Aborto - implicações na vida e saúde das mulheres e dilemas éticos no atendimento
ao aborto previsto em lei
Roberto Chateaubriand Domingues1
A Interrupção voluntária da gravidez se traduz em uma prática conhecida pelas
mulheres desde tempos imemoriais, todavia, nem sempre passível de discussões ou
polêmicas morais, mas, via de regra, comumente acompanhada de tensões emocionais e
angústias, vivenciadas pelas mulheres, mesmo quando não há nenhum óbice de ordem
legal para a realização para tal procedimento.
A proibição do aborto encontrou, ao longo da história, motivações díspares,
lastreando-se em tanto opções políticas de incentivo ao aumento do contingente
populacional quanto em motivações morais e pretensamente científicas a partir da
representação do feto enquanto titular de direitos desde a sua concepção.
No Brasil a interrupção voluntária da gravidez é considerada um ilícito penal,
tipificado nos artigos 124 e seguintes do Código Penal Brasileiro, sendo considerado um
crime contra a pessoa. A interdição do aborto provocado voluntariamente pela gestante
ou com o seu consentimento vigora expressamente no ordenamento jurídico brasileiro
desde a promulgação do Código Penal de 1890, muito embora fosse, antes desta data,
repudiado moralmente. A interrupção voluntária da gravidez está tipificada como ilícito
penal, passível de pena, excetuando-se as hipóteses relativas ao que se conhece como
abortamento legal.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê algumas hipóteses permissivas de aborto
dispostas no Código Penal em seu art. 128, embora correntes doutrinárias advoguem que
se trata, exclusivamente, de ausência de punição diante de casos específicos,
permanecendo a conduta tipificada.
Na primeira hipótese tem-se o caso de aborto necessário, também designado
como aborto terapêutico e apresenta como elementos essenciais para a sua
1
Psicólogo, graduado pela UFMG (1986) e advogado, graduado pela Escola Superior Dom Helder Câmara (2007), com
atuação no Grupo de Apoio e Prevenção a Aids de Minas Gerais e vinculação institucional na Prefeitura de Belo
Horizonte, lotado na Coordenadoria de Direitos Humanos. Endereço: Av. Augusto de Lima, 152/903 – Centro – [email protected]
caracterização o iminente perigo de vida da gestante associado à inexistência de qualquer
outro meio que possibilite salvar a sua vida. Vê-se, portanto, que não se trata apenas de
cuidar da saúde da mulher, mas, sobretudo, que ela esteja de fato em risco de morte.
Este tipo de aborto é legalmente permitido, embora com o crescente avanço da
ciência bio-médica, perceba-se uma tendência de diminuição de casos, uma vez que
alternativas diversas surgem no cenário compatibilizando a gestação e a vida da mulher.
O reconhecimento de que a tipificação do aborto, tal qual figura no Código Penal,
se presta a tutelar a vida em estado potencial, meramente biológica, tanto que perde em
prevalência se confrontada com a vida jurídica da mãe, havendo claro e inequívoco
reconhecimento da diferenciação que existe entre a vida biológica e a jurídica.
A segunda hipótese prevista no Código Penal é também denominada de aborto
sentimental e trata de casos de interrupção de gravidez resultante de estupro e
fundamenta-se no direito à honra, à integridade física e psíquica da mulher e à segurança
social, pois o estupro é delito previsto no Código Penal em seu artigo 213.
Cabe ressaltar que a autêntica base eximente da ilicitude atribuída à prática do
aborto, para além do exercício regular de um direito no tocante à ação dos profissionais
de saúde (médico e sua equipe), é o consentimento da gestante ou de seu representante,
pois será este que faz surgir o direito de agir do médico.
A norma penal permissiva implica tão-somente na autorização para a interrupção
da gravidez em razão do desaparecimento da ilicitude do fato, tendo como conseqüência
a ausência de punibilidade para aquelas que optam pelo procedimento. Em outras
palavras, nenhuma mulher está obrigada a se submeter a este procedimento, sendo
endereçado à autonomia destas cidadãs a livre escolha da interrupção ou prosseguimento
da gravidez resultante de estupro.
Se levarmos em consideração o fato de que o legislador elencou o crime de aborto
no Capítulo relativo aos crimes contra a pessoa, mais especificamente, no capítulo que
trata sobre os crimes contra a vida, temos uma questão a ser refletida detidamente e que
denuncia, ainda que de forma oblíqua, a resistência frente ao abortamento, mesmo
aquele permitido por lei, causando importantes danos psíquicos e sociais às mulheres que
fruem este direito historicamente garantido.
Qual seria a razão pela qual o feto, cuja „vida‟ é tutelada pela legislação pátria,
passa a ser preterido, seja em termos de importância ou valor, frente a honra e a
integridade física ou mental da mãe em circunstâncias, ainda que eivada de gravidade
pelo ato de violência, se nem mesmo figura como sujeito, ativo ou passivo, do delito
praticado, que autorizaria legalmente o aborto? Em que medida o consentimento do
ofendido, no caso a mulher, autorizaria a agressão a um bem jurídico tutelado pela norma
penal, absolutamente alheio às circunstância em questão?
Se de fato o legislador estava a se referir ao produto da concepção como pessoa
humana, qual é o argumento moral que sustentaria a opção pela sua „morte‟, sem a
devida observância de todos os direitos que lhes seriam inerentes, em decorrência de um
delito praticado por terceiros.
Nesse sentido a permissão da interrupção da gravidez resultante de estupro
revelar-se-ia uma discriminação atentatória aos Direitos Fundamentais que ofenderia, de
uma só vez os direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à democracia.
Todavia não parece ser esse o entendimento majoritário, seja da doutrina, seja da
sociedade como um todo, o que sugere certa inadequação do aborto como crime contra a
vida e, sobretudo, o juízo do feto como pessoa, estremando-o da idéia de potência já
frisada acima.
A hipótese permissiva de aborto prevista no art. 128, II do Código Penal vigente,
sugere uma valoração moral da conduta que autorizaria a suposição de que, nesse caso,
a mulher poderia rejeitar uma “certa” vida que, ao que as evidências indicam, apresenta
grau de importância menor do que aquela fruto de uma relação consentida, esta sim,
verdadeiro objeto de tutela do Direito.
Em contraponto, seria endereçado à mulher, um juízo que lhe imporia o dever de
suportar a vida que traz no ventre sempre que esta fosse coincidente com o que,
supostamente, é compreendido como „vida legítima‟. Estaria em jogo, nessa operação,
uma espécie de punição social relativa à irresponsabilidade feminina que não soube evitar
a gravidez e, portanto, deve assumir o seu ônus.
O Estado Democrático de Direito pressupõe como substância de sua existência a
separação entre Estado e Religião, não sendo admitido disputas operadas em um campo
marcado pelo inexplicável ou transcendente, sob pena de se tornar refém de argumentos
baseados em uma autoridade auto-entronizada e infalível. O rompimento com a lógica do
Estado Laico faz ruir o edifício da democracia e da liberdade, fundado na pluralidade de
atores, cuja convivência se torna possível a partir do debate de posições divergentes,
minimamente inteligíveis.
Nesta perspectiva, no momento em que a vida passa a ser um valor absoluto e
supremo, oferecido por uma divindade transcendente, extingue-se a possibilidade de se
estabelecer qualquer debate, pois as bases constituintes deste cenário é uma
argumentação excludente e autoritária, incapaz de oferecer um ambiente favorável à
expressão de posições divergentes ou dissonantes ao que é posto por ela e, o que é pior,
potencializando conflitos psíquicos presentes até mesmo nos casos em que o aborto se
mostra como a alternativa, supostamente, menos danosa para a mulher.
Ao se atribuir à vida importância totalizante e inquestionável perde-se a capacidade
de se observar o caráter prima facie apresentado pelos direitos fundamentais, inclusive,
pelo direito à vida, tornando impossível sua confrontação por outros valores de grandeza
semelhante.
Vê-se, assim, que a condenação da mulher que aborta representa, em última
instância, uma dupla punição imposta a ela, uma vez que se encontra com uma gravidez
indesejada, seja resultado da mais pura violência, seja da incapacidade da sociedade de
prover condições de educação, cidadania e planejamento reprodutivo.
Isto posto, percebe-se a urgência de se ampliar o debate, trazendo para a arena
pública o maior número possível de participantes de modo a validar e legitimar possíveis
decisões que afetarão a vida de milhões de brasileiros, sobretudo brasileiras. Todavia,
para tanto, se faz necessário, construir uma base argumentativa minimamente comum,
capaz de sustentar a calorosa discussão sobre o tema, sob pena de encastelamento das
posições e da impossibilidade de se encontrar soluções pacíficas para a questão.
Talvez, a base argumentativa necessária para esta empreitada, tendo em vista a
imperativa ruptura de posições cristalizadas e cristalizantes, esteja na aproximação do
tema com o Direito Constitucional e as soluções possíveis apresentadas pela ponderação
de princípios e valores ali sediados. A utilização deste valioso recurso para saneamento
de conflitos sociais e jurídicos pode significar a estratégia necessária para a construção
de consenso ou acordo sobre a questão do aborto no Brasil.
Todavia avoluma-se o desafio, pois ao deslocar o debate sobre o aborto para sede
constitucional são introduzidas importantes variáveis que demandam operações mais
delicadas e sofisticadas para o tangenciamento de soluções possíveis.
Neste sentido, faz-se imperativo o debate destes fundamentos colocados em
xeque na esfera pública pelos atores sociais envolvidos na questão do aborto, direta ou
indiretamente, tendo em perspectiva um sistemático e criterioso esforço de interpretação
dos princípios constitucionais incidentes no caso concreto. Somente desta maneira podese encontrar saídas possíveis e válidas para o confronto de posições que a este grave e
urgente problema social encerra.
A análise rigorosa acerca desta questão pode vir a se revelar como um precioso
instrumento para a compreensão da gênese de um novo entendimento sobre o aborto no
Brasil que, articulada a elementos substanciais oferecidos pela moderna Hermenêutica
Constitucional pode ser capaz de operar significativas transformações na compreensão
correta do ordenamento jurídico pátrio, oferecendo, assim, respostas mais consistentes a
um problema que transcende ao campo do Direito Penal e afeta milhares de cidadãs.
Nesta perspectiva, ainda que não se resolva/supere todas as implicações
subjetivas da decisão sobre a interrupção da gravidez em casos previstos por lei as quais
estão sujeitas as mulheres que fruem deste direito, a ampliação do debate e a melhor
compreensão do tema minimiza os efeitos do abortamento, mesmo o legal, uma vez que
afasta deste campo o viés moral que tende a gerar culpa e angústias que as afasta do
albergue de um direito já garantido. Isto é o mínimo que se pode fazer de modo a
enfrentar uma violência perpetrada de forma constante e, muitas vezes, institucionalizada,
contra mulheres que insistem em sua autonomia e em seu direito de decidir acerca da
melhor condução de sua vida.
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