Telenovela, agendamento e temáticas sociais:
uma relação sistêmica e progressiva1
Claiton César Czizewski2
Resumo
Este texto discute a inserção e a problematização de temáticas sociais pela telenovela, a partir do
conceito de agenda-setting. É evidenciado o caráter dual e sistêmico desse agendamento, no qual
a telenovela opera paralelamente a outros níveis de agenda, ao mesmo tempo, absorvendo e
refletindo elementos da sociedade na qual está inscrita. Assim, percebe-se que as escolhas
temáticas dos enredos ficcionais estão vinculadas às transformações históricas e sociais ocorridas
no plano da realidade. Da mesma forma, a dimensão política que podem assumir essas
tematizações resulta de um amadurecimento e da consolidação da telenovela enquanto gênero,
bem como de seu caráter dialógico para com espaço público e da evolução no que diz respeito às
competências de leitura por parte da audiência.
Palavras-chave: Telenovela. Agendamento. Temáticas sociais.
Introdução
A recorrência com que a telenovela vem abordando questões de relevância social chama a
atenção, ao passo que a real capacidade de intervenção demonstrada por esse gênero indica que é
preciso estudá-lo para além de suas estruturas sintáticas e estéticas. Chegou a hora de levar a
telenovela a sério; seja por sua condição de mais representativo produto da cultura de massa
brasileira e por seu reflexo metonímico da identidade nacional, construídos desde um passado
não muito distante; seja pela capacidade de reflexão, mobilização e transformação sociais que ela
demonstra na atualidade; ou ainda pelos rumos que possa tomar ou aos quais venha a conduzir no
futuro.
Para tanto, o agenda-setting é um conceito-chave. Sem dúvida, ele é o ponto de partida
para essa empreitada e ajuda a elucidar muitos questionamentos sobre os quais essa se articula.
Contudo, tal conceito deve ser entendido como um dos fatores que configuram a situação1
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná, como requisito
parcial à aprovação na disciplina de Teoria Social e da Comunicação.
2
Mestrando em Comunicação em Sociedade da Universidade Federal do Paraná, na linha Comunicação Educação e Formações
Socioculturais.
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problema que se pretende estudar. Em outras palavras, é a partir do agendamento temático
efetuado pela mídia que se intenciona refazer a trajetória histórica – contextualizada e refletida –
da telenovela no Brasil, para compreender o significado, o papel e as potencialidades que ela
apresenta hoje. Todos esses, atributos que se mostram mais importantes e instigantes quando se
trata da abordagem de questões de cunho social.
Muito além da mídia: tipologias, etapas e relações no processo de
construção de fenômenos sociais
Enquanto, no estrito âmbito dos estudos em comunicação, os teóricos se ocupam do
debate sobre o status do agenda-setting – se hipotético ou teórico -, a ampla dinâmica social
encarrega-se de refletir a pertinência de tal conceito. Cunhado por Maxwell McCombs e Donald
Shaw, que se preocupavam com o efeito cognitivo das notícias sobre os indivíduos, o termo
postula que “o conjunto de dispositivos da mídia determina a pauta (agenda) para a opinião
pública estabelecer relações de relevância sobre determinado conjunto de temas, bem como
preterir, desimportar, ignorar e ofuscar outros assuntos” (SILVA JÚNIOR; PROCÓPIO; MELO,
2008).
A partir dessa constatação, no fim dos anos de 1960, e dos estudos que a sucederam, os
autores concentraram esforços para afastar qualquer indicativo de midiacentrismo que o agendasetting pudesse manifestar. Para tanto, a formulação dos conceitos de relevância e certeza foi
crucial. Assim, de acordo com McCombs e Shaw, é natural do indivíduo uma necessidade de
orientação que vai manifestar-se, psicologicamente, como uma demanda por informação. No
entanto, tal demanda varia de pessoa para pessoa. Afinal, é indissociável do grau de importância
atribuído, por cada sujeito, a determinado tema (relevância) e do quanto ele já sabe e, por
conseqüência, do quanto ainda precisa conhecer (certeza) a respeito do assunto.
Os autores procedem ainda outro esclarecimento. Ressaltam que o agenda-setting não
opera somente em nível temático, deliberando sobre ao que se deve voltar a atenção, mas também
no que se refere aos atributos; ou seja, ao tratamento dado às temáticas repercutidas pelos meios
de comunicação de massa. Apesar disso, uma dimensão do conceito parece permanecer um tanto
negligenciada desde sua criação: a perspectiva sistêmica que o coloca em seu devido lugar de
instância mediadora da relação entre as esferas pública e privada.
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Talvez, o entusiasmo propiciado pela constatação de sua aplicabilidade na dinâmica social
ou, então, sua tradução um tanto genérica de agendamento, tenha levado o agenda-setting a ser,
equivocadamente, interpretado como o único e inquestionável promotor de fenômenos sociais a
partir de produtos midiáticos. Seja como for, é preciso salientar que o conjunto dos meios de
comunicação de massa representa apenas uma das várias agendas vigentes na sociedade.
Por agenda, aliás, deve-se entender um processo pelo qual as demandas de diversos
grupos sociais são transformadas em assuntos que disputam a atenção das autoridades públicas.
Dele emergem vários tipos de agendandamento: além da já citada agenda midiática, destacam-se
a intrapessoal – correspondente às preocupações quanto a questões públicas interiorizadas pelo
indivíduo; a interpessoal – referente aos assuntos mencionados e discutidos na interação entre
sujeitos; a pública – que engloba o conjunto de temas considerados relevantes pela sociedade
como um todo; a institucional – concernente às prioridades de cada instituição – e a política, que
contempla itens concretos que são assunto de trabalho e consideração por parte de um corpo
constitucional de tomadas de decisão, tais como a Câmara e o Senado (BARROS, 2001).
É, portanto, nesse contexto que fica mais claro o papel intermediário da agenda midiática,
a quem, ressalta-se, cabe mediar a relação entre público e privado guiando-se pela noção de
interesse coletivo e com vistas ao pleno desenvolvimento da vida em sociedade. Caso venha a
engendrar algum tipo de fenômeno que exceda a pauta temática, esse tipo de agenda o faz em
consonância com as demais e a partir de um conjunto de condições sociais específicas.
Assim, é possível perceber uma construção sistêmica que se dá da seguinte forma:
1) primeiramente, é preciso que um determinado tema seja apercebido como relevante
pelo individuo;
2) posteriormente, este – seja para complementar ou compartilhar seu conhecimento
acerca do assunto -, deve fazê-lo matéria de interação com seu grupo social próximo;
3) dependendo da amplitude social desse tema e da força do grupo, ocorre uma
articulação que transforma a questão inicial em uma causa específica;
4) faz-se necessário, então, um movimento de expansão, para identificar e arregimentar
grupos de interesse – ainda que variável – em tal causa;
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5) é nessa etapa que os meios de comunicação passam a desempenhar um papel
preponderante. Eles servem de “caixa de ressonância” do discurso coletivo,
sinalizando que a questão extrapolou os limites da esfera privada;
6) por conta disso, também as instituições podem se mobilizar em favor ou contrárias à
causa, formando opinião a respeito dela;
7) numa progressão natural, a questão é inserida na agenda pública e;
8) dependendo de seu teor e implicações, pode vir a alcançar o âmbito político,
cristalizando-se na forma da lei ou de outra medida governamental (MELO, 2007).
Percebe-se, pois, que longe de ser um processo potencialmente homeostático, a inclusão
de um tema nas diferentes agendas está sujeito a fatores emotivos, cognitivos e ideológicos;
contingências profissionais, códigos de conduta e procedimentos e convenções organizacionais;
além de se inscrever no jogo de tensões políticas, mercadológicas e de poder característico da
sociedade na qual se processa.
Isso posto, fica claro que os fenômenos sociais mediados pela comunicação de massa
resultam de uma relação gradativa mas não vertical tal como uma corda da qual cada segmento
corresponde a um nível de agenda. Do contrário, origina-se da trama de relações e da correlação
de forças que compõem o tecido social.
Telenovela: um gênero em contínuo “sendo”
Poucas empreitadas revelam-se tão complexas como a tentativa de definição da telenovela
enquanto gênero. A aparente facilidade de compreensão de um vocábulo por sua estrutura
etimológica leva a se entender por “telenovela” a versão televisiva do gênero literário novela. A
conjectura não é de todo despropositada. Afinal, assim como no livro, o que se apresenta na
televisão é um emaranhado de histórias fictícias que envolvem inúmeras personagens. Além
disso, é possível estabelecer uma segunda conexão entre a telenovela e a literatura, uma vez que o
formato narrativo seriado da primeira guarda estreitas relações de semelhança com o folhetim.
Entretanto, por mais pertinente que possa ser a exposição acima, ela não dá conta de
explicar o gênero em questão. A respeito dele, Fernandes (1997, p. 20) avalia que “na verdade,
trata-se de um fenômeno complexo, ligado a nossa cultura com todos os jargões de latinidade e
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subdesenvolvimento”. No caso específico da telenovela3 brasileira, o autor afirma que ela “[...]
fixou-se como um hábito na vida de milhares de brasileiros, contando uma infinidade de tramas
que se intercalaram, revelando amores incompreendidos, outros inconfessáveis, mistérios,
segredos, desilusões, alegrias, aventuras, sagas” (FERNANDES, 1997, p. 19).
A partir da contribuição do autor, é possível compreender mais a fundo alguns elementos
do fazer telenovelístico. A menção à latinidade e ao subdesenvolvimento permite depreender a
origem americana do gênero. Tal constatação, por sua vez, pode explicar a predominância do
estilo melodramático da narrativa, de um lado, e a hegemonia do Brasil e do México no que se
refere à produção e a exportação desse tipo de produto, do outro. Esse último fator, somado à
caracterização da telenovela como hábito de consumo de uma maioria, denota a natureza última
daquela como produto cultural de massa e, portanto, eminentemente comercial.
Aqui, reside uma das características mais distintivas e explicativas do gênero telenovela.
Por ser um produto comercial, é o que se chama de “obra aberta”; ou seja, nela, os processos de
produção e consumo se dão em paralelo.
O formato buscado pelas telenovelas brasileiras foi uma contingência do esquema
comercial que assumiram desde o início. Em se tratando de produções caras, que
exigiam elevados dispêndios financeiros das emissoras na construção de cenários,
confecção de vestuário, etc., tornava-se indispensável esticá-las enquanto durasse o
interesse da audiência, otimizando, assim, os recursos mobilizados na infra-estrutura.
(MELO, 1988, p. 26).
Assim, a condução da história fictícia está sujeita à opinião do público telespectador, o
qual, de acordo com suas demandas, pode fazer com que o curso narrativo seja alterado; e
personagens, suprimidosi, por exemplo. Além disso, autores podem ser trocados; e a história ter
seu fim precipitado ou protelado. Todas essas resoluções são tomadas a partir – e por conta – do
feedback da audiência. Entre os meios para medi-lo, vem crescendo a recorrência aos grupos de
discussão com telespectadores.
Desde a criação da primeira telenovela do Brasil (Sua vida me pertence, 1951) até a
estreia da paradigmática Beto Rockfeller (1968-9) - período que inclui a primeira telenovela
diária do país, 2-5499 Ocupado (1963) -, predominam as obras ao estilo dramalhão,
completamente desvinculadas da realidade. São histórias epopeicas sobre guerreiros e nobres, um
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mundo exótico e distante, nas quais sacrifica-se a verossimilhança e se permite todo tipo de
licença poética (é o caso de todo o acervo da autora Glória Magadan).
A partir de Beto Rockfeller, inaugura-se uma nova era na história da teledramaturgia
brasileira. Dali em diante, as tramas passam a ser mais críveis e se desenvolvem ou se referem à
realidade contemporânea de seus telespectadores, até que se chegue ao modelo atual, no qual
técnicas próprias do telejornalismo e do documentário apagam, gradativamente, os limites entre o
real e o ficcional (TELEDRAMATURGIA, 2010).
Curiosamente, o primeiro registro de tematização social no enredo telenovelístico é
bastante semelhante ao primeiro uso explícito e intencional deste recurso. Apresentados em
diferentes títulos, em épocas distintas e em contextos específicos, ambos tratavam da mesma
(polêmica) questão: o direito de mães não-biológicas à guarda de menores. No primeiro caso
(Véu de noiva, 1969), uma mulher volta para buscar o filho legítimo que deixou aos cuidados da
irmã no passado. A partir daí, trava-se uma disputa, entre mãe e tia, pela tutela da criança. À
época, foi simulado um júri popular, exibido no último capítulo, que deu ganho de causa à tia.
Já no segundo (Barriga de Aluguel, 1990), uma jovem mãe solteira decide “vender” a
gestação a um casal infértil. Mas, assim que o bebê nasce, ela muda de ideia e recorre à justiça
para resolver o impasse. Fora dos bastidores, a autora da novela (Glória Perez) e as atrizes
intérpretes das mães em disputa (Claudia Abreu e Cássia Kiss) viajaram a Brasília, onde pediram
ao Congresso que legislasse sobre o tema. No plano da ficção, a lei determinou uma espécie de
guarda compartilhada, transmitida, implicitamente, na cena final da trama, na qual a criança
passeia, de mãos-dadas, com suas duas mães.
Desde Barriga de Aluguel, as telenovelas apoiadas em temáticas sociais vêm causando
acalorados debates acerca dos mais diversos assuntos. Tal fenômeno deve ser debitado à
essa capacidade sui generis de sintetizar o público e o privado (...) inscrita no texto das
telenovelas que combinam convenções formais do documentário e do melodrama
televisivo. É isso que tipifica a telenovela brasileira e constitui o paradoxo de se
identificar o Brasil mais na narrativa ficcional que no telejornal (LOPES, 2003, p. 25).
É, pois, assim que a telenovela faz uso de seu inquestionável potencial de estímulo do
imaginário social para se converter em um instrumento de debate, ao mesmo tempo, sobre o que
é público e ao que é privado. Ou, dito de outra forma, publicizando a discussão de determinados
temas a partir de um agendamento que toca a cada um em particular. Seja como for, é graças à
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especial aptidão no trato da dicotomia entre o público e o privado que a telenovela vai (re)
construindo, (re) produzindo ou re(a)presentando os mais diversos traços da realidade social
(MOTTER, 2003).
Telenovela e agendamento: uma retrospectiva histórica
Graças a um levantamento, feito por Jakubaszko (2007), das temáticas sociais em
telenovelas e aos conceitos formulados por Rahe e Gomes M (2007) para identificar o que as
autoras denominam formas de “aproveitamento” de dados da realidade no discurso ficcional, é
possível chegar a uma compreensão entrecruzada das transformações do agendamento a partir de
histórias fictícias, ao longo dos tempos.
Entre as décadas de 1950 e 1960, a telenovela brasileira, ainda sem um formato próprio,
centra-se inteiramente no melodrama. Por isso, o tratamento de temáticas sociais praticamente
inexiste. As histórias são permeadas por sentimentalismo e moralidade e é, justamente, por
apelarem ao envolvimento emocional que as obras dessa época limitam-se à agenda intrapessoal.
A incipiência do gênero, oriunda das dificuldades materiais de fazê-lo um produto de massa, não
permite inferir sobre o potencial interpessoal de agenda.
Na década de 1970ii, o contexto de ditadura militar e os projetos de desenvolvimento e
nacionalismo viram na televisão um instrumento potencial para forjar uma ideia de unidade
nacional. Na contramão dessa proposta, as telenovelas assumiram um tom de engajamento,
denúncia e crítica social. Inicialmente, optaram por desmistificar os grandes arautos da cultura
brasileira. O que se viu foram abordagens realistas das questões do índio (Aritana, 1978-9); as
dificuldades e o preconceito enfrentados pelo sertanejo (Jerônimo, Herói do Sertão); o universo
dos bastidores do futebol (Irmãos Coragem, 1970-71) e o submundo do jogo do bicho (Bandeira
2, 1971-2).
Outros temas bastante recorrentes nessa época refletiam os principais problemas sociais e
políticos do país. Destacam-se: a reforma agrária (Verão Vermelho, 1970, e Meu Pedacinho de
Chãoiii, 1971-2); o coronelismo (O Bem Amado, 1973, e Gabriela, 1975) e o voto de cabresto
(Cabocla, 1979); a migração do campo para a cidade (Ovelha Negra, 1975, e Bicho do Mato,
1972); os impactos ambientais do progresso (Fogo sobre Terra, 1974-5, e Sinal de Alerta, 1979);
os problemas vividos nas metrópoles (Espigão, 1974; O Grito, 1975-6; Duas Vidas, 1976-7, e
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Salário Mínimo, 1978-9); além da hipocrisia da sociedade da época (Beto Rockfeller, 1968-9;
Escalada , 1975; Pecado Capital, 1975-6 e O Astro, 1977-8). Dois títulos que prometiam fortes
críticas enfrentaram problemas com a censura e tiveram seus roteiros originais esvaziados: a
primeira pretendia denunciar o abuso de poder e violência dos “Anos de Chumbo” (Dinheiro
Vivo, 1979-80); a segunda esboçava um ataque às multinacionais, que chegavam ao país (Os
Gigantes, 1979-80).
Tanta ousadia parece ter sido neutralizada ao atravessar a tela. Afinal, alheio às
conjecturas ideológicas, o público fez da telenovela um grande meio de lazer popular.
Comentando o ocorrido no capítulo anterior ou especulando, por exemplo, sobre a identidade do
assassino de Salomão Ayala (personagem de O Astro, 1977-8), as rodas de conversa reproduziam
a narração dos fatos telenovelísticos, fazendo com que o gênero se se inscreve, definitivamente,
na agenda interpessoal.
Nos anos de 1980, a telenovela já era um produto cultural de massa consagrado. Os sons e
imagens da ficção pareciam saltar do televisor em direção às ruas de todo o país. Os falares e os
vestires dos personagens eram reproduzidos nos bordões, roupas e cortes de cabelo de uma
grande sociedade anônima. No que diz respeito às escolhas temáticas de cada obra, observou-se
uma considerável retração nas abordagens de cunho social. As telenovelas da época tratavam de
questões universais, aquelas que poderiam se impor a todo indivíduo e que diziam respeito ao seu
interior, à sua intimidade. Servem de exemplo: o adultério e a separação conjugal (Ciranda de
Pedra, 1981); e o incesto e o aborto (Mandala, 1987).
O cenário indica que o grande “tema” da década foi a exploração ao máximo do potencial
comercial revelado pelo gênero telenovelístico. Foi nesse contexto que se popularizam e
venderam, entre outros, as calças jeans Starup e os discos de vinil contendo as músicas tocadas
na discoteca onde se centraliza a trama de Dancin´Days (1979-80). Permaneceu forte a tendência
a falar sobre a telenovela, cujo sucesso sinalizava um movimento de entrada na agenda pública.
No entanto, pode-se dizer que, nesse período, o agendamento se fez mais evidente sobre as
instituições. Afinal, os folhetins televisivos passaram a chamar a atenção do mercado, por
exemplo, que se mobilizava para atender à demanda dos mais diversos produtos presentes na
ficção e para identificar novos nichos de consumo.
Um fato interessante ocorreu com a agenda midiática. A imprensa não podia ficar
indiferente ao sucesso das telenovelas brasileiras. Portanto, mais que falar sobre elas, lançaram
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inúmeras publicações voltadas a esse segmento. Era o início de uma empreitada que culminou na,
hoje onipresente e bem sucedida, “editoria de celebridades”. No plano da recepção, o
agendamento efetuou-se na comparação, pois, das mais diversas formas, o telespectador tentava
aproximar-se ou se assemelhar ao que assistia no mundo da ficção.
Conforme já mencionado, somente nos anos de 1990 o chamado merchandising social
ganhou forma e presença. Como resultado, as telenovelas da década propiciaram uma grande
gama de temáticas sociais. A partir da também já citada Barriga de Aluguel (1990), as tramas
suscitaram debates em torno da fertilização in vitro (Araponga, 1990-91); do transplante de
órgãos (De Corpo e Alma, 1992-3); da corrupção (Deus nos acuda, 1992-3), do hermafroditismo
(Renascer, 1993); da violência urbana e do tráfico de drogas (Guerra sem Fim, 1993-4); dos semteto e da favelização (Pátria Minha, 1994-5); da homossexualidade (A Próxima Vítima, 1995); da
reforma agrária e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (O Rei do Gado, 1996-7);
do abandono de idosos (Quem é você, 1996); do racismo e da bissexualidade (Por Amor, 1997-8).
Nesse momento, o diálogo entre ficção e realidade manifestava um claro objetivo de
reflexão. Dessa vez, a audiência indicava ter entendido a proposta. Durante o período em que
esteve no ar a telenovela De Corpo e Alma (1992-3), houve um crescimento no número de
doações de órgãos. No caso específico do coração (objeto de doação na trama), o aumento foi de
dois para 20. Caso semelhante aconteceu em História de Amor (1995-6), que tematizou o câncer
de mama. Por conta disso, o autor Manoel Carlos recebeu uma carta do Instituto Nacional do
Câncer, na qual era divulgado um significativo aumento da demanda por exames preventivos,
conforme recomendavam os personagens da história.
No entanto, a campanha de maior repercussão foi a de busca por crianças desaparecidas,
idealizada pela autora Glória Perez, na novela Explode Coração (1995-6). Na trama, uma
personagem tinha um filho desaparecido e se juntava às Mães da Candelária, movimento de
mulheres do Estado do Rio de Janeiro que procuravam por filhos perdidos. Depoimentos dessas
mulheres e fotos das crianças procuradas passaram a ser inseridos, respectivamente, ao longo e
no encerramento de cada capítulo. Durante os seis meses em que permaneceu no ar, a telenovela
contribuiu para a solução de 65 desses casos (MEMÓRIA GLOBO; TELEDRAMATURGIA,
2010).
A essa altura já era evidente o poder de mobilização social apresentado pela telenovela.
Os fatos mostravam que, mesmo sem fugir à sua matriz originária de entretenimento, as histórias
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fictícias podiam abrir espaço para a discussão de questões de relevância social, com forte
convicção de êxito. Foi assim que os folhetins televisivos extrapolaram os limites da ficção e
avançaram sobre a agenda pública, ora repercutindo assuntos já problematizados, ora propondo
que se refletisse sobre causas pouco exploradas ou ainda inéditas.
Com a chegada dos anos de 2000, o trabalho do merchandising social em telenovelas
continuou, intensificou-se e sofreu leves modificações, que podem ser expressa por uma simples
substituição de verbos. Se, antes, a ficção podia promover debates e reflexões sobre determinados
temas sociais, agora, devia fazê-lo. Isso porque tal recurso entrou, definitivamente, para a sintaxe
do gênero, impondo-se como um elemento narrativo fundamental e provocando mudanças – já
expostas - no âmbito formal.
Em dez anos, quem acompanhava aos folhetins pela televisão deparava-se com discussões
sobre: a leucemia e doação de medula ósseaiv, a impotência sexual e a prostituição de luxo (Laços
de Família, 2000-1); a clonagem humana e suas implicações éticas e a dependência químicav (O
Clone, 2001-2); a adoção e os maus-tratos na infância, o analfabetismo e o direito à herança em
relacionamentos estáveis homossexuais (Sabor da Paixão, 2002-3); o ciúme patológicovi, a
agressão contra mulheres, o alcoolismo, o lesbianismo, a violência urbana e o descaso com os
idosos (Mulheres Apaixonadas, 2003); a imigração ilegal de brasileiros para os Estados Unidos, a
cleptomania e a deficiência visual (América, 2005); a síndrome de down, a aids e a bulimia
(Páginas da Vida, 2006-7vii); o tráfico de drogas (Vidas Opostas, 2006-7); a favelização e o
preconceito quanto à etnia e à posição social (Duas Caras, 2007-8); a esquizofrenia, a psicopatia
e a violência de alunos contra professores (Caminho das Índias, 2009); a pedofilia na internet
(Chamas da Vida, 2008-9); a deficiência motoraviii e a anorexia alcoólica (Viver a Vida, 200910)ix; e o crime organizado na América do Sul e a reintegração de ex-detentos ao mercado de
trabalho (Poder Paralelo, 2009-10).
Nesse vasto universo de possibilidades, observam-se três tendências distintas, mas
igualmente profícuas. A primeira delas diz respeito ao potencial mobilizador do merchandising
social apresentado nas telenovelas. Ao tratar da questão do descaso com a terceira idade, em
Mulheres Apaixonadas, no ano de 2003, o autor Manoel Carlos ajudou na consolidação da
problemática, que redundou na criação do Estatuto do Idoso pelo Congresso Nacional. Na mesma
trama, iniciou a discussão sobre o desarmamento, que viria a ser matéria de um referendo
ocorrido no Brasil cerca de dois anos mais tarde.
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A segunda refere-se à capacidade de promoção de transformação do merchandising social
via ficção. Em 2005, a telenovela América, de Glória Perez, apresentou a história de Jatobá
(Marcos Frota), um deficiente visual que fazia uso de um cão-guia, Quartz. Devido à boa
repercussão do caso, um deputado estadual da Bahia conseguiu a aprovação da lei que garantia
acesso irrestrito aos cães-guia. A matéria já tramitava há mais de um ano no Estado. Na mesma
época, foi criada, em Salvador, uma escola para treinamento desse tipo de animal. A iniciativa
fora inspirada na instituição já existente em Brasília, onde o “intérprete” de Quartz era preparado
para a novela.
A terceira característica do diálogo entre ficção e realidade na telenovela é a crença na sua
capacidade de agregar conhecimento. Graças à boa repercussão dessa estratégia, a então Primeira
Dama do Brasil, Ruth Cardoso, pediu ao autor Manoel Carlos que promovesse uma Campanha
pela Solidariedade e Cidadania, em Laços de Família (2000-1). Analogamente, por sugestão de
representantes do Conselho Nacional de Justiça, o autor Lauro César Muniz criou um
personagem para tratar da reinserção de ex-apenados no mercado de trabalho. A criação ocorreu
quando Poder Paralelo (2009-10) já estava sendo veiculada.
Esses exemplos mostram como é possível à telenovela inserir-se na agenda política,
exercendo, de fato, seu papel de mediadora entre o público e o privado e resgatando a dimensão
dialógica da comunicação. Mas, apesar de expressivas conquistas, ainda é preciso avançar. Pois
se o exposto até aqui ratifica a capacidade de agendamento temático apresentada pelo gênero, o
mesmo não se verifica no que tange aos atributos.
Mesmo às vésperas de completar 60 anos, a telenovela continua a difundir estereótipos de
certos grupos sociais, como os adolescentes, os jovens e os que apresentam uma identidade
sexual não heterogênea. Prova dessa dimensão conflituosa do merchandising social
telenovelístico deu-se em 2007, a partir da trama de Duas Caras. Na ocasião, o autor Aguinaldo
Silva foi alvo de críticas pelo modo como abordou a dislexia, doença de Clarissa (Bárbara
Borges). Profissionais da saúde e entidades de classe declararam que a personagem propagava
uma ideia estereotipada e errônea dessa patologia. Mas, ainda assim, elogiaram a iniciativa
(TELEDRAMATURGIA, 2010). A superação dessa limitação seja, talvez, um dos desafios da
década que acaba de despontar.
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Considerações finais
Com base no que fora apresentado nesse texto, é possível perceber que o agendamento
temático promovido pela telenovela é o resultado natural da consolidação desse gênero como
fenômeno de massa. Já o agendamento de atributos figura como conseqüência imediatamente
posterior à importância social conquistada por aquele ao longo dos tempos e como um dos
desafios à sua história atual e futura.
A inserção de temáticas sociais no enredo das telenovelas, de forma semelhante,
representa a vocação que esse produto assumiu assim que encontrou as bases para um modelo
estético-formal essencialmente brasileiro: o de falar sobre o cotidiano e, também, de abordar
questões presentes na vida – íntima, familiar ou social – dos cidadãos comuns, num claro e
progressivo esforço de aproximação com a realidade.
Se hoje é possível à telenovela fazer referência e debater questões polêmicas ou de grande
importância para a sociedade, essa condição deve ser tributada ao seu modelo, em geral, mas
especialmente ao seu caráter dialógico. Por ser uma “obra aberta”, o gênero relaciona-se direta e
constantemente com a sociedade na qual se desenrola. Por isso, faz dela tanto uma fonte de
inspiração temática quanto sobre ela incide com suas criações, modificando a realidade.
É nesse estágio transformador – nunca tão visível quanto atualmente – que reside a
segunda característica importante do agendamento via telenovela: a sua natureza sistêmica.
Mesmo que por meio de um discurso fictício, os folhetins televisivos falam às mais diferentes
instâncias da estrutura social, e sua fala reverbera no apelo popular. E assim, gradativamente, a
ficção toca a mentalidade coletiva, impondo-se também às instituições, até chegar a esfera
política, onde se converte em ferramenta de mudanças as quais se assiste hoje.
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TELEDRAMATURGIA <www.teledramaturgia.com.br>. Acesso em 13.jul.2010, às 14h03.
Notas
i
Dois episódios relativamente recentes ilustram bem essa situação. Ao escrever a nova versão da telenovela Anjo Mau, em 1997,
a autora Maria Adelaide Amaral mudou o desfecho da trama original para atender a um pedido dos telespectadores. Estes não
queriam que a protagonista, Nice, morresse no fim da história, conforme previsto no roteiro. Assim, a personagem, interpretada
por Glória Pires, sobreviveu ao parto do filho e viveu “feliz para sempre” ao lado da criança e de seu pai, o mocinho Rodrigo,
vivido por Kadu Moliterno. No ano seguinte, 1998, foi a vez do autor Sílvio de Abreu curvar-se à vontade do público. Mas, ao
contrário do caso anterior, a exigência nasceu não por simpatia a alguns personagens, e sim por rejeição a eles. Tratava-se do
casal de lésbicas Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Sílvia Pfeiffer) e do dependente químico Guilherme (Marcelo Antony). Por
desagradarem os telespectadores, eles formam retirados da telenovela Torre de Babel, morrendo na explosão do shopping onde
grande parte da história era ambientada (TELEDRAMATURGIA, 2010).
ii
Aqui, inclui-se Beto Rockfeller, que apesar de exibida entre 1968 e 1969, marca o nascimento de um estilo propriamente
brasileiro de telenovela: o que se desenrola, faz referência e critica o cotidiano de quem a ela assiste. (N.A)
iii
Considerada “a primeira telenovela educativa da televisão brasileira” (FERNANDES, 1997, p.151).
iv
Após abordar a questão da doação de medula óssea na telenovela Laços de Família (2001-1), o autor Manoel Carlos contribuiu
para que o número de cadastro de doadores do Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea crescesse 4400%
em relação ao período anterior à exposição do tema na televisão. (TELEDRAMATURGIA, 2010).
v
Com relatos reais de dependentes, ex-dependentes – dentre eles, pessoas públicas – e familiares (TELEDRAMATURGIA,
2010).
vi
Por meio da personagem Heloísa (Giulia Gamm) veio a público o trabalho do MADA (Associação das Mulheres que Amam
Demais Anônimas), um grupo de apoio a mulheres que sofrem de ciúme excessivo (TELEDRAMATURGIA, 2010)..
vii
Ao fim de cada capítulo, eram veiculados depoimentos verídicos de pessoas comuns sobre alguma “página” importante de suas
vidas (TELEDRAMATURGIA, 2010)..
viii
As adaptações usadas pela personagem tetraplégica Luciana, que a auxiliavam nas tarefas cotidianas, como escrever ou pentear
os cabelos, figuraram entre os principais tópicos referidos pela Central de Atendimento ao Telespectador , da Rede Globo, durante
Ano VI, n. 10 – Outubro/2010
o período de exibição da novela. Para auxiliar a comunicação com o público interessado, a equipe de produção da trama criou o
blog www.blogsonhosdeluciana.com.br, redigido e atualizado por produtores, roteiristas e consultores portadores de deficiência
(TELEDRAMATURGIA, 2010).
ix
Essa novela trazia vídeos contendo histórias de superação de famosos ou anônimos no encerramento dos capítulos
(TELEDRAMATURGIA, 2010).
Ano VI, n. 10 – Outubro/2010
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Telenovela, Agendamento e Temáticas Sociais: uma relação