ocorra violação de direitos de ambas as partes. O
preconceito dirigido contra as diversidades sexuais ainda está muito presente na área da saúde.
Conceitos naturalizadores acerca da sexualidade permitem que haja uma normalização do discurso
preconceituoso. Este é um estudo teórico-bibliográfico em que procedeu-se a revisão de artigos
técnico-científicos indexados nas bases de dados SCIELO, MEDLINE e LILACS. Como critérios de
inclusão, foram consideradas as publicação de 1990 a 2011 nos idiomas inglês, espanhol e
português. Discutiu-se o preconceito e seus paradigmas, entendendo que o discurso homofóbico
parte da ideia de que existe o normal e seus desvios, sendo os desvios formas não-passíveis de
vivência e permissivas a críticas. Notou-se que a universalidade preconizada pelo Sistema Único de
Saúde não é exercida em sua plenitude, pois as diversidades sexuais estão constantemente expostas
a uma vulnerabilidade, consente-se assim que políticas e ações específicas para esta população
sejam realizadas a fim de garantir uma equiparação de direitos. Expõe-se também experiências de
trabalhadores em saúde no cuidado das diversidades, percebeu-se um grande despreparo destes
indivíduos em lidar com o diferente. Considera-se que para mudar o cenário atual na saúde de
discriminação e preconceito com a população LGBT é necessária uma análise dos moldes de ensino
e aprendizagem na universidade, baseando-se em um modelo que permita a geração de conflitos
para assim provocar uma reflexão acerca dos modos de pensar e agir.
Palavras-chave: Ética, preconceito, diversidade sexual, profissões em saúde.
ABSTRACT
The care exercised by healthcare professionals must be free from any prejudiced assumption.
Homophobia is a kind of prejudice directed against sexual diversity and is still very present in the
health care. Naturalized concepts about sexuality allowing a normalization of homophobic discourse.
This study is a theoretical literature on which we proceeded to review technical and scientific articles
indexed in the databases SCIELO, MEDLINE and LILACS. As inclusion criteria, we considered the
publications from 1990 to 2011, in English, Spanish and Portuguese. Discussed the prejudice and its
paradigms, understanding that the homophobic discourse emerge of the idea that there is a normal
sexual activity and its deviations, the deviations are non-susceptible forms of living and they are
permissive criticism. Noted the universality advocated by SUS is not pursued to its fullest, because
sexual diversity are constantly exposed to vulnerability, to consent as soon as specific policies and
actions for this population are performed to ensure a match of rights. It explains also the experiences
of healthcare professionals in the care of diversity, we noticed a great lack of preparation of these
individuals in dealing with the different. It is considered that to change the current scenario of the
discrimination and prejudice against the LGBT population in the health is necessary to analyze the
patterns of teaching and learning at the university, based on a model that allows the generation of
conflicts so as to cause a reflection on modes of thinking and acting.
Keywords: Ethics, prejudice, sexual diversity, health occupations.
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INTRODUÇÃO
O ato de cuidar exercido pelos trabalhadores em saúde deve ser
revestido de atenção com cada paciente que lhe é apresentado, nenhum paciente é
igual a outro. Porém, tratar um paciente de forma diferente, simplesmente por este
não apresentar as mesmas concepções (religiosa, moral ou sexual) que o
profissional, não é considerado uma prática ética. A regra fundamental é tratar todos
os pacientes sem distinção, sem preconceitos e com humanidade (LOPEZ, 1982).
Nos últimos anos, as práticas preconceituosas com as diversidades
sexuais passaram a ser denominadas genericamente como homofobia. Denominase homofobia como:
A hostilidade geral, psicológica e social, para com aqueles e aquelas
que se supõe desejarem ou terem práticas sexuais com indivíduos
de seu próprio sexo. Forma específica de sexismo, a homofobia
também rejeita todos aqueles que não se conformam com o papel
predeterminado pelo seu sexo biológico. Construção ideológica que
consiste na promoção de uma forma de sexualidade (hetero) em
detrimento de outra (homo), a homofobia organiza uma
heirarquização das sexualidades e extrae delas consequências
políticas (BORRILLO, 2001: 36 – tradução do autor).
Neste artigo de revisão de literatura, buscou-se apresentar e discutir as
publicações recentes e conceitos que giram em torno do cuidado com os pacientes
pertencentes às diversidades sexuais. Buscou-se trilhar o caminho do preconceito
até chegar ao modo como é exercido o cuidado na saúde para com a população
LBGT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros).
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo teórico-bibliográfico, em que se revisaram artigos
científicos indexados nas bases de dados SCIELO, MEDLINE e LILACS, disponíveis
na Biblioteca Virtual da Saúde (regional.bvsalud.org), que disponibiliza artigos
técnico-científicos na área da saúde. Também foram utilizados artigos científicos e
outros tipos de publicações que chegaram ao conhecimento dos autores por
abordarem a temática estudada, abrangendo assim a ótica de discussão sobre o
cuidado com as diversidades sexuais. Como critérios de inclusão consideraram-se
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as publicações no período de 1990 a 2011 nos idiomas inglês, português e
espanhol.
Foi realizada uma análise criteriosa do levantamento bibliográfico, sendo
realizado o estudo de considerações éticas estudadas por especialistas no tema,
como filósofos e cientistas sociais.
Para
„preconceito‟,
a
busca
dos artigos,
„assistência
em
utilizaram-se
saúde‟,
„relações
os
descritores:
„ética‟,
profissional-paciente‟,
„homossexualidade‟ e „diversidade sexual‟. Coletaram-se os dados entre novembro
de 2011 e janeiro de 2012.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Preconceito: os paradigmas existentes frente às diversidades
Entende-se por preconceito uma prática de julgamento baseada em
crenças, atitudes e comportamentos que censura qualquer membro de um
determinado grupo humano, referindo-se a este como portador ou difusor de práticas
ou pensamentos considerados negativos. Além disso, as características atribuídas
como negativas são vistas como marcas fundamentais e definidoras de tal grupo,
sendo assim, o julgamento deve se estender a todos os seus integrantes (MEZAN,
1998).
O preconceito parte do princípio de desqualificação e marginalização do
diferente. Nos artigos científicos lidos para esta revisão, o diferente é considerado a
minoria. Se existe a minoria e sua forma de viver e pensar, também há uma maioria
com a mesma autonomia. Porém surge uma questão, poderia se considerar como
uma “norma padrão” a forma como a maioria vive e concebe o ambiente que habita?
Não é bioético aceitar as normas estabelecidas pelas maiorias, pois a construção de
uma sociedade livre, justa e equitativa não se baseia em uma relação percentual e
quantitativa. Admite-se que bioética é um exercício prático, caracterizado pela
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observação e análise das práticas culturas dentro dos discursos1, quando há a
incorporação deste conhecimento se exerce a bioética (GONZÁLEZ; LICONA,
2006).
Toma-se o conceito que todo preconceito para com qualquer indivíduo
pertencente às diversidades sexuais é denominado homofobia. Porém, é necessário
deixar claro que não há um discurso homofóbico padrão, bem como não existe uma
relação própria e exclusiva deste discurso com um grupo determinado de sujeitos
(GONZÁLEZ;
LICONA,
2006).
Pode-se
afirmar,
entretanto,
que
há
uma
naturalização da homofobia como forma de opinião. Acredita-se que um dos motivos
para que isso ocorra seja a multiplicidade de formas, às vezes imprecisas, que
caracterizam o evento. Por se apresentar de muitas maneiras, na maioria das vezes
como piadas, olhares de reprovação isolados e comentários avulsos; o indivíduo não
percebe que há uma prática discriminatória2, sendo assim, há a ausência de uma
reflexão, não havendo reflexão não haverá mudança, pelo contrário, há uma
cristalização subjetiva de que aquele ato, quando se der de forma explícita, seja
naturalmente aceito. A bioética sendo um produto da reflexão permite que o
indivíduo racionalize a moral3, problematizando o seu comportamento, fugindo assim
de uma programação definida e moldada pela cultura na qual está inserido
(FOUCAULT, 1996).
Em seu trabalho, González e Licona (2006) citam comentários de
médicos acerca da homossexualidade de seus pacientes:
1 Define-se aqui “discursos” a forma como o indivíduo expressa suas ideias, há mecanismos
explícitos e ocultos nesta expressão. Forma-se, portanto, uma trama complexa de linguagem,
constituída de proibições, tabus e exclusões (GONZÁLEZ; LICONA, 2006). O discurso não é isento
de influências, pelo contrário, está preso dentro de estruturas invisíveis, como a educação formal e
informal que recebemos e vivemos. A cultura prende o sujeito numa trama, moldando e
programando-o, porém, isto não é permanente nem imutável, pois o ser humano tem capacidade de
racionalizar seus discursos, ganhando autonomia (FOUCAULT, 2009).
2 Toma-se como prática discriminatória: “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que
tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo, ou exercício em pé de
igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural, ou
em qualquer campo da vida pública”. Esta definição foi formulada na Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e na Convenção Internacional sobre a
Eliminação de todas as Formas de discriminação Racial (RIOS, 2007a).
3 Por moral entende-se: “um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos
grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos... Entende-se igualmente o comportamento
real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a
maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta”
(FOUCAULT, 2009).
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Eu não tenho nada contra os homossexuais, mas não considero justo
que lhes permita se casar e muito menos adotar um inocente.”
“Os homossexuais são indiscutivelmente doentes, não me digam o
contrário, porque não aceitarei nem jamais entenderei. O que você
quer? Fui educado assim”.
“Considero-me muito liberal, mas quando começam a fazer carinhos
e outras coisas a mais, isso me dá nojo.
Os autores refletem que os discursos foram obtidos em conversas
cotidianas, informais. Quando o cenário muda, o discurso também muda, os
profissionais passam a refletir antes de falar, evitando um linguajar preconceituoso.
Esta atitude do profissional certamente influencia de forma negativa na relação
médico-paciente. O paciente pertencente às diversidades sexuais ao conhecer a
postura do médico diante de sua identidade sexual ou identidade de gênero pode se
sentir excluído, deixando assim, de buscar o atendimento que necessitava (ORTIZHERNÁNDEZ; TORRES, 2005).
Além da Aids: o direito à saúde para a população LGBT
O indivíduo que se identifica homossexual, bem como aquele que adota
uma identidade de gênero diferente de seu sexo biológico, sofre grande exposição
de sua vida sexual. A simples expressão de sua afetividade em meios públicos
resulta numa interpelação devido a sua preferência erótica (SILVA, 2003). O advento
da Aids e sua prevalência inicial nos LGBT transformam o cenário num meio
estigmatizado. O indivíduo vivendo com HIV não é marginalizado devido a sua
doença, mas sim, porque há um julgamento acerca de suas práticas sexuais. É
importante dizer que o julgamento sempre é negativo, pois o veredicto já está
definido, ou seja, o indivíduo adquiriu o vírus, ficando doente.
Mesmo marcando profundamente de forma negativa a população LGBT, a
Aids forçou o deslocamento desta população da ocultação para a revelação (SILVA,
NARDI, 2011). Consequentemente, às diversidades sexuais é oferecida a
possibilidade de sair da clandestinidade e ganhar a cidadania4.
Tomando o princípio de universalidade do Sistema Único de Saúde
(SUS), admiti-se que a promoção da equidade para os diversos grupos humanos só
4 Toma-se como cidadania o “[...] próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que
precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendimento às necessidades básicas,
mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do(s) homem(s)
no Universo” (COVRE, 2010).
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é possível quando se combatem os discursos e atos de exclusão e violação de
direitos humanos fundamentais (LIONÇO, 2008). Como não concebemos nenhum
modelo padrão para a promoção da equidade entre os grupos afetados pelo
preconceito e discriminação, aceita-se que políticas e ações específicas para
determinados grupos sejam utilizadas para promoção da universalidade e equidade
(MEDEIROS, 1999).
Com esse pensamento, entra-se em um novo campo de reflexão: Se a
população LGBT apresenta uma vulnerabilidade na saúde, por que isso existe e
quais os mecanismos que podemos utilizar para enfrentar?
O Ministério da Saúde reconhece que os indivíduos pertencentes às
diversidades sexuais encontram-se numa situação de vulnerabilidade na saúde, este
conceito vai além da observação de práticas sexuais de risco, constata-se que este
grupo sofre com processos discriminatórios e preconceituosos, suprimindo seu
direito à saúde, à dignidade, a não-discriminação, à autonomia e ao livre
desenvolvimento (BRASIL, 2008).
Foi citado e é sabido que o preconceito contra os LGBT manifesta-se
também na saúde. E admite-se que a forma mais produtiva para promoção da
cidadania seja o combate em torno da violência manifestada por atos
preconceituosos e discriminatórios, pois estes ferem o princípio da equidade e
causam prejuízo aos indivíduos que os sofrem (RAMOS, 2005). A homofobia
também existe no SUS e seu combate é fundamental para que seja promovida a
qualidade de vida dos usuários, afinal as pressões discriminatórias trazem sérias
conseqüências na saúde mental deste segmento (BRASIL, 2008).
Uma política de enfrentamento do preconceito e discriminação para com
as diversidades sexuais foi desenvolvida pelo Ministério da Saúde, apresentam-se
os pontos que mais divergiram da realidade encontrada nos artigos pesquisados:




Inclusão de conteúdos relacionados à população LGBT na formação dos
profissionais da saúde de nível técnico e da graduação, bem como
garantir a discussão do tema nos processos de Educação Permanente
em serviço dos profissionais do SUS.
Inclusão de quesitos étnico-raciais, orientação sexual e identidade de
gênero nos formulários e sistemas de informação do SUS.
Reconhecimento e inclusão nos sistemas de informação do SUS de
todas as configurações familiares, para além da heteronormatividade.
Implantação de Centros de Referência com Assistência Interdisciplinar a
Transexuais garantindo a assistência endocrinológica integral para
travestis e transexuais.
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
Qualificação para a atenção à saúde mental em todas as fases de vida
da população LGBT, prevenindo os agravos decorrentes dos efeitos da
discriminação, do uso de álcool e outras drogas e da exclusão social.
As estratégias apresentadas não se veem atendidas na prática. Percebese a resistência dos profissionais de saúde em atender, debater e se qualificar para
o atendimento às diversidades sexuais.
A
sociedade
brasileira
se
vê
profundamente
marcada
pela
heteronormatividade, não permitindo a abertura para a construção de novas
configurações sexuais (RIOS, 2007b). Os trabalhadores em saúde apresentam,
assim como a população geral, discursos naturalizados acerca da sexualidade,
reflete-se esse ponto da seguinte forma: quando o profissional de saúde pergunta a
um homem heterossexual que vive com a parceira suas práticas sexuais, ele
responde com uma palavra, “normal”. De maneira naturalizada o profissional
acredita então que a prática sexual daquele homem resume-se ao sexo vaginal,
percebe-se que não há uma reflexão sobre o conceito de normalidade, o profissional
admite como normal aquilo que ele considera como natural. A atitude muda quando
este mesmo profissional depara-se com um paciente que foge do seu conceito de
natural, e a simples pergunta sobre práticas sexuais deixa o campo de investigação
epidemiológica e passa a ser uma busca (talvez inconsciente) do profissional pela
compreensão do fenômeno.
A naturalização da sexualidade baseada nos moldes heteronormativos é
o obstáculo maior para a concretização das estratégias apresentadas. Porém, nos
três primeiros pontos observa-se seu maior impacto, já que seu sucesso depende
muito mais da atuação do profissional para que se firme a desnaturalização dos
conceitos como família e sexualidade. Os dois últimos pontos são enfraquecidos
pela medicalização da sexualidade5. A medicalização é um forte normatizador da
sexualidade
segundo
a
regra
heteronormativa,
principalmente
quanto
à
determinação do sexo sobre o gênero. Ultrapassar e negar essa visão do saber
5 Buscou-se construir o conceito de medicalização com base em duas fortes teorias. Primeiramente
definindo a medicalização como um processo complexo baseado em recomendações práticas e
difundidas sobre a família, num dispositivo criado primariamente no seio familiar a fim de controlar a
disciplina e vigiar seus integrantes. Também se constrói este conceito a partir da observação da
prática médica em organizar as práticas sexuais divergentes do padrão heteronormativo como
perversões sexuais. Reflete-se que essa prática médica dá então subsídios para um controle e
submissão das condutas sexuais “desviantes” dentro de uma estrutura definida como “normal”
(GIAMI, 2005).
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médico permite legitimar outras formas de expressão da sexualidade, recusando
assim a patologização (LIONÇO, 2008).
A arte de cuidar: estudos sobre a prática da saúde para com a
população LGBT
Nesta seção procurou-se apresentar e debater as experiências publicadas
acerca do cuidado com as diversidades. Há necessidade de explicar a preferência
pelo termo “cuidado” ao invés de “tratamento”. O “tratamento” buscaria a alteração
de
um
estado
considerado
mórbido
para
um
estado
clínico
saudável,
desconsiderando a trajetória, concepções e projetos de vida do paciente; já o
“cuidado” ampliaria a forma de mudar o estado de saúde do paciente, pois
consideraria sua trajetória e experiências de vida (AYRES, 2002).
Foram recolhidos 23 artigos que abordavam a temática, destes 7 são
investigações ou relatos envolvendo experiências com as diversidades sexuais.
Observou-se maior número de artigos sobre o cuidado da enfermagem,
principalmente naqueles que envolveram a problematização da situação. Foram
cinco relatos de experiências, duas investigações na prática da enfermagem e dois
inquéritos sobre a educação dos profissionais de saúde frente às diversidades
sexuais.
As investigações em enfermagem relataram que o cuidado exercido pelas
enfermeiras aos pacientes LGBT é rodeado por insegurança, resultando num
distanciamento. Os pacientes e seus companheiros sentem este distanciamento,
relacionando o fato a sua orientação sexual. Evidencia-se que a relação profissionalpaciente é totalmente prejudicada, mesmo que haja reconhecimento por parte dos
pacientes que as enfermeiras agem com profissionalismo e qualidade (RONDAHL,
2009). Confirma-se também que as atitudes homofóbicas têm impactos significativos
na saúde mental destes pacientes (WELLS, 1997).
Os cinco artigos de experiência abrangeram eventos de resultado positivo
e negativo. Três destes artigos estão relacionados ao cuidado com as travestis.
Experiências positivas e modificadoras foram observadas com a introdução dos
acadêmicos de enfermagem e medicina nos espaços de vivência das travestis, os
preceptores perceberam e refletiram que o contato com a realidade viva do “outro
marginalizado” causa um impacto no modo como os alunos enxergam as travestis.
Concluiu-se nos trabalhos que esta estratégia de ensino é enriquecedora para todos
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os envolvidos, pois permite que o profissional ou futuro profissional volte a si mesmo
e examine suas próprias concepções (ROMANO, 2008; DESSUNT et al, 2008). Um
relato apresentou um caso de homofobia com uma paciente travesti que fora
atendida no pronto-atendimento de um hospital. Os alunos de medicina que
assistiam ao atendimento prestado teceram comentários preconceituosos sobre a
paciente que se encontrava desacordada durante a consulta (VITIRITTI et al, 2010).
Pode-se questionar o porquê da disparidade entre as atitudes positivas nas
primeiras experiências e esta negativa. Acredita-se que a ausência de condição da
paciente em responder os insultos é um grande facilitador para a expressão aberta
do preconceito, outro fator somatório é o espaço físico onde acontece o evento, o
hospital é um ambiente de domínio dos profissionais de saúde.
Outros dois estudos foram inquéritos sobre a educação acadêmica em
relação às diversidades sexuais, um estudo americano e outro sueco. Em ambos
observou-se que os alunos de graduação em enfermagem e medicina não
apresentam em sua formação discussões ou experiências de cuidado com a
população LGBT, consenti-se assim a saída de um profissional de saúde
despreparado e potencialmente incapaz de exercer uma reflexão acerca de suas
crenças pessoais (OBEDIN-MALIVER et al, 2011). Se algo não for realizado de
forma rápida nas escolas de saúde discursos heteronormativos vigentes jamais
permitirão uma comunicação e cuidado igualitários (RONDAHL, 2009).
CONCLUSÃO
O preconceito desqualifica e marginaliza as diversidades sexuais. Vê-se
então a urgente necessidade de refletir sobre os discursos que naturalizam as
sexualidades.
O fato de o indivíduo pertencer à população LGBT já o expõe, deixando-o
vulnerável a comentários e atitudes da população geral que o prejudiquem. Na área
da saúde, injúrias desse tipo também se mostram presentes, somados a isto
obstáculos impostos pelos próprios profissionais de saúde agravam a situação.
Sendo assim, estratégias de combate são fundamentais para a melhora da
qualidade de vida desses indivíduos. Porém, necessita-se de uma vigilância assídua
para que essas estratégias alcancem seu objetivo.
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Observou-se que experiências estimulando o contato constante dos
profissionais de saúde com as diversidades sexuais são positivas e geram
resultados reflexivos admiráveis. É importante ressaltar que o diferencial modificador
e reflexivo está no encontro do profissional com a realidade de vida do paciente
LGBT.
Percebe-se uma carência grande em se abordar temas referentes às
diversidades sexuais durante a graduação dos profissionais de saúde. Propõe-se
assim a criação e execução de disciplinas que estimulem o aluno a afrontar seus
conceitos de mundo, bem como, aprender pela prática a questionar valores ditados
até então por uma educação formal e informal. Acredita-se que somente através de
um processo reflexivo acerca de seus próprios atos e ideias é que o profissional será
capaz de exercer a arte de cuidar.
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Revista Pitágoras – ISSN 2178-8243, Nova Andradina, v. 4, n. 4, dez/mar.2013
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Reflexões sobre as diversidades sexuais na saúde: uma revisão de literatura – Bruno Vitiritti Ferreira
Zanardo/UFMS; Sonia Maria Oliveira de Andrade/UFMS
Vitiritti, B., Pereira, H., Pinto, A. M. A. C., Roriz, R. C. M., Santos, E. R. L.
Implicações bioéticas sobre o preconceito contra trabalhador homossexual:
relato de caso. Rev Saúde Pública MS 2010; 4 (1-2): 81-84.
Wells, A. Homophobia and nursing care. Nurs Stand 1997; 12 (6): 41-2.
Artigo recebido em 10/2013. Aprovado em 01/2013.
Revista Pitágoras – ISSN 2178-8243, Nova Andradina, v. 4, n. 4, dez/mar.2013
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