“...Que é a verdade?”
(Jo 18,38)
Uma breve aproximação à teologia do pluralismo religioso
desde a perspectiva latino-americana
“As religiões e caminhos espirituais devem dialogar juntos
para serem a consciência ética da humanidade
e o grito pacífico dos empobrecidos”.
1
Dom Helder Câmara
“Não haverá paz entre as nações
sem a paz entre as religiões.
Não haverá paz entre as religiões
sem o diálogo entre as religiões.
Não haverá diálogo entre as religiões
se não se investigam os fundamentos das religiões”.
2
Mahatma Gandhi
Introdução
Fala-se que não estamos vivendo em uma época de mudanças, mas sim em uma
mudança de época. Fala-se, também, que estamos vivendo na chamada época «pósmoderna»3, onde, desde uma visão e interpretação unitária da realidade passa-se à
vivência de uma pluralidade radical, da descontinuidade e da fragmentação. Daí que
também se fale do fim dos paradigmas e das utopias4, e de que o caos é uma das
principais formas nas quais a sociedade, e dentro dela particularmente os empobrecidos,
experimentam o panorama social e espiritual de hoje5.
Isto se faz uma realidade no meio de um processo planetário que se identifica com o
termo de «globalização». E certamente a globalização marca os tempos de hoje. É um
fenômeno que penetra tudo e integra tudo, e cujos efeitos se fazem presente em toda a
1
Dom Hélder Câmara, na Conferência das Religiões pela Paz, Kyoto, Japão, 1970.
Ainda que fosse Hans Küng quem popularizou a frase, realmente foi pronunciada por Mahatma
Gandhi. Confira Wayne, Teasdale, “Sacred Community at the Dawn of the Second Axial Age”, em,
Sourcebook of the World’s Religions, J. Beversluis (ed.), New World Library, Novato, California, 2000,
p.238. Citado por José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, Colección Tiempo Axial, (Edição
digital de ATRIO) pp.368, http://cursotpr.adg-n.es/archivos/Vigil/TPRVigilCap07.pdfe. Em português
Teologia do pluralismo religioso -.para uma releitura pluralista do cristianismo, Paulos. São Paulo, 2006,
(Coleção tempo axial). Este é o primeiro livro de teologia do pluralismo religioso publicado no Brasil com
a pretensão de fazer uma exposição sistemática e completa deste ramo tão jovem da teologia.
Confira ainda Hans Küng , Islão: Passado, Presente e Futuro, Lisboa, Edições 70, 2010.
3
Os termos “pós-modernismo” e/ou “pós-modernidade” foram primeiramente utilizados na segunda
metade do século XX para se referir às mudanças acontecidas na literatura, na arquitetura e na arte.
Porém, também se chama “pós-modernismo” e/ou “pós-modernidade” às novas visões do pensamento
filosófico, particularmente da segunda metade do século XX, onde o pluralismo torna-se princípio
hermenêutico fundamental. Assim, a verdade existe unicamente «plural», já não existe «a verdade»,
mas «as verdades». Confiera Joaquín Garay, “Teología del pluralismo religioso y teología de la
liberación”, em: Koinonia, Relat, 310, http//latinoamericana.org/2003/textos.
4
Franz J. Hinkelammert, “El cautiverio de la utopía – las utopías conservadoras del capitalismo actual, el
neoliberalismo y el espacio para alternativas”, em: Ensayos, Editorial Caminos, La Habana, 1999, p.200.
5
Harvey Cox, “Misión en las Américas – Siglo XXI – Perspectiva del Norte”, em: Esperanza y justicia en
las Américas – discerniendo la misión de Dios, [s.l.], [s.e], 1998, p.96.
2
sociedade a nível mundial: na política, na economia, nas comunicações, na tecnologia,
nos Estados, nas nações, afetando até as instituições e sistemas religiosos.
Porém, nunca podemos esquecer que o processo de globalização não é um fenômeno
neutral e igualitário, já que é realmente um processo onde mais decisões são tomadas
por um número cada vez menor de pessoas afetando setores mundiais cada vez maiores.
Por isso é um termo que sugere o que realmente não descreve, sendo mais bem uma
denominação ideológica que um conceito científico6. E sendo assim, realmente perpetua
o sistema de empobrecimento e morte das grandes maiorias.
Nesse sentido anota também José María Vigil7, que o termo «globalização» é um termo
errado. E ainda que muitos o utilizem no sentido de «mundialização», seria melhor
lembrar seu sentido original, o qual não é mais que o nome que o neoliberalismo atual
deu a seu próprio processo de expansão de capitais depois do fim da guerra fria. A
«mundialização», por sua vez, é um fenômeno muito mais amplo e antigo, que se refere
ao processo de unificação e concentração do mundo em sistemas sociais cada vez mais
amplos, aproximando-se cada vez mais às dimensões mesmas do planeta. Mas processo
que se intensificou nos últimos séculos, e que, particularmente no século XX, tem
alcançado a totalidade de nosso planeta. Hoje temos a impressão de estar vivendo no
apenas no mesmo planeta, mas realmente «em um mesmo mundo», ou como também
tem se falado «em uma aldeia comum», em uma sociedade mundial mundializada.8
Ora, já acima comentamos brevemente aspectos e fatos econômicos e sociais da
mundialização desse a perspectiva da «globalização neoliberal». No entanto, caberia
agora nos perguntarmos, quais efeitos tem a «mundialização» sobre a religião, as
religiões e a teologia?
Por um lado, a mundialização faz que as religiões não possam mais se ignorarem.
Muitas sociedades são pluri-culturais, formadas por imigrantes procedentes de outros
países, bairros habitados por diferentes etnias e culturas. As diferentes religiões já não
se encontram longe, mas na mesma sociedade e até na mesma cidade. Em uma mesma
quadra podemos encontrar uma igreja católica romana, uma igreja evangélica e até um
terreiro de candomblé. Dessa maneira, querendo o não querendo as diferentes religiões
são obrigadas a viver em sociedade, a conviver, a comparar-se, a confrontar-se, e a
desafiar-se mutuamente. Deste modo, os membros das diferentes religiões vão se dando
conta que sua religião não é a única que existe. E aí começam a conhecer e conviver
com pessoas de outras religiões (vizinhos/as, amigos/as, até membros da própria
família), tão cheias de amor como os membros de sua própria religião. E começam a se
perguntarem se sua religião realmente é a «única e verdadeira». Por isso, a
mundialização desafia as religiões, talvez colocando em perigo sua identidade distintiva,
6
Luis Suárez Salazar. “Nuevo orden mundial, integración y derechos humanos en el Caribe: apuntes
para una reconceptualización”, em: Globalización, integración y derechos humanos en el Caribe, ILSA,
Bogotá, 1995, citado por Silvio Baró Herrera, Globalización y desarrollo mundial, Editorial Ciencias
Sociales, La Habana, 1997, p.19-20.
7
José María Vigil, espanhol/nicaragüense, católico, teólogo (Salamanca/Roma), estudou psicologia em
Salamanca, Madrid e Managua/Nicaragua, membro da Associação de Teólogos/as do Terceiro Mundo
(ASETT).
8
José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit., p.358-359.
mas por sua vez, oferecendo novas possibilidades de fecundação e revitalização. Fala-se
que a inter-espiritualidade é a religião do terceiro milênio9.
Por outro lado, a mundialização trás também desafios para a tarefa teológica. Comenta
José Maria Vigil que na época da mundialização o teólogo poderá ter uma confissão
religiosa determinada, mas uma teologia que fale para a sociedade e ao mundo deverá
ser uma teologia que possa ter sentido para um destinatário que é multirreligioso,
porque em caso contrario não estaria realmente fazendo teologia no mundo
plurirreligioso de hoje, mas em um mundo monorreligioso que já não existe.10
Entretanto, em um mundo onde a globalização neoliberal perpetua o empobrecimento
das grandes maiorias, matizado por guerras, violência e divisões culturais, onde se
desrespeita e agride nosso lar natural, e onde inclusive a luta contra o terrorismo tem no
fundo matizes religiosos, a mundialização desafia a todas as religiões a lutarem juntas
por alcançar uma ética mundial.
Afirma a «Declaração sobre o papel da religião na promoção de uma cultura de paz»
(Catalunha, Espanha, 1994): “Nossas comunidades têm a responsabilidade de fomentar
uma conduta inspirada na sabedoria, a compaixão, a partilha, a caridade, a solidariedade
e o amor, que guie a todos pelos caminhos da liberdade e a responsabilidade. As
religiões devem ser uma fonte de energia liberadora”.11
Portanto, em nosso mundo mundializado de hoje o diálogo inter-religioso se torna
urgente, não apenas para teorizar teologicamente, senão para possibilitar a paz, a justiça
e a fraternidade humana, contribuindo assim a dar uma resposta comum na solução dos
grandes e graves problemas que enfrenta a humanidade
Então, depois dessas colocações preliminares, o presente texto pretende, desde a
realidade latino-americana, fazer uma aproximação panorâmica a uma temática que
desde princípios do século constitui o mais novo e relevante desafio para a igreja e a
teologia: a teologia do pluralismo religioso.
Clarificando termos e conceitos
Para facilitar ao leitor a compreensão desta temática, a seguir passaremos a clarificar
alguns termos e conceitos que usaremos ao longo deste texto para evitar equívocos.
Sabemos que isto pode variar de acordo ao ponto de vista dos diferentes autores. Por
isso ofereceremos apenas as classificações e conceitos mais comuns e aceitos.
A teologia poderia ser definida de muitas maneiras: «falar a partir de Deus» (Karl Barth,
«ciência da fé» (Karl Rahner), «reflexão crítica sobre a práxis da liberação» (Gustavo
9
Ibidem, p.365. O termo «Inter-espiritualidade» é um termo que designa o fenômeno crescente do
compartilhar inter-religioso dos recursos interiores, dos tesouros de cada tradição. Wayne Teasdale, The
Mystic Heart. Discovering a Universal Spirituality in the World’s Religions, prólogo do Dalai Lama, New
World Library, Novato, California, 1999, p.10. Citado por José María Vigil, Teología del Pluralismo
Religioso, op. cit., p.365.
10
Ibidem, p.366.
11
Citado por José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit., pp.368-369..
Gutierrez), «leitura crítico-liberadora da tradição da fé» (Leonardo Boff).12 Porém,
poderíamos resumir dizendo que «teologia» é a reflexão crítica que a comunidade cristã
realiza à luz da «sua» fé e da experiência humana. Já a «teologia das religiões» é a rama
da teologia que faz das religiões o objeto da sua reflexão. Entretanto, hoje um novo
nome está se impondo: «teologia do pluralismo religioso», visto que os teólogos estão
descobrindo que o «pluralismo religioso» é hoje o tema central da teologia.13 Hoje
«uma teologia das religiões» no pode deixar de ser, definitivamente, uma teologia do
pluralismo religioso14.
Na seqüência passo a oferecer uma visão histórica das distintas posições teológicas que
têm se dado ao longo da historia dentro da teologia das religiões. Existem diferentes e
variadas classificações. Mas basicamente neste texto vamos assumir a comumente
aceita de que a teologia das religiões poderia ser sintetizada em três grandes linhas:
exclusivismo, inclusivismo, e pluralismo.
a) Exclusivismo
Até a primeira metade do século XX a posição teológica dominante dentro do
cristianismo tem sido o «exclusivismo». E a expressão simbólica desta posição
encontra-se na famosa sentença atribuída por uns a Orígenes e por outros a Cipriano
«extra ecclesiam nulla salus», ou seja, «fora da igreja não há salvação». Essa posição
manteve-se constante dentro do catolicismo praticamente até a primeira metade do
século XX.
O exclusivismo pode ser eclesiocêntrico ou não. Assim, vemos que no campo
protestante o exclusivismo adquire uma forma no eclesiocêntrica «a sola Fé, a sola
Graça, a sola Escritura». A figura típica e simbólica desta posição a encontramos em
Karl Barth (1886-1968). Barth, apesar de não ser um fundamentalista protestante, opõe
revelação e religião, negando que a religião pudesse ser canal de revelação. Segundo
Barth a religião é a relação que as pessoas instauram com o poder divino por suas
próprias forças, ou seja, um intento de manipular a Deus, enquanto a fé é a relação que
Deus instaura gratuitamente. Daí, acrescenta Barth, a religião é obra humana sendo
nossa tarefa a supressão de toda religião, nossa fé é a invalidação radical de tudo o que é
humano: experiência, saber, posse e atividade. Fora do cristianismo, que é a religião
perfeita e verdadeira, conclui Barth, tudo é trevas e afastamento de Deus.15
12
Adolfo Ham Reyes, La praxis teológica. Una introducción a la dogmática. Editorial SET,
Matanzas/Cuba, 2005. pp.2-3.
13
É oportuno fazer agora as aclarações que salienta José María Vigil com relação aos termos «teologia»,
«teologia das religiões» e «teologia do pluralismo religioso». Comenta Vigil que o termo «teologia» é
um conceito grego que existia antes do cristianismo. Porém, hoje é um conceito considerado cristão,
ainda que em todas as religiões exista teologia. Também em toda religião há uma «reflexão feita a partir
da fé». Por isso, poderíamos falar de «teologia das religiões» feitas desde religiões distintas do
cristianismo. Portanto, não podemos confundir a pluralidade de religiões com o conceito de «teologia
do pluralismo religioso» que constitui um posicionamento dos teólogos/as que no presente fazem
«teologia das religiões» a partir da fé cristã. José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit.,
pp.50-51.
14
Jacques Dupuis, em, “Uma teologia cristiana del pluralismo religioso”, Queriana, Brescia, 1997, pp1819. Citado por José Maria Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit.,50.
15
Karl Barth, La revelación como abolición de la religión, Madrid, 1973; citado por José Maria Vigil,
Teología del Pluralismo Religioso, Colección Tiempo Axial, (Edição digital de ATRIO) pp.62-63,
http://cursotpr.adg-n.es/archivos/Vigil/TPRVigilCap07.pdfe. Confira também Karl Barth, Der Römerbrief,
b) Inclusivismo
O «inclusivismo» afirma que ainda que a salvação encontra-se presente de maneira
particular no cristianismo, também pode ser encontrada de maneira «deficiente e
imperfeita» nas outras religiões. E esta posição será a que vai se afirmar no mundo
teológico, particularmente dentro da Igreja Católica Romana, e influirá os debates e
documentos do Concilio Vaticano II. No entanto, fazemos a ressalva que no presente
esta é a posição teológica majoritária no cristianismo, tanto católico como protestante
(cf. Hans Küng, Wolfhart Pannenberg, Mark S. Heim, Gregory Baum, Monika Hellwig,
Edward Schillebeeckx, Harvey Cox, Roger Haight, Marcus Borg entre outros).
Podemos assinalar o católico Karl Rahner (1904-1984) como uma figura típica desta
posição. A visão de Rahner em sua teologia das religiões se resume em sua teoria de
«cristãos anônimos», ou seja, os não cristãos são salvos pela graça e presença de Cristo
que age anonimamente entre suas religiões. Deste modo, com uma visão
inclusivista/cristocêntrica, postulou que as diversas religiões não somente apresentam
elementos de uma crença natural em Deus, mas trazem consigo traços substanciais da
graça doada a Deus ao homem em Jesus Cristo e que, portanto, os cristãos não apenas
podem, mas devem considerar outras religiões como legitimas e como caminhos de
salvação.16
c) Pluralismo
O «pluralismo» é a posição teológica dentro da teologia das religiões que afirma que
todas as religiões participam da salvação, cada uma a sua maneira e autonomamente. Ou
seja, não há uma religião que este no centro mesmo do universo religioso. Em todas as
religiões «Deus» ou «o Divino» ou «o Outro» sai ao encontro do ser humano, sem que
haja uma única religião verdadeira e privilegiada da qual todas as outras devam
depender.
Dentro da teologia das religiões esta posição é sem dúvida nova, desafiante e implica
uma mudança radical. Comenta José Maria Vigil, estamos vivendo hoje uma nova
experiência espiritual. Há um Espírito Novo, rondando-nos, desafiando-nos, a cada dia,
em múltiplos gestos, de reflexões, de novas práticas... Estamos passando do
cristocentrismo ao pluralismo. Há medo, há resistência... e ao mesmo tempo há atração,
clareza, e até uma evidência que vai se impondo lenta mas irresistivelmente... É um
“kairos”, um ponto de inflexão importante que vai introduzir mudanças muito
profundas: uma nova época que sucederá a dezenove séculos de exclusivismo e apenas
um de cristocentrismo... É muito importante estarmos atentos a este kairós. Temos que
rastrear o espírito que o anima, para discerni-lo e servi-lo.17
Então, na próxima seção, pretendemos aprofundar nesse «Espírito Novo» que nos ronda
e desafia: o pluralismo religioso18.
p.84; citado por Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos
caminhos de Deus, op. cit., p.140.
16
Veja Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, Nhanduti Editora, São Bernardo do Campo/Brasil, 2010,
pp.24-26 e Faustino Teixeira, “O desafio do pluralismo religioso para a teologia latino-americana”, em:
Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp. 73-74.
17
José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit., p.318.
18
Quando neste texto falamos de «pluralismo» ou «pluralismo religioso» no estamos significando a
«pluralidade de religiões», mas o novo posicionamento teológico dentro da teologia das religiões.
A caminhada para um novo paradigma
Será a partir da década dos 60 que, a Igreja Católica Romana, através da reflexão
teologia proveniente do Concilio Vaticano II19, e as igrejas evangélicas históricas
agrupadas no Conselho Mundial das Igrejas20, começaram a aprofundar a valorização
teológica das outras religiões.
Podemos distinguir como pioneiros da apertura da teologia cristã a uma reflexão mais
positiva com respeito às outras religiões as figuras de Paul Tillich (1886-1965), no
âmbito protestante, e Karl Rahner (1904-1984), no âmbito católico.
Paul Tillich não teve tempo suficiente para desenvolver uma reflexão sistemática na
linha do diálogo inter-religioso, porém, nos anos finais da sua vida desenvolveu uma
visão mais positiva sobre o tema, e criticou a visão exclusivista barthiana de que as
outras religiões expressariam apenas uma tentativa humana e inconsciente de alcançar a
Deus21. E Karl Rahner, influiu, com seu inclusivismo/cristocêntrico nos debates e
documentos do Concilio Vaticano II.
Também teólogos europeus como Jacques Dupuis (católico/1923-2004), Raimundo
Panikkar (católico/1918-2010) e John Hick (presbiteriano), e Norte-Americanos como
Paul F. Knitter (católico), entre outros, têm aprofundado a temática do pluralismo
religioso; particularmente Dupuis, Panikkar e Knitter, a partir da vivência e do diálogo
com culturas oprimidas, asiáticas, norte-americanas e/ou latino-americanas.
Na América Latina, comenta Marcelo Barros22, que na década dos 70 e 80, antes de
entrar em diálogo com a teologia das religiões, a visão barthiana negativa e exclusivista
com relação à religião esteve presente inclusive em teólogos da libertação como
Gustavo Gutierrez e Jon Sobrino e biblistas como José Miranda, entre outros, opondo
“religiosidade popular e fé libertadora” (Gutierrez), considerando a religião “um mal
que deve ser destruído” (Miranda) e/ou uma “degradação da fé” (Sobrino). E se é uma
verdade, continua comentando Marcelo Barros, que temos que reconhecer que de certa
maneira a crítica da teologia da libertação à religião poderia ter validade, temos que
colocar o cristianismo dentro das religiões e não como se fosse a religião purificada que
não é. Caberia, portanto, a crítica dos teólogos asiáticos à teologia da libertação no
sentido de que a critica da teologia da libertação à religião é um discurso ocidental e
19
Confira as declarações Nostra Aetate, Dignitatis Humana, a Constituição Lúmen Gentium, Gaudim et
Spes, http://victorix.no.sapo.pt/vaticano_II/vaticano_ii.htm .
20
Confira declarações e discursos das assembléias do CMI: “Jesus Cristo, vida do mundo”, Nova Delhi,
1961 e “Faço Nova Todas as Coisas”, Upsália. 1968, em: http://www.wcc-assembly.info/en/about-theassembly/previous-assemblies.html Também Hans Ucko, Changing the Present, Dreaming the Future A
Critical Moment in Interreligious Dialogue, WCC, 2006 e Ecumenical Considerations for Dialogue and
Relations with People of Other Faiths, WCC, 2003.
21
Paul Tillich, El futuro de las religiones, Aurora, Buenos Aires, 1976, (Il futuro delle religione, Queriana,
Brescia, 1970, p.117-137 (versão original 1966).
22
Marcelo Barros, brasileiro, monge beneditino.
colonialista, porque a idéia ocidental de religião não cabe às religiões asiáticas já que
elas não reconhecem tal classificação.23
Já em América Latina a Seção Latino-Americana da Associação de Teólogos/as do
Terceiro Mundo (ASETT)24 a partir da década dos 90, na coleção Pelos muitos
caminhos de Deus25, tem refletido sobre a temática em diálogo com a teologia latinoamericana da libertação.
No Brasil, Faustino Teixeira26 e o grupo do Departamento de Ciências das Religiões da
Universidade Federal de Juiz de Fora têm desenvolvido uma reflexão importante da
temática com uma visão da missão e da fé cristã reinocêntrica e voltada para a defensa
da vida e do universo 27.
Também teólogas e estudiosas feministas em diálogo com as religiões afro-brasileiras e
indígenas têm feito uma contribuição crítica para o debate do pluralismo religioso. Mais
para frente comentaremos suas valiosas críticas, contribuições e desafios28.
Agora, depois de ter clarificado termos e conceitos, e feito uma breve caminhada pela
história da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, estamos em capacidade de
passar a comentar os fundamentos bíblicos e teológicos deste novo paradigma.
Fundamentos bíblicos e teológicos para uma teologia do pluralismo religioso
O conceito fundamental que sustenta uma visão conservadora, fundamentalista e/ou
exclusivista do cristianismo é o conceito de «revelação». Uma pessoa que assim pensa,
e mantém uma postura contraria ao pluralismo, invocará a Bíblia e a revelação como
sua razão última: «é Deus mesmo quem nos revelou a verdade e nós devemos aceitála». Mas a teologia do pluralismo religioso propõe uma visão diferente da revelação.
Por isso, é a revisão e transformação do conceito de revelação o que está na base da
emergência do pluralismo como superação tanto do exclusivismo como do
inclusivismo.
23
Veja Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de
Deus, op. cit. p.140-141. Confira também José Miranda, El Ser y El Mesías, Salamanca, Ediciones
Sígueme, 1976 , V.V., La lucha de los dioses – Los ídolos de la opresión y la búsqueda del Dios Liberador,
Editorial DEI/Centro Valdivieso, Costa Rica/Managua, 1980 e Aloysius Pieris, An Assian Theology of
Liberation, Orbis Books/Maryknoll, New York, 1988, p.157-158.
24
www.eatwot.org.
25
www.tiempoaxial.org/PelosMuitosCaminhos em inglés: www.tiempoaxial.org/AlongTheManyPaths;
em espanhol: www.tiempoaxial.org/PorLosMuchosCaminos.
26
Faustino Teixeira, brasileiro, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Rio de
Janeiro (PUC-RJ), doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma).
27
Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op.
cit., p.148. Confira também Faustino Teixeira, Diálogo de pássaros – Nos caminhos do diálogo interreligioso, São Paulo, Paulinas, 1993 e Teologia das religiões – Uma visão panorâmica, São Paulo,
Paulinas, 1995.
28
Veja Luiza E. Tomita, “A contribuição da teologia feminista da libertação para o debate do pluralismo
religioso”, em Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit., 108-119.
Passou, na seqüência, a oferecer uma síntese dos elementos principais, bíblicos e
teológicos, dessa nova visão que possibilita as transformações teológicas que levam a
uma mudança de mentalidade a partir do inclusivismo para o pluralismo.
Por um lado, Knitter afirma que é idolatria insistir que há apenas um caminho uma
norma, uma verdade. Nenhuma religião ou revelação pode ser somente ou a Palavra de
Deus final ou exclusiva ou inclusiva. A realidade é plural, desde átomos até religiões, e
Deus precisa de multiplicidade para ser Deus. E, por outro lado, afirma também
Panikkar, que porque a realidade é pluralista, o mistério da Trindade é o fundamento
último para o pluralismo29.
Na carta aos Hebreus se diz: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de
muitas maneiras aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo
Filho” (Hb 1,1). E comentando esse texto diz Jacques Dupuis que o fato de Deus ter
falado “muitas vezes e de muitas maneiras” antes de falar pelo Filho não é acidental,
nem o caráter plural da auto-manifestação de Deus é apenas uma coisa do passado. O
caráter decisivo da vinda do Filho na carne em Jesus Cristo não cancela a presença e
ação universal do Verbo e do Espírito. O pluralismo religioso se funda sobre a
imensidade de um Deus que é Amor.30
Assim sendo, o pressuposto bíblico básico e fundamental para uma teologia cristã do
pluralismo religioso é a compreensão de que Deus é amor e salvação universal (Cf. 1 Jo
4,7-8). E se o amor de Deus é ilimitado, nosso amor para com o próximo deve ser
ilimitado também Por isso o evangelho nos chama a amar a nosso próximo como a nós
mesmos (Cf. Mt 23,37; Mc 12,30 e Lc 10,27).
Mas amar ao próximo significa respeitá-lo, escutá-lo, tratá-lo como gostaríamos que ele
nos trata-se. Significa confrontá-lo quando penso que está errado, mas também estar
preparado para ser também confrontado por ele. Em fim, amar ao próximo significa ser
capaz de dialogar com ele.
No entanto, a partir do amor ilimitado de Deus, que nos chama também a amar a nosso
próximo como a nós mesmos, Knitter reflexiona e afirma que há uma coisa errada nas
visões tradicionais sobre as outras religiões. Porque se sustentamos como cristãos que
nossa verdade é única ou absolutamente final, na qual todos os outros devem estar
incluídos, não estamos tratando aos outros como nossos irmãos e nossas irmãs. E com
essa maneira de agir e pensar entramos em uma contradição ou tensão entre o primeiro e
o segundo mandamento. Deste modo, tendo em conta a prioridade da ortopraxia de
amar o nosso vizinho e a nossa vizinha, sobre a ortodoxia das teologias tradicionais, a
teologia do pluralismo religioso propõe que para compreender o grande mandamento,
os modelos tradicionais –tanto exclusivos como inclusivos- devem ser revistos e
revisados. Porque o amor sem limites de Deus não está restrito somente a uma religião
ou caminho espiritual.31
A partir desses pressupostos a teologia cristã do pluralismo religioso se afasta, por um
lado, da visão exclusivista não eclesiocêntrica, mas centrada na «sola Fé a sola Graça e
29
Veja Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. pp.58-60.
Jacques Dupuis, “Verso uma teologia cristiana del pluralismo religioso”, Queriniana, Brescia 1997,
p.520. Citado por José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit. p.98.
31
Paul K. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit., p.60-62.
30
a sola Escritura» de Karl Barth, e por outro lado, da visão inclusivista dos «cristãos
anônimos» de Karl Rahner. Mas também, se afasta de outro «Karl» ou seja, de Karl
Marx que não conseguiu entender que a religião pudesse ser um veiculo de
transformação social32.
Portanto, e resumindo, a teologia do pluralismo religioso parte: em primeiro lugar, do
questionamento, à pretensão cristã de ter a verdade absoluta, de ser a única religião
autêntica, e de ser o único caminho de salvação e, conseqüentemente, da valorização das
outras religiões como caminhos de salvação e como revelação de Deus à humanidade.
Assim, na visão do pluralismo religioso «há muitos Povos de Deus». Em segundo lugar,
do reconhecimento de que a Divina Realidade e Verdade é, por sua própria natureza,
sempre mais do que qualquer ser humano possa compreender ou qualquer religião possa
expressar33. Em terceiro lugar, da afirmação de que Jesus é uma Palavra que pode ser
compreendida apenas em conversa com outras Palavras; é o caminho que está aberto
para outros caminhos34. Em quarto lugar, da certeza de que quando pessoas religiosas
escutam juntas as vozes do sofredor e do oprimido, quando tentam responder juntas às
necessidades deles, são capazes de confiar umas nas outras e sentir a verdade e o poder
da singularidade de cada um35, reconhecendo, também, assim, o direito à diferença
como legitimo. Finalmente, da certeza de que não é autêntica uma religião que não se
dirige como preocupação primordial, à pobreza e a opressão que infesta nosso mundo36.
Por todo o anteriormente dito, a teologia do pluralismo religioso não é apenas um
reconhecimento mecânico e oportunista da realidade religiosa plural de nosso mundo,
seja por uma necessidade de convivência ou sobrevivência, porém, como bem afirmam
Faustino Teixeira e José María Vigil, a afirmação de um conhecimento mútuo e de um
enriquecimento recíproco37, no compromisso com a construção de um Reinado de Deus
que seja vida, justiça, paz, graça e amor para todos, mas em primeiro lugar para os
menos favorecidos e empobrecidos, que são injustiçados e privados de seus direitos38.
Teologia latino-americana da libertação e teologia das religiões em diálogo
a) Historia de uma caminhada
A teologia latino-americana da libertação que aparece após o Concilio Vaticano II, por
volta de 1968, na tentativa de fidelidade e compromisso com o Deus da Vida e o povo
32
Paul K. Knitter, “Para uma teologia da libertação das religiões”, em: Pelos muitos caminhos de Deus,
op. cit. p.16. Capítulo final do libro coordinado por John Hick e Paul Knitter titulado The Myth of
Christian Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology of Religions, Orbis Book, Maryknoll, New York, 1987,
pp.178-200. Capítulo também traduzido ao espanhol com autorização do editor Maryknoll, em:
Koinonia, Reslat, 255, www.servicioskoinonia.org/relat/255.htm.
33
Paul K. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.58.
34
Ibidem, pp.106-113.
35
Ibidem, p.34.
36
Paul F. Knitter, “Para uma teologia da libertação das religiões”, em: Pelos muitos caminhos de Deus,
op. cit. p.16.
37
Faustino Teixeira, “O desafio do pluralismo religioso para a teologia latino-americana” em: Pelos
muitos caminhos de Deus, op. cit. p.65.
38
José María Vigil, “Espiritualidade do pluralismo religioso – Uma experiência espiritual emergente”,
em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.132.
latino-americano, se interessou basicamente por temas como justiça social,
solidariedade e Reino de Deus, dentro do marco da visão inclusivista/cristocêntrica.
Entretanto, como anotamos anteriormente, até apenas poucos anos a teologia do
pluralismo religioso não pareceu interessar muito aos teólogos latino-americanos da
libertação. Uns tinham posições negativas com relação à religião, outros consideravam
o tema como algo meramente acadêmico, ou uma temática de interesse apenas de
teólogos europeus e norte-americanos. Outros, ainda favoráveis, mas pelo envolvimento
e compromisso com a teologia negra e índia (intrinsecamente pluri-culturais e
plurireligiosas) assim como com a teologia feminista, já pensavam que o viviam.39
Ao respeito explica José María Vigil: “Naquela hora estávamos em toda a América
Latina sub-mersos em outras batalhas, em outras tarefas teológicas urgentes e até
revolucionárias, e o tema do pluralismo religioso ficou fora do alcance da nossa atenção
acadêmica. Para nossa luta daquele momento foi suficiente o «macroecumenismo» da
espiritualidade da libertação, ainda inclusivista, mas naquele momento uma espécie de
pluralismo”.40
Comenta também Marcelo Barros, que a teologia latino-americana da libertação só se
encontrou em sintonia com a teologia do pluralismo religioso quando se inseriu em um
diálogo com as religiões indígenas e negras e com as formas do catolicismo popular,
porém, mais com um interesse missiológico na linha da inculturação da fé cristã no
mundo indígena ou negro, mas ainda com uma mentalidade muito eclesiocêntrica. E aí,
o «outro» cultural e religioso não existe verdadeiramente e não há uma apertura para o
pluralismo cultural e religioso41.
Assim sendo, durante as celebrações do quinto centenário da conquista, o 1ro Encontro
Continental da Assembléia do Povo de Deus (APD/Quito/Equador/1992)42 se aprova, a
proposta de Dom Pedro Casaldáliga, o termo «macroecumenismo»43 . Através desse
termo se tentou expressar uma nova visão ecumênica caracterizada por uma visão mais
universal do povo de Deus: “o povo de Deus são muitos povos”. Também, o termo
tentou superar, em primeiro lugar, o ecumenismo como movimento pela unidade cristã
entre as igrejas oficiais; em segundo lugar, integrar o encontro intercultural na relação
entre as religiões; e, finalmente superar a chamada «inculturação» como estratégia
missionária de inserção da igreja nos povos indígenas e comunidades negras,
consideradas cristãs, mas de outras culturas. Mas, como afirma Marcelo Barros, mais do
que simples diálogo inter-religioso, o macroecumenismo é uma proposta de unidade no
serviço e no testemunho da solidariedade em defensa dos povos oprimidos44.
39
Veja Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de
Deus. op. cit. p.136.
40
Veja Paul K. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.11, (Apresentação de José María Vigil).
41
Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de Deus.
op. cit., p.142 e 150..
42
Uma assembléia onde participaram representantes das diferentes religiões do continente latinoro
do
americano. Veja Manifestos do 1 e 2 Encontros da Assembléia do Povo de Deus.
43
Eufemismo ou termo ambíguo já que realmente não existe um «micro-ecumenismo». Porém, veja
Pedro Casaldáliga e José Maria Vigil, Espiritualidad de la liberación, em:
www.servicioskoinonia.org/biblioteca
44
Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de Deus.
op. cit., p.142.
E sem intenção de entrar no debate, e apenas como informação, aponto que Armando
Lampe45, tem uma opinião negativa do chamado macroecumenismo e não o considera
um projeto popular. Segundo ele o macroecumenismo e a intolerância religiosa são duas
caras da mesma moeda, ou seja, são expressões das igrejas institucionais, seus líderes e
suas teologias oficiais. O diálogo supõe duas pessoas com duas identidades diferentes;
aqui há só uma só pessoa com diferentes identidades religiosas.46
Então, será a partir da década de 90, com o interesse pela inculturação da fé, e
particularmente em ambientes da pastoral popular, que os teólogos da libertação
começaram a se interessar pela temática, e a repensar e reformular seus conteúdos agora
desde uma perspectiva pluralista. Assim sendo, agora Gustavo Gutierrez, na nova
edição de sua teologia da libertação, escreveu um longo prefacio onde destaca a
importância do diálogo com outras teologias o qual, segundo ele, ajudou a ampliar a
compreensão do mundo do pobre, assim como a captar e compreender e valorizar
melhor aspectos que haviam permanecido na obscuridade de uma teoria pouco ou não
relacionada com a prática47.
Desta maneira, aos poucos, os teólogos latino-americanos da libertação têm se dado
conta e reconhecido a importância da religião, seja para bem ou para mal, na
transformação das estruturas sociais, políticas e econômicas. E hoje estão cada vez mais
cientes que o movimento pela liberação e pela justiça social precisa de um diálogo interreligioso a nível mundial.
Entretanto, é uma realidade que a maior parte dos empobrecidos de hoje se encontram
em países onde o cristianismo é minoria. Por isso, comenta Knitter, que uma teologia da
libertação apenas cristã tem a perigosa limitação de se desenvolver para dentro, e de se
enriquecer apenas com uma visão exclusivista do Reino. Logo, uma teologia que não se
dirige a, e por meio desta humanidade não cristã e suas religiões, é um luxo da minoria
cristã48.
Por isso, cada vez se torna mais claro e urgente a necessidade de um diálogo entre os
teólogos da libertação e das religiões. E assim vemos que no presente existem linhas de
convergência e enriquecimento mutuo entre essas duas teologias irmãs.
b) Contribuições da teologia latino-americana da libertação
Agora, quero me concentrar em que sentido, segundo os teólogos do pluralismo
religioso, a teologia latino-americana da libertação pode ajudar a teologia pluralista das
religiões.
45
Armando Lampe, natural de Aruba, Caribe. Estudou teologia na Universidade Católica de Nijmegem;
mestre em sociologia pela Universidade Ibero-Americana; doutorou-se em 1988 na Universidade Livre
de Amsterdã; é docente no Instituto Pedagógico de Aruba.
46
Armando Lampe, “Intolerância religiosa contra o pluralismo religioso na história latino-americana”,
em: Pelos muitos caminhos de Deus. op. cit. p.63.
47
Veja Gustavo Gutierrez, Teologia da libertação, São Paulo, Loyola, 2000, p.13 e 19.
48
“The Place of Non-Christian Religions and Cultures in the Evolution of Third World Theology”. Em
Irruption of the Third World: Challenge to Theology, Virginia Fabella and Sergio Torres, eds. (Maryknoll,
N.Y., Orbis Books, 1983, p.113-114. Citado e comentado por Paul K. Knitter, “Para uma teologia da
libertação das religiões”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.15.
Em primeiro lugar, a teologia latino-americana da libertação, com sua chamada
«hermenêutica da suspeita» 49, contribui grandemente a revisar a base cristológica da
teologia das religiões, ajudando a desenvolver uma cristologia pluralista que vai além
tanto do exclusivismo (Karl Barth) como do inclusivismo (Karl Rahner/Hans Küng).
Porque, certamente, como reconhece a teologia do pluralismo religioso, consciente ou
inconscientemente essa base cristológica, ao afirmar que Cristo tem que ser norma final
e definitiva, serviu de suporte ideológico para dominar, controlar, subordinar e
desvalorizar outras tradições culturais e religiosas.
Em segundo lugar, podemos apontar a «opção libertadora preferencial pelos pobres e
não-pessoas». Cabe lembrar as palavras do profeta Miquéias: “O Senhor já nós mostrou
o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é
direito, que amemos uns aos outros com dedicação e que vivamos em humilde
obediência ao nosso Deus” (Mq 6,8); e também as palavras de Tiago: “...a religião
pura e verdadeira é esta: ajudar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e não se
manchar com as coisas más deste mundo” (Tg 1,27). Deste modo, os teólogos das
religiões tem se dado conta, que não é autêntica e legitima uma religião que não tem
como preocupação fundamental a eliminação da pobreza e opressão que contaminam
nosso mundo. A base para o diálogo inter-religioso deve ser a luta pela justiça e a favor
dos menos favorecidos da sociedade. Tanto a teologia latino-americana da libertação,
como as chamadas «teologias do genitivo» -teologia negra e teologia feminista, entre
outras- afirmam que a experiência dos empobrecidos e oprimidos constitui um terreno
hermenêutico privilegiado, e que a identificação com os empobrecidos é fundamental
para conseguir entender tanto a Bíblia como nosso mundo atual50.
Finalmente, outra contribuição da teologia latino-americana da libertação à teologia do
pluralismo religioso é, sem dúvida, a ênfases na «práxis da liberação sobre a doutrina ou
ortodoxia» como principio soteriológico e fonte de princípios éticos na procura do
“Reino de Deus e sua Justiça”. Postula Joaquín Garay, que a afirmação de que a prática
no seguimento de Jesus e o trabalho pelo Reino de Deus têm prioridade para a
identidade cristã sobre a discussão de seu conhecimento ou formulação doutrinal, é o
que permite, precisamente, o encontro com pessoas de outras religiões51.
Então, a partir dessa visão, a base comum para uma teologia do pluralismo religioso na
América Latina não seria nunca nem «cristocêntrica», nem «teocêntrica» e muito menos
49
Atitude interpretativa que trata de descobrir as raízes e fatores inconscientes ou positivamente
ocultos que intervieram na elaboração da teoria ou a doutrina, neste caso da teologia cristã. Com esta
atitude é preciso reexaminar de novo a história e ver em quantos casos, algumas doutrinas, teologias,
ou disposições eclesiásticas, apesar de se apresentar com aparência de serem afirmações estritamente
religiosas, desempenharam a função de justificação ideológica das ações de força que o grupo cristão
exerceu contra outros grupos que foram as vítimas de nosso egoísmo corporativo, disfarçado
religiosamente. Veja José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit., pp.42-44.
50
Lee Cormie, “The Hermeneutical Privilege of the Oppressed”, em: Catholic Theological Society of
America Proceeding, 33 (1978)78. Citado por Paul K, Knitter, “Para uma teologia da libertação das
religiões”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.24.
51
Joaquín Garay “Teología del pluralismo religioso y teología de la liberación”, em:
http//latinoamericana.org/2003/textos. (Primeiro premio na competição para teólogos jovens
convocado por MWI de Aquisgrán, Alemanha e a Agenda Latino-Americana 2002)
«eclesiocêntrica», porém, «reinocêntrica», ou «soteriocêntrica», ou, também, como diria
Marcelo Barros, «vidacêntrica», ou seja, centrada no projeto de vida para todos. 52
c) Contribuições da teologia do pluralismo religioso
Passo agora a comentar neste diálogo entre essas duas teologias irmãs, chamadas a
serem complementares, as contribuições da teologia do pluralismo religioso à teologia
latino-americana da libertação.
Tínhamos comentado que a teologia latino-americana da libertação ainda que se
aproximasse à teologia do pluralismo religioso ao princípio da década dos 90, o faz em
um contexto onde o cristianismo é majoritário e hegemônico, e mais na linha do
pluralismo cultural do que focado na questão das religiões, voltado para a inculturação
da missão nos mundos indígenas e negros, e privilegiando mais o anúncio da fé cristã
do que o diálogo e, por conseguinte, sem uma apertura real para o pluralismo religioso.
No entanto, a teologia do pluralismo religioso se desenvolveu particularmente na Ásia
em um contexto onde o cristianismo é minoritário. Por isso teve que entrar em diálogo
com outras culturas e tradições religiosas. E tendo em conta o anteriormente dito, a
teologia do pluralismo religioso pode desafiar a teologia latino-americana da libertação
a aprofundar uma nova eclesiologia com uma visão «mundocêntrica», que se afaste da
imagem dominante dentro do movimento ecumênico moderno que interpretou as
palavras de Jesus “que todos sejam um” (Jo 17,1) tendo como fundo uma visão
eclesiocêntrica. Mas também, pode contribuir a desenvolver uma nova missiologia na
linha de um pluralismo intercultural onde a missão seja entendida como diálogo. E
entender a missão como diálogo não significa reduzir essa missão a alguma atividade
específica, mas antes ampliar essa missão além das atitudes e práticas tradicionais. Por
exemplo, aprofundando um diálogo com os humanismos contemporâneos de caráter não
religiosos e até ateus (cf. Hugo Assmann (1933-2008) e Franz Hinkelammer). Sendo
isto último a experiência dos encontros do Fórum Social Mundial que poderia ser a
matriz para uma nova teologia do pluralismo cultural e religioso53.
Por outro lado, a teologia latino-americana da libertação desenvolveu uma reflexão
sobre justiça social e solidariedade, assim como sobre a conflitividade do Reino de
Deus, porém não assumiu temas como paz, não violência, antimilitarismo, ecologia e
médio ambiente e outros temas urgentes hoje. Porém, o diálogo com a teologia do
pluralismo religioso pode ajudar a trazer esses temas de volta, ao pôr a teologia latinoamericana da libertação em contato com espiritualistas de outras religiões e outros
continentes.54.
Não há outro nome?
52
Veja agora Paul K. Knitter, “Para uma teologia da libertação das religiões”, em: Pelos muitos caminhos
de Deus, op. cit. pp. 14-31; e Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos
muitos caminhos de Deus, op. cit. pp.148-153.
53
Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op.
cit. p.151.
54
Ibidem, pp.152.
Sem dúvida nenhuma o aspecto mais difícil, conflitante e neurálgico da teologia do
pluralismo religioso é a cristologia. E a questão cristológica tem a ver com o que se tem
chamado «a essência do cristianismo», ou seja, a compreensão tradicional da unicidade
de Cristo como elemento central e fundamental da identidade cristã.
Para os críticos da teologia do pluralismo religioso, colocar Jesus numa comunidade de
iguais com outros reveladores significa roubar a força do compromisso de discípulos de
Cristo e diluir a coragem da denuncia profética cristã do mal. Poderia contribuir para
uma comunidade feliz de religiões, mas à custa da identidade cristã55.
E as provocações e desafios mais fortes, tanto à visão tradicional de entender a
unicidade de Cristo como ao inclusivismo, vêm de duas figuras chaves da teologia do
pluralismo religioso: John Hick e Paul Knitter.
Assim, por um lado, Hick postula a validade de todas as religiões mundiais como
contextos autênticos de salvação/libertação, os quais não são secretamente dependentes
da cruz de Cristo56. E, por outro lado, Knitter, ainda que reconheça que Jesus é
verdadeiramente a Palavra salvífica de Deus, afirma que Ele (Jesus) não é a única
Palavra salvífica que Deus pronunciou57.
A partir desses postulados, Knitter, propõe superar o inclusivismo cristocêntrico
mediante uma revisão correlacional global da cristologia, não com a intenção de negar a
unicidade de Jesus, mas revisá-la e reafirmá-la, porque os anúncios cristãos tradicionais
de Jesus como final, total e insuperável constituem no mínimo uma ameaça para
qualquer tentativa de dialogo inter-religioso. Porque “não podemos mais de um modo
honesto entrar em diálogo com outras religiões se a nossa pergunta está centrada no
cristianismo”58.
Então, a seguir passo a oferecer um resumo e sínteses da cristologia da teologia do
pluralismo religioso. E por considerá-las as reflexões mais estruturadas, atuais e
completas da temática cristológica dentro da teologia do pluralismo religioso, vamos
nos auxiliar, basicamente, das propostas teológicas de duas de suas figuras chaves: John
Hick e Paul F. Knitter. No entanto, fazendo a ressalva das diferencias, como aponta
Knitter, em questões de como entender e fundamentar a unicidade de Jesus, o papel da
missão das igrejas cristãs e o método soteriocêntrico ou libertador do diálogo59.
Em primeiro lugar, Knitter realiza uma desconstrução tanto do inclusivismo como das
visões cristológicas tradicionais. Depois de realizar uma analises crítica das formulações
neo-testamentárias sobre Jesus, conclui que quando os primeiros discípulos insistiam
em títulos de Jesus como Salvador e Mediador, Messias, Filho de Deus, estavam
tentando colocar numa linguagem metafórica e simbólica sua decisão de segui-lo e de
55
Veja Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit., PP.67-82.
John Hick, A metáfora do Deus encarnado, Petrópolis, Vozes, 2000, p.121.
57
Paul F. Knitter, No Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes toward World Religions,
Maryknoll, Orbis Books, 1985.
58
Felix Wilfred, “Dialogue Gasping for Breath? Toward New Frontiers”, em: Federation of Asian Bishops
(org.), Interreligious Dialogue, 1987, 32-35, (Federation of Asian Bishops Conference Papers, 49). Citado
por Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes – Missão cristã e responsabilidade social, op. cit. p.66.
59
Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.68.
56
continuar a vida dele de viver e amar60. E quando usaram frases como “não há outro
nome” (At 4,12) não queriam significar que ninguém mais deveria ser escutado ou de
ninguém mais deveríamos tomar conhecimento. Segundo Knitter, os cristãos antigos
rejeitaram o pluralismo da sua época, não porque ele estava contra o papel ou contra a
natureza de Jesus Cristo, mas porque ele estava contra o tipo de Deus e contra o tipo de
sociedade que eram integrais para a visão de Jesus do Reino de Deus.
Portanto, conclui Knitter, os cristãos não têm em Jesus a «plenitude» ou a totalidade da
revelação divina, como se ele esgotasse toda a verdade que Deus tinha para revelar.
Limitar o Divino a qualquer forma o mediação humana foi chamado biblicamente de
idolatria. Em Jesus encontramos Deus plenamente, mas isso não significa que temos
sequestrado a plenitude de Deus. Tampouco deveriam os cristãos ostentar uma palavra
de Deus «definitiva» em Jesus, como se fora dele não pudesse haver outras normas para
a Verdade Divina. Pois desde que o Deus revelado por Jesus permaneça Deus, ninguém
pode ter a palavra final sobre semelhante Deus. Finalmente, a palavra salvífica de Deus
em Jesus não pode ser exaltada como «insuperável», como se Deus não pudesse revelar
mais de plenitude de Deus em outras formas em outros tempos. Porque se acreditamos
no Espírito Santo, devemos acreditar que sempre há “mais por vir”61.
Depois dessa desconstrução das visões cristológicas inclusivistas e tradicionais, passa
Knitter a formular seu pensamento cristológico. Assim, afirma que a palavra de Deus
em Jesus é «universal, decisiva e indispensável». É «universal» na medida em que seja
experimentada como um chamado não somente para os cristãos, mas para pessoas de
todos os tempos. É «decisiva» porque nos chama a mudar perspectiva e conduta. E dizer
que Jesus é decisivo é dizer que é normativo. Portanto, ao oferecer essa norma, a boa
nova de Jesus «define» Deus, mas «não confina Deus»; ela revela o que os cristãos
sentem que é «essencial» para um conhecimento verdadeiro do Divino, mas não
proporciona «tudo» o que constitui esse conhecimento. E sua mensagem normativa não
exclui necessariamente outras mensagens. Finalmente, a palavra de Deus em Jesus é
«indispensável» porque conhecer Jesus é sentir que os budistas os hinduístas e os
muçulmanos também precisam conhecê-lo, ainda que não signifique necessariamente
que eles se tornarão membros da comunidade cristã. Em fim, conclui Knitter, “Jesus
não é a verdade total, decisiva e insuperável de Deus, mas traz uma mensagem
universal, decisiva e indispensável”62. E para completar seu pensamento poderíamos
apontas também suas palavras em seu pioneiro e revolucionário livro No Other Name?
(Nenhum Outro Nome?) “os cristãos em geral estão se dando conta de que para que algo
seja verdade não precisa ser absoluto” 63.
No entanto, reflexiona Knitter, não é suficiente afirmar Jesus como universal, decisivo e
indispensável. Portanto, devemos nos perguntar: O que torna Jesus único? Como
poderíamos formular para o nosso contexto contemporâneo a unicidade de Cristo e do
cristianismo? O que é essencial na mensagem de Jesus para vivê-lo no nosso mundo
presente? O que é que os cristãos devem trazer à mesa do diálogo, se querem ser fiéis a
60
Veja também uma análise dos títulos cristológicos em: John Hick, A Metáfora do Deus Encarnado,
Vozes, Petrópolis 2000, pp. 43-67. Essas páginas (capítulos III e IV) encontram-se publicadas em formato
digital em: servicioskoinonia.org/relat/305.html.
61
Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.99.
62
Ibidem, p.104.
63
Paul F. Knitter, No Other Name?, op. cit.p.219.
tudo o que é Jesus e o cristianismo? E já aqui nos encontramos no campo da «unicidade
de Jesus» e da «essência do cristianismo».
E em sua formulação da unicidade de Jesus e da essência do cristianismo, Knitter afirma
categoricamente que não podemos procurar a unicidade do cristianismo no chamado
«Jesus histórico» porque o Jesus histórico nunca existiu pura e exclusivamente como o
«Jesus histórico»64.
Explica José María Vigil que apenas nos dos últimos séculos temos conseguido
recuperar a realidade histórica de Jesus, «o Jesus histórico». E hoje sabemos que muitas
afirmações que foram tomadas literalmente como se fossem afirmações «históricas»
realmente são afirmações teológicas65. Durante seu ministério Jesus era interpretado por
a comunidade de seus seguidores/as, interpretação que se intensificou após sua morte na
experiência que seus seguidores/as chamaram de ressurreição66. Por isso, conclui
Knitter que o Jesus histórico sempre era e deve continuar sendo compreendido junto
com o que tem sido chamado «Cristo da fé», ou «o Espírito de Cristo» (2Co 3,17). Por
isso, também afirma Knitter, não podemos falar sobre cristologia sem a pneumatologia,
sem reconhecer a presença do Espírito Santo67.
Para Knitter todo o que Jesus diz e faz está inspirado em seu compromisso com a vinda
do «Reino de Deus» (cf. Mt 6,33; Lc 4,16ss; 7,18-23)68. Jesus nunca se pregou a si
mesmo, nem pregou simplesmente «Deus». Sempre que falava de Deus falava do Reino
de Deus. O Reino foi a causa e a razão da sua vida e de sua morte, porém, nunca deu
uma definição do Reino de Deus. E não o explicita ou define porque não é um conceito
que ele tenha criado ou inventado, mas um conceito bem antigo nas tradições de Israel,
particularmente das tradições proféticas e apocalípticas (cf. Ex 15,18; Sal 47,8; Is 24,23;
52,7; Dn 4,3; Ob 21; Mq 4,7). E sempre que falava do Reino o fazia mediante a
simbologia e a metáfora das parábolas, onde o Reino não é um fato para além da
historia, mas uma realidade deste mundo. É Deus em relação a esta Terra e a esta
historia. E para Knitter será precisamente o símbolo do Reino de Deus a chave
hermenêutica para compreender a unicidade de Jesus, a unicidade do cristianismo e a
base e a meta para o diálogo inter-religioso.
Anota ainda Harvey Cox que a visão centrada no Reino muda todo o significado da
discussão entre as pessoas de diferentes tradições religiosas. A finalidade da
conversação é diferente. O diálogo inter-religioso não se converte em meta por si
64
Paul. F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.115.
Veja José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit. p.128. Raymond E. Brown afirma que
as ocorrências isoladas onde o Novo Testamento parece chamar Jesus de Deus são altamente ambíguas,
e que de modo general o Novo Testamento evita qualquer simples identificação de Jesus e Deus.
Raymond E. Brown, Jesus, God and Man, Milwaukee: Bruce, 1997, pp.23-38. Citado por Paul. F. Knitter,
Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.97, nota 35.
66
Veja Paul. F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.115; veja também John Hick, A Metáfora do
Deus Encarnado, op. cit. cap.3.
67
Veja Paul. F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. p.115
68
O termo «Reino de Deus» aparece 112 vezes nos evangelhos e delas 90 vezes nos lábios de Jesus.
Leonardo Boff, Jesucristo el liberador, Sal Terrae, 1980, p.66. Em português: Jesus Cristo, Libertador, (Ed.
19), Vozes, Petrópolis, 2008. Também uma ampla visão sobre o conceito do «Reino de Deus» pode ser
encontrada em José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit. pp.128-152.
65
mesmo nem numa busca estritamente religiosa, mas em meio para a antecipação da
justiça de Deus. Converte-se em práxis69.
Desta maneira, quando os cristãos hoje fundamentam a unicidade de Jesus no Reino de
Deus e no símbolo da sua morte e ressurreição eles estabelecem uma «relação» com
outras religiões que pode ser «exclusiva», ou «inclusiva» ou «pluralista correlacional».
É «exclusiva» no sentido de que esta compreensão da unicidade de Jesus desafiará
qualquer crença ou prática que no promova um compromisso com o amor e a justiça,
particularmente com as pessoas oprimidas assim como também com a Terra oprimida;
«inclusiva» no sentido que esclarece e realiza o potencial de outras religiões para
promover o que os cristãos chamam de Reino de Deus; «pluralista no sentido de que
reconhece as outras visões encontradas em outras religiões e será por sua vez
plenamente realizada por elas. E será isto o que Knitter chama «cristologia correlacional
e globalmente responsável».
Então e concluindo, segundo Knitter a unicidade de Jesus e de sua comunidade tem que
ser vista em relação com a libertação e a transformação deste mundo. Por isso sua
unicidade tem que ser entendida como uma «unicidade relacional» fundada na sua
pregação do Reino de Deus. O Deus de Jesus é um Deus conhecido na historia, que
procura o bem-estar dos oprimidos e que é fiel àqueles que trabalham pelo Reino de
Deus. E proclamar semelhante Deus e a possibilidade de semelhante experiência
constitui a unicidade da identidade cristã e a contribuição cristã com o diálogo interreligioso.70
Logo, nesta caminhada pelo aspecto mais difícil, conflitante e neurálgico da teologia do
pluralismo religioso, ou seja, a cristologia, penso que deu para entender que o caminho
dos seguidores da teologia do pluralismo religioso não é a exclusão da referência
singular de Jesus, mas o questionamento de um cristocentrismo que não é cristão e que
termina absolutizando o cristianismo. A preocupação concentra-se sobre o significado
de Jesus, e não sobre a «estrutura de seu ser»; sobre o «mistério de Jesus» e não sobre
os «mecanismos» utilizados para explicar esse mistério, como faz a cristologia
dogmática tradicional71.
Em sintonia com o pensamento anterior anota José María Vigil: “O «Cristo dogmático»
é um Cristo no qual se perdeu a conexão com o Jesus histórico, com sua vida, sua causa
e sua predicação, um Cristo sem Reino, que foi a causa central, o absoluto mesmo de
Jesus de Nazareth; é uma «redução personalizada» do Reino de Deus, porque o Reino
foi concentrado na pessoa de Jesus, tergiversando e iludindo assim o Reino
propriamente tal, e a mensagem real de Jesus sobre ele; é «outro cristianismo», ou seja,
um cristianismo diferente do cristianismo do evangelho do Reino de Deus e do
seguimento de Jesus; é um cristianismo que reduz Cristo a uma teoria metafísica capaz
de legitimar o sistema de «cristandade». Temos que ser clarividentes na análise e
corajosos na aceitação do fato: trata-se de um cristianismo deficiente e desviado, e
temos que submetê-lo ao julgamento do cristianismo do evangelho do Reino e do
69
Harvey Cox, Religion in the Secular City: Toward a Postmodern Theology, New York, Simons and
Schuster, 1984, p.238. Citado por Paul F. Knitter, “Para uma teologia da libertação das religiões”, em:
Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.27.
70
Confira agora Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. pp.83-130.
71
Faustino Teixeira.“O desafio do pluralismo religioso para a teologia latino-americana” em: Pelos
muitos caminhos de Deus, op. cit., p.78.
seguimento de Jesus. Como o mesmo evangelho sublinha, é muito mais importante
«seguir a Jesus», ou seja, «viver e lutar pela causa de Jesus», que a aceitação intelectual
na fé das afirmações teóricas metafísicas do chamado dogma cristológico. O importante
não é «crer em» Jesus, mas «crer como» Jesus, que não incluiu nunca entre suas
exigências a adesão intelectual a umas afirmações abstratas dogmáticas”72.
Finalmente, termino esta caminhada pelo pensamento cristológico da teologia do
pluralismo religioso com as acertadas palavras do teólogo indiano já falecido, George
Soares Prabhu, “a verdadeira «unicidade» de Cristo é a unicidade do caminho da
solidariedade e luta (um caminho que não é masculino nem feminino) que Jesus
mostrou como o caminho para a Vida. Convidamos outros para percorrê-lo conosco e
compartilhar da experiência que temos tido, sem afirmar que é o único caminho ou o
único melhor”73.
Ora, a mudança do «cristocentrismo» para o «reinocentrismo», na visão da teologia do
pluralismo religioso, tem profundas implicâncias. Buscar em primeiro lugar o Reino de
Deus e sua justiça (Mt 6,33), o qual no presente significa promover a felicidade de todas
as pessoas deste mundo, em vez de procurar primeiro o bem-estar da Igreja, significa
uma profunda revisão das visões eclesiológica e missiologia tradicionais, E essa será a
temática que pretendemos desenvolver na próxima seção.
Na busca do Reino de Deus: Missão é dialogar
Como já comentamos, foi na prática do seguimento de Jesus que os primeiros cristãos o
conheceram e acreditaram nele. Seguimento que implicava estar comprometido
ativamente com a vida e as lutas deste mundo, preocupar-se especialmente com as
pessoas que estão sofrendo por causa da injustiça e a opressão, na esperança de que,
apesar de fracasso e morte, este mundo pode mudar para melhor74. E aqui certamente
nos encontramos no campo do serviço e da missão.
E afirmar, como faz a teologia do pluralismo religioso, uma visão «reinocêntrica» da
Igreja e a missão, implica, por um lado, reconhecer que as outras religiões não são
apenas «caminhos de salvação» (Karl Rahner/Hans Küng), mas «caminhos» e possíveis
«agentes» desse Reino; e, por outro lado, que fazer possível que todas as pessoas se
tornem membros do Reino é mais importante que fazê-los membros da Igreja, porque a
missão de Deus «missio Dei» é maior que a missão da Igreja, e o Reino mais importante
que a própria Igreja (Dupuis).
Portanto, na visão da teologia do pluralismo religioso, a missão só tem sentido em uma
perspectiva pluralista e dialogal. Mas o correto, segundo Knitter, não seria tentar incluir
o diálogo na missão, mas entender a missão como diálogo. Ou seja, a melhor forma
como a Igreja e os seguidores de Jesus podem servir ao Reino de Deus, no mundo atual,
religiosamente plural e globalmente ameaçado, pela globalização neoliberal, é por meio
do diálogo, porque do contrário, a natureza e o propósito da missão estão perdidos e
tornam-se irrelevantes. Contudo, definir a missão como diálogo não significa reduzir
72
Veja José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit., 171-172.
George Soares Prabhu, The Jesus of Faith, India (Pune). Mimeo, p.27-28. Citado por Faustino Teixeira,
“O desafio do pluralismo religioso para a teologia latino-americana” em: Pelos muitos caminhos de Deus,
op. cit., pp.78-79.
74
Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nome, op. cit. p.122.
73
essa missão a alguma atividade específica, mas antes ampliar essa missão além das
atitudes e práticas tradicionais e equilibrar melhor os vários aspectos da missão75.
O anteriormente dito implica ter uma visão missionária dialogal e abrangente, onde a
proclamação e a prática da boa notícia do Reino de Deus devem permear todas as
atividades: o dia-a-dia, a luta pela justiça, a liturgia, a espiritualidade, e a teologia.
E aqui é oportuno observar, que ao se afirmar como um novo paradigma, a teologia do
pluralismo religioso tem serias e profundas implicâncias para o trabalho teológico em
geral, e também para educação e formação teológica em particular. Por isso, afirma
Knitter, que se a teologia, como parte dessa missão dialogal se entende como diálogo
plural, a forma como fazemos teologia deve ser diferente e mais exigente do que é
atualmente na maioria das universidades, faculdades e seminários de teologia,
postulando o que ele chama: «modelo dialógico de educação teológica»76.
E pela relevância e pertinência de seus apontamentos para todos os envolvidos na tarefa
da educação teológica em universidades, faculdades e seminários, a continuação passo a
comentar o que significa, segundo Knitter, caminhar para um «modelo dialógico de
educação teológica».
Cristã mas não apenas cristã
Segundo Knitter, no presente mundo global e religiosamente plural, para que a teologia
cristã faça sua tarefa de forma competente e relevante não pode ser só cristã. E uma das
causas pelas quais a educação teológica não está fazendo o seu trabalho de mediar
adequadamente entre a cultura e a religião tem a ver com o que ele chama caráter
«monorreligioso» da maior parte da teologia cristã de hoje. Por isso, segundo ele,
manter a tradição cristã como fonte ou norma única para a teologia é desrespeitar o que
Deus revelou em outros lugares e culturas.
E a seguir passo a enumerar alguns dos seus apontamentos, e sugestões práticas para um
«modelo dialógico de educação teológica».
Em primeiro lugar, comenta Knitter, que a reestruturação da educação teológica implica
mais do que mexer ou mudar o currículo. As religiões devem ser ensinadas segundo um
currículo educacional teológico de uma maneira conversacional em vez de puramente
informativas, e com uma tentativa de mediar entre as religiões e a cultura
contemporânea.
Em segundo lugar, os estudantes de teologia precisam de oportunidades para aprender
sobre tradições que lhes são em sua maioria completamente estranhas, e para isso os
professores terão que combinar tanto conhecimento como envolvimento pessoal e
possibilitar assim que os alunos apreciem outros modos de ser religioso no mundo e
sejam desafiados por ele.
Em terceiro lugar, se bem um curso introdutório de religiões comparadas é importante,
porém não e suficiente. Segundo Knitter, são necessários cursos obrigatórios sobre o
Islã, religiões asiáticas, espiritualidades indígenas (e em nosso contexto latino75
76
Ibidem, pp.141-155 e 175-180.
Ibidem, pp.188-198.
americano e caribenho, eu acrescentaria de religiões afro latino-americanas). Segundo
ele, esses cursos deveriam ter uma abordagem desinteressada e sem julgamentos
cristãos, porque cursos com julgamentos cristãos geralmente pré-determina a considerar
outras religiões como inferiores, ou como preparação para Cristo e o cristianismo. E um
modelo plurirreligioso de educação teológica deve possibilitar a conversa e não um
monólogo.
Em quarto lugar, e aqui Knitter é realmente desafiante, não podemos estudar e chegar a
conhecer outras religiões, se tudo o que fazemos é «ler» sobre elas e emitir juízos de
maneira puramente acadêmica. As religiões devem ser estudadas como realidades
vividas, não apenas como ensinamentos estimados. Os cursos teológicos sobre outras
religiões devem proporcionar aos estudantes oportunidades reais de perceber e
experimentar a verdade de outros caminhos religiosos. Assim, segundo ele, por um
lado, os estudantes poderiam ser incentivados, de forma provisória e sempre em um
sentido limitado, a serem hindus, ou budistas, ou muçulmanos; e no caso de nosso
contexto latino-americano, eu comento e acrescento, poderiam ser incentivados a
participar e/ou serem membros de cultos afro latino-americanos, por que não?. Por outro
lado, os estudantes poderiam também ser estimulados a conversar ou entrevistar, com
um enfoque existencial, seguidores de outro caminho de ser religioso. E aqui estamos
em sintonia com essa frase, famosa e desafiante, desse pioneiro da teologia do
pluralismo religioso, Raimundo Paninkkar: “Marchei cristão, me descobri a mi mesmo
hindu e volto budista sem deixar de ser cristão”.
Em quinto lugar, afirma Knitter, uma simples adição curricular de cursos de qualidade e
teologicamente orientados sobre outras tradições religiosas não alcançará a meta da
reestruturação multirreligiosa da educação teológica. Precisa-se também, que os
professores acrescentem nas discussões aquilo que outras perspectivas religiosas
afirmam sobre os assuntos e conteúdos que estão sendo ensinados: estabelecer
comparações, apontar as eventuais diferenças radicais que têm com a tradição cristã e as
provocações que suscitam para que a tradição cristã continue a reflexão.
Finalmente, aponta Knitter, é preciso realizar mudanças na composição de uma
faculdade teológica. Para conseguir superar a mentalidade monorreligiosa, nenhum
seminário o faculdade universitária deveria ser considerada completa em si ou
devidamente equilibrada, ao menos que incluísse um ou mais professores formados
especificamente em alguma tradição não cristã.77
Agora, e para encerrar esta caminhada pela teologia do pluralismo religioso, passo a
comentar desafios, perguntas em aberto, e contribuições que as tradições afroamericanas, indígenas assim como a teologia feminista trazem para uma teologia latinoamericana do pluralismo religioso
Desafios para uma teologia latino-americana do pluralismo religioso
a) Os desafios das tradições afro-americanas
É característico de América Latina e do Caribe, desde a chegada dos colonizadores, a
diversidade religiosa: religiões africanas e indígenas versus cristianismo; o islã chega
77
Ibidem, pp.188-198.
inicialmente com alguns escravos africanos e mais tarde massivamente no Caribe no
século XIX com a chegada de imigrantes asiáticos, estabelecendo-se também o
hinduísmo.
E o que chama a atenção na América Latina é o que se tem dado em chamar «dupla
associação» ou «dupla pertença»78. Segundo Marcelo Barros essa síntese espiritual
muito profunda e sofrida, foi desconhecida e até condenada pela hierarquia católica.
Entretanto, foi a primeira experiência feita pelo povo latino-americano de uma «teologia
pluri-religiosa», ligando experiências espirituais diferentes, mas capazes de se
complementarem. E esses casos de «dupla pertença» são prometedores de novas figuras
históricas do cristianismo.79
Tanto as religiões africanas como as religiosidades indígenas interagiram com a religião
dos colonizadores. Mas a igreja oficial «demonizou» e reprimiu qualquer prática
religiosa que não fosse a oficial, realizando «conversões massivas», e «cristianizando»
mediante batizados massivos aos escravos e indígenas, pensando que dessa maneira
eliminariam a «idolatria».
No entanto, os escravos, em troca, interpretaram o cristianismo a partir da sua visão
africana. E como a religiosidade africana não condena a outra religião, realizaram uma
síntese em cultos de matriz africana, relendo a religião cristã para poder dar
continuidade a suas tradições ancestrais, e terminaram «conquistando» a religião dos
colonizadores.80
Deste modo, a religiosidade africana conseguiu coexistir com o cristianismo. É o que
acontece ainda hoje com o Candomblé em Brasil, a Santeria em Cuba e o Vodu em
Haiti, que são religiões intrinsecamente inclusivas, ou seja, permitem viver a fé de
forma plural («dupla pertença»), onde Jesus Cristo está integrado perfeitamente na fé
dos fiéis sem problema algum, particularmente nos ambientes do catolicismo popular.
Mas não se tratou apenas de «mascarar» uma realidade, por causa da repressão das
tradições religiosas africanas, mediante a simbioses ou a prática «sincrética»81, tendo
78
Entende-se por «dupla associação» ou «dupla pertença» pertencer ou participar a mais de uma
comunidade ou igreja de uma vez, por exemplo: (Candomblé/catolicismo no Brasil e
Santeria/catolicismo/anglicanismo em Cuba).
79
Veja Marcelo Barros, “A reconciliação de quem nunca se separou”, em: Pelos muitos caminhos de
Deus, op. cit. p.142-144.
80
Armando Lampe, “Intolerância religiosa contra o pluralismo religioso na historia latino-americana”,
em : Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.54.
81
O termo «sincretismo», introduzido nas ciências da religião para notar a mistura de diferentes
religiões num espaço religioso, e comumente considerado negativo e pejorativo, tem sido interpretado
de maneira positiva por diferentes autores. Desta maneira, o investigador Sérgio Ferretti afirma que o
sincretismo é um fenômeno que existe em todas as religiões, que está presente na sociedade brasileira
e, queira nós gostemos o não, deve ser analisado; (cf. Sergio Ferretti, Repensando o sincretismo,
Universidade de São Paulo, 1995, p.91). Em sintonia com o pensamento anterior, outro investigador,
Fernando Cervantes considera que interpretar o termo de maneira pejorativa é não somente enganoso,
mas fundamentalmente errôneo; (cf. Fernando Cervantes, “Cristianismo o sincretismo? Una
interpretación de la “conquista espiritual” en la América Española, en: Hans-Jurgen Prien (ed.)
Religiosidad e Historiografía, La irrupción del pluralismo religioso en América Latina y su elaboración
metódica en la historiografía, Vervuert-Iberoamérica, Frankfurt-Madrid, 1998, pp. 21-33,32). Ambos os
autores são citados por Armando Lampe, “Intolerância religiosa contra o pluralismo religioso na historia
latino-americana”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.59-62. O teólogo cubano Adolfo Ham
afirma que existe uma relação entre inculturação e sincretismo já que muitas vezes para inculturar-se há
por detrás dos santos do catolicismo popular as figuras dos orixás, porém, de expressar
essa realidade a partir do próprio gênio e sabedoria das culturas africanas.
Comenta, Antonio Aparecido da Silva82, que as religiosidades afro-americanas
desprivatizam a categoria cristológica dos rígidos esquemas doutrinais e a transformam
em devoção popular. Jesus Cristo está presente de forma atuante e sua presença
interessada para a vida das pessoas. Ele é a divindade atuante aqui e agora no meio do
povo, e a salvação que Ele atesta é Dom gratuito de Deus.
No entanto, a incorporação da figura de Jesus Cristo não fica reduzida ao ato salvador,
porque na compreensão das religiões afro-americanas o ato criador é ao mesmo tempo,
o ato salvador/redentor, ou seja, Deus (Olorum no Candomblé e na Santeria, e o Grande
Senhor no Vodu) «cria salvando e salva criando». Por isso, nas tradições afroamericanas não há figuras messiânicas personificadas, e o que se poderia considerar
como categoria messiânica é na verdade uma força que emana da comunidade («Axé»).
Portanto, a comunidade é messiânica, é salvadora, e é sacramental. Não existe
dicotomia entre sagrado e profano, seres humanos e divindade, corpo e espírito, bem e
mal. O humano e o divino convivem em um mesmo espaço de tempo e lugar, onde o
humano e o divino transformam a corporeidade em categoria de ambos («estado de
santo» e/ou «transe»).
Assim, conclui Antonio Aparecido da Silva, em primeiro lugar, que o problema das
comunidades afro-americanas não é com Jesus Cristo, mas com o controle da cristologia
pela ortodoxia das igrejas, inclusive pela própria teologia contemporânea. Porque se
bem no passado as igrejas e as teologias cristãs, tanto católicas como protestantes, não
levaram a sério as religiões afro-americanas marcando-as com epítetos como «cultos
diabólicos», «seitas», «religiões primitivas» «superstição», ainda hoje elas continuam
ameaçadas e menosprezadas pelos fundamentalistas neo-pentecostais, tanto católicos
como protestantes e, de certa maneira incompreendidas, e até menosprezadas, pela
racionalidade da teologia ocidental. Desta maneira, a ligação profunda entre as tradições
religiosas africanas e a categoria cristológica, analisada sob a ótica da teologia das
heranças afro-americanas, pode apontar novos rumos para a teologia do pluralismo
religioso; em segundo lugar, que a maneira de compreender a ação messiânica e a
salvação a partir da comunidade, exime as religiões afro-americanas de qualquer atitude
proselitista e faz com que elas sejam definitivamente abertas ao dialogo ecumênico e
inter-religioso; sem dúvida, o messianismo personificado constitui um grande desafio
para a teologia do pluralismo religioso; em terceiro lugar, a subjetividade que
caracteriza a sabedoria das religiões afro-americanas é um desafio, para a racionalidade
que distingue o procedimento e a metodologia da teologia ocidental; e, finalmente, que
não há possibilidade de diálogo enquanto a teologia cristã for considerada «a teologia» e
a teologia das heranças africanas continuarem sendo considerada «mera crendice»,
que sincretizar-se. Adolfo Ham, op. cit. 15. Leonardo Boff considera que todas as religiões são
sincréticas, já que toda nova religião é construída com base em elementos de antigas religiões, pois a
prática sincrética encontra-se em todas as partes. Veja Leonardo Boff, Igreja: carisma e poder, Editora
Record, Rio de Janeiro, (2da ed.), 2005, (capítulo 7). E Paul F. Knitter afirma ainda que, inclusive a
doutrina da Trindade que temos hoje nasceu dessa união cultural de imagens e construções religiosas e
filosóficas judaicas e helenistas. Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nomes, op. cit. nota 33, p.94.
82
Antonio Aparecido da Silva, brasileiro, mestre em Teologia Moral pela Pontifícia Faculdade de
Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo. Presidente do grupo Atabaque – Cultura Negra e
Teologia/São Paulo, Membro da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT).
porque do contrario estaríamos falando, apenas, de «teologia cristã do pluralismo
religioso» e não «teologia do pluralismo religioso».83
b) Os desafios de nossos povos originários
O cristianismo sistematicamente agrediu as religiões indígenas tratando-as como
animistas, místicas e carentes de revelação e suas religiosidades foram «coisificadas»
como elementos pré-modernos. Assim sendo, até muito pouco, e por causa da ausência
de representação de deuses, nem sequer se lhes reconhecia o status de religião, mas
recentemente vão sendo reconhecidos valores salvíficos nas espiritualidades de nossos
povos originários.84
No entanto, a ausência de representação de deuses não significa ausência de religião. Ao
contrário, as sociedades indígenas são atravessadas por uma profunda religiosidade. Há
uma forte interligação entre a vida social e a religiosidade indígena. E aqui vemos fortes
pontos de convergência entre a espiritualidade indígena e a espiritualidade africana.
Ambas as espiritualidades têm uma grande ligação entre a terra e a comunidade, entre
os seres humanos e a natureza Assim sendo, quando uma mulher cuida da casa, cozinha,
cuida dos filhos, ela está fazendo uma experiência do sagrado, portanto, não há
dicotomia entre o sagrado e o cotidiano.85 E sem dúvida nenhuma, em nosso mundo
moderno, esta relação da religiosidade indígena com o meio-ambiente pode ajudar a
reapreciar a sacralidade e a salvação no interior da criação; a não «consumir» e
«coisificar» a realidade, mas a interagir com ela86.
Também, segundo Diego Irarrázabal, na escatologia da religiosidade de nossos povos
originários a pessoa não é divinizada e também não há uma fuga no tempo. A utopia é
relacional onde o tempo presente inclui o passado e o futuro. Por isso, as visões
escatológicas, tanto indígenas como cristã, se interpelam mutuamente. Assim sendo,
enquanto a escatologia indígena se caracteriza por uma escatologia encarnada que
questiona uma transformação radical afim de que a população oprimida encontre a
plenitude da vida, já na escatologia cristã, cujo eixo é o Cristo Salvador, se afirma «um
já e um ainda não», algo intra-humano que provém de Deus, algo radicalmente novo no
amor de Deus que transforma a pessoa, a história e a criação.87
Outro elemento característico das tradições indígenas são os mitos e as utopias os quais
poderiam ser lidos a partir da fé cristã. Enquanto o mito interpreta uma realidade, a
utopia torna-se um projeto de futuro. Dessa maneira, o imaginário mítico e utópico de
83
Veja agora José Aparecido da Silva, “Teologia cristã do pluralismo religioso face às tradições religiosas
afro-americanas”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp. 97-107; do mesmo autor, “Jesus
Cristo luz e libertador do povo afro-americano”, em: Existe um pensar teológico negro?, Paulinas, São
Paulo, pp.37-48. Também, Luiza E. Tomita, “A contribuição da teologia feminista da libertação para o
debate do pluralismo religioso”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp. 108-114.
84
Veja Diego Irarrázabal, “Reimplantação teológica da fé indígena”, em: Pelos muitos caminhos de Deus,
op. cit. p.86. Diego Irarrázabal é sacerdote chileno, Diretor do Instituto de Estudos Aymaras (19812003), membro da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT).
85
Veja agora Luiza E. Tomita, “A contribuição da teologia feminista da libertação para o debate do
pluralismo religioso”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp.109 e 111
86
Diego Irarrázabal, “Reimplantação teológica da fé indígena”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op.
cit. p.94.
87
Ibidem, pp.94-95.
nossos povos originários combina as origens marcadas pelo mal com utopias de
felicidade e progresso.
Por exemplo, o mito/utopia guarani da «Terra sem Males», onde as casas do povo
querem-se transformar na «casa de Deus», é um modelo para uma humanidade sedenta
de sonhos e esperanças. Também o mito/utopia náhualt, onde a síntese de
Mãe/Tonantzin/Guadalupe na síntese com Maria, mãe de Deus, ao chegar na «Terra
Florida» que é Xochitlápan, representa a terra do alimento, da flor/sabedoria, do
encontro com a vida. Vemos ainda o mito/utopia mapuche que encontramos no
Nguiillatún onde a partilha de alimentos, de bebidas e de orações a favor da vida é como
uma síntese de todo caminhar e de toda aspiração humana de esperança, felicidade,
fraternidade e progresso.88 E agora, comento, não é isso também algo fundamental e
central na visão cristã da vida?
Entretanto, diferentemente da religiosidade afro-americana, a religiosidade indígena não
se caracteriza pela «dupla pertença» já comentada. Por exemplo, os quéchuas e aymaras
conservaram seus deuses masculinos e femininos dentro da religião «mariana». Eles não
praticam duas religiões, ou seja, cristianismo e a religião aymara ou quéchua, mas
fizeram uma síntese das duas.
Também é o que caracteriza a religiosidade do povo náhualt em México, onde na
devoção à Virgem de Guadalupe coexistem duas tradições: o pensamento náhualt e a
mensagem cristã. Eles se apropriaram da imagem da Virgem de Guadalupe e a
converteram em Tonantzin, a Deusa Mãe dos índios. E no pensamento náhualt
Guadalupe se apresenta como uma mãe que se preocupa pelos seus filhos,
especialmente os mais pobres. Para os missionários Maria era um ser humano, enquanto
que para os índios era um ser divino. Os missionários pregaram a Maria como «mãe de
Deus» e os índios náhualt interpretaram essa mensagem como a «Deusa Mãe» dos
deuses náhualt. Dessa maneira os índios aceitaram o catolicismo, mas o integraram
dentro de sua visão do mundo. Os aparentemente vencidos criaram assim um
cristianismo sem Cristo, porém, há um elemento de continuidade entre o
«guadalupismo» e a mensagem profética de Jesus de Nazaré que anunciou a boa noticia
aos pobres (cf. Lc 4,16-21).
Aqui vemos, como comenta Armando Lampe, que para o povo indígena a vida é mais
importante que o dogma, a espiritualidade é mais importante que a instituição, e a
aceitação do cristianismo não significa o abandono do não-cristão. É o processo de
indigenização do cristianismo, não a cristianização do indígena89.
Em fim, e resumindo, o imaginário mítico e utópico de nossos povos originários
constitui, sem dúvida, com seus desafios, e suas perguntas em aberto, uma contribuição
a ser considerada para a articulação de uma teologia latino-americana do pluralismo
religioso nesta época de globalização. Neste sentido, como anotou Diego Irarrázabal,
vale a interação entre as comunidades indígenas e outros setores da humanidade, e a
articulação entre as teologias indígenas e outros modos de tornar-se presença de
88
Ibidem, p.87-92.
Veja agora Armando Lampe, “Intolerância religiosa contra o pluralismo religioso na historia latinoamericana”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp.55-59.
89
esperança de vida90. E também os apontamentos de Lori Altmann, pastora e teóloga
metodista que trabalho durante 10 anos na comunidade indígena Kulina: “A reflexão
teológica que surge da convivência com culturas e religiões indígenas, traz seus
desdobramentos e sua contribuição para o questionamento de nossas formas culturais de
anúncio e para se conseguir uma melhor formulação de nossa fé no encontro com outras
culturas”91.
c) Os desafios da teologia feminista
Na seqüência, e por sua relevância, passo a apresentar apontamentos da teóloga
feminista católica Ivone Gebara com relação ao diálogo inter-religioso. E certamente
podemos notar que suas colocações são muito críticas com relação à teologia e aos
teólogos do pluralismo religioso.
Por um lado, Gebara, em sintonia como os teólogos do pluralismo religioso, insiste na
necessidade de sair da centralidade metafísica de Jesus como o filho único de Deus e
único salvador. No entanto, por outro lado, afirma que o diálogo entre as religiões não
parece questionar os absolutismos afirmados no interior delas mesmas, mas apenas os
absolutismos em relação às outras religiões. Também aponta que nos esforços de
diálogo entre os diferentes credos religiosos a perspectiva das mulheres, entendida esta
como perspectiva feminista, aparece praticamente ausente na oficialidade do diálogo
inter-religioso masculino.
Segundo esta teóloga, o feminismo tentou contar outra história das religiões e expressar
o fato de como quase todas elas marginalizaram as mulheres ou as instrumentalizaram
segundo suas próprias perspectivas. Por isso, ela propõe que se verifique no interior de
cada tradição as exclusões que se reproduziram e, em particular, a exclusão das
mulheres nas formas religiosas oficiais.
Assim sendo, segundo Gebara, se desconhece ou se ignora o trabalho das biblistas
feministas sobre o particular, das mulheres muçulmanas estudiosas do Corão, das
mulheres judias diante da tradição da Torah, das intelectuais budistas, da consciência
política das Mães de Santo, particularmente no Brasil, do trabalho das mulheres
indígenas partilhando com outras sua sabedoria. Tudo isto leva Gebara afirmar que há
uma espécie de estrutura, monopólio e compreensão masculina do que é o diálogo interreligioso. Finalmente, ela acredita que a questão do pluralismo deve se abrir para outros
níveis do pensamento e da atividade humana.92
Há muitas moradas? (Jo 14,2)
Chegamos ao final desta caminhada pela teologia do pluralismo religioso. Certamente o
caminho proposto insere-se no horizonte da reflexão teológica cristã, mas está aberto a
uma perspectiva global mais abrangente.
90
Diego Irarrázabal, “Reimplantação teológica da fé indígena”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op.
cit. p.95-96.
91
Citado por Luiza E. Tomita, “A contribuição da teologia feminista da libertação para o debate do
pluralismo religioso”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. p.113-114.
92
Estas reflexões formam parte da entrevista concedida por Ivone Gebara a Luiza E. Tomita via correio
eletrônico. Citado por Luiza E. Tomita, “A contribuição da teologia feminista da libertação para o debate
do pluralismo religioso”, em: Pelos muitos caminhos de Deus, op. cit. pp. 115-118.
E tentando amarrar, agora, os fios desta caminhada, o grande desafio da proposta da
teologia do dialogo e do pluralismo religioso significa, em primeiro lugar, reconhecer
que a «verdade» cristã é «a nossa verdade», mas não é a única e absoluta «verdade»;
“há mais verdade religiosa em todas as religiões juntas do que em uma religião
específica [...]. Isto se aplica também ao cristianismo”, comenta Schillebeeckx93; em
segundo lugar, implica o reconhecimento da diferença genuína que marca as diversas
tradições religiosas, mas também sua riqueza, enquanto autenticamente preciosas, assim
como o caráter irredutível e irrevogável do outro interlocutor, com o qual se instaura a
busca de um conhecimento mútuo e de um recíproco enriquecimento94; e, finalmente, e
resumindo, significa e implica estar convencidos de que todas as religiões são
«verdadeiras», têm sua Verdade, são caminhos pelos quais Deus sai ao encontro, mas
que também são todas humanas, e por isso limitadas, relativas, incompletas, e com
pecados históricos que as condicionam95.
Penso, e concluo, que os cristãos, assim como todas as pessoas religiosas, têm que
admitir honestamente que dentro de nossa condição humana limitada e finita, não pode
haver uma palavra final, nem um único modo de conhecer a verdade que seja válido
para todos os tempos, para todos os lugares, e para todas as pessoas. O grande poeta
espanhol Antonio Machado nos adverte: “Tua verdade? Não, a Verdade, e vem comigo
buscá-la...” Sem dúvida nenhuma, na casa do Pai e da Mãe comum de toda a
humanidade «há muitas moradas».
Pedro Julio Triana Fernández
Cubano. Presbítero da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), Diocese Anglicana
de São Paulo (DASP). Mestre em Ciências da Religião (área Bíblia/Antigo Testamento)
pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Ciências da Religião
(área Ciências Sociais e Religião/Bíblia/Antigo Testamento) pela Universidade
Metodista de São Paulo. Atualmente é professor de Bíblia no Instituto Anglicano de
Estudos Teológicos (IAET/DASP); é membro da Comissão de Ministérios da Diocese
Anglicana de São Paulo (DASP); representante da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil
(IEAB) na Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
(CONIC).
93
Edward Schillebeeckx, The Church: The Human Story of God, New York, Crossroad, 1990, p.166. Citado
por Paul F. Knitter, Jesus e os Outros Nome, op. cit. p.50.
94
Faustino Teixeira, .“O desafio do pluralismo religioso para a teologia latino-americana” em: Pelos
muitos caminhos de Deus, op. cit. p.65.
95
José María Vigil, Teología del Pluralismo Religioso, op. cit. 387.
Download

Que é a verdade? - Diocese Anglicana de São Paulo