Rev. Bras. Psicanál.. vai. 38 (3): 711-733. 2004
Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta
afetiva do analista aos sonhos de uma paciente
esquizóide que sofreu privações *
Franco Borgogno*, Torino
O que os paciente mais desejam - como afirmou Ferenczi em 1932 no
Diário clínico e a que Bionse referiu em Cogitations (1992) -, e que alguns
deles necessitam, é experimentar como o analista vivencia e elabora na
transferencia e contratransferencia os acontecimentos intrapsíquicos e
interpessoais que estão na origem do seu sofrimento afetivo e mental. Isto se
verifica particularmente nos pacientes esquizóides que sofreram intensa privação
emocional em sua infância.
Neste trabalho, investigo este aspecto crucial da relação analítica
intersubjetiva, no tratamento e nos sonhos de uma paciente jovem, muito
silenciosa e apática. Através do exame detalhado do material clínico obtido ao
longo de varias etapas de sua análise, estudo como a resposta emocional
inconsciente do analista serve tanto como instrumento de compreensão como
elemento chave de facilitação ambiental .. "um novo começo ", para empregar
uma expressão de Balint ( 1961), que pode ajudar o paciente a alcançar um nível
de desenvolvimento e emancipação que não tinha experimentado até então.
Unitermos
Pacientes esquizóides . sonhos. resposta afetiva do analista. transferencia e
contratransferencia
sofreram privações.
.
novo começo. identificação com objeto depauperante
.
crianças que
* O trabalho foi, originalmente, publicado em inglês na revista Psychoanalitic Dialogues (14, 4; p. 475
502,2004). A presente tradução conta com a autorização da The Analytic Press.
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Franco Borgogno
Na realidade, freqüentemente tenho medo que todo o tratamento dê
errado e que ela acabe insana ou cometa suicídio. Não ocultei o fato de
que dizer-lhe isto foi extremamente penoso e doloroso para mim,
especialmente porque eu mesmo sabia muito bem o que significava
ser confrontado com tais possibilidades (...). O resultado, bastante
inesperado, foi o completo, um total apaziguamento: "Se na época eu
tivesse sido capaz de fazer meu pai confessar assim a verdade e
perceber o perigo da situação, eu teria preservado minha sanidade". (..
.) Não era esse, um antídoto inconscientemente procurado contra as
hipnóticas mentiras de sua infância? Pleno insight nos mais profundos
recessos de minha mente, desafiando todas as convenções, inclusive
aquelas de bondade e consideração? Se tivesse sido apenas brutalidade
e impaciência, não teria servido para nada; mas ela viu o quanto tive
de lutar para fazê-lo, e quanta dor essa tarefa cruel me causou. (S.
Ferenczi, Diário clínico, p. 92-93)
Penso que esse tipo de pacrente jamais aceitará uma interpretação,
ainda que correta, a menos que sinta que o analista passou por essa
crise emocional, como uma parte do ato de interpretar.
(W. R. Bion, Cogitações, p. 299)
A premissa teórica que serve de moldura e contexto conceitual-afetivo ao percurso
terapêutico que apresentarei aqui é a seguinte:
1. 0 que os pacientes mais desejam e do que alguns têm "literalmente" necessidade
- como afirmaram tanto Ferenczi, em seu Diário clínico (1932b), como
sucessivamente Bion, em Cogitations (1992) - é ter a experiência, durante o
tratamento, da forma como o analista vive e "processa" as vivências interpessoais
que estão na origem de seu sofrimento afetivo e mental;
2.Experiências desse tipo são especialmente necessárias para pacientes
esquizóides, os quais em sua infância sofreram de modo profundo privações no
plano emocional.
Sob esse ponto de vista delinearei em meu trabalho a centralidade desse aspecto da
relação intersubjetiva entre analista e paciente, por meio do relato de uma análise
prolongada de uma jovem mulher, .muito silenciosa e inerte. Por meio da exploração
detalhada do material clínico proveniente de vários momentos dessa análise, evidenciarei
especialmente o papel determinante da resposta emocional, não consciente, do analista
para recuperar cotas de desenvolvimento e de emancipação, não alcançadas anteriormente,
sublinhando como essa resposta é não apenas um importante instrumento de compreensão
e um meio relevante de facilitação ambiental, mas - retomando a expressão de Balint
(1968) - o verdadeiro motor de um "novo início".
Ao longo desse tratamento, assim como acontece na maior parte de nossas análises,
as características emocionais e relacionais patogênicas da infância da paciente foram
pontualmente re-atualizadas na sessão, permeando a onda longa da
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Tornar-se uma pessoa: a importtlncia da resposta afetiva do analista aos sonhos de uma paciente esquizóide
que sofreu privações
atmosfera analítica e influenciando desta forma, inevitavelmente, a experiência subjetiva
do analista. Esse é um canal crucial que todo terapeuta tem à sua disposição para
interceptar e reconhecer a qualidade específica da dor mental que permeia a vida do
paciente. O ambiente psíquico internalizado de minha paciente também se revelou de
forma precisa em seus sonhos, embora ela não tivesse a menor consciência disso: de fato,
seus sonhos pareciam captar e sinalizar um lento evoluir das realidades intersubjetivas
emergentes em nosso encontro, funcionando quase como um elemento facilitador de uma
possível futura articulação-integração. Entretanto - como freqüentemente acontece
nesses casos - para que estes sonhos possam chegar a ser acessíveis aos pacientes, em um
nível de real significação simbólica, eles devem ser vividos, pensados, sonhados, por um
longo tempo, pelo analista, e às vezes também postos em ação. De fato, muito
freqüentemente o enactement recíproco (Levenson, 1983) desses pacientes é um passo
inevitável para que o paciente possa, efetivamente, aceitar e assimilar estes afetos e
necessidades básicas e as configurações relacionais internas potenciais que foram
totalmente dissociadas por terem sido sistematicamente repudiadas e ignoradas por seus
caregivers.
o caso de M
1. Os primeiros anos de sua análise: nascer,
O primeiro sonho analítico de M oferece uma amostra do tipo de problemática que
caracterizou nosso encontro e nossa interação. Quando M procurou a análise, tinha 25
anos e acabara de fraturar a bacia caindo do cavalo. Esse fato tinha precipitado um colapso
depressivo que já era latente (seus estudos estavam parados há certo tempo e ela se
percebia muito retraída e isolada) em função de incidentes físicos anteriores, com seus
familiares. "A minha vida" -disse na entrevista- "foi invadida por algo macabro: uma
sombra ou um ralo preto".
Para mim, o sonho que M traz na primeira sessão é, desde o início, uma espécie de
"cartão de visita": um retrato da sua maneira de experienciar a si mesma, particularmente
na relação com sua mãe; um protótipo das dinâmicas de transferênciacontra transferência
que caracterizarão a nossa relação:
"Uma pessoa japonesa, de identidade incerta, fazia haraquiri diante de mim, em um quiosque, e
queria que eu a visse. Eu fugia, mas ela corria atrás de mim e me alcançava continuamente, arcada
após arcada, caindo no chão com todos os intestinos para fora, para meu grande horror e
desgosto".
Entretanto, durante muito tempo esse fato será claro apenas para mim, já que M não
está consciente de modo algum que ela é a pessoa japonesa do sonho e que essa
Fra1lco Borgog1lo
pessoa representa sua mãe, de cujo sofrimento M foi obrigado a ser uma testemunha
impotente.
No processo de transferência-contra transferência, M irá assumir principalmente o
papel de uma "mãe sem entusiasmo pela vida", freqüentemente doente e sofrida por
causas físicas não identificáveis e por algum "terrível segredo" que a atormenta, mas do
qual "em casa não se diz nada". Eu, ao contrário, serei colocado no papel complementar
(antecipado na imagem onírica) de M pequena, que cuida da mãe e, como é fácil
compreender, em pouco tempo estarei exausto e subjugado como o narrador do sonho. De
qualquer forma, as interpretações sobre sentimentos de pena, raiva, exaustão, retirada e
resignação presentes na sessão, nascerão da minha compreensão, possibilitada pela
aceitação da inversão de papéis atuada por M por meio da sua completa, portanto
inconsciente, identificação com a mãe. Sentimentos que ela deve ter suportado na
infância, ao ter de cuidar de uma mãe muito frágil e ausente, e também invasiva (despejou
sobre ela, pequena, sofrimentos e tensões não digeridas, especialmente um pessimismo
aniquilante), e que não era auxiliada por um marido mais próximo e presente
emocionalmente, pois ele também era deprimido pelos muitos lutos sofridos e ficava
preocupado em não conseguir sustentar economicamente a família.1
O sonho de M foi, portanto, o caminho que utilizei para entender o seu passado e o
que estava acontecendo entre nós. Associando sobre o sonho, mesmo sem fazer nenhuma
ligação, M disse que "não era possível não ver o sangue e os intestinos", mas "nenhuma
das duas figuras do sonho tinha condições de falar". Acrescentou que sua idade, no sonho,
não correspondia à sua idade real, observando que uma amiga também havia fraturado a
bacia, mas em seu caso fora descoberto um defeito no quadril. E, neste ponto, emitiu um
gemido: "é melhor um acidente do que um mal que você tem g~sde o nascimento, pois
este último torna-se fatal".
Os meus pensamentos imediatos então foram que os pais de M poderiam ter tentado
abortá-la: certamente em nível psíquico, mas talvez realmente M não tenha sido uma filha
desejada. E visto que mais adiante, nas sessões seguintes, falou de uma "santa que faz
nascer aqueles que não devem nascer", referindo-se a um parto difícil
que colocava em risco a vida da mãe, embora tenha confirmado minha hipótese, eu
estremeci, perguntando-me se eu tinha os meios para ajudá-la, por ter-me enveredado em
uma empreitada tal que "para não morrer" eu deveria ser uma "santa" ou, pelo menos,
deveria apelar ao céu."
1. O tipo de "inversão de papéis" a que me refiro -que não focalizo nestas páginas, do mesmo modo como
não focalizo o "negativo" que lhe é inevitavelmente associado - é um processo bipessoal captado pela
primeira vez por Ferenczi no Diário clí1lico. quando procura elaborar o "terrorismo do sofrimento"
presente no tratamento de Elizabeth Severn. Este processo, redescoberto recentemente pelos "1lew
klei1lia1ls" (Feldman, Spillius 1989; Bott Spillius, 1992), é, de meu ponto de vista, incisivamente
apresentado de forma teoricamente clara por Paula Heimann (1965, 1969) e, sucessivamente, por Pearl
King (1978) em um trabalho sobre a "resposta afetiva" do analista às comunicações do paciente.
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Tomar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do anali.'ita aos sonhos de lima paciente
esquizóide que sofreu privações
De qualquer forma, relendo as minhas anotações a posteriori percebi surpreso que
inconscientemente eu já havia me colocado em uma posição mais otimista (e este para
mim é um elemento substancial da minha atual visão analítica: o analista deve ter mais
esperança que o paciente, deve sustentá-la e mantê-a, transmitindo-a) diante do que M
colocava como uma ordem inelutável do fato. Comentando a frase da santa de forma
interrogativa, para que M a ampliasse, eu disse "não deviam" no lugar de "não devem".
Assim, desde o início, me opus a um destino imperativo ("não devem nascer")
abrindo, na análise (disse-lhe que estava ali porque queria nascer), a possibilidade de um
nascimento psicológico, que chega de modo não biológico e amiúde não decidido, mas
por meio de um encontro feliz e consensual; e chega se e quando o sujeito se sente
preparado para ele e o quer. A própria imagem da "santa", hoje eu a veria com um
prognóstico menos alarmante e onipotentemente comprometedor, pois nela está presente,
ainda que distante, a idéia de uma boa mãe; assim, o problema pode ser o de levar uma
pessoa a usar de forma saudável essa pré-concepção idealizada.
Como foi possível saber com o tempo, M realmente não foi desejada. A mãe tentou
abortá-la várias vezes - e contou-lhe isto - pois se sentia velha e eram pobres; ambos os
pais eram órfãos e, ainda por cima, seus próprios pais haviam morri do à época de seus
nascimentos. Esse era, justamente, o "segredo" do qual ninguém falava em casa, pelo
terror supersticioso de que isso pudesse acontecer novamente, especialmente porque M
tinha sido concebida tardiamente, quando os pais não eram mais jovens e se percebiam
testados pela vida.
Esta história emergiu gradativamente na transferência e contratransferência, e não
por seu relato; e foi lentamente metabolizada por mim por intermédio da elaboração,
freqüentemente silenciosa, da ritualização na análise de uma vivência agônica, como
disse: uma vivência de lamentações predominantemente centradas em dores corporais e
em temas vagos e atormentadores, que requereu tanto o acolhimento dos sentimentos e
angústias catastróficas que M transmitia de forma primitiva (na maioria das vezes, por via
evocativa e projetiva), quanto o reconhecimento interno de vários e pequenos
comportamentos "impróprios" de minha parte, de cuidado e assistência psicológica de seus
problemas e necessidades, que tornavam o seu passado de menina gravemente descuidada,
e sobrecarregada por pesos alheios, novamente real e presente.
Foi esta contínua e sensível (dentro dos limites do que eu sabia fazer) tentativa de
oferecer palavras e significação afetiva a M órfã - "órfã" a meu ver, "de rêverie
transformadora" e "de representação" - que lhe permitiu adquirir, progressivamente,
primeiro um corpo menos doloroso e dolorido e, então, um idioma capaz de exprimir e
narrar na primeira pessoa, e de modo mais consciente, seus fatos de vida. A reapropriação
gradual de aspectos sensoriais e emocionais, obstruídos e subtraídos, e de capacidades de
auto-observação que estavam atrofiadas e empobreci das, foi anunciada por intermédio de
uma crescente atividade fantástica e onírica mediante a
715
Franco Borgogllo
qual M entrava em um maior contato com sua experiência infantil - ainda que a
mantivesse a certa distância e, em parte, separada de si (outros tempos, outros países,
outros planetas). Legiões de crianças e mães desnutridas e esfomeadas; cruentas guerras
medievais onde alguém era trancafiado vivo, tendo oficialmente que não existir para o
mundo; aparecimento de marcianos horríveis e monstruosos que sugavam o cérebro, ou
fantasiados de generosos hóspedes ou, de fato, bons e acusados injustamente.
Uma luta, no fundo, entre vida e morte, entre velho e novo, entre ódio e amor, na
qual a partir de planetas misteriosos, lúgubres mosteiros e escuros castelos, um "Eu"
reencarnado de necessidades, sentimentos e angústias emergia lentamente a partir de
terras desérticas e irreais pedindo para ser "alguém" e não "ninguém", mostrando o desejo
de ter um nome, uma genealogia, uma história e um reconhecimento, e de se
libertar da opressão mortífera e paralisante de uma mãe que não queria ela própria ter.
nascido, e que não a queria viva porque a existência traz somente sofrimento e dor
torturantes, não passíveis de elaboração.
Esta evolução, que representou um despertar da consciência da privação traumática
vivida, está bem expressa no sonho que transcrevo:
"Em um planeta cinzento, no qual chovia sempre, morava uma rainha que odiava a
vida e o próprio filho, a ponto de tentar continuamente matá-lo, jogando-o do alto do
palácio. O menino tinha aprendido a cair de pé e a não se machucar, admirado pela rainha
por esses dotes de não tentar se machucar e sofrer. Entretanto, chegavam astronaves, que
logo apareciam como inimigas, mas na realidade queriam proteger o povo submetido a
esse jogo cruel entre a rainha e o filho. Uma jovem mulher de nome
"Ninguém" aparecia e avisava os estrangeiros para tomar cuidado com o ódio da rainha e
de seu filho, dando informações sobre seus planos malignos e unindo-se às tentativas dos
estrangeiros de libertar e defender o povo".
2. Novos rombos2 de vida: uma resposta emocional insólita e suas
conseqüências
Descreverei agora, por intermédio de uma resposta emocional minha, uma fase
seguinte; no momento em que eu a dei, "Surpreendeu a nós dois e gerou um movimento
vital especial em nosso diálogo. Porém, somente depois essa resposta - que voltará
reforçada - será compreendida em seus aspectos importantes para a análise de M (e, de
meu ponto de vista, para o tratamento de pacientes esquizóides e carentes),
demonstrando-se frutífera e mutativa, no sentido de iniciar e favorecer uma mudança
estrutural na forma de M se colocar em relação a si mesmo e aos outros. O material que 2.
Rombi, no original. Em italiano a palavra rombo tem, entre outras acepções, tanto o significado de um
rumor forte como o da figura geométrica de losango. Essa dupla significação será objeto de um jogo de
palavras na interpretação do analista, como veremos abaixo. Optamos por manter a palavra rombo nesta
versão, pois um de seus significados em português também é losango. Fontes: Dicionários Lo Zingarelli
Minore (Italiano) e Novo Aurélio (Português). (N. da T. e N. da R.).
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Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do analista aos sonhos de uma paciente
esquizóide que sofreu privações
irei transcrever destacará os dois tempos desse episódio e a elaboração conjunta que
fizemos.
Naquele período, o quarto ano de análise, M - mesmo tendo se formado, começado
a trabalhar e a ter algumas amizades - continuava sendo, freqüentemente, silenciosa e
fechada para a vida, pelo menos na relação comigo, onde as lutas, até então presentes em
seus sonhos, tinham-se transferido completamente, em uma espécie de círculo vicioso no
qual um parecia perturbar o outro pelo fato de estar vivo, o que, por sua vez, apagava
qualquer sinal de vida. Ou eu era a criança ameaçadora que espemeava - intervindo - com
necessidades, pedidos e desejos, ou, ao contrário, eu era a mãe lamurienta e resignada que
a imobilizava e desanimava desejando-a "obediente" e, portanto, morta e disposta a
renunciar a si mesma e a se sacrificar.
Trago diretamente duas sessões para retratar de forma viva o contexto no qual se
verificou a resposta que desejo comentar:
É quarta- feira, terceira sessão da semana. M entra em silêncio. Após dez minutos
pergunto o que estava acontecendo.3 Disse que estava "fazendo quadrado"4 e, depois de
outro silêncio, repetiu o termo, falando da auxiliar de higiene que, no trabalho, paralisava
tudo ao dissuadir de fazer qualquer movimento, por ser potencialmente perigoso e
inadequado. Usou novamente o termo "quadrado" dizendo, em tom quase orgulhoso, e
não mais como nas duas primeiras vezes lamuriento e irritado, que tinha se oposto, "tinha
feito quadrado". [Perguntei-me, enquanto ela falava, se estava me criticando veladamente
(eu tinha justamente falado, nas duas sessões precedentes, sobre sua angústia em relação a
crescer) ou se estava se vendo, apesar da cisão de segurança (descrevendo a sua parte que
queria se movimentar, bloqueada pela outra parte sua); eu tinha ficado impactado com o
insólito termo "quadrado", que me remetia à guerra e à expressão piemontesa, "cabeça
quadrada": ser teimoso, cabeça-dura, e um pouco extravagante por persistir em ações
improdutivas]. Passou na rua do meu consultório um enorme caminhão com reboque,
fazendo um grande barulho; a paciente teve um sobressalto e virou-se, comportamento
também insólito; e eu disse: "Um rombo5 como resposta ao quadrado". Senti-me atônito e
um pouco deslocado, e fiquei ainda mais constrangido quando a paciente riu abertamente
dizendo, com alegria, que as colegas tinham apreciado a sua segurança ao enfrentar a
auxiliar de higiene. [No início da sessão, eu estava tranqüilo refletindo sobre o que estava
acontecendo; agora
eu já não estava mais; não entendia. Eu tinha pensado, dentro de mim, que o grande
barulho a tivesse assustado, como se tivesse sido eu a reagir de forma superegóica ao seu
"fazer quadrado", enquanto ela parecia se divertir; sentia como se eu tivesse feito
3. De agora em diante, colocarei em itálico as minhas interpretações e entre colchetes os meus
pensamentos e sensações 4. "Fazer quadrado" refere-se ao tipo de formação defensiva utilizada pelas
falanges romanas (N. da T.) 5. Aqui o jogo de significados da palavra "rombo" que tanto pode significar
"estrondo" quanto "Iosango" .
(N. da T.).
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Franco Borgogno
uma brincadeira sem perceber e como se eu tivesse dado vazão a uma agressividade
contida, talvez aproveitando do barulho casual, enquanto ela estava calma e até contente].
Disse que algo a tinha feito ficar contente pela minha expressão, o "rombo que responde
ao quadrado" e eu estava me perguntando o que poderia ser. Respondeu que a situação a
deixara de bom humor, especialmente o fato de eu ter usado "uma palavra que sentia como
realmente minha". .. Ainda que não soubesse me dizer muito mais. Propus, com certa
incerteza, que o rombo e o quadrado eram figuras diferentes e que ela parecia apreciar
isto: que cada um de nós tivesse uma sua linguagem e idéias próprias, como tinha
acontecido no trabalho onde ela havia se imposto.
Continuou falando do trabalho, onde considerava estar construindo coisas e se
expondo. Eu disse que "fazer quadrado" era indício de certa consistência e solidez e que
descobrir isto a deixava de bom humor: parecia não se assustar, naquele
momento, em se colocar - de forma quase combativa - um em frente ao outro; aliás,
ela notava que isso lhe era agradável e construtivo. A sessão terminou desta forma [e eu
me vi pensando que os papéis tinham se invertido;.. M estava tranqüilizadora e positiva,
eu cheio de dúvidas. Eu era a mãe que não podia conter M em suas brincadeiras, em seu
jogo; era eu que os reprimia, sentindo-os perigosos? Ou, de repente, estávamos
descobrindo uma forma de estar entre nós mais livre e também brincalhona que eu,
conscientemente, não havia percebido, mas à qual, de uma forma pré-consciente, havia
rapidamente sintonizado, indo a seu encontro e depois me assustando com a novidade? E
se assim fosse, poderia também se tratar de uma nascente transferência sexual não
reconhecida e, por algum motivo, sentida por mim como ameaçadora?]. ;
Na sessão seguinte, no dia seguinte, M iniciou contando um sonho "no qual estava
perto de uma caverna enquanto alguém que estava com ela procurava-a dentro,
não percebendo que ela já estava fora, olhando alguns caminhos". Disse que o homem;
era forte e parecia um carvoeiro porque tinha o rosto preto com uma pequena lâmpada na
testa. Interpretei que o sonho recolocava o seu sentimento da sessão anterior, de estar
mais separada, e que o homem com o rosto preto poderia ser eu que a procurava "dentro"
(em uma posição antiga e habitual para ela), que sendo especialista em "cavernas"
(tínhamos falado da vida primitiva e subterrânea definindo-a assim, não
muito tempo antes) talvez ela tivesse, '1.a sessão anterior, percebido titubeante diante das
coisas novas que tinham emergido. Ficou em silêncio, dizendo depois que tinha repensado
no rombo e no quadrado: que rombo era mesmo uma palavra minha que ela
tinha gostado, ainda que desde pequena ela gostasse somente de figuras perfeitas e lisas
como o círculo e as rodas. Disse que tínhamos freqüentemente falado disso (como o seu
querer ser uma só com o objeto; como exclusão de qualquer alteridade e interrupção;
como representação da relação fusional idealizada; como estar concretamente dentro do
corpo, a mente, o coração do outro; como aquilo que coloca um limite ao vazio da
depressão primária) e que devia ser por isso que, na sessão anterior, eu tinha demorado a
pensar nela na barriga-análise, protegida de qualquer
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Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do analista aos sonhos de uma paciente
esquizóide que sofreu privações
ponta ou ferida que quebrasse a continuidade, não considerando logo que ela, naquele
momento, poderia estar pronta para uma relação mais exposta e viva. Permaneceu em
silêncio e, referindo-se em seguida a um escritor oriental, acrescentou com voz triste
que a barriga é o centro do corpo, mas também o ponto mais exposto e doloroso.
Relacionei isso com o fato que era a quarta sessão e, portanto, uma ponta dolorosa,
ainda mais se havia existido calor entre nós; mas lembrei-lhe também que no sonho
olhava para alguns caminhos, como se percorrê-los tivesse se tornado uma direção
interessante, mas ousada. "Carvoeiro" - concluí - não remete apenas a alguém que trabalha
o carvão-negro da depressão, mas também, pela forma como o havia
pronunciado, a "carbonaro", pessoa que luta no Renascimento pela Unidade da Itália.
Pensativamente, M disse que no sonho estava saciada e que o seu olhar vagava encantado.
Vieram à minha mente as explorações dos recém-nascidos saciados, antes de dormir, e
comuniquei-lhe isso destacando que, ainda que fosse difícil para ela exprimi-lo
abertamente, ela me sinalizava que devia ter-lhe agradado e tê-la aquecido que eu, em
minha associação, tivesse me transformado em um "carbonaro", uma espécie de
papai-rombo com ela menina-círculo que, por sua vez, havia se transformado, havia
crescido, podendo, através do fazer quadrado, sentir-se mais saciada, satisfeita, e
também sentir curiosidade no viver.
Examinando de perto essa seqüência de sessões bastante atípica, pensei que M,
naquela semana, estava realmente um passo à frente em relação a mim e que o fato de eu
esperar que ela ficasse transtornada pelo barulho e pela minha resposta poderia
corresponder a quanto deveria ser difícil para M prospectar-se em uma relação diferente,
na qual o investimento pleno não fosse anulado ou cancelado por alguma catástrofe.
Portanto, naquela sessão, a desconfiança e a suspeita tinham ficado em mim; e minha
incerteza de ligar, conscientemente o carvoeiro a calor poderia ser uma prova a mais disso.
Considerei também que, naquele período, eu estava realmente adotando funções mais
masculinas e penetrantes em minha forma de interpretar, pois eu estava focando mais o
aspecto da responsabilidade e da diferenciação, donde o rombo podia expressar que não
me sentia mais de modo persecutório, mas como um
pai que quebrava a simbiose, estimulando-a para crescer e entrar em contato com ele.
De fato, nos encontros que se seguiram, apareceram, passo a passo, estes últimos
aspectos: um pai às vezes alegre e brincalhão; o fato de terem pensado nela como
homem, como uma compensação por uma gravidez não esperada (não aprofundarei aqui
toda a problemática da identidade sexual, que foi também um ponto importante da
elaboração efetuada); que haviam desejado chamá-la Alexandre, o que significava na
mente de seus pais "aquele que teria podido levantar e resgatar suas misérias", mudando o
destino deles; que na infância e em suas fantasias era agradável imaginarse como um
importante capitão, mas que ela se pensava profundamente menina e mulher (como já
tínhamos visto na época dos sonhos medievais, quando ela me falava
719
Franco Borgogno
da "celada", 6 que escondia o rosto dos cavaleiros), ainda que encarregada de uma espécie de
missão impossível, não completamente clara para ela.
Mas como ser abertamente mulher se a mãe que tinha era tão submissa, deprimida e
derrotista? Tão frágil a ponto de não suportar nada. Como poder se tornar uma pessoa viva
que poderia gerar a vida, se ela sempre precisou esconder a vida, afastá-la e anulá-la, porque
para aquela mãe era uma desgraça e uma ameaça, podendo ser interrompida a qualquer
momento e de forma imprevista?
Mais ou menos enquanto estas temáticas vinham sendo aprofundadas, sete ou oito
meses após as sessões referidas, voltou a primeiro plano o total mutismo e o retiro, sem que
houvesse uma causa evidente para determiná-los. A atmosfera tornou-se "negro-carvão" e M
retomou as antigas modalidades, tornando-se uma presença opaca e difusa na sala, alguém
que quase não se fazia ouvir e perceber, e que considerava inútil qualquer esforço em direção
ao contato e ao seu tratamento. Parecia realmente morta e, de fato, assim se sentia; a nada
respondia, a não ser com a ausência de qualquer impulso propulsor e vontade de viver. Era
uma intensa reação terapêutica negativa? Uma reação catastrófica a um crescimento e à
aquisição de uma maior autonomia fora e dentro da análise? Era uma vingança, sustentada
por um ódio desesperado e exacerbado, por ter se sentido terrivelmente prejudicada? Queria
que eu vivesse na minha pele isso e sua decorrência, de não conseguir substituir e
transformar seu fogoso, conquanto mudo, desejo de vingança em uma vivência mais
administrável e reparável? Uma louca manobra de sobrevivência e de confirmação da
própria existência, como aquelas descritas por Ferenczi (1921), em termos de um "animal"
que se finge de morto?
Com o tempo, eu também me senti anulado e irritado, sentindo essa atitude dela como
não mais suportável, um verdadeiro prejuízo e desperdício. Eu havia tentado vários
caminhos interpretativos, mas nenhum movimentava esta sua condição de resignação fatal.
Nem mesmo o meu silêncio. Foi aqui que reapareceu o "rombo": em mim, por meio de uma
interpretação retumbante, na qual eu exprimia os meus sentimentos como objeto da
transferência de forma explícita: com participação, com
desprazer, com evidente desejo de que pudéssemos sair do impasse e entender a situação; na
paciente, por meio de uma resposta que sinalizava ser autenticamente existente para mim e,
portanto, como palavra eficaz que chama para a vida.
Cito meus apontamentos:
Há algumas sessões eu estava pensando no "Ovo da serpente", um filme que em
uma seqüência mostra experiências nazistas nas quais, para estudar a reação da mãe, é
induzido no recém-nascido um choro contínuo. A mãe, a certa altura, não tolera mais e mata
a criança, jogando-a pela janela, suicidando-se em seguida. Interpretei em momentos
sucessivos, exprimindo meu pensamento em voz alta, que parecia não haver outra solução a
não ser fazer haraquiri e jogar o outro pela janela, como no primeiro
6. Celada - antiga armadura de ferro para a cabeça (N. da T.)
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sonho e em muitos sonhos sucessivos; que era ela que fazia o haraquiri, mas parecia que
eu devia fazê-lo também. Fazendo desta forma, ela queria que eu considerasse a
impossibilidade de continuar a análise, visto que o resultado estava se tornando
monstruoso? Isso, com certeza, iria silenciar algo de infinitamente doloroso, mas
implicaria matá-la como minha paciente e matar-me como seu analista... Estava errando
em alguma coisa, não entendia algo essencial? Se as coisas estavam assim, eu realmente
não sabia bem do que se tratava; ela deveria, portanto, ajudar-me, darme uma mão. Se,
por outro lado, ela estava identificada com a mãe, que sentia que odiava a vida, e eu era
ela menina que deveria continuar a desejar mudar aquela mãe e curá-la, eu tinha que
admitir, francamente, que isso, na realidade, não teria sido possível... A análise era
limitada, eu também o era, e poderíamos unicamente, a análise e eu, ajudá-la a desistir
desse comportamento insano, compreendendo-o, mostrando como esta dramática luta
estava dentro dela e tinha de ser resolvida ali.
M emocionada continuou:
"Se alguém descobre que tem efeito sobre os outros é real, existe: portanto, os
outros também existem para ele e são reais. É isso que o senhor me dá. Não é um
-barulho indistinto e atormentador, que você não conhece e não sabe de onde vem; não é
um gemido que atormenta porque você não pode se opor e não sabe o que fazer; não é um
eco que repropõe a você mesmo. É algo que chega fazendo "ribombar"7 dentro, que é vivo
e não morto e faz você ressurgir"; continua dizendo que ninguém jamais tinha percebido a
sua pessoa, a sua doença, o seu retiro e seu mutismo, tanto na infância quanto na
adolescência. Em casa, não tinham notado, não tinham falado disso; ela era a filha que não
tem problemas e que não dá problemas: portanto, justamente aquilo que seus pais
queriam. Não acreditava poder despertar sentimentos nos outros, a não ser um fastio
genérico e irritabilidade, dos quais, por outro lado, nunca havia se sentido realmente a
fonte. Seus pais, se não estavam deprimidos, estavam tensos, assustados, movidos por
algo que "os ultrapassava e diante do qual estavam prontos a se
submeter" (o "segredo" que mencionei antes, e que, de agora em diante, será diretamente
investigado por M e colocado em circulação - agora verbal- de forma que o seu aspecto de
pesado mandato transgeracional será diluído).
Hoje, ao repensar esse episódio analítico em dois tempos, gostaria antes de tudo de
lembrar seu início: o desconcerto imediato que senti, e a conseqüente curiosidade pelo
contexto no qual o termo "rombo" inesperadamente apareceu em minhas palavras e pelo
resultado que teve de "resposta emocional significativa" que havia funcionado como
"meio de encontro" de M (Heimann, 1949, 1970, 1978, 1981; Borgogno, 1992, 1995a,
1999a, c). Entretanto, como o leitor deve se lembrar, eu me perguntei logo depois: "quem
e o quê haviam se encontrado", tentando entender qual era o movimento relacional que
tivesse atuado ou estivesse atuando. Assim, fiz a hipótese de uma possível sintonização
pré-consciente de minha parte com um nascente desejo
7. - A paciente usa a palavra rombarti, que condensa os significados de barulho e losango. (Ver notas
precedentes) (N. da T. e N. da R.)
721
Franco Borgogno
de individuação de M e também considerei uma possível "ressonância de papel" (Sandler,
1993) de tipo paterno, que me levou a explorar auto-analiticamente as funções que eu
estava assumindo e as mensagens que implicitamente eu veiculava com aquilo que eu
dizia ou não dizia.
Em função do que emergiu em seguida, não há dúvida que o meu uso do termo
"rombo" tivesse estimulado em M novos afetos, pouco experimentados em sua vida e
pouco consistentes, ligados a uma relação com o "outro - dela", distinto e separado.
Portanto, nesse sentido, a minha resposta correspondia tanto à sua necessidade de uma
mãe que permite separar-se, não fusional 'nem deprimida, quanto à sua expectativa
inconsciente de um pai diferenciado, capaz de promover a vida e de indicar os limites sem
colidir com suas instâncias onipotentes, anti-vitais e anestesiantes (Balint, 1958). A
própria M - quero sublinhar - já havia se movido nessa direção quando tinha comentado:
"é uma palavra realmente sua", "é isto que me tocou e que me agradou". Destacava, dessa
forma, a exigência e a importância de"llma alteridade autêntica, que ela entrevia de modo
não consciente e que sentia ser uma novidade que provinha da análise.
Mas para que esse incipiente movimento afetivo em direção a uma relação mais
rica e participativa, antecipado naquelas sessões, se consolidasse, foi necessário um
segundo tempo. Meses, para mim, de intenso trabalho, em que, continuando a submeter o
que estava acontecendo entre nós ao working through, tendo como pano de fundo o
episódio do rombo,8 tornei-me progressivamente cada vez mais disponível a viver na
"carne" (Freud, 1925) suas vivências, chegando a renunciar, para socorrê-la, a defender a
mim mesmo, evitando o mínimo recurso a teorias no falar ou mesmo formas
interpretativas que pudessem soar, de alguma maneira, mais formais e rotineiras. Foi
nesse contexto de "facilitação ambienta!" que ganhou "corpo"_s> "rombo" como termo
convivido e compartilhado de nosso "léxico" dialógico. Podese dizer que para M foi um
elemento tangível, que a levou a viver de maneira mais ampla e sentida a análise; para
mim, evidente manifestação de autenticidade que, no tratamento de M, foi trânsito
necessário para promover uma mudança. Poderia dizer
que foi um "passo" quase obrigatório para a resposta emocional elaborada pelo analista
alcançá-la, tornando-se também para ela "instrumento de conhecimento" realmente
adequado para convidá-la à relação, à curiosidade e ao pensamento.
Resumindo, eu tinha permanecido vivo no ambiente mortífero que M recriava e
tinha combatido por seu nascer e acordar, não me assustando com toda a luta que ir atrás
disso despertava. Enquanto M sempre tinha se percebido um monstro pelo fato de ser
cheia de necessidades e pelo seu próprio nascer, a minha paternidade sangüínea
tinha feito com que ela se sentisse desejada e existente, de forma que eu também, agora,
podia existir: na minha separação e diversidade (em relação a ela, a seus pais, a seus
objetos internos) e,' especialmente, como "rombo-carvoeiro-carbonaro" que estava
8. Ver N. da T. a respeito.
722
Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do analista aos sonhos de lima paciente
esquizóide que sofreu privações
invertendo a marcha do fato no qual ela estava "engrenada", no promover a sua identidade
e a sua integridade: o "Ressurgimento da Itália" da minha interpretação de
meses atrás.
M, em outras palavras, tinha "feito quadrado" na busca e na espera de um pensador
emocionado (não submisso, inibido, cansado e frágil como seus pais) que rompesse as.
correntes de seu trágico destino familiar. Eu fora ao encontro de seu ódio homicida e
suicida e a sua raiva cheia de dor e sem palavras, experimentando-os nem sempre
conscientemente e, com certeza, de modo não onipotente. Eu tinha podido enfrentá-los,
sem negá-los e sem sucumbir a eles (Winnicott, 1969) e isso se tornou uma prova de que,
se alguém quer e deseja, pode se emancipar de um percurso marcado e abrir de forma
criativa um espaço pessoal. Quando, de fato, as próprias vivências dolorosas são acolhidas
de forma significativa e validadas por um ambiente psíquico que delas participou e
afetivamente modulou (Benjamin, 1988), é possível sofrer a dor sem cair no vórtice da
própria destruição e no circuito da culpa (Speziale..Bagliacca, 1998). Isso é, sem afundar
em um luto sem fim, porque a dor infantil se transformou em algo que poderá
simplesmente ser "perdido de vista" (Pontalis, 1988).
É em William James (citado por Menninger, 1968) que podemos encontrar as
palavras mais adequadas para descrever, focalizando-a, a grande dor psíquica de M:
"Não é possível pensar em uma tortura mais cruel do que não receber nenhuma resposta quando
se fala, ninguém que se vire quando se faz um aceno, mas ser simplesmente ignorado por todos.
Logo, dentro de, você surge a hostilidade, você ataca aqueles que o ignoram, e se isso não é
reconhecido, você dirige a hostilidade contra si mesmo no esforço de provar que existe
realmente".
'
3. Trabalho na integração: viver
Neste ponto, deixarei à própria M a tarefa de ilustrar o caminho mutativo que
descrevi. A sessão que aqui reproduzo, indicando, sem comentá-la, a minha breve
interpretação ao trabalho integrador que a paciente desenvolve sozinha na sessão,
pertence ao oitavo ano de análise e é a segunda da semana.
"Tive um sonho: havia novamente uma descida. Um grupo de crianças em cima de
uma pequena colina fazia com que objetos escorregassem e caíssem em uma terra preta
que os engolia. As crianças, brincando de ver quem conseguia jogar mais objetos, se
desafiavam com o corpo e com a luta. Eu e uma pessoa amiga tentávamos, em vão,
dissuadi-los..., Um menino me preocupava especialmente: ele mesmo se lançava ladeira
abaixo, embora depois voltasse para cima. Parecia-me uma brincadeira por demais
perigosa, por isso eu ia procurar sua mãe, que me dizia que estava muito, assustada porque
a criança não falava direito. Essa mãe esperava a chegada do pai que, porém, estava morto.
723
Franco Borgogno
A mãe a que me refiro é a de uma criança de quem hoje eu cuido; é uma criança que
foi adotada tardiamente, em quem eu diagnostiquei um sério distúrbio de linguagem que os
pais não tinham absolutamente percebido: eles a trouxeram por causa de uma dor de barriga.
A pequena colina e a "ladeira" me lembram a rua para chegar à minha casa quando eu
morava em X, com quatro anos. Havia a subida, mas dava a mão para minha avó e isto
tornava a subida mais fácil. No sonho, as crianças jogavam objetos para baixo para
demonstrar que não acontecia nada. Para mim, me separar era me lançar no vazio. . .
Descobri isso aqui. . . E levei muito tempo para compreender isso. Ainda hoje, é lançar-me
no vazio; mas antes, eu lançava no vazio as lembranças, os sentimentos, para fazê-Ios
desaparecer.
Não sei se o senhor concorda, mas penso que poderiam ser essas as coisas que as
crianças jogavam para baixo... Eu fazia isso e, no final, eliminava a mim mesma. Foi o meu
jogo, um jogo de morte, como o senhor me ensinou: fazer-me morrer, fazer morrer a meus
pais, fazer desaparecer uma dor muito grande... Uma forma para não enfrentar a dor do
desaparecimento das pessoas e da morte... Mais cedo ou mais tarde meus pais irão morrer,
terminarei com o senhor: faz sofrer, mas agora dá um sentido à minha vida...
Fiquei angustiada ao ver aqueles pais me procurarem por uma dor de barriga e não
perceberem, de modo algum, quantos problemas afetivos tinha o filho. Parecia a minha
história, só que aquela mãe é mais viva que a minha. Eu sempre tive problemas com a
linguagem; mas não sabia que os tinha antes de percebê-Ios aqui e creio poder dar àquela
criança e a seus pais aquilo que eu recebi aqui...
Na última parte da noite, tive ainda um breve sonho: este eu não entendi e me
angustiou porque me deu a idéia de estar ainda lá atrás, na pré-história: 'Eu tinha nas mãos
pequenos dinossauros que queriam me morder. O meu sentimento foi logo de ternura, mas
eles me mordiam machucando minhas mãos. Eu estava incomodada e não havia meio de
mandá-Ios embora' ...
É algo meu que ainda me machuca e que não quero deixar? Ainda que fossem
pequenos, os dinossauros davam medo. São as lembranças, algo que não entendi, os
meus silêncios passivos que retomam de vez em quando?.. Feriam as minhas mãos... Não
mais as suas, porém... Quando era o meu peso a feri-Ias... Também nos meus sonhos...; mas
o senhor conseguia me carregar assim mesmo... Em um sonho, sua mulher dizia
-lembra-se? - que eu precisava mesmo começar a me mexer. Foi um momento importante!.
. . Então, talvez, eu não deva me assustar se permanecem traços
de pré-história: é a minha história, minha identidade."
Eu disse então: Estou de acordo com a senhora... O sonho e o seu trabalho, como o
destes últimos meses, nos permitem ter esperanças. A senhora se reconhece, lembra a nossa
história, a sua história; e sabe e pode falar disso comigo de forma viva. Essa é uma real
mudança e também um agradecimento pelo trabalho que está fazendo comigo. Lembra-se
de Jurassic Park, que a senhora viu algumas vezes com seu
724
sobrinho? O pequeno dinossauro era o que devorava mais... Tinha uma voz pequena e
não audível imediatamente... Guinchava assustado e desconsolado... Quase um sussurro,
mas depois rapidamente comia quem cuidava dele - como fazem os bebês. Também esta
é sua história; é história passada e no sonho, já que é capaz de contá-la e de elaborá-la,
a senhora a contém e a torna sua.
A paciente continuou dizendo: "As coisas dos pequenos fazem sofrer tanto. Eu fui
uma grande devoradora de afeto, de atenção, de tempo..., mas eu não poderia ter feito de
outra forma. Comia também pelos meus pais; especialmente, pela minha mãe, que
canibalizava tudo no buraco negro de sua depressão; e, dessa forma, eu teria que
libertá-los da escravidão de uma fome endêmica: a fome dos órfãos que viveram também
a guerra".
"Ah!... Arrumei a secretária eletrônica... Atrapalhava o telefone e hoje, antes de vir
para cá, telefonei para minha mãe e meu pai, pois estava contente que no sonho conseguia
me ocupar de mim mesma. Disse para meu pai que queria falar com ele e que estava lhe
telefonando para isso. Espantado, ele me disse: 'Doutora... quando vai
..para o hospital? .. pensei que já estivesse lá' . Senti uma grande ternura."
A tendência à identificação patológica por parte dos pacientes esquizóides que
sofreram privação e a importância mutativa da resposta pessoal do analista.
Como já escrevi em muitos de meus trabalhos (1995a, b, c; 1997; 1999a, b) na base
de dificuldades e de sofrimento de tipo depressivo em pacientes como M há uma
identificação maciça com um objeto depauperante. A depauperação é substancialmente
uma espoliação-extração: em geral, de aspectos necessários ao crescimento e aos quais a
criança tem direito; em particular de peculiaridades próprias que não são reconhecidas e às
quais não se permitem existir. A vivência de intrusão e recusa, que acompanha o modo
como os pais desses pacientes são percebidos, cobre sempre um vazio subjacente de
cuidados e atenções parentais fundamentais. Entretanto, a depauperação que deriva da
psicose dos pais, de seu caráter caótico desorganizador e imprevisível, é diferente daquela
que provém da depressão destes. A depauperação que deriva da ausência depressiva, em
um pai ou em ambos os pais, de entusiasmo pela transmissão da vida e pela existência e
criação dos próprios filhos (Ferenczi, 1929), como no caso de M e de outros pacientes que
mencionei em "Spoilt Children" (1994)9 talvez ainda seja diferente.
De fato, nesses últimos casos, a depauperação pode ser mais insidiosa e sutil, por
isso o analista, de meu ponto de vista, deve sempre considerá-la um relevante fator
etiológico em potencial, devendo ele mesmo, em primeiro lugar, buscá-la e localizá-la em
seus traços distintivos e patogênicos, já que o paciente não tem consciência do fato, a não
ser muito vagamente. Essa depauperação é expressa por meio do corpo (do
9. O livro Psicoanalise come Percorso, que contém esse artigo, como vários outros trabalhos do autor, já
foi vertido para o português sob o título de Percuso, e publicado pela Imago (N. da R.)
Franco Borgogllo
qual, em geral, o paciente não sabe cuidar, ainda que o coloque no centro de sua atenção)
ou por meio de comunicações que parecem elaboradas e até bem adaptadas, mas que na
realidade não o são, pois ele não sabe, de fato, pensá-las (os inúmeros e ricos sonhos de M
nos primeiros anos de análise, os quais retomarei em breve, são um exemplo disso). Além
disso, um outro índice pode ser um extremo negativismo, alternado a uma também
extrema docilidade e passividade; mas o sinal mais evidente é sentir no aqui e agora, e na
longa onda transferencial-contratransferencial, uma falta conspícua de responsividade,
acompanhada pela persistente sensação de estar faltando algo de vital e essencial à análise
e ao paciente; e que este está convencido, em nível profundo, mas de modo algum
consciente, que a mãe e o analista amam a morte e desejam que ele esteja morto. Como
sustenta F. Meotti (1995), o inconsciente arcaico desses pacientes teria lido a ausência de
entusiasmo dos pais dessa forma.
Deste contexto de experiências de faltas de naturezas variadas, surgem as defesas
primitivas, peculiarmente esquizóides, dos pacientes carentes (grave fragmentação,
dissociação, cisão, projeção e completa negação da vida psíquica), que representam
sempre manobras defensivas extremas para sobreviver diante de uma dor insuportável; e
que tendem a repropor continuamente, na vida e na análise, as vivências depauperantes
que as desencadearam. Em M, a atitude antivital era violenta e destrutiva, e consistia em
ceder ao pessimismo absoluto e onipotente da mãe interna (baseado na efetiva atitude da
mãe real) e ao destino preconizado por seus pais. Essa atitude - que acabava permitindo
um virulento sentimento de humilhação, vergonha e traição - refletia claramente a sua
enraizada identificação com a visão que a mãe tinha de si mesma e da vida.
Portanto, é importante que o analista não considere somente o narcisismo
destrutivo onipotente desses pacientes, mas o narcisismo de natureza igualmente
primitiva de seus objetos, ajudando-os a desencalhar sua história de seu mundo interno, de
forma que possam libertar-se da prejudicial identificação com o objeto depauperante. Esse
é um ponto chave - que recentemente tem chamado fortemente a atenção de Faimberg
(2000) - e que implica tanto fazer com que o paciente compreenda o que seus pais podem
ter depositado dentro dele, distinguindo isto do simples resultado de projeções que teriam
danificado e tornado más as contribuições parentais, quanto em uma disponibilidade
constante para explorar as nossas eventuais falhas como analistas, com as quais,
infelizmente, esses pacientes estão propensos amiúde a se identificar, passando por cima
de qualquer erro nosso. Portanto, mais do que com outros pacientes, devemos reconhecer
rapidamente as suas resistências em termos de necessidades e angústias que não
entendemos e às quais não estivemos, até aquele momento, aptos a atender
adequadamente; ou, em casos extremos, até em termos de comportamentos "impróprios"
que atuamos (ver Ferenczi, 1932 a, b).
Embora certamente não devamos ser indulgentes com os erros, admiti-los de modo
franco pode constituir, como sabemos, uma ocasião útil para repropor e reencontrar
aspectos de "realidade" ("acontecimentos de vida") negados e ignorados,
726
Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do analista aos sonhos de uma paciente
esquizóide que sofreu privações
e de tomá-la, graças a isso, estímulo para aprendizagem e investigação. De qualquer
forma, não devemos esperar que seja o paciente quem nos sinalize o que não estamos
acolhendo ou que estamos entendendo mal, se nós mesmos não o ajudamos e encorajamos
antes e repetidamente a compartilhar abertamente conosco suas observações e seus
pensamentos sobre nós, mesmo os que preferiríamos não ouvir. Partindo do fato de que
quem sofre de qualquer forma de privação irá, inevitavelmente, olhar nosso
comportamento, erros e também angústias, observando como os administramos e
resolvemos, é fundamental que aceitemos o fato de não estarmos logo prontos a tolerar o
sofrimento do paciente; e que tenhamos os nossos tempos e os nossos modos pessoais e
individuais para fazer frente à dor-e ao conflito que deriva da difícil descoberta das nossas
possíveis falhas nos confrontos com cada um de nossos pacientes.
Pelas razões até aqui expostas, a dificuldade que esses pacientes têm torna-se mais
do que evidente. No caso mais específico dos pacientes depauperados pela ausência de
entusiasmo pela vida por parte de seus pais, essa dificuldade se delineia na análise, como
sempre sublinhou F. Meotti, nos seguintes termos: "... à medida que a transferência é uma
experiência nova, ela ameaça mortalmente o status quo e, à medida que é repetição, ela
representa uma mãe que somente aprova a morte". Portanto, o analista será, por causa
disso, tanto o portador da morte porque ameaça as defesas utilizadas pelo paciente para
sobreviver, quanto - pela inversão de papéis que descrevi neste trabalho - a criança que o
objeto mortífero materno deseja morta. O analista, enquanto estiver sendo vivenciado
especialmente desse modo, será continuamente recusado e tomado inexistente, e será
especialmente experimentado no âmbito da resignação fatal.
Em síntese, com esses pacientes, a experiência pessoal do analista é um
instrumento essencial da análise para poder efetivamente alcançá-los: não apenas só
poderemos nos aproximar e conhecê-los por meio de nossos sentimentos, como esse tipo
de paciente tem também uma especial necessidade intensa de constatar que tem um efeito
sobre o ambiente para poder, ele mesmo, chegar a descobrir o ambiente fora e dentro de si.
Por isso, com esses pacientes o analista estará inevitavelmente exposto à própria
subjetividade, da qual não deverá ter medo; e mesmo "sem negá-la", deverá ter o cuidado
de não traumatizá-los com essa subjetividade (Winnicott, 1947; Little, 1957; Coltart,
1982; BoBas 1987, 1989; Rayner, 1991).
Portanto, o paciente carente tem necessidade de um analista que o faça sentir vivo e
significativo para um outro, para que possa atingir, em um segundo momento, o mundo
compartilhado dos significados. É inexato dizer que ele quer ser entendido e não entender,
a menos que "ser entendido" signifique ter valor e existir para uma outra pessoa que
participe emocional e mentalmente de suas vicissitudes específicas. Por este motivo, ao
analisá-lo, são fatores terapêuticos principais a generosidade profunda do analista e a
continuidade libídica-emocional da mensagem implícita em suas
palavras e além das próprias palavras: a comunicação afetiva pragmática (Rycroft,
727
Franco Borgogno
1956), mais do que o dizer coisas detalhadas e o conteúdo assertivo de nossas intervenções.
Naturalmente, a vitalidade, a sensibilidade, a humanidade capazes de pensamento serão
freqüentemente rejeitadas, contrapostas, bloqueadas, mas não podemos esquecer que,
geralmente, esse tipo de paciente nunca recebeu o tipo de experiência que lhe oferecemos.
Conseqüentemente, não a reconhece e, amiúde, acredita não ter direito a ela.
Como construir, definitivamente, aquela rede interativa, afetiva e mental, que lhe
permita assumir as interpretações como realmente significativas para ele? Não creio que
haja uma única forma, porque cada analista tem seu estilo próprio. Todavia, como sugeri no
caso de M, é indispensável, além de uma boa técnica e de uma teoria coerente, estar
disposto, tenaz e incansavelmente, a viver sentimentos em seu lugar, demonstrando firmeza
e capacidade de separação quando isso é requerido para sua sobrevivência e para a da
análise. Ater-se rigorosamente à própria resposta emocional elaborada, permite encontrá-Io
e evitar, ao compreendê-Io, uma pseudo-análise que conduza a tomadas de consciência
prematuras e a uma responsabilização antecipada, criando um ambiente que não é
genuinamente protetor e respeitoso dos tempos de crescimento "individuais". O risco no
tratamento de pacientes carentes seria dessa natureza, pois o seu "como se" invoca e seduz o
"como se" do analista. Portanto, é necessário, mais ainda do que habitualmente, vigiar com
muita atenção o nosso real grau de autenticidade em relação a como nós nos posicionamos e
ao que oferecemos a ele.
Os sonhos e o reviver do trauma no curso da análise
Para finalizar, voltando aos sonhos de M, impõe-se uma primeira consideração, que
provavelmente o próprio leitor terá feito: dos sonhos relatados, pelo menos três manifestam
claramente variantes de uma mesma cena que representa um esquema prototípico de
interação patogênica, indicando como esta última caminha em direção a uma lenta,
progressiva e igualmente clara evolução, caso os comparemos em seqüência e em
perspectiva.
O primeiro sonho, do início da análise, coloca em destaque uma situação psíquica
suicida que não deixa possibilidades de saída. M assiste impotente ao haraquiri de uma
pessoa japonesa de identidade incerta, num lugar fechado, uma espécie de "claustro", e o
evento em questão a persegue, arco após arco, apresentandose e reapresentando-se sem que a
paciente possa modificar os resultados, afastandose da visão do fato ou prestando socorro. O
segundo sonho, da metade da análise, aquele da rainha cruel que jogava seu filho para baixo
dos muros do palácio, acontece, diferentemente do primeiro, em um espaço de certa forma
mais aberto; e apesar da cena central permanecer quase a mesma em seus traços de fundo,
mostra um movimento inicial em direção a um reconhecimento do que está acontecendo,
com um conseqüente
728
apelo a reunir as forças egóicas e libidinais (a “jovem mulher chamada 'Ninguém'" e o
"povo submisso") sustentadas pela continência e pelas interpretações (as "espaçonaves
estrangeiras" não mais "inimigas" e sim "protetoras"). Porém, neste mesmo sonho, o
reconhecimento está muito longe de ser minimamente sólido e estável, porque, como o
leitor irá se lembrar - um fato que não se pode desprezar de modo algum do ponto de vista
das vivências analíticas - o filho da rainha "tinha aprendido a cair de pé e a não se
machucar", admirado pela mãe por essa "condição de não se machucar e sofrer".
Finalmente, o terceiro sonho ao qual vou retomar, seria definido por Quinodoz como um
verdadeiro "sonho que vira a página" (1999) porque em seus conteúdos iconográficos e
nas associações a estes se tornou evidente e indubitável uma nova capacidade da paciente,
de percepção de si mesma e da realidade (externa e interna); além disso, foi posta em
circulação aquela integração de pensamento(os) e sentimento(os) que não mais ignorando
a dor e cuidando dela, declara uma mudança estrutural e prenuncia uma provável e
possível futura conclusão da análise.
,,- A pergunta que aqui eu coloco em discussão, a propósito desses sonhos, é se devemos
falar deles simplesmente como sonhos que dramatizam os graves conflitos inconscientes
do sonhador, responsáveis pela sua mutilada capacidade de operação simbólica, ou se, ao
contrário, não devemos ampliar a nossa visão, como fez Ferenczi (1920-32, 1932b, 1934)
e fará Bion depois dele (1992; Bion Talamo, Borgogno, Merciai, 1997), incluindo a
transcrição de fragmentos de experiências mudos, silenciosos, não assimilados
completamente, na ausência de meios realmente disponíveis para colocar em palavras e
para a elaboração? Fragmentos não conscientes que, independentemente desse fato,
poderiam ao mesmo tempo conter informações preciosas de notável espessura, não
unicamente a respeito do funcionamento mental do sujeito, mas sobre seu passado
relacional "não pensado" e "não reconhecido conscientemente" (Bollas, 1987).
Do meu ponto de vista, sonhos como aqueles de M, que repropõem com precisão a
réplica recorrente de um esquema relacional antivital e patogênico, devem - para permitir
uma proveitosa e adequada simbolização - poder ser vistos pelo analista sobretudo como o
permear no paciente de uma vivência traumática cumulativa, cheia de "grande dor" (a dor
que se refere à área da não diferenciação), que não tem no
momento, nem o terá em um espaço de tempo que não seja oportunamente suficiente,
palavras emocionadas e refletidas para verbalizar e renegociar o que aparece, não sempre
em nível indireto e crítico, em seu conteúdo "secundário" aparentemente ostensivo. Esses
sonhos parecem ser ostensivos, às vezes de forma declarada, a narração particularmente
organizada e sofisticada, iluminada pela "convidativa" seqüência das imagens oníricas;
portanto, não subentendem uma presença, nem mesmo frágil e enfraqueci da, de
sentimento e pensamento passíveis de reflexão, exceto para o analista superficial e
apressado que confunde a impressão e o registro mnêmico e sensorial com o fruto de um
Eu suficientemente desenvolvido para dominar
729
os acontecimentos traumáticos e transformá-los em lembranças ou em insight sobre as
próprias operações mentais. M, por exemplo, não tinha absolutamente condições de
observar e significar o trauma ao qual estava sujeita e do qual participava, e nem pensava,
a não ser de forma confusa, que pudesse haver outras maneiras de existir e de se
relacionar, além das que havia experimentado, sem compreendê-las, durante sua infância
e adolescência.
Em suma, com pacientes semelhantes a M, nos encontramos confrontados com
uma "progressão" nos sonhos falsamente maturativa (Ferenczi, 1932a), derivada de
experiências excessivamente penosas não elaboradas, de tal forma que "os
acontecimentos dolorosos interrompidos de forma traumática" (Ferenczi 1920-32) por
eles enfrentados, deverão ser revividos em pequenas doses (fracionadamente, aconselha
Ferenczi [1920-32, 1932b]) ao longo da análise, para serem autenticamente notados,
entendidos e processados. Então, para que o trauma possa ter um encaminhamento melhor
e seja superado, deverá se tornar atual e reaparecer no encontro da dupla analítica; e
caberá ao analista (como tentei mostrar neste meu trabalho) passar por ele de forma cada
vez mais consciente e, por assim dizer, com "alma e corpo". Esse último não deverá, na
prática, ser negado (é esta a razão pela qual a categoria "história e ambiente psíquico"
precisam fazer parte da nossa bagagem teórica); da mesma forma, a dor que no passado
foi infligida e que será, mais cedo ou mais tarde, reproduzida na sessão, não deverá ser
truncada muito precocemente por nós.
Tendo em mente este objetivo, o analista deverá inevitavelmente encarnar os
diferentes personagens do drama apresentados nos sonhos, se quiser realmente doar ao
paciente, pessoalmente e com imaginação reverberadora, aquele novo início e
oportunidade que lhe permita apropriar-se da unicidade de sua história e da origem do
sofrimento catastrófico que o conduziu a adoecer e a ser aquilo que ele é. De fato,
somente depois disso é que as vicissitudes traumáticas poderão ser focalizada no diálogo
compartilhado, quando o próprio paciente irá poder sustentá-lo e autonomamente
sinalizar e nomear a saudável defesa de si mesmo, quer em sua versão histórica, quer em
sua versão interiorizada e intrapsíquica.
É graças à criação, ao longo da análise, de um ambiente deste tipo, que satisfaz como intuíram Ferenczi e Bion citados na "epígrafe" - antes uma "necessidade de
realidade" do que de "verdade" (Borgogno, 2000; Borgogno, Merciai, 1997), garantindo
funções humanas e psicológicas negligenciadas e diminuídas, e não meramente
interpretações (funções não exclusivamente de continência, rêverie e transformação, mas
de testemunho, de legitimação e de confirmação), que o sonho e a sessão que viram a
página de M podem acontecer. Um sonho e uma sessão que, de um lado, resumem e
condensam nos pensamentos carregados de afetividade, comunicados conscientemente
pela paciente naquela circunstância, a experiência central que ela atravessou na análise e
que agora está "identificada" em um nível de separação e de distinção tal que lhe permite
ser uma "pessoa real", isso é, "um
730
Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do analista aos sonhos de uma paciente
esquizóide que sofreu privações
indivíduo não mais fragmentado e dividido"; de outro lado, enriquecem o seu horizonte
existencial, pois a perda impensável e aniquiladora que sofria, ao se tornar profundamente
"sangue, olhar e gestos" com a aquisição de um pleno nascimento psicológico, pode
finalmente ser colocada de lado e esquecida, permitindo-lhe assim ir além e imergir no
tempo presente e futuro de vida com renovado empenho e aumento de confiança.
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Tornar-se uma pessoa: a importância da resposta afetiva do