Zeitgenössische Stillleben: Meditações sobre a morte na fotografia de Joel-Peter
Witkin.
Israel Souto Campos 1
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a apropriação das técnicas pictóricas na
composição fotográfica contemporânea baseada na “Stillleben”, ou natureza morta europeia dos séculos 16
e 17, mais precisamente as contidas na obra do fotógrafo estadunidense Joel-Peter Witkin. Para tal fim,
trabalha-se com o conceito da inelutável cisão do ver de Georges Didi-Huberman no que tange a evocação
da beleza esmaecida, e da corrupção dos objetos através de uma perspectiva tautológica, transcendidos
simbolicamente por meio de uma concepção da crença a partir do valor transitório da vida que lhes é
atribuído. O artigo busca traçar, não um histórico antropofágico realizado por Witkin no desenvolvimento de
suas naturezas mortas, muitas delas compostas por pedaços de cadáveres; mas debate sobre como a
correspondência entre as obras de períodos tão distintos servem a construção alegórica da temática na
contemporaneidade.
Palavras-chave: fotografia, natureza morta, tautologia, crença, stillleben.
Abstract: This paper aims to analyze the ownership of the painting techniques based on contemporary
photographic composition "Stillliben", or still life of European 16th and 17th centuries, specifically those
contained in the work of American photographer Joel-Peter Witkin. To this end, we work with the concept of
the inevitable breakup see Georges Didi-Huberman regarding the evocation of beauty faded, and the
corruption of objects through a tautological perspective, symbolically transcended through a conception of
belief transition from the value of life given to them. The article seeks to trace, not a historical cannibalistic
done by Witkin in the development of his still lifes, many of them composed of pieces of corpses, but debate
about how the correspondence between the works of different periods serve as the construction of
allegorical themes in contemporary times.
Keywords: Photography, Still Life, Tautology, Belief, Stillleben.
Introdução
O que faz da obra de um artista, uma produção moderna e contemporânea? Segundo Argan
(1992, p. 49), o simples fato de uma produção ser moderna não a faz contemporânea, já que para que arte
se complemente como moderna, a mesma deveria estar comprometida com a superação de suas próprias
referências e linguagens, revelando o interesse de se abandonar processos e criar outros.
Transitando na contramão do conceito de Argan e dando atenção aos processos ou conceitos
criados por intermédio de outros já esquecidos ou superados, este artigo se objetiva em tecer alguns
comentários relacionados a fotografia The Feast of Fools (1990) de Joel-Peter Witkin, no que diz respeito a
apropriação do conceito tautológico de natureza morta.
Sendo um dos artistas que transitam entre a apropriação consciente dos mais variados temas e
técnicas como fuga de uma contemporaneidade de discurso, ao se reutilizar do conceito transcendental,
este intrínseco na prática da natureza morta por meio de uma escrita oculta, a qual vai além da simples
composição de objetos e cadáveres.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará - UFC –
Instituto de Cultura e Arte - ICA. Bolsista FUNCAP – Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico. Email:[email protected].
1
Partindo da premissa de composição por meio de um olhar que prima por esta perspectiva
tautológica, será utilizada para esta análise a cisão de olhar de Georges-Didi Huberman, no que tange a
uma composição baseada no além do ver e na transcendência dos objetos.
1. Do medievo a contemporaneidade.
2
A prática que nasce pictórica e com objetivo de ornamento funerário, ficou conhecida por Still life ,
stilleven
3
, stillleben
4
, natura morta
5
ou simplesmente natureza morta, a qual consiste no ato de
representar objetos inanimados, tais como plantas, flores, taças, espelhos e animais mortos.
Em sua gênese, além de pintura ornamental de túmulos, a prática foi utilizada anteriormente para
retratar o uso dos mesmos objetos, frutas e flores, como ofertas em rituais caseiros e que posteriormente
retornam ao seu sentido transcendental iniciado na Idade Média.
A mesma continua a ser representada na contemporaneidade não só por meio do suporte
pictórico, mas também por intermédio da vídeo arte, das performances, da fotografia e até mesmo por
instalações que abstraem seu sentido.
Na história da arte, sua legitimação se dá como temática artística apenas com a popularização da
obra de arte, quando a mesmas perde exclusividade de status por volta do século XVI tornando-se
acessível a maioria das pessoas que pudessem pagar.
Tal prática foi regularmente exercida na antiguidade como parte da ritualística funerária da época,
mais precisamente ornamentando sepulturas egípcias por costumeiramente ter como objetivo, a intenção de
se tornarem reais para o falecido quando o mesmo acordasse no outro mundo. Na Grécia, onde foram
encontrados em Pompeia algumas de suas mais antigas representações, se originariam de rituais caseiros.
O arquiteto Vitruvius
6
batizou a prática pictórica por meio da palavra xenia, já que se tratava de
um conceito que representava a hospitalidade grega que era dada aos visitantes de uma casa. Tomando
formas de ritual de hospitalidade entre hospede e o dono da casa, a cesta de frutas oferecido aos viajantes,
ficou caracterizado como símbolo de hospitalidade.
Dos casos relatados a primeira situação em que a utilização da pintura como forma de uma
representação que tivesse o objetivo de se tornar real para o morto, aonde tal intencionalidade iria se tornar,
posteriormente nos afrescos romanos, uma forma de se tornar real por meio do artifício do Trompe-l'œil
7
na
composição da imagem.
8
Durante o medievo, e mais praticamente por intermédio de Giotto di Bondone , a natureza morta
2
Inglês.
Holandês.
4
Alemão.
5
Italiano.
6
Vitrúvio Polião, viveu durante o século I a.C. Compilou no livro “De Architectura”, seu legado enquanto arquiteto e
engenheiro em Roma
7
Trompe-l'œil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre objetos ou
formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa engana o olho e é usada
principalmente em pintura.
8
Também conhecido por Giotto. (1266 -1337) Foi um pintor e arquiteto italiano.
3
2
apresentou o seu primeiro retorno a prática pictórica desde os afrescos de Pompeia.
A utilização de objetos do cotidiano como forma de representação simbólica, perpassaram as
épocas na arte ocidental sempre apresentando modificações do tema, mas que permanecem desde os
tempos de Giotto, atrelados aos conceitos ligados as imagens como alegorias religiosas.
Se nos detivermos a Idade Média, a construção das imagens, as quais seguiam uma perspectiva
da proportio, possuíam o objetivo de inserir a perfeição nas narrativas que eram criadas dentro dos
retábulos, sendo que muitas delas continham mensagens cifradas que segundo Siqueira (1994), não
partiam de uma não significação direta entre o objeto e seu significado particular, mas sim do
encadeamento de metáforas que eram criadas por meio de simbologias.
Partindo deste conceito relativo às formas, as quais em sua proporção se utilizavam da metáfora
dirigida a uma visão cosmológica, onde o universo seria a base de mensagens cifradas (SIQUEIRA, pg.27),
as mesmas eram utilizadas como forma de se fazerem reconhecidos a partir do simbolismo cristão
medieval, que se utilizava, segundo a autora, como forma de conversão de sentido dificilmente interpretável
pelo pagão.
Para Siqueira (1994), este tipo de mistura refere-se a estética das proporções e as metáforas
cifradas que se correspondiam por meio de números que poderiam ser símbolos a partir da visão alegórica
do mundo, conceitos que se completavam em sua união com o intuito de servir a uma narrativa cifrada.
9
O papa Gregório o Grande , nos evidencia a tarefa didática atribuída dos quadros:
Uma coisa é adorar um quadro, outra é aprender em profundidade, por meio
dos quadros, uma história venerável. Pois aquilo que a escrita torna presente para
o leitor, as pinturas tornam presente para os iletrados, para aqueles que só
percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes vêem a história que
devem seguir, e aqueles que não conhecem o alfabeto descobrem que podem, de
certa maneira, ler. Portanto, especialmente para o povo comum, as pinturas são o
equivalente da leitura. (GREGÓRIO, XV, apud, MANGUEL, p.153).
Partindo da baixa Idade Média de Giotto até o período renascentista de Leonardo da Vinci, a quem
se atribuiu sem muita certeza a utilização das flores como substituto as frutas por volta de 1495, além de
seu desvencilhamento com a alegoria religiosa, a prática se disseminou por toda a Europa.
Pintores Jan van Eyck e outros do Norte Europeu que levaram a temática pictórica a outro nível,
onde a busca por imagens hiper-realistas se tornam exemplos a fim de complementar o realismo óptico que
voltaram a atenção para os quadros Na espanha é encontrada como o nome de bodegones. Embora sendo
conhecida por vários nomes em outras línguas, não se tornou uma temática comum até o século 17, sendo
que seu florescimento se deu com o tempo.
Enquanto prática de estudo, a natureza morta tende a servir como treinamento em busca de uma
perfeição da representação de texturas encontradas nos pelos de mamíferos e nas penas das aves, os
quais sempre são representados como mortos, assim como que um retrato das oferendas feitas a este
sacrifício artístico.
Tais imagens tratam inicialmente estes corpos como documentação de troféus de caça.
9
Gregório I (540 -604). Conhecido por São Gregório Magno, foi monge beneditino e Papa. É um Doutor da Igreja e um
Padre latino.
3
Interessante notar que os animais são dispostos por meio de poses anormais, assim como os pássaros ou
lebres suspensas, que remete a imobilidade enquanto animais.
Mas foi com Jacopo de'Barbari que a intenção ilusória do Trompe-l'œil foi vista aplicada a uma
natureza morta desde os afrescos de Pompeia. Barbari que era pintor e gravador mudou-se de Veneza para
a Alemanha em 1500, tornando-se o primeiro artista da Renascença italiana a trabalhar no norte da Europa.
O quadro Natureza morta Perdiz e manoplas, que surge no ano de 1504, é o melhor exemplo do
gênero da ilusão de profundidade aplicada à pintura, sendo que a partir da metade do século 16, o elemento
humano é deslocado para o segundo plano sendo que seu desenvolvimento com vários praticantes podem
ser encontrados na Itália, no norte e Europa central.
Outros pintores irão se utilizar da temática de Barbari a partir de objetos dependurados na parede,
tais como Jean-Baptiste Oudry, além de seu contemporâneo e compatriota Jean-Baptiste-Siméon Chardin,
que terá um de seus quadros replicados e animados por Sam Taylor Wood
10
.
Figura 1: Stillleben mit Rebhuhn und Eisenhandschuhen. 1504.
A evocação do que ficou conhecido séculos depois na Europa e mais precisamente na Alemanha
e Holanda como Stillleben, se tornou figurativamente a evocação da beleza esmaecida e da corrupção da
vida por meio da alegoria.
Neste momento mais especificamente a figura tem o objetivo de se tornar meditação a partir do
transcendentalismo nas entrelinhas da composição silenciosa da imagem aproximando-a do espectador,
evidenciados pela forma que a luz é utilizada e herdadas de seus estudos relativos a dissolução da forma,
mais precisamente do barroco holandês, que Segundo Hermann Bauer:
A pintura holandesa utiliza-se de métodos pictóricos surpreendentes no
tratamento não apenas da distância e da infinitude, mas também da extrema
proximidade, onde tende também a dissolver os limites visuais da pintura em
direção ao primeiro plano, ao espectador, à maneira da pintura ilusionista do
Trompe-l’œil. A imitação transcende as fronteiras do plano pictórico em direção ao
espectador. A cortina - um artifício frequente nas obras de Vermeer e de
Rembrandt - tem igualmente um efeito ilusionístico. Parece situar-se no plano da
imagem e, ao mesmo tempo, fazer parte do espaço real em que se coloca o
espectador. Opera-se, assim, com o que uma camuflagem na transição do espaço
real para o espaço pictórico. (BAUER, 1998, p.29)
10
É uma cineasta inglesa, fotógrafa e artista visual.
4
Mesmo sendo um tema comum em vários países, o estilo que não era apreciado durante o século
XIV na França teve com Jean-Baptiste-Siméon Chardin o desenvolvimento que os autores de gerações
anteriores não conseguiram, o Trompe-l’œil.
Anteriormente, tais artistas criavam a profundidade de suas naturezas mortas adotando um ponto
de vista que remetia ao mergulho visual. Chardin oferece então uma visão de palco de teatro, onde ao
delimitar sua composição o artista tende a criar uma visualização perfilada dos objetos reduzindo sua
profundidade e perspectiva a partir da parede.
Figura 2 e 3: Lapin mort et attirail de chasse.1729
Em seu Coelho morto com bolsa de caça, Chardin suspende os objetos na parede, assim como
Jacopo, mas desta vez, criando uma composição que dispunha mais racionalmente os elementos dentro do
quadro, desta vez, de maneira triangular, tendo a parede como limitação de profundidade, o mergulho visual
que era uma forma segura de representação e barrada pelo artista como um artifício que será recorrente em
suas naturezas mortas mais conhecidas.
Figura4 e 5: A little Death. 2002
Sam Taylor Wood retoma ao tema, e em particular, ao coelho morto de Chardin, uma repetição
dos objetos suspensos da parede de Barbari.
5
O diferencial desta obra reside na opção da em dar movimento a um conceito estático
transformando a natureza morta em memento mori
timelapsing
12
11
ao captar a decomposição do coelho em um tipo de
registrado em vídeo.
Joel-Peter Witkin que trabalha diretamente com a criação de sentido por intermédio dos corpos
grotescos em sua fotografia, cria algumas de suas naturezas mortas a partir de cadáveres e elementos
similares aos encontrados durante todo o período de legitimação do conceito. Assim como Wood, o
estadunidense tende a se utilizar dos recursos comuns a prática pictórica, mas se interessando pela
transcendência que os elementos encerram em sua composição.
Em The Feast of Fools, é possível visualizar todos os elementos relacionados a história da natureza
morta, além dos próprios elementos relacionados a sua marca autoral, no caso os cadáveres, que
diferentemente da obra de Wood, são dispostos como elementos transcendentais que se demonstram além
de uma imagem que encerra um conceito de memento mori, mas que se interessa por uma abordagem, a
da metáfora encontrada nas vanitas
13
. Em outras palavras, segundo Bauer (1998), as vanitas eram uma
forma de alegoria que tomou o lugar da pintura religiosa.
Pode-se dizer que mesmo a iconoclastia criada pela doutrina da predestinação de Calvino
conceder a cada indivíduo algo semelhante a um sacerdócio pessoal, seria inevitável que as imagens
enquanto representação do individual viessem a assumir um novo significado. Este significado que muito
serviria para a identificação com Deus, ou sua posição entre Deus e o mundo em que este indivíduo vive,
sempre esbarrava na problemática da representação divina.
Para Bauer, sempre que quadros ou retratos como estes eram requisitados, a alegoria se fazia
presente. As temáticas que Witkin tanto buscava aperfeiçoar a partir de tensões estéticas, religiosas ou
sexuais, se apresentam a partir de um neoclassicismo visual que se utiliza da alegoria para expressá-la de
maneira não gratuita a partir de uma violência ou choque de seus modelos, estejam eles vivos ou mortos.
Podemos dizer que o artista em questão utiliza-se não somente do recurso da vanitas, mas
também daquilo que ficou conhecido como portrait historié, que segundo Bauer, trava-se de uma pintura
alegórica específica:
Sempre que a imagem de Deus era requisitada, a alegoria se tornava
tanto mais importante. Encontramos com frequência na pintura Holandesa o
chamado portrait historié, um tipo de retrato específico, em geral de várias
pessoas, mas desempenhando um papel bíblico ou mitológico. Por exemplo, se
dois irmãos se reconciliavam depois de uma briga familiar, podiam encomendar
um retrato que os apresentasse nos papéis de Jacó e Esaú para celebrarem sua
reconciliação. (BAUER, 1998, p.22)
A importância destes artifícios visuais celebravam as tensões que o fotógrafo busca em termos de
significação latente, esta criada conscientemente e que contamina suas imagens, as quais, mesmo se
utilizando do conceito do portrait historié, em termos de uma significação oculta, foi levada mais adiante em
seu desenvolvimento artístico por meio da utilização dos conceitos encontrados também nas vanitas, as
11
É uma expressão latina que significa algo como "Lembre-se que você vai morrer”.
Consiste em um processo cinematográfico onde as imagens são captadas em velocidade mais lenta da que será
exibida.
13
Similar a natureza morta, as Vanitas que do latim significa “vacuidade” é uma forma de simbolizar a efemeridade da
vida. Ficou conhecida entre os séculos XVI e XVII. Na história da arte são conhecidas como “vaidades.”
12
6
quais serviam como avisos as vaidades humanas.
Representada pela natureza morta, os quadros pintados com este tipo de simbolismo, permeam
alguns trabalhos de The Bone House, particularmente a fotografia Feast of Fools, a qual remete aos
principais temas da imagem europeia que é composta a este propósito, e das já citas poéticas e foto
documentação expressivas.
Figura 6: Feast of fools. 1990
A imagem vanitas em si, que também fazia alusão ao também citado memento mori, a qual servia
como um aviso ou lembrança de que a morte chegaria para todos, segundo Munro (2004), foi apresentada
por volta do século XIII como uma representação da memória da morte:
Ever since illustrations of the skeleton and skullappeared in the Trionfi of
Petrarch (1304-1374) such images gained popularity as memento mori. This Latin
phrase means ‘remember that you will die too’, or ‘remember thy death’, a reminder
that Death is unavoidable, and that the Grim Reaper comes harvesting at random.
(MUNRO, 2004, p.25)
Como um elemento essencial para o entendimento da fotografia de Witkin, as vanitas, se mostram
como uma herança pictórica que se faz presente em Feast of Fools, tal como uma composição de tensões
que se utilizam de percepções visuais, estas criadas dentro de um regime estético que marcou a produção
de quadros com a temática da natureza morta, que sua vez é o gênero chave na pintura nos Países Baixos
e que se apresenta com suas particularidades, em várias escolas que detinham sua forma de criar esta
alegoria.
O que nos interessa é como estes mesmos elementos se apresentam na imagem criada por
Witkin, que se utiliza de uma teatralidade nos restos mortais dispostos na mesa, que como nos quadros do
Harlem europeu, se demonstravam fartas de objetos, de seres marinhos ou frutos do mar, passando pelas
mesas de Haia, onde as frutas e aquilo que era mais comum nas mesas Holandesas se faziam presentes;
os objetos preciosos, que na mesa do fotógrafo são substituídos por aquilo que lhe é mais valioso, no caso
os corpos depostos.
Esta fotografia se apresenta também como sendo mais uma arena para que as tensões se
desenvolvam, já que uma apropriação das tensões de uma natureza mortas flamengas, mais
predominantes na fotografia em questão, estariam em atrito com as mesas holandesas, o que Bauer (1998)
7
irá definir como imagens extensivas, no que diz respeito as mesas flamengas, em contraponto a mesa
holandesa, designada como intensiva, no sentido que se concentrava em um número mais restrito de
objetos, estes a serviço de uma apropriação nas imagens macabras do fotógrafo.
Herdeira de uma tradição pictórica na composição de imagens pós-morte, a fotografia, que nasce
de maneira conturbada a partir de sua paternidade
14
não definida, já é alvo constante de críticas em seus
primeiros anos de vida, e continuamente sofrendo preconceito em relação a pintura, principalmente por sua
suposta facilidade de se produzir uma imagem
15
; a figura abaixo exemplifica o desprestígio da fotografia em
relação a pintura, tal negação suplantava o medo de que uma suposta morte da pintura era eminente:o
esvaziamento deste corpo.
2. A ordem, a desordem e a violência em Chardin
A falência biológica do corpo humano sempre foi abordada como mote para a criação de
ritualísticas que servissem a construção de objetos que tivessem como objetivo o de substituir a presença
física do falecido.
A representação instantânea, qualidade, portanto conferida pela magia, a partir de um olhar de
crença, o que para Huberman (1998), privilegia este caráter mágico, que Benjamin (1985), associava a um
valor de culto enquanto obra de arte, ou seja, as mais antigas manifestações artísticas surgiram a serviço
de um ritual, inicialmente mágico e depois utilitário que se iniciaram primeiramente com as efígies.
Partindo de uma não passividade do espectador e da produção da própria imagem em si, estas
que se utilizam do silêncio narrativo ou de um suposto esvaziamento de sentido, encontram no conceito de
uma cisão do olhar, segundo Huberman (1998), uma base de pensamento que irá se basear na tautologia e
na crença, como estandartes característicos a cada modo particular de ver ou se construir uma imagem.
Iniciando pelo viés da crença, que dá a imagem, mesmo que ela represente uma certa sensação
de esvaziamento da vida, no sentido espiritual
16
; indícios latentes na esperança na crença em uma outra
vida, primeiramente na imagem mortuária, e por conseguinte, surgirá na obra de Witkin como uma forma de
ressignificação de corpos esvaziados, os quais serão remontados para servir a construção de suas ruínas
orgânicas.
Em Corpus, a cisão do olhar que a caracterizará será para Huberman (1998), em um primeiro
momento, a que se apresentará como um exercício da crença, que parte de uma verdade que não é rasa
nem profunda, mas que se dá enquanto verdade superlativa, permeada de um autoritarismo que serve a
uma firmação condensada de um dogma, de que em certas imagens não existe um volume apenas ou um
puro processo de esvaziamento, mas “algo de outro” que faz o invisível se revelar como se a mesma fosse
dotada de significados, ocultos para alguns, mas visíveis para outros, como o próprio esvaziamento do
14
Nascida em 1826, a fotografia tem o físico francês Nicéphore Niepce, como o primeiro a eternizar uma imagem da
realidade em uma chapa de metal, seguido por Louis Daguerre e o britânico William Henry Talbot, que anunciaram
separadamente, em janeiro de 1839, suas descobertas sobre a fixação de imagens.
15
Em1860, durante uma das exposições de inventos em Paris, Charles Baudelaire atribuiu a fotografia e seus entusiastas
"o refúgio de pintores fracassados e bem pouco talentosos".
16
Espiritual aqui se refere ao atributo religioso da imagem.
8
corpo físico
17
.
Tal sintoma que serve a contaminação da fotografia de Witkin se encontra na própria fotografia
mortuária, a qual reaviva, muitas vezes pela simulação de maneirismos do falecido, como seu próprio
esvaziamento enquanto corpo físico, que ganha novo significado ao partir deste vazio físico que nos
espreita. Sobre este esvaziamento, Huberman nos esclarece da seguinte maneira:
Por outro lado, há aquilo, direi boamente, que me olha: e o que me olha
em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário
de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo concerne mais
ao mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim,
diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo semelhante
ao meu, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. (HUBERMAN,
1983, p.41)
Em um segundo momento, o oposto desta imagem vazia, ou o segundo tipo de olhar, se
apresenta também vazia de significados, podendo ser colocada em contraponto com o próprio fim da aura e
a reprodutibilidade banal da imagem da morte, que aliada a um tipo de olhar ortodoxo, que também celebra
este tipo de abandono de um olhar da crença; culmina, em um primeiro momento, na criação da imagem
pela imagem, reservada a documentação do fim de uma narrativa e que posteriormente seria então
desprovida de significados e associada apenas a sua reprodução; o olhar tautológico aqui aparece quando
a transcendência latente não se faz mais presente tanto na imagem, quanto na visão de quem a produz;
assim como nas fotografias de feridos de guerra e de caráter puramente documental de uma doença ou de
uma amputação, e sobre este tipo de olhar tautológico, Huberman também nos esclarece:
Terá feito tudo, esse homem da tautologia, para recusar as latências do
objeto ao afirmar como um triunfo a identidade manifesta - mínima, tautológica desse objeto mesmo: "Esse objeto que vejo é aquilo que vejo, um ponto nada
mais. "Terá assim feito tudo para recusar a temporalidade do objeto, o trabalho do
tempo ou da metamorfose no objeto, o trabalho da memória - ou da obsessão -no
olhar. Logo, terá feito tudo para recusar a aura do objeto, ao ostentar um modo de
indiferença quanto ao que está justamente por baixo, escondido, presente,
jacente. (HUBERMAN, 1983, p.41)
Mas ainda para Debray (1993), o poder mágico conferido as imagens, advinham de suas
representações como objetos de ligação para com o outro lado, em outras palavras, uma intermediação
entre os vivos e os mortos, ainda sim como prova de uma inadaptação para com a morte, mas uma forma
de sobrevivência a partir da transferência de significados atribuídos a estes ídolos, que segundo Debray
(1993), nascia da imagem da morte e de suas representações, ou da crença na representação a elas
aferidas, as quais viriam a facilitar sua inadaptação; primeiramente como suporte ao luto, e em seguida
prolongando a vida e a memória do falecido, diferentemente do corpo esvaziado que nos é apresentado
nestas duas fotografias, este concebido por meio de um olhar da crença, uma busca de uma adaptação em
meio ao esvaziamento de sua própria obra.
E é neste conceito mortuário de imagem, também baseada no descompromisso, que Witkin busca,
nesta fotografia que inicia o livro, perpetuar, assim como seu estilo, as tensões que se utilizam da face dura
17
O autor sugere como esvaziamento do corpo físico, o fim da consciência e falência do corpo biológico, que se
apresentará neste estudo como esvaziamento do corpo físico também explorado nas artes.
9
da morte como uma marca registrada de seu trabalho, a qual não se limitará somente ao grotesco ou a esta
perpetuação da imagem como matéria prima, mas também se valerá da prática dos retratos contaminados
por suas tensões interiores, as quais estarão ligadas a suas bases artísticas, a dissolução das mesmas
como temática para a contaminação já citada de seu próprio trabalho.
Mas é na composição de La raie de Chardin, que a ordem a partir da desordem aflora. Elementos
como a toalha amassada que envolve a panela e a faca, aparentemente dispostos ao acaso assim como as
ostras que o gato em movimento derruba, levam a partir de linhas obliquas, estas herança da Stilleven
holandesa que aguçam a impressão de relevo.
Ao olhar ao rasgo de um ser estranho que assim como Barbari, também preso a parede, uma
arraia, que tem um rasgo no peito que apresenta uma perturbação formal e cromática, realçada pelo reflexo
recíproco da Rabetouse a partir da fusão de partes escuras seguidas das semi escuras e as cores vivas,
onde este vigor, segundo Diderot (1765), surgem de tais pinceladas que exercem certa distância ilusória
dos objetos que é guiada pela faca.
Ao relacionarmos a apropriação de composição de Witkin em sua imagem com as imagens
pictóricas, temos Chardin como aquele que melhor relaciona os objetos a partir de uma estrutura racional
que guia o olhar.
Sua composição em La Raie se dá a partir de objetos vivos a esquerda, inanimados a direita,
alimentos sólidos e líquidos ao centro e utensílios nas extremidades. Em Witkin, os utensílios da máquina
humana como pés e mãos ficam nas extremidades, os alimentos ao centro, assim como o natimorto, e o
animal, um polvo a esquerda.
Para Chardin, em seu quadro se dispõe a documentação da preparação da comida, antes de se
tornar algo aceitável transformando a cozinha palco de ritualístico e de atos sagrados onde se sucedem
ritos selvagens que a partir da ilusão pictórica da faca, exalam seu maléfico poder como instrumento de
tortura que aponta para o centro do quadro. A cozinha remete ao assassinato, sala de rituais e sacrifícios,
relacionando-se ao altar da arte que a prática da natureza morte se transforma ao sacrificar animais para
servirem como modelos.
Figuras 7 e 8: La Raie. 1728
Neste quadro podemos compreender elementos que fazem referência àquilo que em Witkin se
torna explícito em sua corporeidade, se temos a arraia como personagem humano a partir da lembrança de
10
elementos miméticos como a boca humana, em Feast of fools, tais elementos se fazem presentes a partir
de partes de corpos humanos e do natimorto ao centro. A arraia presa ao gancho no centro do quadro
remete ao boi de Rembrandt e aos esfolados das aulas de anatomia, assim como Vasarius, assim como as
cenas religiosas de martírio e crucificação. Sobre a composição de “La Raie”, Proust nos fala da
personalização lógica destes objetos:
Venham agora até a vizinha cujo acesso está bem guardado por uma
tribo de vasos de todos os tamanhos, servidores eficientes e fiéis, raça laboriosa e
bela. Sobre a mesa, facas ativas que atingem direto o alvo, descansam em um
ócio ameaçador e inofensivo; porém acima de vocês, há um monstro estranho,
fresco como o mar em que ele ondulava. Uma arraia suspensa cuja visão mescla
o desejo de gulodice e o charme curioso da calmaria ou das tempestades do mar,
o qual ele formidavelmente fora testemunha, fez-se [assar por uma lembrança dos
jardins das plantas, através de um sabor de restaurante, ela está aberta e alerta
de sua arquitetura delicada, tingida de vermelho sangue de nervos azuis e
músculos brancos, como a nave de uma catedral policromática, ao lado, no
abandono da morte, os peixes estão retorcidos em uma curva tensa e
desesperada, os olhos saltados, de barriga para baixo. E ainda um gato,
superpondo a este aquário a vida obscura de suas formas mais sabeis e mais
conscientes, com o brilho de seus olhos sobre a arraia, maneja com uma pressa
lenta, o veludo de suas patas sobre as ostras erguidas, revelando ao mesmo
tempo, a prudência de seu caráter, a cobiça de seu paladar e a temeridade de sua
ação. O olho que gosta de brincar com os outros sentidos e de reconstituir com o
auxilio de algumas cores, mais que tudo um passado, todo um futuro, já sente o
frescor das ostras que irão molhar as patas do gato, e já se pode ouvir quando
esse amontoado precário de matizes frágeis, sucumbir com o peso do gato, o
pequeno grito de sua rachadura, e o trovão de sua queda. (DIDEROT, 1995, p. 67,
tradução minha).
A partir de “Le Raie” de Chardin, é possível compreender como Witkin se utiliza de elementos
macabros como o próprio corpo humano, como objetos que se personalizam servindo-se de um olhar
tautológico que nos traz a dimensão selvagem, mas escondida nas entrelinhas de seu discurso,
transcendendo seu significado de apenas objetos reunidos sobre uma mesa.
O artista dispõe em seu quadro fotográfico, uma reunião de objetos que como na obra de Chardin
remetem a algo além da simples representação ritualística a partir de elementos e práticas comuns da
cozinha do século XVIII, onde com o peixe aberto e ensanguentado ao centro, transporta para o quadro
(imagem) a violência de uma cena histórica.
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Considerações finais
A repetição destes elementos no trabalho do fotógrafo, apropriação esta que vai além da mera
cópia, se refere a metodologia que perpassam os níveis de aprofundamento estéticos que sempre estão
presentes durante o percurso pela busca autoral, os quais revelam-se como um meio de aprofundamento
de suas próprias ideias do que uma reprodução dos conceitos em si.
As meditações diante dos corpos mortos se apresentam como visões que convidam a uma
reflexão por intermédio do mórbido e, por conseguinte, do grotesco.
Estes grandes gestos encerrados nos opostos tais como, a vida e a morte se unem por intermédio
da intenção que o artista busca enfatizar por meio da transcendência que se encontra das naturezas mortas
Europeias.
Em The Feast of Fools, as evidências destas experimentações na busca do que se entende, no
senso comum, como uma marca registrada ou exercício de linguagem resultante em suas características
estéticas, tanto por meio da apropriação do passado quanto à utilização do inusitado, segue
potencializando-se por intermédio de características não necessariamente ligadas as sobras reconhecíveis
de outras imagens, mas sim da potencialização dos conceitos.
Mesmo a repetição ou apropriação temática, enquanto campo de experiência, surgindo como
aparentes limites criativos, Almeida (2011) sugere que tal semelhança ou repetição de tema entre as obras
apresentam-se, não uma suposta limitação criativa por mais diferenciada que seja a metodologia de
trabalho e o que ela busque apagar em termos de referências, mas sim como os níveis de aprofundamento,
em outras palavras o campo de desenvolvimento linguístico da repetição, serve ao aperfeiçoamento de sua
temática em busca do reconhecimento autoral.
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Referências
ALMEIDA, Ivan de. “Inocência e Método.” Disponível em:
http://fotografiaempalavras.wordpress.com. (Acessado em: 24 ago. 2011).
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BAUER Hermann, PRATER Andreas. Barroco. Portugal: Taschen, 1998.
DIDEROT, Dennis. Diderot on Art, Volume I: The Salon of 1765 & Notes on Painting. Londres:
Yale University Press- First English Edition, 1995.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens, uma história de amor e de ódio. Tradução Rubens
Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MUNRO, Dane. “Memento mori and vanitas elements in the funerary art at St John's CoCathedral, Valletta, Malta.” Treasures of Malta, República de Malta, 25-26. 2004.
PALETAS. Thierry Garrel. França, Fr3, Delta Image. VHS, mono, colorido. 30’: 00’’. Palletes.
Dublado.
DEBRAY, Régis. Vida e Morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Tradução de
Guilherme Teixeira – Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
SIQUEIRA, Sônia. A Estética da Idade Média. Lorena: Centro Cultural Teresa D'Ávila, 1994.
SIQUEIRA, Sônia.Vanitas, Vanitatis. Ângulo, São Paulo, n. 110, 43-48. 2007.
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Meditações sobre a morte na fotografia de Joel