SERVIÇO
Do tamanho de um fio de cabelo
cortado 100 mil vezes, as
nanopartículas são uma revolução
na tecnologia já presente na vida
do consumidor, mas seus riscos
à saúde e ao meio ambiente
ainda são pouco conhecidos
REPRODUÇÃO
TECNOLOGIA
Imagens de peças de “nanoarte”, vencedoras de um concurso
da Universidade Tecnológica de Nanyang (Singapura)
O mundo nanométrico
invade (discretamente)) o mercado
S
ubstâncias que circulam pelo
corpo e mudam de coloração
ao detectar uma célula cancerígena, luvas resistentes que não
podem ser cortadas com uma faca,
vidros e cerâmicas autolimpantes,
remédios que atuam apenas sobre o
órgão doente para não afetar outras
partes do corpo, derramamentos de
óleo que podem ser confinados com
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o uso de nanopartículas, uma língua
eletrônica mais sensível que a humana para efetuar a distinção de
sabores. Apesar de a nanotecnologia
ainda parecer para grande parte da
população uma cena de ficção científica, já é realidade em diversos países, inclusive aqui no Brasil. Não
temos ainda estudos suficientes que
atestem a segurança dessa nova tecnologia para a saúde e o meio ambiente, mas é incontestável a revolução
que as nanopartículas já iniciaram.
Inclusive na área de consumo.
A nanotecnologia é a ciência que
trabalha com nanopartículas, algo
em torno de um bilionésimo do metro. Se nós dividirmos um fio de
cabelo por 100 mil vezes, chegamos
à escala nanométrica. Apesar do tamanho tão difícil de imaginar, a nanotecnologia trabalha com moléculas grandes, de acordo com o professor Henrique Eisi Toma, do Instituto de Química da Universidade
de São Paulo (IQ-USP). “O nanômetro já é uma escala na qual vamos encontrar moléculas grandes,
estruturas mais complicadas. Justamente na escala nanométrica é que
as moléculas adquirem capacidade
de realizar alguma tarefa. Dizemos
que elas se tornam inteligentes.
Nesse estágio, as moléculas formam
conjuntos grandes que encerram informações.”
E essas informações são a chave do
encantamento dessa ciência. E também de seu possível uso ameaçador. A partir do momento em que
os cientistas podem decifrar o que
carrega cada nanopartícula e conseguem modificá-la, um mundo de
inovações se abre. Depois disso,
qualquer material pode ser transformado e melhorado. A questão que
surge a partir daqui é: a humanidade
tem garantias de que essa inovação
tecnológica será usada apenas para o
progresso?
MOLÉCULAS DO FUTURO
Apesar de seus resultados começarem a se multiplicar nos últimos
anos, a nanotecnologia tem quase
50 anos. Em 1959, quando o físico
Richard Feynman divulgou que era
possível condensar todo o conteúdo
da Enciclopédia Britânica na cabeça
de um alfinete, deu-se o primeiro
passo para que essa ciência entrasse
na vida de todas as pessoas. Hoje em
dia, já se sabe que é possível incluir,
na cabeça de um alfinete, não apenas todo o conteúdo da Enciclopédia Britânica, mas todo o conteúdo já
produzido no mundo.
A novidade dessa ciência é a
descoberta sobre a função das nanopartículas: com a descoberta dessa
função, os cientistas também abrem
caminho para a criação de novas
partículas. Em breve, qualquer material poderá ser produzido a partir
de nanopartículas.
Apesar de se relacionar a coisas
minúsculas, a nanotecnologia já movimenta somas de dinheiro gigantescas. A estimativa é de que em dez
anos o mercado mundial de produtos e processos baseados em nanotecnologia movimente até US$ 1
trilhão.
No Brasil, no entanto, algumas
poucas ações do governo não chegam a ser um incentivo aos cientistas
e ao desenvolvimento da nanotecnologia no país. Em 19 de agosto de
2005, por exemplo, foi lançado o
Programa Nacional de Nanotecnologia (PNN) pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT). Nada
de concreto, entretanto, tem sido
feito pelo Programa, que, de acordo
com Toma, passa por fases de agitação e de esquecimento, sem que,
no entanto, se viabilize uma real
política de desenvolvimento da nanociência.
Em 2001, o Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) lançou um
edital para a formação das Redes
Cooperativas de Pesquisa Básica e
Aplicada em Nanociência e Nanotecnologia. Surgiram 27 propostas, das quais 12 foram aprovadas. Essa quantidade de centros
de pesquisa, entretanto, é irrisória
para que o Brasil não perca o bonde
da nanotecnologia. Na Alemanha,
por exemplo, são mais de 400 os
centros de pesquisa em atuação.
Para Luiz Nunes de Oliveira, pesquisador de nanotecnologia do Instituto de Física de São Carlos (USP),
os investimentos são muito pequenos. “Para este ano, o governo federal tinha a promessa de investir
cerca de R$ 70 milhões em um programa, mas até agora nada deslanchou. Mundo afora, os maiores investimentos vêm de empresas, mas
no Brasil estas têm pouca tradição de investimento em pesquisa
avançada.”
“A partir de nanopartículas de
ouro, por exemplo, com modificações químicas ao redor da molécula, pode-se colocar qualquer coisa.
Se pusermos um antígeno [substância que pode desencadear uma
resposta imunológica específica], a
molécula vai se grudar ao anticorpo,
e quando isso acontecer, a partícula
muda de cor, fica azul. Qual a aplicação disso? Você pega as nanopartículas, trata com antígeno especial para um tumor, por exemplo, e
injeta no corpo. Quando ele enconRevista do Idec | Julho 2006
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TECNOLOGIA
trar a célula tumoral, vai ficar azul,
avisando que ali há um tumor. A
partir desse uso das nanopartículas
pode-se fazer um diagnóstico clínico. E vinte gotas desse material custam cerca de US$ 800 no Brasil,
porque é um produto importado. O
interessante financeiramente é conseguirmos fazer essas coisas aqui”,
raciocina Toma.
RISCOS E BENEFÍCIOS
DO MESMO TAMANHO
cancerosas ou reparar danos feitos
pela radiação; outros poderiam transportar drogas de forma bastante específica diretamente para a região do
corpo com problemas.
Atualmente já é bastante plausível
o uso de nanossistemas para a veiculação de drogas e o tratamento de
inúmeras doenças. Uma simples injeção pode liberar milhares e até milhões de partículas magnéticas, ou
nanoímãs, na corrente sanguínea de
uma pessoa. Essas partículas podem,
a seguir, ser conduzidas para uma
região específica do corpo por meio
de um campo magnético externo.
Uma aplicação possível para esse sistema é o transporte de drogas quimioterápicas especificamente para a
área do tumor, sem que essas drogas
afetem os tecidos normais. Considerando que a quimioterapia tem, normalmente, efeitos adversos muito
sérios, essa aplicação tem uma importância considerável.
Mas não podemos deixar de lado o
conhecimento dos riscos que essa
nova tecnologia pode acarretar: “as
IDEC
Quando entramos no campo da
saúde e da nanobiotecnologia, as inovações devem ser vistas com cautela.
Os efeitos positivos da utilização de
nanopartículas para a detecção de
um câncer, por exemplo, podem ser
gigantescos. Mas também são necessários anos de estudo para termos
certeza de que a saúde do ser humano não será prejudicada.
Na área da nanobiotecnologia é
possível a invenção de dispositivos
minúsculos que seriam capazes de
percorrer todo o organismo para
encontrar e destruir vírus ou células
TECNOLOGIA
“O homem pode usar [a nanotecnologia] tanto para o bem quanto para o mal”, alerta Toma
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nanoestruturas caem na região das
biomoléculas, e o organismo é programado para reagir contra coisas
grandes, mas não para reagir contra
coisas pequenas do tamanho de
moléculas. O lado bom é que se a
sua nanopartícula for tratada com
coisas que fazem bem ao organismo,
como vitaminas, nutrientes, medicamentos, ótimo, vai ter uma ação
espetacular. Mas você também pode
colocar uma coisa ruim, e aí pode
ocorrer um efeito reverso. O homem
tem que saber usar isso. Ele pode
usar tanto para o bem quanto para o
mal”, alerta Toma.
Já na área de produtos de uso
doméstico, Oliveira não vê riscos,
por exemplo, de as partículas se
desprenderem do material e prejudicarem a saúde, “porque elas estão
inseridas na estrutura íntima dos
materiais. Assim como ninguém precisa se preocupar com a possibilidade de liberação do flúor (um elemento terrivelmente corrosivo, quando isolado), que entra na composição de muitas pastas de dentes, não
é razoável imaginar que as nanopartículas vão se desprender de uma
tinta ou de um material fabricado
com processos nanotecnológicos.
Como a fabricação de certos materiais poderá envolver a produção de
nanopartículas, é importante a preocupação com a possibilidade de acidentes industriais, e isso já está levando alguns países a estudarem
normas para evitá-los”.
Independentemente da visão defendida, é inegável que, nos últimos
anos, o acelerado avanço do conhecimento científico e de suas aplicações traz grandes oportunidades à
humanidade e ameaças proporcional e potencialmente avassaladoras.
Frente a isso, qualquer posição extrema – tanto atitudes passivas quanto atitudes antitecnológicas e anticientificistas – pode tornar as perspectivas de uma revolução com potencial benéfico em um grande malefício para toda a sociedade.
Nanopartículas na prateleira
J
á há muitos produtos no mercado com propriedades modificadas e melhoradas pela nanotecnologia. Tintas automotivas resistentes à abrasão; a língua eletrônica desenvolvida por uma parceria entre a
Embrapa e a USP, que é capaz de
identificar vinhos por fabricante e
ano de produção; cosméticos da marca Boticário; refrigeradores, condicionadores de ar, aspiradores de pó,
lavadoras de roupa e televisores da
Samsung são alguns dos exemplos.
Nenhum dos manuais dos produtos
da empresa coreana disponíveis na
internet traz sequer uma informação
sobre a tecnologia de ponta utilizada,
e menos ainda qualquer advertência
ao consumidor. Aqui, “Nano” é um
belo nome, tão incompreensível
quanto atraente, mas sobre o qual o
consumidor nada sabe.
“Fabricantes de tintas estão aproveitando a nanotecnologia para baratear e tornar mais atraentes seus
produtos; empresas cujos produtos
dependem vitalmente da lubrificação, tais como fabricantes de compressores ou de motores, investem
em nanotecnologia para melhorar os
lubrificantes; há também inúmeras
aplicações em materiais mais resistentes, mais duráveis ou mais leves”,
afirma Oliveira.
A Suzano Petroquímica também
pretende colocar no mercado, no segundo semestre, um plástico mais
resistente, com propriedades de barreira. De acordo com o gerente de
desenvolvimento de novos produtos
da empresa, Cláudio Marcondes, uma
maionese, por exemplo, embalada
com esse plástico em que foi utilizada
a nanotecnologia, terá menos moléculas de ar no recipiente (que terá
uma “barreira”) e menor possibilidade de suas propriedades originais
serem modificadas, além de menos
probabilidade de que o cheiro chegue
Projeções futuras
No mundo nanométrico tudo é colorido. A asa de uma borboleta colorida, por
exemplo, nos dá a impressão de que ali
há diversos pigmentos. Mas não há nada: se picarmos essa
asa, teremos um pozinho branco. Ampliando muitas vezes
a asa da borboleta colorida, veremos
que há diversas ranhuras muito pequenas, nanométricas,
dentro dessa estrutura. Ranhuras tão pequenas que, quando
a luz passa por elas, não tem como sair,
e aí ocorre o efeito da cor. Naturalmente,
uma borboleta pode ser colorida por
causa dessas estruturas nanométricas
ao ambiente, mesmo quando o produto passar do prazo de validade.
Apesar das vantagens que uma tecnologia como essa pode trazer à conservação dos alimentos, é evidente
que o consumidor estará deparando
com técnicas desconhecidas que
podem até mesmo burlar aspectos
previstos na legislação de defesa de
seus direitos.
NANOTECNOLOGIA E O CDC
É bom que fique claro que o
Código de Defesa do Consumidor,
obviamente, não previu o uso da nanotecnologia em produtos e serviços,
mas seu artigo 8o, que trata do direito
à informação, pode ser aplicado com
tranqüilidade a essa nova questão.
Melhorias à parte, pouco se sabe
sobre os riscos que esses produtos
podem vir a causar ao ser humano.
Além de o direito à informação ser
desrespeitado por muitos fabri-
que formam as suas asas.
No mundo nanométrico, como as dimensões dos objetos são do tamanho ou
até menores que o comprimento de onda
da luz, há a produção
de efeitos cromáticos:
surgem cores. No mundo prático, do consumo, por exemplo, a
pintura de um carro
pode ser feita com
estruturas nanométricas. Não há necessidade de se colocar
corante, simplesmente se estrutura a textura das ranhuras para cada cor diferente.
“Nesse exemplo, temos uma pequena
demonstração das possibilidades do
mundo nanométrico”, conclui Toma.
cantes. Produtos que utilizam a tecnologia nano nem sempre trazem
essa informação ao consumidor,
que, dessa forma, não pode optar
pela utilização ou não de produtos
com essa tecnologia.
Para Oliveira, “como toda nova
ciência, a nanotecnologia trará benefícios e prejuízos em qualquer uma
das áreas. A preocupação exposta por
alguns, de que processos nanotecnológicos possam fugir ao controle
da humanidade e se transformar em
catástrofes, parece fora de propósito.
No entanto, o uso que será feito das
novas tecnologias dependerá da índole das pessoas que as controlam, e
é daí que se podem esperar efeitos
negativos. Como essa tecnologia
tende a se tornar corriqueira, muitas
aplicações estarão ao alcance de indivíduos comuns, que tanto poderão
fazer bom uso como mau uso desse
conhecimento”.
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