Como uma pesquisa torna‐se infantil? 1
Resumo A partir dos Estudos da Criança e do campo da Sociologia da Infância este texto se dedica a problematizar os posicionamentos teóricos e seus respectivos desdobramentos metodológicos do caminho investigativo Pesquisar com crianças. Na verdade, ele é fruto de algumas reflexões acerca desta perspectiva investigativa, assim como, das escolhas que fiz, já que tensiona, sobretudo, aquilo que entendo por infantil. Para tanto, os argumentos aqui apresentados serão discutidos mediante três eixos temáticos: a) a impossibilidade de se encerrar o sentido de criança e de infância, b) a emergência de se propor um estudo [tanto conceitual quanto metodológico] em deslocamento e, c) a oportunidade não de explicar, mas antes, de discutir a criação deste lugar, desta condição investigativa que atribuímos como infantil. Dito isso, este texto mais do que significar uma inscrição política no campo da Sociologia da Infância, representa uma tentativa de tensioná‐la. Implica a um só tempo o desafio de se lançar ao desconhecido, já que estamos em face não apenas de conceitos, mas de sujeitos que continuamente nos escapam, como requer ao pesquisador a difícil tarefa de não se colocar no lugar do outro [neste caso a criança], mas sim, promover meios de dialogar com ele, ou seja, formas de incluí‐lo. Palavras‐chave: Criança. Infância. Pesquisa com criança Juliane Soares Falcão Gavião Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] 1
Trago aqui a mesma provocação feita anteriormente por Beatriz Fabiana Olarieta em seu texto: “O que torna infantil uma pesquisa?” (2012, p. 144). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião A problematização de um campo Em reconhecimento a diversidade e a singularidade das práticas infantis, este texto ao relacionar os Estudos da Criança com o campo da Sociologia da Infância, se ocupa em problematizar alguns posicionamentos teóricos e seus respectivos desdobramentos metodológicos do caminho investigativo Pesquisar com2 crianças. Em outras palavras, dedico‐me aqui a arte que é criar um método de estudo que de alguma forma expresse o que se entende e o que [particularmente] eu entendo como infantil. Para tanto, tendo por base o conceito de infâncias (Buckingham, Bujes, Corazza, Dornelles, Larrossa e Narodowiski), lanço mão das discussões empreendidas pelo campo da Sociologia da Infância (Barbosa, Campos, Cruz, Delgado, De Paula, Flores, Kramer, Leite, Müller, Olarieta, Rocha, Silva) no intuito de pensar o caminho investigativo Pesquisar com crianças. Dito isso, as discussões aqui apresentadas estão organizadas mediante três argumentos: neste primeiro momento, denominado A problematização de um campo, falo da impossibilidade de qualquer fixação a respeito das infâncias contemporâneas. Na sequência, em Pesquisa com crianças: a arte de propor um estudo em deslocamento, trato da necessidade de não apenas investir em um estudo, mas, sobretudo, numa atitude metodológica que se comprometa com o movimento, a fluidez das práticas infantis. E finalizo com algumas considerações acerca da questão norteadora deste texto: mas afinal, o que torna uma pesquisa infantil? Tendo isso em vista, na esteira deste questionamento, tomo como ponto de partida o tensionamento do sentido de infância e, portanto, da criança encarando este movimento como um exercício crítico das formas que hoje dispomos para significá‐las. Refiro‐me aqui aquilo que muitos pensadores (BUCKINGHAM, 2007; BUJES, 2002, 2012; CORAZZA, 2004; DORNELLES, 2011, 2012; LARROSSA, 2001, 2010; NARODOWISKI, 2001) em outras palavras já disseram: foi se o tempo em que podíamos nos iludir e falar da infância e, por efeito, da criança como algo certo, seguro, inequívoco até. Mesmo assim, é fato que ainda nos deparamos com esforços [sobretudo, nossos esforços] que, por vezes 2
O termo “com” é sempre destacado (seja em itálico ou sublinhado) em referência à nova perspectiva sociológica de infância, como marca de distinção, às pesquisas de e/ou sobre crianças. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião inconsciente, anseiam por categorizá‐las. Legítimos ou não, é difícil ignorar este anseio fruto da extenuante captura da criança como objeto de saber e da infância como campo de intervenção social deste saber. Da mesma forma que, se percebe que eles [os saberes], fundadores de práticas e instituições, não dão conta daquilo que até então é investido como infantil. Nesta direção, a questão que se coloca é que [hoje] não há uma única possibilidade de ser criança e, obviamente, de se viver a infância, o que por tudo indica que não há uma única maneira de significar a infância e, por efeito, dialogar com ela [a criança]. Tomada por esta perspectiva, a infância antes única e facilmente posicionada como uma fase da vida, um tempo social, uma condição passa então a nos inquietar. Ela com isso se multiplica, ou seja, desdobra‐se em muitas outras infâncias3 que desconcertam nossas convicções, uma vez que nos coloca diante de crianças que questionam nossas práticas, nossos saberes e com isso frustram toda uma expectativa de sujeito e de sociedade aí implicada. Como efeito, o que quero dizer é que estamos em face de uma perspectiva plural de infância(s) e, portanto, diferenciada de criança que vai na contramão das nossas aspirações, ao passo que faz jus ao espaço/tempo em que vive[o contemporâneo]. Outrossim, mais do que simplesmente problematizar a invenção chamada infância cujo modelo moderno restringiu a criança a um ser “inacabado, carente e individualizado”, trata‐se ao contrário de se questionar e, portanto, ampliar ‐ o que hoje é entendido e/ou reivindicado como infantil (BUJES, 2002, p. 46)? Frente a isso, fica claro que a infância justamente por ser uma invenção social é um projeto que deve então ser percebido pelo seu constante fluxo e movimento. Ou seja, nela nada há de absoluto ou natural, já que se trata de uma construção sem fim que obviamente por ser inventada continua sendo inventada e se reinventando, de maneira que novos contornos sociais e culturais4 orientam e estabelecem outras estratégias de 3
Infância enfaixada, infância romântica, infância da guerra, infância vigiada, infância da disciplina, infância da rua, infância da religiosidade, infância do trabalho, infância do perigo, infância liberada, infância cyber, infância da publicidade, infância erotizada, infância esportiva, infância dos bonecos, infância consumidora etc. (DORNELLES, 2011; 2012). 4
Refiro‐me especialmente a “novos arranjos econômicos, geopolíticos e culturais” como o neoliberalismo, a globalização, a centralidade da cultura, a ênfase no consumo que como efeito, descentralizam o sujeito (BUJES, 2012, p. 65). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião ação, igualmente acompanhadas da produção de novos referenciais e formas de controle e de escape destes mesmos referencias, diga‐se então, outros posicionamentos políticos que se somam ao campo infantil. Enfim, isso significa que estudar a infância, aproximar‐se dela, é, no entanto, um verdadeiro trabalho sem fim, isto é por mais que tentemos nos antecipar, resistir, estamos diante de um cenário que, sobretudo, na pesquisa nos convoca a continuamente rever as relações que se tecem entre adultos e crianças, pesquisadores e colaboradores. E o mais importante, requer saber‐se implicada nestas relações, seja como pai/mãe, profissional da educação ou mesmo pesquisador(a). Daí entende‐se que falar da infância é, de algum modo, procurar dar conta de um conceito que simplesmente escapa a cada movimento que fazemos. Assim, não se trata aqui de contrapor o que já sabemos àquilo que ainda desconhecemos, nem de travar um embate entre estas muitas infâncias, mas antes, implica se valer deste desconhecido, este “enigma” (LARROSSA, 2010), não como algo a ser desvendado, mas, para além disso, considerá‐lo passível de a qualquer momento ser retomado, revisado e, portanto, tensionado. Significa então uma aproximação tanto da infância quanto da criança pelo seu viés histórico e relacional que nada mais é que simplesmente considerá‐las [as crianças] um sujeito social – dotado de saberes, práticas, vontades, posicionando‐o verdadeiramente tal qual um “depoente privilegiado” (LEITE, 2008, p. 120). Tendo isso em vista, a melhor forma de se aproximar da(s) infância(s) é percebê‐
las pelo que são: o outro. Aquilo que por mais que tentemos classificar e compreender não se consegue alcançar justamente porque estão além de nós [os adultos]. A partir deste raciocínio, cabe então se perguntar: de onde veio esta pretensão que, em dado momento, nos permitiu não apenas determinar o que é ou não “a” infância e, por efeito, “a” criança como igualmente nos autorizou a projetar formas adequadas de assujeitá‐las? Ora, da racionalidade moderna, de modo que superar esta concepção, tão redutível e definitiva, requer de alguma forma transformar esta vontade de saber [a nossa vontade] em “inquietação, questionamento e vazio” (LARROSSA, 2010, p. 185). Assim, tendo em conta as ambiguidades e alteridades – uma marca das infâncias contemporâneas – é preciso um esforço no sentido de ampliar nossa forma de percebê‐
las, para além do já sabido. E com isso, faço minhas as palavras de Leni Dornelles e Maria X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião Isabel Bujes “que mais há para dizer sobre a infância que já não tenha sido pensado e dito?” (2012, p. 05).Nesta direção, a dubiedade de significados,tão contraditórios quanto complementares, estas muitas infâncias que ora nos assombram, ora nos deslumbram, esta “relação ambígua/idealizada” que mantemos com a mesma, antes de ser registro da incerteza deve então ser entendida como provocação e é este movimento que aqui proponho (DORNELLES; BUJES, 2012, p. 13). O esforço de não delimitá‐las de antemão, mas a criação de pontes, espaços de trocas, diálogos que escapem a quaisquer expectativas ou ideias pré‐concebidas que eventualmente se possa ter. Enfim, no que se refere à pesquisa significa incluir de fato a criança na prática investigativa. É, portanto, diante deste panorama de medo e incertezas, mas também de abertura e possibilidades que volto minha atenção à atitude teórico/metodológica Pesquisar com crianças. Para tanto, justifico meu interesse pelas infâncias e sua datada [mas não delimitada] constituição, baseada especialmente em dois deslocamentos que hoje as marcam de modo indelével: a centralidade com que as práticas infantis são posicionadas, principalmente, em relação às atuais ambiguidades presentes em seus contextos e a dinamicidade com que estas mesmas práticas se (re)configuram a partir das próprias ações infantis. Obviamente entendo que estes deslocamentos, por si só, já indicam a necessidade de uma constante aproximação com os sujeitos infantis, bem como de um diálogo mais efetivo com as crianças, tendo em vista as formas pelas quais elas hoje narram a si mesmas e a cultura que as cerca. Porém, este não é meu único motivo. Como segundo argumento, vejo como necessário investir em formas sensíveis de perceber o sujeito criança; o que neste caso pressupõe criar outras maneiras de ver as produções infantis. De modo que, pensar em novas possibilidades pedagógicas e investigativas implica, acima de tudo, apreciar as crianças em sua singularidade, ou seja, tomá‐las tal qual “acontecimento” (LARROSSA, 2001) e “criação” (NIETZSCHE apud LOPONTE, 2008, p. 115). Enfim, requer pensar o sujeito criança como um ser em contínuo deslocamento, condição que igualmente exige imaginar e investir num estudo que respeite este movimento e, portanto, de alguma forma se coloque no nível das X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião possibilidades – daí justamente a importância de discuti‐los junto às e a partir das próprias crianças. Pesquisa com crianças: a arte de propor um estudo em deslocamento Com o que foi exposto, é possível dizer que a todo o momento damos a criança um lugar que ela não ocupa de todo, ou pelo menos, não exclusivamente. Com isso, as posicionamos socialmente e educacionalmente em lugares que muitas vezes são estranhos a elas. Ou seja, pouco corresponde as suas práticas atuais. O que indica no mínimo a parcialidade de nossas próprias concepções, uma vez que exclusivamente as pensamos, falamos e, sobretudo, as educamos a partir de um ponto de vista alheio ao delas, qual seja, o nosso [a perspectiva do adulto]. Assim, nos especializamos em antecipar, projetar, planejar e investir naquilo que acreditamos ser o melhor a elas. Sem, contudo, minimamente consultá‐las, fato que diria ainda é pouco comum. Dito isso, nos colocamos na posição de responsáveis por suas vidas, muitas vezes sem considerar o que a criança diz de si, de seu meio, seu tempo, suas práticas e produções. Ou seja, não as consideramos verdadeiramente, apenas reforçamos a ideia que fazemos da infância que tão persistentemente mantemos. Diante desta problemática, será então possível dialogar com as crianças [fato recente historicamente] sem, contudo, limitá‐las, reduzi‐las, defini‐las? Acredito que sim, mas para isso é necessário ampliar “as possibilidades de pensar os seus processos constitutivos, deixando falar outras vozes, dando espaço para outras explicações, favorecendo outras narrativas, também historicamente datadas, parciais, fragmentárias” (DORNELLES; BUJES, 2012, p. 23). Fato que penso vem ao encontro da perspectiva teórico‐
metodológica Pesquisar com crianças, uma vez que a entendo como um caminho possível para questionar e [com isso ‐ se ‐ questionar] o que hoje pode vir a ser o infantil? Claro que se engajar em tal perspectiva investigativa requer ao pesquisador reconsiderar as relações de poder aí implicadas. Contudo, isso não significa seguir no caminho oposto e adotar uma postura totalmente inversa àquela inaugurada na modernidade. Ou seja, ir do estabelecimento de uma fronteira que separa X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião historicamente, socialmente e culturalmente adultos e crianças ao completo apagamento da mesma. Refiro‐me, portanto, a possibilidade de uma outra relação de proximidade e distanciamento entre adultos e crianças, baseada então na capacidade de negociação junto às e com as crianças. Neste sentido, não se trata de negar e menos ainda de anular tais relações hierarquicamente estabelecidas. Trata‐se apenas de flexibilizá‐las ou até mesmo suspendê‐las especialmente na pesquisa [como aqui é o caso]. De qualquer maneira, atentar para a histórica desigualdade entre adultos e crianças é, acima de tudo, não repeti‐la. Assim, se quisermos nos engajar na perspectiva investigativa aqui mencionada é no respeito a estas alteridades [históricas, sociais, culturais e políticas] que mais atentamente precisamos trabalhar. Como efeito, pesquisar com crianças implica ao pesquisador uma dupla atitude diante das crianças: relativizar as relações de poder e, com isso, empoderar a criança. Dizendo de outra forma, esta perspectiva exige de nós [pesquisadores] uma conduta junto à criança nem de autoridade, nem de submissão, mas de colaboração. Conforme Silva, Barbosa e Kramer significa considerar que, por trás do número e do dado, há sempre um rosto, um corpo e, sobretudo, um sujeito que interage conosco (2008, p. 81). O que sugere obviamente uma transformação contínua das “relações entre infância e poder”, uma vez que atua no sentido de instabilizar os papeis entre pesquisador e colaborador (BUJES, 2002, p. 19). Enfim, isso significa que o pesquisador neste caminho propõe ações, sugere discussões, pautas, atividades, mas, são as crianças que preferencialmente as acolhem [ou não]. São elas então que dão vida à pesquisa e não ao contrário. Assim, pesquisar com crianças deve em suma constituir uma tarefa “sempre ameaçada, sempre inconclusa”, já que não é o pesquisador que de toda forma determina o caminho a percorrer ou até mesmo dita o ritmo a seguir, mas sim o negocia junto às crianças e seus interesses atuais (DORNELLES; BUJES, 2012, p. 18). Tal metodologia parte de uma perspectiva sociológica de infância, que não só ressignifica a criança e suas práticas no cenário social como estabelece novas relações pedagógicas e investigativas, enfim, políticas entre adultos e crianças. Mais do que vislumbrar as “transformações nos X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião mecanismos de poder”, esta perspectiva implica não delimitar o que as crianças podem/devem ser, fazer e/ou dizer, mas, ao contrário pressupõe considerá‐las produtoras de saber (BUJES, 2002, p. 34). Daí a necessidade de empoderá‐las. Dito isso, empoderar aqui significa valorizar o lugar do qual a criança fala e percebê‐la não só como um indivíduo produzido mediante as condições de seu meio, mas, como um sujeito capaz de interferir nestas mesmas condições. Por certo, considerar as crianças produtoras de saber implica, mais que escutá‐las (ROCHA, 2008) ou ouvi‐las (CRUZ, 2008), criar “um [outro] lugar para percebê‐las” (LARROSSA, 2010, p. 186). Aquilo que Leite chama de “espaços de narrativa” (2008, p. 121). Contudo, a criação de tais espaços não está restrita à pesquisa, ou seja, ao encontro do pesquisador coma criança, uma vez que se entende que toda e qualquer produção é por efeito uma narrativa, diga‐se cultural. Estes espaços então independem do ato investigativo, mas decorrem da criação e do compartilhamento de sentidos, estes sim fundamentais a qualquer investigação que se intitule, sobretudo, infantil. A dificuldade aqui, no que se refere ao pesquisador, é pensar e propor atividades suficientemente atrativas que não só convidem como instiguem as crianças a fazer parte destes espaços. Como resultado, importa nesta perspectiva privilegiar um ambiente de troca que permita as crianças pensar sobre elas próprias, a partir de uma relação muito específica, as condições “nas quais lhes foi dado viver” (DORNELLES; BUJES, 2012, p. 12‐13). Ou seja, a sua relação com a cultura. Feito isso, trata‐se aqui de dialogar sobre o caráter pedagógico posto em funcionamento na e pela cultura5. E o que a criança diz sobre ele. E, neste ínterim, inventar formas, até então inexistentes ou até mesmo pouco convencionais, de se comunicar com elas. Portanto, tendo por base estas questões, fazer pesquisa com crianças é um pouco mais que valorizar a criança enquanto sujeito de um estudo. Ou simplesmente consultá‐
las. É considerá‐las pessoas atuantes, protagonistas de suas práticas, de suas vidas e, portanto, autoras daquilo que dizem, seja na vida ou na pesquisa. O que requer torná‐las 5
Tendo em conta que se trata de infâncias que não se produzem única e exclusivamente nas instituições tradicionais como a família e a escola, mas, em outros espaços sociais, diga‐se então, culturais. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião [como já dito anteriormente] um depoente privilegiado da sua própria cultura. Ou seja, fala‐se aqui de uma pesquisa que investigue a infância pela infância. Com isso, precisa‐se ter em mente que o sujeito e sua percepção do mundo não se separam do nível da existência, mas são feitos de possibilidades, sempre inventadas. Algo que não se faz de modo aleatório, mas parte da inscrição política do pesquisador. Refiro‐
me portanto, ao engajamento deste junto à concepção sociológica de infância enquanto prática que a um só tempo tensiona o campo infantil, já que de certa forma coloca a criança pelo avesso6, do mesmo modo que, possibilita ao pesquisador transformar suas práticas no decorrer deste tensionamento. Aliado a isso, permite a ele [o pesquisador] posicionar‐se diante de um campo mais amplo chamado educação e perceber que diferentemente do que se pensava (FOUCAULT, 2010) não há caminhos a seguir senão aqueles que arduamente ele mesmo [o pesquisador] construiu. Para tanto, isso significa ao pesquisador colocar‐se ele mesmo em deslocamento. Aliás, levar isso em conta nos sugere que só é possível pensar a mobilidade das práticas infantis se há no pesquisador o compromisso de “se renovar [...], se colocar em questão” em relação a estas práticas (LARROSSA, 2010, p. 189). Dito de outro modo, não há como nesta perspectiva se comprometer com um estudo que privilegie o deslocamento [seja da criança, seja do estudo em si] sem que o idealizador [o pesquisador] não esteja de algum modo implicado neste movimento. O que indica que, pensar este jogo investigativo, requer problematizar a forma como o conhecimento é percebido, negociado, e, sobretudo, transformado. Ou melhor, implica se ocupar da arte que é propor um estudo em deslocamento. Assim, Pesquisar com crianças é se lançar a um projeto investigativo dinâmico, flexível, provisório, ou seja, em deslocamento, visto que contempla sujeitos [seja pesquisador(a), seja colaboradores] igualmente em deslocamento. E por tudo, considerar que este não é um caminho fácil, mas um percurso que exige tanto ou mais rigor, já que se trata de uma aposta de trabalho que requer continuamente se tensionar, no sentido de ser suficientemente ético, infinitamente artista, mas, sobretudo, demasiadamente 6
Ou seja, “em sua mais absoluta complexidade” (MARCELLO, 2012, p.153). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião humano. Falo, portanto, não apenas de uma postura metodológica que não deixa de ser, ela mesmo teórica, mas, sobretudo, de uma atitude diante da pesquisa que se estende a nossa própria vida [particular, profissional, acadêmica], já que por infantil assume um sentido bastante particular: tema a ser tratado a seguir. Mas afinal, o que torna uma pesquisa infantil? Na tensão entre rupturas e continuidades, posso dizer que a questão acima foi sendo formulada na medida em que me lançava neste caminho investigativo. Em outras palavras, à medida que pesquisava com as crianças. Durante todo o processo, questionava‐me de que forma e por quais caminhos uma investigação deve caminhar para ser entendida como infantil? Ou seja, quais percursos teórico‐metodológicos que eu, pesquisador(a), juntamente com a colaboração infantil, poderia percorrer? E se haveria, por outro lado, algum caminho em que não poderia me arriscar?A partir destes questionamentos, percebe‐se que este texto nada mais é que uma reflexão acerca dos caminhos e os desafios da perspectiva Pesquisar com crianças, bem como, dos modos pelos quais [eu] ao longo de determinado percurso me fiz valer desta perspectiva. Assim, investindo nestas questões é preciso ponderar que não há como pesquisar com crianças sem considerar a própria infância uma invenção paradoxal. Dito isso, não se pode simplesmente ignorar que “a preocupação em definir a infância é exclusivamente adulta” (BUJES apud LAJONQUIÈRE, 2012, p. 57). Deste modo, são os adultos que ora se esforçam por esgotá‐la, ora se ocupam em ressignificá‐la. Como efeito, aquilo que assumimos por infantil, implica em grande parte o ponto de vista do outro da criança, ou seja, a invenção do adulto. Assim, quando se fala de pesquisas que envolvam crianças estamos diante de criações exclusivamente adultocêntricas que antes de qualquer coisa, objetivam pesquisar a infância, falando sobre as e das crianças. Digo isso contudo, não com a intenção de desqualificar tais investigações, aponto apenas para a emergência de se dialogar com outras formas sensíveis de perceber o mundo que não as nossas. Refiro‐me então a possibilidade de pensar o infantil como algo múltiplo, heterogêneo, ambíguo, contraditório, incompleto, enfim, uma forma que nos X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião permita em alguma medida nos aproximarmos de um ponto de vista que não nos pertence ‐ o das crianças. Mais do que dar conta de uma outra forma de ver o mundo, trata‐se em suma de promover o encontro com esta outra forma de pensar e viver que, de certo modo, vai além das próprias crianças. Em outras palavras, falar do adjetivo infantil na pesquisa significa participar da constituição de “novos sentidos para a infância que a reinventem ou que, ao menos, partam da possibilidade, sempre tão instável, de concebê‐la como um acontecimento, como um caminho em aberto, como imprevisibilidade” (BUJES, 2012, p. 76‐77). É considerar que assim como não há um modo seguro e estável de se aproximar das crianças, da mesma forma, não se pode falar do infantil sem a todo o momento considerá‐lo retomada incerta, inacabamento. Metodologicamente, é pensar o infantil como uma “vertigem” que invés de limitar, ao contrário,nos permite ver caminhos por toda a parte (LARROSSA, 2010, p. 185). Em contrapartida, esta forma de privilegiar as crianças e que, eventualmente, amplia quaisquer sentidos acerca da infância, paradoxalmente, exige do pesquisador, o cuidado de reavaliar‐se constantemente. Isso significa que em se tratando de crianças, cada movimento, cada aproximação deve ser rigorosamente organizado e planejado com o intuito de respeitar o seu bem‐estar. Conforme Delgado e Müller, nesta perspectiva a “ética” não é apenas necessária, mas fundamental (2005, p.355). As autoras neste sentido argumentam que os pesquisadores são, sim, “intrusos da vida alheia” (Ibid.) e, por isso, pensam ser importante refletir sobre algumas considerações: até que ponto é benéfico envolver as crianças na pesquisa? Qual o nível adequado de participação? Que método se apresenta como mais produtivo em termos de significações? Para as autoras trata‐se em suma de medidas aparentemente simples, mas que devem ser consideradas, pois, não só valorizam as crianças como participantes como contribui com o resultado da investigação. Campos (2008, p. 39), por sua vez, também tece algumas recomendações em relação às crianças e ao pesquisador, tais como: deixar claro seu objetivo e o papel das mesmas na pesquisa,evitar a colocação de questões que provoquem reações de estresse e sofrimento nas mesmas,ter cuidado com os achados para não expor a criança e X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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Como uma pesquisa torna‐se infantil? Juliane Soares Falcão Gavião conhecer previamente a cultura local. Para ela, tais recomendações são importantes, já que considera fundamental chegar a um equilíbrio entre o objetivo da pesquisa (alcançado através da comunicação da criança) e o estresse associado a isso. Assim, diante de todo este cuidado, pesquisar com crianças significa [se] propor uma difícil tarefa ‐ equilibrar no estudo a valorização da identidade das crianças em face da necessidade ética de garantir sua privacidade, ou seja, protegê‐las. Trata‐se portanto de responsabilizar‐se pela perspectiva desta criança que nos é confiada de antemão. Mas, sobretudo, ponderar sobre o quanto nossas escolhas teóricas e metodológicas “não se dão ingenuamente ou ao acaso, mas traduzem uma opção política, uma implicação ética [e educacional] com a questão que se coloca”: qual a melhor forma de pela e a partir da pesquisa se aproximar das crianças? (FLORES et al., 2011, p. 40). É para tanto considerar a inter‐relação dos contextos sociais e como efeito perceber a indissolubilidade entre vida e pesquisa, entre social e individual, entre pedagógico e investigativo, entre criança e adulto. E, com isso, perceber o quanto o caminho é dependente dos sujeitos que o percorrerão. Mas, sobretudo, escapar de um trabalho de mera confirmação (OLARIETA, 2011, p. 156). E entender que não há caminho pronto: o que há é um percurso construído e atualizado mediante o permanente diálogo com o outro. Enfim, uma pesquisa se torna infantil quando ela “não se produz, mas se inventa” (Ibid., p. 157) à medida que é capaz de desafiar o adulto a pensar “novas formas de incluir as crianças” (DE PAULA, 2011, p. 116). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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