Janaina: muitas flores, uma estória
Me. Fernanda Kimie Tavares Mishima1
Fernanda de Sousa Vieira2
Profa. Dra. Maria Lucimar Fortes Paiva3
Resumo
O presente trabalho traz contribuições acerca do atendimento de uma criança em
consulta terapêutica tomando por base a teoria do desenvolvimento emocional de
Winnicott. Apresenta-se um caso clínico de uma menina de 11 anos, de nome fictício
Janaina, atendida na clínica de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. Os pais buscaram atendimento devido à
queixa de dificuldade de aprendizagem. No decorrer do trabalho, foi possível perceber o
desinteresse da criança pelos estudos, bem como por sua própria vida, devido à presença
de um ambiente que não se mostrou suficientemente bom, mas demasiado intrusivo,
pouco acolhedor, que não permitia o aparecimento da criatividade e do gesto
espontâneo. Com a consulta terapêutica, a paciente pôde vivenciar um espaço de
criatividade, sustentação emocional e demonstrar gesto espontâneo, criando a estória de
sua vida, junto da terapeuta, articulando experiências do mundo interno e externo.
Palavras-chave: consulta terapêutica, holding, desenvolvimento emocional, gesto
espontâneo.
Winnicott (1984/1971) traz a importância da unanimidade de cada consulta
terapêutica, que, por não ser definida como uma técnica, permite que cada terapeuta
possa construir uma experiência única com seu paciente a partir da livre comunicação
entre eles. O terapeuta, inicialmente, é tido como um objeto subjetivo para seu paciente
e, neste sentido, ele oferece esperança da criança ser compreendida e ajudada,
permitindo que faça um uso pessoal desse encontro.
É de suma importância que haja a participação da família neste processo, pois
assim, apesar de chegarem com um sentimento de fracasso em relação ao cuidado com
o filho, ela pode se sentir responsável juntamente com o terapeuta e recuperar a
autoconfiança (Winnicott, 1984/1971; Safra, 1984).
1
Doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto –
Universidade de São Paulo. Psicóloga contratada da Clínica de Psicologia da FFCLR-USP.
2
Aluna de graduação em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto –
Universidade de São Paulo. Estagiária de Ludoterapia de Orientação Psicanalítica.
3
Docente do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP).
1
Safra (1984) aponta para o fato de que a consulta terapêutica funciona como um
trabalho com a angústia emergente em um determinado período de vida, sem pretensão
de reestruturar a personalidade. O setting analítico, que tem por base o holding, favorece
o restabelecimento da capacidade criativa do sujeito, por meio da recuperação da
significação pela transicionalidade (Hisada, 1998).
O brincar winnicottiano é tido como o espaço de encontro para simbolização de
conflitos psíquicos, possibilitado pela vivência na área da transicionalidade (Winnicott,
1975/1971). No momento terapêutico a criança tem a possibilidade de vivenciar a
experiência de holding, por meio do oferecimento de um espaço potencial (área
intermediária na qual se desenvolve o jogo). Abadi (1998/1995) ressalta que nessa
terceira área a capacidade criadora se desenvolve como uma transação entre duas
necessidades: a de sustentar a onipotência do pensamento e a de preencher a brecha
deixada pela desilusão e pela inclusão do princípio da realidade.
A comunicação entre paciente e terapeuta é facilitado pelo uso de estórias,
maneira de ocorrer intervenção na vida psíquica da criança e possibilitar que ela
represente e elabore os seus conflitos, encontrando um sentido para sua experiência.
Caso clínico
Janaina é uma criança de 11 anos, seus pais buscaram atendimento
psicoterapêutico na clínica de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP) com queixa de
dificuldade de aprendizagem. Seu atendimento durou oito meses.
Inicialmente as sessões giravam em torno de questões que envolviam seu
relacionamento com a irmã mais nova, relatando ciúmes e pouca compreensão em seu
ambiente familiar. Relatou dificuldade em estar com mãe, por esta sempre se mostrar
muito cansada, o que fazia com que Janaina não dissesse o que sentia, para não
preocupá-la, e se isolasse. Nos momentos iniciais, ela buscava situações de vida
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semelhantes à da terapeuta, como forma de se identificar com alguém e, posteriormente,
fazer um uso desse objeto subjetivo.
Em alguns momentos a paciente disse estar em uma “escuridão sem luz”, com
dificuldade de mostrar agressividade ou mesmo de reivindicar ser vista. Também se
pôde perceber pouca possibilidade de crescimento emocional, devido à intrusão sofrida
pelos pais, que pouco acolhiam suas necessidades e não a percebiam de maneira real e
verdadeira.
Com a preservação do setting, como forma de oferecer a experiência de um
ambiente indestrutível, acolhedor e seguro, Janaina passou a dar sinais da possibilidade
de ser ela mesma, chegando a relatar seu ódio em relação a algumas pessoas e
compartilhando seu sentimento de solidão, que antes lhe causava grande vergonha (não
era permitido ser frágil). Por meio dessa proteção, Janaina pôde alargar seu espaço
mental. Esse espaço se amplia ao se realizar transformações em seu enfoque existencial,
a mente do analista permite que haja um espaço de acolhimento para o que vier,
possibilitando ao paciente vivenciar uma experiência emocional em relação à própria
vida, dando significado a ela (Trinca, 1988). Dessa forma, o atendimento de Janaina
desenvolveu-se no sentido de criar espaço mental.
Por meio do oferecimento de um ambiente suficientemente bom, Janaina pôde
desenvolver seu processo de maturação (não de maneira completa, mas dentro do que
foi proposto e possível) num ambiente propiciador. A importância desse ambiente foi
manter, ao mesmo tempo, flexibilidade e firmeza compatíveis com as necessidades de
Janaina, de maneira a protegê-la de intrusões, tanto vindas de ações reais dos pais
quanto das suas próprias fantasias.
No início, Janaina não sentia o ambiente da sala como um ambiente confiável,
precisava pedir licença para usá-lo. Dessa maneira, mostrava poucos recursos para dar
conta dos conteúdos de maior angústia, sem um espaço interno para eles. Com o tempo,
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foi possível observar que ela percebia sua dificuldade e pedia ajuda à terapeuta, o que
antes era visto como fraqueza passou a ser visto como possibilidade de crescimento.
Em alguns momentos chegou a ter dúvida dos sentimentos, até de maneira física
(concreta), conforme relatou em uma sessão acerca de uma situação em que ela recebeu
uma bolada em uma brincadeira da escola e sentiu dor. Mas, ao ouvir de sua professora
que aquilo não era nada, ficou em dúvida sobre esse sentimento, questionando a
terapeuta se uma bolada realmente doía. Tal aspecto denota a fragilidade da distinção
dentro-fora da mente; a maneira que tem para defender-se de “boladas” emocionais é
ignorá-las. A fim de compreender melhor o mundo dos sentimentos, em uma das
sessões, Janaina e a terapeuta definem as cores nomeando-as com sentimentos (azul =
tristeza; preto = raiva; verde = alegria), fato que a ajuda a se comunicar. Além da
comunicação em um nível mais concreto, durante todo o atendimento da criança, a
comunicação surgiu de outras formas: ora a terapeuta cantarolava músicas que
irrompiam em sua mente naquele momento, ora Janaina cantava músicas; ou, ainda,
ambas ficavam em silêncio.
No final do atendimento, Janaina apresentou uma estória que pareceu ser
emblemática para o seu desenvolvimento na sala de análise. Desde o começo do
atendimento ela apresentava a figura de uma flor: primeiro tentou fazer uma flor de
dobradura e não conseguiu. Com o decorrer das sessões, passou a desenhar essa flor de
forma cada vez mais colorida e rica de detalhes. Ao final do atendimento, ela falou de
uma história que havia inventado na escola com a personagem dessa flor, a Rosa
Mística:
Tem o rei e os cavaleiros do cogumelo redondo (ri). O rei pediu para os cavaleiros
buscarem para ele a rosa mística. E eles foram pelo reino atrás dela. Os cavaleiros
eram um besouro, uma formiga e uma borboleta. Então eles foram indo pelo caminho
e encontraram uma cobra e tinha um rio, um córrego que eles não conseguiam
passar. Então a borboleta voou e fez com que a cobra se esticasse e com isso os
outros cavaleiros conseguiram passar pelo rio usando a cobra como ponte. Então eles
percorreram o reino até que eles acharam, num lugar bem longe, a rosa mística, só
que aí o besouro não deixou que cortassem a flor, porque ela iria morrer. Porque a
flor é bonita porque ela tá plantada, se arrancar ela morre e aí perde sua beleza.
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Então eles decidiram ir até o rei, quando chegaram lá, levaram uma flor e o rei
perguntou se era a rosa mística. Eles responderam que não. Não era e que eles não
iam cortar a rosa porque senão ela iria morrer e deixar de ser bonita. O rei brigou na
hora, mas depois ele concordou com os cavaleiros e resolveu que a partir daquele dia
em diante não podia mais cortar flores no reino.
A riqueza de detalhes na construção da história permite pensar em uma mudança
sobre o espaço mental de Janaina, pois ela enriqueceu sua maneira de pensar, indo além
de elementos mais primitivos. A preservação dessa personagem nos encontros
terapêuticos sugere ser a rosa, um símbolo muito importante para sua vida mental.
Assim, com a presença da terapeuta ela pôde preservar aspectos seus que não podiam
ser acolhidos. Finalmente, é possível assinalar a existência de um encontro entre
terapeuta e paciente, com a entrega de ambos na construção de uma relação que levou
ao reconhecimento do outro, à possibilidade de brincar e criar, prevalecendo o
sentimento de que é possível se expressar de forma verdadeira, ser uma pessoa única e
ter seu estilo pessoal de viver.
Referências bibliográficas
Abadi, S. (1998). Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. (L. Y. Massuh,
Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. (Trabalho original publicado 1995).
Hisada, S. (1998). A utilização de histórias no processo psicoterápico: Uma proposta
winnicottiana. Rio de Janeiro: Revinter.
Safra, G. (1984). Um método de consulta terapêutica através do uso de estórias
infantis. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1984.
Trinca, W. (1988). A arte interior do psicanalista. São Paulo: EPU.
Winnicott, D. W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro:
Imago. (Trabalho original publicado em 1971).
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1971).
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