INTRODUÇÃO A LEITURA DO PENTATEUCO ALGUMAS QUESTÕES FUNDAMENTAIS SOBRE O PENTATEUCO
ALGUMAS QUESTÕES FUNDAMENTAIS
SOBRE O PENTATEUCO
A intenção deste primeiro capítulo é apresentar o Pentateuco em seu todo. Primeiro ponto, o significado da
palavra Pentateuco; depois, por que os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica formam um conjunto que, do ponto
de vista da revelação, possui um valor distinto de todo o restante do Antigo Testamento. O corte que separa o fim
do Deuteronômio e o começo do livro de Josué não é apenas temporal. Marca também a passagem de uma primeira
etapa da história para outra.
A. ORIGEM DA PALAVRA PENTATEUCO E DE SEU USO
Na tradição rabínica, a Torá (Lei) compreende os cinco primeiros livros da Bíblia e se encerra com a morte de
Moisés (Dt 34). Os cinco livros chamam-se ḥămiša ḥumse hattôrâ / ‫" — חמשה חומשי תורה‬os cinco quintos da Lei".
Provavelmente, essa expressão hebraica está na origem da expressão grega [h pevntateucoj] hè pentateuchos (biblos bibloj).
O termo grego pentateuchos (pevntateucoj – biblos/ bibloj), do qual provém, em latim, pentateuchus (liber) é
palavra composta de penta, "cinco", e teuchos, "instrumento", "utensílio"11.O primeiro significado desta última
palavra era estojo ou recipiente cilindrico dos rolos; depois, por metonímia, o conteúdo, ou seja, o rolo2. Pentateuco
significa, pois: "cinco livros", ou melhor, "cinco rolos".
Primeira parte do Antigo Testamento e da Bíblia hebraica, o Pentateuco contém os primeiros cinco livros
bíblicos, isto é, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esses títulos provêm da tradução grega
dos Setenta e foram assumidos pela Vulgata.
No hebraico, porém, o nome desses livros corresponde à primeira palavra importante deles: berē’šît / ְּ‫אשית ב‬
ִׁ֖ ‫ֵר‬
("No princípio", Gênesis); šemôt/‫"( ְׁשמֹות‬Os nomes", Êxodo); wayyiqra’/ ‫"( ַו ִּיקְ ָ֖רא‬Ele chamou", Levítico);
be midbār/ ‫"( ב מ ד ַּ֥ב ר‬No deserto [do Sinai]", Números); hadebārîm / ‫"( ה ד ָב ִ֗ר ים‬As palavras", Deuteronômio).
Os Santos Padres3 raramente usam o termo Pentateuco, preferindo referir-se à "lei" ou à "lei de Moisés",
em oposição aos "profetas", como os judeus e o Novo Testamento 4.
Outras obras antigas citam os "cinco livros" da lei 5. A primeira menção vem, talvez, nos manuscritos de
Qumran, onde aparece num fragmento a expressão kwl [s]prym hwmsym, que se poderia traduzir por "todos os
livros do Pentateuco"6. Tem-se também essa divisão em cinco livros no saltério da Bíblia hebraica (51 1-41; 4272; 73-89; 90-106; 107-150), provavelmente para fazer do saltério uma meditação sobre os cinco livros da Torá
("Lei"). Quanto a Sl 1, não há dúvida alguma (cf. Sl 1,2).
O evangelho de Mateus contém cinco discursos que terminam com fórmula semelhante (Mt 7,28; 11,1;
13,53; 19,1; 26,1). Como para Mateus Jesus é o "novo Moisés", não é impossível que tenha construído seu
evangelho como um "novo Pentateuco". O seu início — biblos geneseōs / Βίβλος γενέσεως — "livro da
genealogia", corresponde à tradução de Gn 2,4 nos Setenta (αὕτη ἡ βίβλος γενέσεως οὐρανοῦ καὶ γῆς ὅτε
ἐγένετο ᾗ ἡμέρᾳ ἐποίησεν ὁ θεὸς τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν).
As primeiras palavras do evangelho de João — en archèi/Ἐν ἀρχῇ — são as primeiras palavras do
Gênesis também nos Setenta e a tradução grega do título hebraico do livro (berē'sît).
Fílon, que escreveu antes da redação dos Evangelhos, diz que o primeiro dos cinco livros que contêm as
leis sagradas foi chamado pelo próprio Moisés de "Gênesis":
Moisés, o legislador dos hebreus, disse nos sagrados livros que o mundo era criado e incorruptível; são cinco esses livros; ao primeiro deles deu o
Em contextos especiais, a palavra grega teuchos/Teucoj pode ter quatro significados: no plural, em Homero,
“armas” ou “cordame” (velas, cordas, remos); depois de Homero, “vaso”, “recipiente” (“cântaro”, “jarra”,
"tina","módio", "estojo", "colmeia"); "rolo", "livro”.
2
C. HOUTMAN, Pentateuch, I.
1
3
Cf. J.-P. BOUHOUT, H. CAZELLES, "Pentateuque", DBS VII, 687-858, espec. 687 (J.-P. Bouhout). Encontramos a palavra Pentateuco em ORÍGENES, In Johannem, II; em
EPIFANIO, Adversus Haereses, 33,4; De mens. et pond., 4,5; PTOLOMEU, Carta a Flora, 4,1 (escritor gnóstico); ANASIO, Carta a Marcelino, 5. Nos Padres
latinos, encontra-se primeiro em TERTULJANO, Adversus Marcionem, 1,10; depois, em JERÔNIMO, Epistola LII ad Paulinam, 8; Praefatio in Libro Josue; por fim,
em ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, VI, 2,1-2.
4
Cf. Mt 5,17; 7,12; 11,13; 22,40; Lc 16.16; 24,27 ("Moisés e os Profetas"); 24,44 ("a lei de Moisés, os profetas e os salmos"); At 13,15; 24,14; 28,23; Rm 3,21.
5
Sobre esse ponto, cf. J. BLENKINSOPP, Pentateuch, 42-44.
6
D. BARTHELEMY, J. T. MILIK, Discoveries in the Judaean Desert I (Oxford 1955), 132-133.
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nome de Gênesis... 7
Em outro lugar, Fílon cita o primeiro versículo do Levítico, designando-o com seu nome "Levítico" 8.
Finalmente, cita também, muitas vezes, o livro do Deuteronômio, chamando-o, porém, "Protréptico", ou seja,
"Exortação", título bem apropriado a essa obra.
O nome Deuteronômio está nos Setenta, onde traduz a expressão misnéh hattôrâ / ‫ּתֹורה‬
ָ֤ ‫( ִמ ְׁש ֵ֙נה ַה‬Dt
17,18), "uma cópia da lei", pela qual o rei deve zelar, além de lê-la, todos os dias. Assim, melhor tradução
seria deuteros nomos, não deuteronomion, mas pode-se entender a opção dos Setenta, porque, então, o livro
já era chamado "Deuteronômio".
Flávio Josefo fala clarissimamente dos "cinco livros de Moisés", no final do século I d.C., em Contra
Apião I, VIII, 37-419:
Ninguém pode escrever a história nem há discordância nos escritos, mas apenas os profetas souberam, por
inspiração divina, os fatos mais antigos e de nós distantes e, com clareza, narram como as coisas aconteceram no
tempo deles. Portanto, é natural e até necessário que não tenhamos milhares de livros divergentes que se
contradigam, mas só vinte e dois livros, que encerram a história de todos os tempos e merecem fé. Desses, cinco
são os livros de Moisés, com as leis e a tradição, desde a criação do homem até a morte do próprio Moisés, num
período que abrange quase três mil anos. Da morte de Moisés até Artaxerxes, rei da Pérsia depois de Xerxes, os
profetas sucessores de Moisés relataram os acontecimentos de seu tempo em treze livros. Os outros quatro compreendem hinos ao Senhor e aconselhamentos de vida para os homens. Da época de Xerxes até hoje, tudo foi
contado, mas esses escritos não têm confiabilidade igual à dos anteriores, porque não é precisa a sucessão dos
profetas.
Tais testemunhos confirmam que, por volta do tempo em que Jesus nasceu, a tradição judaica já
estabelecera que eram cinco os livros fundamentais da lei, de autoria de Moisés e com autoridade superior à
dos demais livros atribuídos aos profetas.
B. TETRATEUCO, PENTATEUCO, HEXATEUCO OU ENEATEUCO10?
1. Hexateuco
A antiga tradição que limita os livros da lei ao número de cinco foi questionada pelos estudos sobre as
origens do Pentateuco e do povo de Israel. H Ewald, em Geschichte Israels, defende que a primeira obra
histórica de Israel foi "o livro das origens" (Das Buch der Ursprünge), que abarca o Pentateuco e o livro de Josué11.
Assim haviam pensado também Bonfrère (1625), Spinoza (1670) e Geddes (1792).
Depois de Ewald, tornou-se comum unir o livro de Josué ao Pentateuco, falando-se, então, de "Hexateuco"
("seis rolos") e não mais de Pentateuco. Assim, a obra clássica de Wellhausen intitula-se Die Composition des
Hexateuchs und der historischen Bücher des Alten Testaments 12 (A composição do Hexateuco e dos livros históricos
do Antigo Testamento).
O famoso exegeta G. von Rad também fala de Hexateuco em seu trabalho fundamental, Das formgeschichtliche
Problem des Hexateuch13 (O problema da história das formas do Hexateuco). Para ele, o núcleo das tradições sobre
as origens de Israel está no "pequeno credo histórico" de Israel, como, por exemplo, em Dt 6,21-23 e sobretudo
26,5-9 (cf Js 24,2-13).
Ora, esse "credo" termina com a menção ao dom da terra. Conclui disso Von Rad que não se deve falar de
Pentateuco mas de Hexateuco, pois a tradição sobre as origens de Israel devia concluir com a narrativa da
conquista agora inserida no livro de Josué, o sexto livro da Bíblia hebraica.
7
Cf. FÍLON DE ALEXANDRIA, De Aeternitate Mundi, 19; De Opificio Mundi, 12; De Posteritate Caini, 127. Citado por J. BLENKINSOPP, Pentateuch, 44.
De Plantatione, 26.
9
FLAVIO JOSEFO, In difesa degli Ebrei (Contra Apione). Editado por F. CALATI (Veneza
1993), 60-61; cf. J. BLENKISOPP, Pentateuch, 43.
10
A esse respeito, cf. R. SMEND, Entstehung, 33-35.
11
H. EWALD, Die Geschichte des Volkes Israel I (Gottingen 3 1864), 94.
12
J. WELLHAUSEN, Die Composition des Hexateuchs und der historichen Bucher des Alten Testaments (Berlin 1866; 31899).
13
G. Von Rad, Das Formgeschichtliche Problem des Hexateuch (BWANT W, 26; Stuttgart 1938), = Gesammelte Studien zum Alten Testament (TBii 8; Munchen
1961), 9-86.
8
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2. Tetrateuco
A tese de von Rad foi contestada por um discípulo seu, Martin Noth, em seu famoso Überlieferungsgeschichte
des Pentateuch14 (História das tradições do Pentateuco), obra que está na origem da denominação "Tetrateuco"
("quatro rolos"), porque exclui do Pentateuco o Deuteronômio, com base em três observações15:
— Não há textos "deuteronômicos" nos quatro primeiros livros da Bíblia, excetuado algum acréscimo sem
maior importância. Daí a inexistência de ligação literária mais estreita entre Gn–Nm, de um lado, e Deuteronômio,
de outro.
— As fontes do Pentateuco não aparecem no livro de Josué. Em outras palavras, narrativas começadas em Gn–Nm
não continuam no livro de Josué. Fica, assim, difícil falar de Hexateuco16
— O Deuteronômio é o prefácio da "história deuteronomista" (Js-2Rs). Precede o "código
deuteronômico" uma breve síntese da história de Israel (Dt 1-3), que repete dados já conhecidos do
leitor do livro dos Números. Só se entende essa repetição vendo o Deuteronômio como início de uma nova
obra, continuada nos livros históricos, a saber, Js-2Rs. Que sentido teria Dt 1-3 se o Deuteronômio fosse,
realmente, conclusão de uma obra que abrangesse o livro dos Números?
É preciso ler a história deuteronomista "à luz do Deuteronômio", Josué, por exemplo, pode conquistar a
terra porque é fiel à "lei de Moisés" (Js 1,7-8; 23,6), enquanto o povo infiel é castigado por seu Senhor com a
perda da terra (2Rs 17,7-23; especialmente 17,13.19). No fundo, a "história deuteronomista" é a história
da fidelidade de Israel à lei de Moisés, contida no Deuteronômio.
Para Noth, o Pentateuco se formou quando os dois blocos — Gn–Nm, de um lado, e Dt, com a história
deuteronomista, de outro — foram agrupados numa única grande obra. Aí, Dt aparece como conclusão do
Pentateuco, sendo, pois, necessário separá-lo de Js e do resto da história deuteronomista.
Noth, porém, jamais defendeu um "Tetrateuco", porque, para ele, as fontes antigas, como os atuais
Gn–Nm, pedem uma continuação, ou seja, um relato da conquista. Foi o exegeta sueco Engnell que
deu o passo decisivo para afirmar a existência de um Tetrateuco independente17. Para esse exegeta, o atual
Tetrateuco (Gn–Ex–Lv–Nm) seria obra de P (autor sacerdotal), que teria recolhido e compilado velhas tradições
orais. Junto desse Tetrateuco sacerdotal havia o Dt e a história deuteronomista18. Engnell, infelizmente, apenas
enunciou sua tese, sem fornecer uma argumentação completa para apoiá-la.
3. Eneateuco
AS TESES
Segundo alguns exegetas, o conjunto Gn-2Rs deve ser lido como uma grande unidade literária, que vai da
criação do mundo até o exílio de Babilôia19. O tema principal dessa narrativa seria a terra. De início, YHWH
a promete aos patriarcas. Em Ex—Nm, Israel caminha para ela no deserto. Josué a conquista e os Juízes a
defendem. Com Davi e Salomão, torna-se um reino, unido e depois dividido em Norte e Sul. No fim, Israel
perde essa terra, quando do exílio de Babilônia.
Na opinião de D. N. Freedman, essa longa narrativa seria a "História Principal" ou a "história primeira" de
Israel (Primary History)20. Vale distinguir essa "História Principal" da "História do Cronista", que consta em 1-2
Cr e em Esdras—Neemias.
A segunda história do Cronista retoma, de forma bastante abreviada, a narração das origens, da criação
ao reinado de Davi, concentrando-se, sobretudo, nele, em seu filho Salomão e em seus sucessores. Os livros
de Esdras e Neemias descrevem a reconstituição da comunidade de Israel, após o exílio.
A "História Principal" termina contando a destruição do templo e o exílio, enquanto a "História do
Cronista" vai culminar na reconstrução do templo e da comunidade após o exílio.
14
M. NOTH, Überlieferungsgeschichte des Pentateuch (Stuttgart 1948 = Darmstadt 1960), (abrev. UP).
M. NOTH, UP, 5-6; cf. S. MOWINCKEL, Tetrateuch — Pentateuch — Hexateuch. Die Berichte über die Landnahme in den drei altisraelitischen Geschichtswerken (BZAW
90; Berlin 1964), 3.
16 M. NOTH, UP, 5; cf. id., Das Buch Josua (HAT I,7; Tübingen 1938), XIII-XIV.
17 I. ENGNELL, Gamla Testament. En traditionshistorisk inledning. I (Stockholm 1945), 209-212; id., "The Pentauch", A Rigid Scrutiny (Nashville 1969), = Critical Essays on
the Old Testament (London 1970), 50-67.
18 Cf. S. MOWINCKEL, Tetrateuch, 3-4.
19 "Eneateuco" significa "nove rolos": Gn, Ex, Lv, Nm, Dt, Js, Jz, 1-2Sm e 1-2Rs. Na Bíblia hebraica, o livro de Rute integra os "Escritos" e os dois livros de Samuel figuram
como um único livro, assim como os dois livros dos Reis.
20 D. N. FREEDMAN, "Pentateuch", IDB 3 (New York 1967), 711-727, especialmente 712-713.
15
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ALGUNS DADOS
 Para alguns exegetas, a "história de Israel" não se encerra com a conquista da terra. Jz 2,8.10, por
exemplo, liga-se a Ex 1,6.821:
Morreram José, os seus irmãos e toda aquela geração... Então, um novo rei, que não havia conhecido José, levantou-se sobre o Egito
(Ex 1,6.8).
Josué, filho de Nun, servo de YHWH, morreu com a idade de cento e dez anos... E depois toda aquela geração se reuniu a seus pais; após
ela surgiu outra geração, mas esta não tinha conhecido nem YHWH nem a obra que ele realizara em favor de Israel (Jz 2,8.10; cf. Js
24,29.31).
Esses "ganchos" literários ligam vários blocos narrativos, além de sinalizar a passagem de um período a
outro da história de Israel. Ex 1,6.8 marca a transição da idade dos patriarcas para a do êxodo; Jz 2,8.10, da
época de Josué para a dos Juízes (cf. Js 24,29.31).
 Outro indicativo dessa visão global da história de Israel está na cronologia dos diversos livros. A
permanência no Egito, por exemplo, é de 430 anos, segundo Ex 12,40-41 (cf. Gn 15,13: 400 anos). Salomão
começa a construir o templo 480 anos depois do êxodo (1Rs 6,1), isto é, 430 + 50 anos. Contando a partir
dessa data, ou seja, do quarto ano do reinado de Salomão, até o final do reinado de Judá, chega-se a 430 anos22.
Se acrescentarmos os cinquenta anos do exílio, teremos de novo 480 anos. Para tanto, é preciso, porém,
tomar os dados de 1-2Rs sem correção alguma.
Há outros dados semelhantes. Por exemplo, na cronologia do autor sacerdotal, o êxodo aconteceu em
2666 após a criação do mundo. 2.666 anos são dois terços de 4.000 anos, número simbólico, provavelmente.
Quatro mil depois da criação pode coincidir com a purificação e a nova dedicação do templo pelos Macabeus
(164 a.C.)23. Mas é preciso lembrar que nem todos esses dados são unívocos, sem esquecer que a cronologia
por si só não cria uma história unificada.
 Blenkinsopp afirma, por três razões, que o Pentateuco não pode se encerrar com a morte de Moisés
(Dt 34)24:
a) Sem o livro de Josué, a promessa da terra, feita aos patriarcas, ficaria incompleta25. Por outro lado, Js
21,43-45 vê na conquista o cumprimento de uma promessa feita bem antes aos antepassados de Israel:
YHWH deu a Israel toda a terra que jurara dar a seus pais; tomaram posse dela e nela se estabeleceram. YHWH
concedeu-lhes descanso por todos os lados, conforme prometera a seus pais; nenhum de todos os seus inimigos pode resistir
diante deles; YHWH libertou-os de todos os seus inimigos. De todas as palavras excelentes que YHWH dissera à casa
de Israel, nem uma só falhou; todas se cumpriram.
b) Há correspondência entre a obra da criação (Gn 1), a construção do santuário no deserto (Ex 35-40) e a
instalação do santuário na terra prometida (Js 18-19). Enfim, o templo de Salomão será construído
480 anos depois do êxodo (1Rs 6,1). Essa forma de datação coloca, portanto, a criação, o êxodo e a
construção do templo de Salomão numa única narrativa.
Na história de Israel, a fidelidade à aliança e à lei constitui tema prioritário, tanto quanto a infidelidade
do povo representa a causa do exílio, na história deuteronomista. Ora, essa temática já aparece em Gn
2-3 com uma tonalidade universal. O jardim do Eden corresponde à terra, a ordem de não comer o
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal corresponde à lei de Moisés e a expulsão de Adão e
Eva do paraíso, após o pecado corresponde ao exílio26.
Esses argumentos, contudo, não convencem plenamente. O vocabulário de Js 21,43-45 é tipicamente
deuteronomista e aparece só parcialmente em certos textos tardios, como Gn 15,7.18; 26,3:
J. BLENKINSOPP, Pentateuch, 36-37, na esteira de R. RENDTORFF, Das überlieferungsgeschtliche Problem des Pentateuch (BZAW 147; Berlin-New York 1977),
166-169.
22 J. BLE NKI NSOPP , Pe ntateuch, 48.
23 Cf. J. BLENKINSOPP, Pentateuch, 48. Para outros dados, cf. 47-50.
24 J. BLE NKINSOPP, Pentateuch, 34-35.
25 Do contrário, se deveria falar de "cumprimento parcial da promessa" ou de "prorrogação da promessa". Cf. D. J. A. CLINES, The Theme of the Pentateuch (JSOTS 10;
Sheffield 1978).
26
Cf. L. ALONSO SCHOKEL, "Motivos sapienciales y de alianza en Gn 2-3", Bib 43 (1962), 295-316; N. LOHFINK, "Die Erzãhlung vom Sündenfall", Das Siegeslied
am Schilfmeer. CRÖMERliche AuseVätenersetzung mit dem Alten Testament (Frankfurt 1965), 81-101.
21
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[YHWH disse a Abraão:] "Eu sou YHWH que te fez sair de Ur
dos Caldeus para dar-te esta terra em posse" (15,7).
Nesse dia, YHWH firmou uma aliança com Abraão nestes termos: —
É à tua descendência que dou esta terra (15,18).
[YHWH disse a Isaac:] "... a ti e à tua descendência darei estas terras
e manterei o juramento que fiz a teu pai Abraão" (26,3).
Por outro lado, discute-se, atualmente, se "os pais" são os patriarcas ou os israelitas no Egito 27.
Ademais, as promessas a que se refere Js 21,44 não estão no Gênesis, mas em Dt 12,10b; 25,19, onde
aparece, como em Js 21,44, a expressão " conceder o repouso em face de todos os inimigos ao redor".
Nesses dois últimos textos, é ao povo do êxodo e não aos patriarcas que se faz a promessa. A ligação, se
houver, é pouco clara e, de qualquer maneira, tardia.
São bem conhecidas as correspondências entre Gn 1 e Ex 24-25; 3940 28. O quadro da semana de Gn
1,1-2,4a, por exemplo, volta em Ex 24,16, mas essa temática não aparece em Js 18,1; 19,51.
Não são muito específicas as analogias entre Gn 2-3 e o tema da terra, na história deuteronomista. O
vocabulário difere e não há nenhuma alusão explícita à história do Gênesis na história
deuteronomista. Faltam também em Gn 2-3 referências claras à teologia da aliança. O castigo
prometido, em Gn 2,16-17, a quem descumprir a ordem não é a expulsão do paraíso, mas a morte
(2,17b). Por fim, Gn 2-3 também é, com muita probabilidade, um texto relativamente tardio29.
Concluindo, é preciso esclarecer a situação e definir melhor o objeto do debate. Se, do ponto de vista
canônico, se pode falar de “Eneateuco” ou “História Principal”, isso não vale quanto ao aspecto literário.
A análise crítica dos vários livros mostra, por exemplo, os pontos de contato entre Dt e Js, ou Dt e 1-2Rs.
Mas nenhum estudo literário conseguiu unir num conjunto orgânico todos os livros da “História Principal”
de Israel, a saber, Gn-2Rs. Essas ligações pairam em nível de temáticas genéricas, sem relações concretas na
organização literária dos diversos livros.
C. MOISÉS, O PENTATEUCO E O CÂNON DA BÍBLIA HEBRAICA30
Há razões importantes para continuar falando de um “Pentateuco”, embora, como veremos adiante,
esse modo de integrar os primeiros livros do Antigo Testamento não exclua outros. Mas ele tem um valor
especial, porque leva em conta uma forma canônica, definitiva e normativa da Bíblia para a comunidade
de fé, ou seja, primeiro para o povo de Israel, agora para as Igrejas cristãs.31
1. O Pentateuco — Dt 34,10-12
No Pentateuco, existe um texto fundamental, verdadeiro divisor de águas a separar os primeiros cinco
livros da Bíblia dos subsequentes (Js-2Rs). Trata-se de Dt 34,10-1232:
Nunca mais surgiu em Israel um profeta como Moisés, a quem YHWH conhecia face a face, a quem YHWH
enviara para cumprir todos esses sinais e todos esses prodígios na terra do Egito, diante de Faraó, de todos os seus
servos e de toda a sua terra: Moisés, que procedera com todo o poder de sua mão, suscitando todo esse grande
terror ante os olhos de todo Israel.
27
TH. RÖMER, Israels Väten Untersuchungen zur Väterthematik im Deuteronomium und in der deuteronomistischen Tradition (OBO 99Väterburg Schweiz-Gottingen 1990);
sobre Gn 21,43-45, ver 358-363; N. LOHFINK, Die Väter Israels im Deuteronomium. Mit einer Stellungnahme von Thomas Römer (OBO 111; Freiburg SchweizGottingen 1991), 81-85 (sobre Gn 21,43-45).
28 Cf., por exemplo, P. J. KEARNEY, "Creation and Liturgy: The P Redaction of Ex 2540", ZAW 89 (1977), 375-387.
29 Cf., por Lehrerzähl ungTTO, "Die P aradieserzãhl ung Genesis 2 -3: Eine nachpriesterschriftliche Lehrerzãhlung in ihrem religionshistorischen Kontext",
Jedes Ding hat seine Zeit...Studien zur israaelitischen und altorientalischen Weisheit (FS. D. MICHEL), (org.: A. A. DIESEL et alii), (BZAW 241; Berlin-New York 1996),
167-192.
30 Baseamo-nos, com algumas alterações, em ZENGER, Einleitung, 24-26.
31 Sobre a questão do cânon, cf. J. A. SANDERS, Torah and Canon (Philadelphia, PA 1972); id., "Adaptable for Life: The Nature and Function of Canon", Magnalia Dei.
Essays on the Bible and Archeology in Memory of G. Ernest Wright (Garden City 1976), 531-560; B. S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture (Philadelphia 1979).
Sobre seu método, cf. P. R. NOBLE, The Canonical Approach. A Critical Reconstruction of the Hermeneutics of Brevard S. Childs (Biblical Interpretation Series 16;
Leiden 1995).
32 Sobre esse texto, cf. F. GARCIA LÓPEZ, "De la antigua a la nueva crítica literaria del Pentateuco", EstBíb 52 (1994), 7-35, 25-35; id., "Deut 34. Dtr History and the
Pentateuch", Studies in Deuteronomy (FS. C. J. Labuschagne), (VTS 53; Leiden 1994), 47-61; CH. DOHMEN, M. OEMING, Biblischer Kanon, varum und wozu? (QD
137; Freiburg 1992).
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Esse texto acentua três pontos importantes:
1. Moisés é o maior de todos os profetas. Por isso, a “lei de Moisés” supera todas as outras formas de
revelação. A sua Torá é incomparável, insuperável e permanecerá válida para sempre. Em outras
palavras, a revelação que remonta a Moisés é superior a todas as outras revelações dos profetas. Razão
por que, no cânon, Moisés precede os “profetas anteriores” (Js-2Rs) e os “profetas posteriores” (Is–Ml).
Também vem antes dos “escritos” ou livros sapienciais. A autoridade do Pentateuco depende, em
suma, da autoridade superior de Moisés33.
2. A superioridade de Moisés deriva da superioridade de seu relacionamento com YHWH (cf. Ex 33,11;
Nm 12,6-8; Jo 1,18; 3,11) 34 YHWH e Moisés estavam em “contato direto”, sem intermediários ou
“telas” (como nos sonhos e visões; cf. Nm 12,6-8).
3. O êxodo constitui acontecimento fundamental da história de Israel. Nenhum outro pode ser comparado a
ele. Portanto, a fundação de Israel remonta a Moisés e não a Davi nem a Salomão. Na realidade, Israel
é anterior à monarquia e até mesmo à conquista da terra prometida.
2. A segunda parte da Bíblia Hebraica: os profetas anteriores e posteriores
JOSUÉ 1,1-8
O texto de Js 1,1-8 aproxima, claramente, a figura e a obra de Josué da figura e da obra de Moisés:
Após a morte de Moisés, o servo de YHWH, YHWH disse ao auxiliar de Moisés, Josué, filho de Nun: — Moisés,
meu servo, morreu. Agora, pois, levanta-te, atravessa este Jordão aqui, tu e todo este povo, rumo à terra que eu lhes
dou — aos filhos de Israel. Todo lugar que a planta de vossos pés pisarem, eu vo-lo dei, como disse a Moisés;
desde o deserto e o Líbano aí, até o grande Rio, o Eufrates, toda a terra dos hetitas, e até o Grande Mar, ao poente, tal
será o vosso território. Ninguém te poderá resistir ao longo de tua vida. Assim como eu estava com Moisés, estarei
contigo; eu não te faltarei, não te abandonarei. Sê forte e corajoso, pois és tu que darás em patrimônio a este povo a
terra que jurei a seus pais lhes daria. Sim, sê forte e muito corajoso; sê atento em agir conforme a Lei que meu servo
Moisés te prescreveu. Não te desvies dela nem para a direita nem para a esquerda, a fim de seres bem-sucedido
em toda parte aonde fores. Este livro da lei não se afastará da tua boca, murmurá-lo-ás dia e noite, a fim de que
tenhas o cuidado de agir conforme tudo o que nele se acha escrito, porque então tornarás prósperos os teus caminhos,
então terás êxito.
Nesse trecho, podemos divisar pelo menos quatro afirmações básicas sobre o livro de Josué e sobre os
livros proféticos, anteriores e posteriores:
 Josué é o sucessor de Moisés. Cabe-lhe conquistar e, depois, distribuir a terra prometida aos seus
antepassados.
 Moisés é o servo de YHWH - ‫שה ֶעֶ֣בֶ ד ְי הוָ֑ה‬
ָ֖ ֶ ֹ‫‘( מ‬ebed YHWH); Josué tem outro título: “auxiliar de Moisés”
- ‫( ְמש ֵ֥רת מֹ ֶ ָ֖שה‬mesarét mōšeh). Enquanto Moisés se define pela relação com YHWH, Josué se define pela relação
com Moisés. É um outro nível da “revelação” e do relacionamento com YHWH. Em outras palavras, Josué é
o sucessor de Moisés, mas não ganha o título de “servo de YHVVH”.
 Entre Josué e Moisés há continuidade: YHWH tratará Josué como fez com Moisés (v. 5). Cumprirá a
promessa feita a Moisés de dar a terra em patrimônio a Israel (v. 3). Mas fica claro que o início e o
fundamento da história de Israel é Moisés e não Josué.
 O êxito de Josué depende da sua fidelidade à “lei de Moisés”(vv. 78). Essa lei está “escrita” - ‫כְ כל־הַ כ ָ֖תּוב‬
‫( ָ֑בֹו‬hakkatûb, v. 8) num “livro” - ‫( ס ֶפר‬séper, v. 7). Doravante, será a pedra angular de todas as iniciativas da história
de Israel e o critério também para julgar a história. A história de Israel será a história da fidelidade ou da
infidelidade à lei de Moisés35.
B. S. CHILDS, Intro duction, 134-135.
Quanto à figura de Moisés no Novo Testamento, c£, entre outros, D. C. ALLISON, The New Moses. A Matthean Typology (Minneapolis 1993); M.-E. BOISMARD,
Moïse ou Jésus. Essai de Christologie johannique (BETL 84; Leuven 1988).
35 Cf. 1Rs 17,7-23, especialmente 17,13-16, que explica o fim do reino do Norte a partir desse princípio: a infidelidade à lei levou à ruína o reino de Samaria.
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MALAQUIAS 3,22-24
O final dos livros proféticos (Ml 3,22-24) traz uma série de afirmações semelhantes:
Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, a quem, no Horeb, dei leis e costumes para todo Israel. Eis que vou enviar-vos Elias, o profeta, antes que venha dia de YHWH, o grande e terrível
dia. Ele reconduzirá o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, a fim de que eu não
venha para ferir a terra com o interdito.
Temos aí a conclusão, praticamente, de todo os livros proféticos (nebí’îm). No que tange à relação dos livros
proféticos com a lei mosaica (o Pentateuco), notam-se quatro elementos essenciais:
 A leitura dos profetas deve ser uma maneira de “recordar” a lei de Moisés. Nessa perspectiva “canônica”
da Bíblia, a profecia atualiza a lei e a mantém viva na memória de Israel.
 A lei de Moisés é lei divina. Divina e não humana a sua autoridade. Em termos mais modernos, a lei de
Moisés é fruto de uma revelação e não da razão humana.
 Essa lei está, sobretudo, no Deuteronômio. Nele, YHWH aparece no monte Horeb, não no Sinai — por
exemplo, em Dt 5,2 e Ex 19,1. A expressão “leis e costumes” é tipicamente deuteronômica (cf. Dt 5,1; 11,32;
12,1; 26,16).
 Dos profetas, apenas Elias é mencionado, porque o mais parecido com Moisés. Como Moisés, ele esteve
no Horeb (1Rs 19) e ouviu YHWH na caverna (cf. Ex 34). Lembrem-se também os “quarenta dias e quarenta
noites” de Ex 24,18; ketubîrn Dt 9.9 e 1Rs 19,836.
3. A terceira parte da Bíblia Hebraica: “Os Escritos” (ketubîrn)
SALMO 1
O salmo 1 — introdução a toda a terceira parte da Bíblia Hebraica - também encerra algumas alusões à lei:
Feliz o homem que não toma o partido dos maus,
não se detém no caminho dos pecadores
e não se senta no banco dos zombadores,
mas se compraz na Lei de YHWH
e recita sua Lei dia e noite!
... ele tem êxito em tudo o que faz.
Para situar os salmos e os escritos perante a lei, destaquemos alguns pontos importantes desse trecho:
 O critério que distingue o justo do ímpio e do pecador é a meditação da lei. Esta é também o critério de
julgamento (Sl 1,5-6). Este salmo aplica à pessoa o que “os profetas anteriores” (os livros históricos) afirmavam a
respeito do povo.
 A lei é chamada “lei de YHWH” (tôrat YHWH).
 O salmo 1 sugere que se leiam todos os salmos e todos os "escritos" como uma meditação da lei de
YHWH37.
2CR 36,22-23
A conclusão da Bíblia Hebraica, que coincide com o fecho dos "escritos", encontra-se em 2Cr 36,22-23.
Nesse texto, temos uma última chave para compreender o significado de toda a Bíblia, segundo o cânon hebraico:
22
No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para cumprir a palavra de YHWH
que saíra da boca de Jeremias, YHWH despertou o espírito de Ciro, rei da
Pérsia, a fim de que em todo o seu reino mandasse fazer uma proclamação, e até um documento
escrito, para dizer: 23Assim fala Ciro, rei da Pérsia: YHWH, Deus do céu, entregou-me todos os reinos
da terra; ele me encarregou de construir para si uma Casa em Jerusalém, na terra de Judá. Todo aquele
que pertencer ao seu povo, YHWH, seu Deus, esteja com ele, e que suba a Jerusalém.
Por isso Moisés e Elias aparecem juntos na cena da Transfiguração de Jesus (Mt 17,3 par.).
Há muitas semelhanças entre este salmo e Js 1,1-8, como as expressões “meditar a lei dia e noite” e “ter êxito em tudo”. É inegável o sabor deuteronomista dos
dois textos.
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Façamos três observações importantes:
 Não se mencionam aqui Moisés e a lei, mas Jeremias e Jerusalém. A Bíblia Hebraica termina convidando a
“subir” (weyā‘al), verbo que pode conter uma alusão ao êxodo, porque uma fórmula que descreve a saída do Egito
traz também esse verbo “subir” (‘lh, hif, cf. Ex 3,8).
 No Pentateuco, o templo de Jerusalém não é citado como tal. Mas devem ser lidos em relação com ele
certos textos, como Ex 25-31; 34-40; as regras cultuais do Levítico e a lei da centralização do culto, em Dt 12.
 De qualquer forma, entre os últimos livros da Bíblia Hebraica estão os livros de Esdras e Neemias, que,
muito provavelmente, numa época anterior, vinham depois das Crônicas. A sequência 1-2Cr–Esdras–Neemias
reflete melhor a cronologia dos fatos. Ora, os livros de Esd–Ne culminam na solene proclamação da “lei de
Moisés” perante todo o povo (Ne 8; cf. 8,1), lei que se torna a pedra fundamental da comunidade pós-exílio. É
difícil imaginar o templo sem referência à lei e às prescrições cultuais do Pentateuco. Na parte mais sagrada do
templo, o santo dos santos, encontra-se a arca, e nela um único objeto: as duas tábuas dadas por YHWH a
Moisés, no Horeb (2Cr 5,10). A “Lei” reside no coração do templo. E o culto segue o que determina a lei de
Moisés (2Cr 8,13). Muitas são também as referências à lei de Moisés nos livros de Esdras e Neemias (Esd 3,2; 6,18;
7,6; Ne 1,7-8; 8,1.14; 9,14; 10,30; 13,1).
Vimos, assim, que o cânon hebraico se encerra conclamando todos os judeus da diáspora a que voltem a
Jerusalém, para colaborar na reconstrução do templo. Esse apelo final pede a cada leitor da Escritura uma resposta
de vida. No cânon hebraico, a Bíblia mostra uma estrutura aberta para o futuro. O derradeiro verbo não é um
simples indicativo, mas um jussivo, uma forma de imperativo.
4. Conclusão
Dessas observações podemos extrair algumas conclusões essenciais para a leitura do Pentateuco, partindo do
cânon da Bíblia Hebraica.
A importância desses diversos textos, que emolduram as três partes principais da Bíblia Hebraica, deve-se a seu
conteúdo e a sua posição estratégica na Escritura. A divisão ressalta a proeminência da "Lei", que, na tradição
bíblica, traz a marca da personalidade excepcional de Moisés. O Pentateuco é único porque Moisés ocupa um
lugar único na história da revelação.
— Os cinco livros do Pentateuco possuem, pois, um caráter “normativo”, ausente nos outros textos bíblicos38.
— Além disso, o Pentateuco reproduz, em grande parte, a biografia de Moisés, que começa com seu nascimento
em Ex 2 e termina em Dt 34, com sua morte. Mas é, na verdade, uma “vida de Moisés a serviço de YHWH e
do povo de Israel”. Precede essa “vida de Moisés” o livro do Gênesis, que descreve a origem do mundo (Gn 1-11)
e do povo de Israel (12-50) 39.
— Do ponto de vista do cânon, essa união de livros é mais importante que outras. Por exemplo, a ligação do
Deuteronômio com Moisés é mais importante que os elos entre Deuteronômio e história deuteronomista. Isso coloca
um problema sério a propósito da terra prometida, que, em grande parte, aparece fora do Pentateuco. A promessa
da terra, não a sua posse, constitui elemento essencial para a fé israelita. Em outras palavras, na visão do
Pentateuco, é possível integrar o povo de Israel sem viver na terra prometida. Tal assertiva pode ser mais
bem entendida após a experiência do exílio e na diáspora40
— Outro dado deve ser enfatizado. Pelo cânon da Escritura hebraica, a monarquia está subordinada à lei,
pois as instituições mosaicas são capitais para a existência de Israel, enquanto o povo pode prescindir da monarquia.
Trata-se de uma verdade fruto da trágica e sofrida vivência no desterro. Àquela altura, Israel descobriu que era
anterior a Davi e à própria conquista de Josué. Nascera, como povo, muito antes, quando o Senhor o fez sair do
Egito, da casa da servidão.
Para reencontrar as primeiras pistas de seus antepassados, cumpre remontar mais longe ainda e chegar a Abraão,
Isaac e Jacó. O Senhor havia prometido a eles a terra que, antes de morrer, Moisés contemplou, sem conseguir
entrar nela (Dt 34,1-4). O Pentateuco encerra os dois pontos absolutamente essenciais na definição da
identidade de Israel: os patriarcas e Moisés. Israel é o povo que descende dos patriarcas e viveu a experiência
do êxodo, liderado por Moisés.
J. BLE NKINSOPP, Pentateuch, 51-52.
Cf. BLENKINSOPP, Pentateuch, 52; E. ZENGER, Einleitung, 36, e muitos outros.
40 A esse respeito, cf. J. A. SANDERS, Torah and Canon; resumo em B. S.CHILDS, Introduction, 131-132.
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Do ponto de vista teológico, os dois elementos básicos são as promessas feitas aos antepassados e o
binômio êxodo/lei (cf. Ex 20,2-3). O Senhor de Israel se define como “o Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacó”(Ex 3,6) e como “o Senhor que fez [Israel] sair do Egito, da casa da servidão” (Ex 20,2). Essas duas
afirmações sustentam todo o Pentateuco, excetuada a história das origens (Gn 1-11). Os primeiros capítulos do
Gênesis agregam um último elemento: o Deus dos patriarcas e o Deus do êxodo é também o criador do
universo.
A estrutura do Pentateuco e a organização do cânon hebraico são fundamentais para a compreensão do
Novo Testamento. A vida pública de Jesus, nos quatro Evangelhos, começa no Jordão, onde João batiza. Por
que essa moldura? A resposta vem pronta para quem leu o Pentateuco. Moisés chegou diante do Jordão com seu
povo e morreu sem ter podido atravessar essa última fronteira. Ficou, pois, incompleta sua obra. A conclusão do
Pentateuco é uma conclusão aberta para a terra que Moisés contempla. Josué terminará a obra iniciada.
Jesus, quando aparece nos Evangelhos, tem missão semelhante. Anuncia a vinda do “reino”, ou seja, o dia em
que Israel poderá, finalmente, tomar posse de sua terra. O começo do Novo Testamento significa o acabamento da obra incompleta de Moisés. Jesus é um outro Josué.
Na realidade, são dois nomes idênticos: Josué, na forma hebraica; Jesus, na forma aramaica. Na cura do
paralítico, à beira da piscina de Betesda (Jo 5), Jesus acena para essa temática ao dizer: “Moisés escreveu a meu
respeito” (5,46). Moisés anunciara que YHWH havia escolhido Josué para cumprir sua promessa aos
patriarcas de dar a terra ao povo41. Para Jo 5, Jesus é esse Josué anunciado. Razão por que os Evangelhos
começam às margens do Jordão, onde o povo se situa ainda em Dt 34, ao se fecharem as cortinas do
Pentateuco e da biografia de Moisés42.
Cf. J. L. SKA, “Dal Nuovo all’Antico Testamento”, CivCatt 147,II (1996), 14-23, especialmente 20-23; id., “Il canone ebraico e il canone cristiano dell’Antico Testamento”, CivCatt 148,
III (1997), 213-225.
42 Os livros proféticos terminam com o anúncio da volta de Elias, identificado pelo Novo Testamento com João Batista (MI 3,23-24; cf. Lc 1,17; Mt 11,14; 17,12-13). Finalmente, a vinda de Jesus
permitirá que se responda ao chamado de Ciro em 2Cr 36,23. Cf. Jo 2,10: Jesus é o novo templo (cf. 4,21-24); ele reunirá todos os filhos de Deus dispersos (Jo 10,16; 11,51-52).
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Pentateuco - catedral sagrado coração de jesus