UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MILA DE ALMEIDA PACHECO RABELLO DESIGN DE MODA E ARTE CONCEITUAL: PRINCÍPIOS DE CRIAÇÃO E DIÁLOGOS POSSÍVEIS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO MESTRADO EM DESIGN PROGRAMA DE PÓS-­‐GRADUAÇÃO STRICTO SENSU São Paulo, Agosto/ 2011 2 UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MILA DE ALMEIDA PACHECO RABELLO DESIGN DE MODA E ARTE CONCEITUAL: PRINCÍPIOS DE CRIAÇÃO E DIÁLOGOS POSSÍVEIS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-­‐
Graduação Stricto Sensu em Design – Mestrado, da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Design. Orientadora: Profa. Dra. Cristiane Ferreira Mesquita. São Paulo, Agosto/ 2011 3 UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MILA DE ALMEIDA PACHECO RABELLO DESIGN DE MODA E ARTE CONCEITUAL: PRINCÍPIOS DE CRIAÇÃO E DIÁLOGOS POSSÍVEIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-­‐
Graduação Stricto Sensu em Design – Mestrado, da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Design. Profa. Dra. Cristiane Ferreira Mesquita Orientadora Universidade Anhembi Morumbi Profa. Dra. Claudia Teixeira Marinho Examinadora Externa Universidade Federal de Santa Catarina Profa. Dra. Gisela Belluzzo de Campos Examinadora Interna Universidade Anhembi Morumbi São Paulo, Agosto/ 2011 4 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor e do orientador. MILA DE ALMEIDA PACHECO RABELLO Designer de moda, graduada em moda pela Universidade Veiga de Almeida – RJ, 2008. Como professora, ministra disciplina em criação de acessório e embalagens para o curso de Gestão de Moda pela Universidade Veiga de Almeida, campus Cabo Frio –RJ. Atualmente trabalha com consultoria em desenvolvimento e direcionamento criativo de coleção para empresas do segmento de moda e acessório. R114d Rabello, Mila de Almeida Pacheco Design de moda e arte conceitual: princípios de criação e diálogos possíveis / Mila de Almeida Pacheco Rabello. – 2011. 152 f.: il.; 30 cm. Orientador: Profa. Dra. Cristiane Ferreira Mesquita. Dissertação (Mestrado em Design) -­‐ Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2011. Bibliografia: f.146-­‐152 1.Design de moda. 2. Arte conceitual. 3. criação. Titulo. CDD 741.6 5 À Jansei, Elídia e Nara. 6 AGRADECIMENTOS Aos meus pais por possibilitarem e viabilizarem estes anos de conhecimento. Obrigada pelo amparo, carinho, amor incondicional, e incentivos. À minha querida e amada irmã pelo carinho, suporte emocional e constante incentivo. À Aglaíze pelo companheirismo, carinho e amor, pelo incentivo, pelos conselhos e pela paciência. Meu agradecimento especial à Cristiane Mesquita, por ter sido minha orientadora, iluminando meu horizonte com conhecimentos, com sensibilidade e competência, me guiando com poesia pelos caminhos que desejava trilhar. Agradeço a paciência, a dedicação e a sua generosidade neste pequeno e intenso percurso. Ao seu afeto e compreensão nos momentos difíceis sou grata. Obrigada pela disponibilidade e oportunidade de realizar meu estágio em docência em suas aulas. Saiba que seus ZZ’s são imensas fontes de inspiração e deleite mental. À Rosane Preciosa e à Gisela Belluzzo por terem proporcionado novas reflexões e o aprimoramento desde trabalho no processo de Qualificação da Dissertação. Às professoras Kathia Castilho, Mônica Moura, Ana Mae Barbosa e Rachel Zuanon pelos ensinamentos transmitidos. Aos meus colegas de mestrado que de alguma forma me incentivaram e me ajudaram. À Antonia Costa pela paciência e disponibilidade. À coordenação. 7 E, a propósito, eis aqui minha teoria sobre pontuação. Em vez de um ponto final no fim de cada sentença, deveria haver um minúsculo relógio que lhe diz quanto tempo levou para você escrever aquela sentença. LAURIE ANDERSON 8 RESUMO Este estudo aborda a criação do designer de moda, Martin Margiela, em diálogo com os princípios de criação da arte conceitual. A partir da análise da produção do artista Marcel Duchamp e do designer de moda Martin Margiela, buscamos identificar princípios de criação em ambos os trabalhos que revelam questionamentos e problematizações, tanto no aspecto da linguagem, quanto no que diz respeito aos materiais e aos suportes. Procuramos identificar e ressaltar a criação em design de moda quando esta se revela como uma pratica que investiga conceitos e linguagens. Nesse sentido, enfocamos o trabalho de Martin Margiela, criador que problematiza os padrões de funcionamento do próprio campo do design de moda, assim como do contexto contemporâneo. PALAVRAS-­‐CHAVE: Design de moda, arte conceitual, criação ABSTRACT This study approaches the creation of the fashion designer, Martin Margiela, in dialogue with the principles of creation of the concept art. From the analysis of the production of the artist Marcel Duchamp and the fashion designer Martin Margiela, we seek to identify principles of creation in both works which reveals and contextualizes questions, both in language, and in respect of materials and media. We seek to identify and emphasize the creation in fashion design when it reveals itself as a practice that investigates concepts and languages. In that way, we focused on the work of Martin Margiela, a creator that discusses patterns of operation of his own field of fashion design as well as the contemporary context. KEYWORDS: Fashion design, conceptual art, creation 9 SUMÁRIO Introdução 15 15 1.2 Design de moda e arte: diálogos e fronteiras 21 2 Princípios de criação e estratégias da arte conceitual 34 2.1 Marcel Duchamp e arte conceitual 35 1 Design de moda 1.1 Design de moda: projeto e criação 12 2.2 Breve abordagem da criação artística e da criação na arte conceitual 50 2.3 O artista e a roupa 61 3 Princípios de criação e o design de moda de Martin Margiela 77 3.1 Quem é Martin Margiela 79 81 98 3.2 O design da Maison Martin Margiela 3.3 Princípios que regem as criações de Martin Margiela 3.4 A coleção Artesanal da Maison Martin Margiela: Linha zero 112 Considerações Finais – ou -­‐ Um possível diálogo entre Duchamp e Margiela 130 Referências 133 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Yves Saint-­‐Laurent, vestido com estampa van Gogh, 1988 Figura 2: Yves Saint-­‐Laurent, vestido com estampa Piet Mondrian, 1965 Figura 3: Capa da revista ArtForum, 1982 Figura 4: Saia que se transforma em mesa, colecao Chalayan, 2000/01 Figura 5: Desfile “Corpo Cru”, 2002 Figura 6: Desfile “Corpo Cru”, 2002 Figura 7: Nu descendo uma escada n.2, 1912 Figura 8: Duchamp junto a Roda de Bicicleta, Pasadena Art Museum,1963 Figura 9: Fonte, 1917 Figura 10: L.H.O.O.Q., 1919 Figura 11: John Baldessari, Compondo sobre tela 1966-­‐8 Figura 12: Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, 1965 Figura 13: Cildo Meireles, Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-­‐Cola, 1970 Figura 14: Alexander Rodchenko, veste Traje Produtivista, 1922 Figura 15: René Magritte, Filosofia do Boudoir, 1948 Figura 16: Joseph Beuys, Terno de Feltro, 1970 Figura 17: Flávio de Carvalho, O Traje New Look, 1956 Figura 18: Leonilson, Instalação na Capela Morumbi, 1993 Figura 19: Laura Lima, Novos Costumes, 2007 Figura 20: Laura Lima, Novos Costumes, 2007 Figura 21: Experimentos com os Costumes 1 Figura 22: Costumes sendo experimentado, em outra possibilidade Figura 23: Detalhe da capa do catalogo “20th The Exhibition” Figura 24: Exemplo de algumas Linhas, índex do 20’ The exhibition da Maison Figura 25: Etiqueta Maison Martin Margiela, Linha 10 Figura 26: Desfile Primavera-­‐Verão 1989 Figura 27: Sapatos “Tabi” Figura 28: Sala de desfile Figura 29: Desfile Primavera-­‐Verão 1997 Figura 30: Sapato usado em desfile. Primavera-­‐Verão 1997 Figura 31: Modelo com a descrição da coleção estampada no pescoço Figura 32: Desfile Primavera-­‐Verão 2000 Figura 33: Paletó coleção Primavera-­‐Verão 2000 Figura 34: Paletó coleção Primavera-­‐Verão 2000 Figura 35: Roupas oversized Figura 36: Coleção outono-­‐inverno 1994-­‐1995 Figura 37: Coleção outono-­‐inverno 1994-­‐1995 Figura 38: Vestido inacabado com o forro a mostra, outono-­‐inverno 2003/04 Figura 39: Vestido com as marcações de pences e de construção da peça, outono-­‐inverno 1997/98 Figura 40: Casaco realizado a partir de meias, outono-­‐inverno 1991/92 Figura 41: vestido realizado a partir de telas de pintura, primavera-­‐verão 2007 Figura 42: Colar com pendente realizado a partir de lustre de cristal, outono-­‐inverno 2005 Figura 43: Etiqueta branca presa com quadro pontos de costura Figura 44: Óculos Incógnito Figura 45: Óculos Incógnito em duas versões. Figura 46: Modelos “sem rosto”, desfiles diversos. Figura 47: Modelos “sem rosto”, desfiles diversos. Figura 48: Camisa masculina da coleção Replica, detalhe da etiqueta. Figura 49: Loja encobertos por tecido branco e tinta branca Figura 50: Ambientes do Atelier e Loja encobertos por tecido branco e tinta branca 25 25 28 30 31 32 36 38 38 40 43 43 48 65 66 68 69 72 74 75 75 76 83 85 85 86 87 88 89 90 92 93 93 94 94 96 96 99 99 101 102 102 103 104 104 105 105 106 110 110 11 Figura 51: Tecido branco da passarela de 1989 com pegadas da bota “Tabi” e foto do desfile seguinte 1989/90 com o tecido transformado em blusa com a data da sua concepção. 111 Figura 52: Tag da coleção Artesanal 113 Figura 53: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 115 Figura 54: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 115 Figura 55: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 115 Figura 56: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 115 Figura 57: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 116 Figura 58: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006 117 Figura 59: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006 117 Figura 60 : Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006 118 Figura 61: Desfile Coleção Artesanal, 2006 119 Figura 62: Desfile Coleção Artesanal, 2006 119 Figura 63: Calça e jaqueta de lona. Desfile Coleção Artesanal, 2006 120 Figura 64: Colete de cartas de baralho. Coleção Artesanal, 2006 121 Figura 65: Colete de tampa de metal. Desfile Coleção Artesanal, 2006 122 Figura 66: Camisa patchwork de lenços. Desfile Coleção Artesanal, 2006 122 Figura 67: Casaco de almofadas, Desfile Coleção Artesanal, 2006 123 Figura 68: Desfile Coleção Artesanal, 2006 125 Figura 69: Desfile Coleção Artesanal, 2006 126 Figura 70: Desfile Coleção Artesanal, 2006 128 12 INTRODUÇÃO A presente dissertação aborda aspectos relativos à criação identificados nos campos da arte conceitual e do design de moda. A partir de estudos sobre trabalhos de Marcel Duchamp e sobre criações em design de moda da Maison Martin Margiela, são articulados princípios de criação em arte conceitual e em design de moda, realçando ambos os campos como investigadores de conceitos e linguagens. Nosso interesse inicial, para desenvolver um trabalho que tratasse do design de moda como criação, surgiu no período dos estudos da graduação, nos primeiros trabalhos relacionados ao tema. Tais estudos se intensificaram na atuação profissional como designer no mercado do vestuário. No período de elaboração do anteprojeto para a dissertação de final de curso, as pesquisas se consolidaram, focando algumas problematizações sobre o contemporâneo, aliadas a uma análise de caso, que pudesse retratar a importância de um trabalho em design de moda, que apresente questões e não somente responda às demandas de mercado. Em uma breve avaliação da moda, vemos que nos últimos 30 anos sua importância vem crescendo vertiginosamente, conquistando cada vez mais espaço na sociedade contemporânea. Enquanto fenômeno socioeconômico, construiu uma complexa indústria de produtos que alimenta o mercado consumidor. O campo da moda é reconhecido pelo capital que fortalece a economia nacional e a mundial. Com a amplitude que a moda conquista, fica também realçada a necessidade de reflexão de objetos e utilitários, assim como seus resíduos. Nesse sentido, Flusser (2007) nos mostra a importância de uma criação que produza reflexões de um designer que use seu potencial e abrangência de mercado para agir de modo responsável. 13 Por entendermos a moda como um veículo de expressão, acreditamos que o designer seja um comunicador de seu tempo que exerça os papeis de intérprete e questionador social ao propor e reflexões, tal postura antes era exercida, sobretudo, pelos artistas. A percepção do mundo e as ações relacionadas à criação do designer são também o ponto de partida de Souza (2004) ao desenvolver seu pensamento sobre a construção do sentido. O termo existência vem do latim exsistentia, que designa o modo de ser da própria existência humana, naquilo em que ela manifesta. Longe de ser uma análise filosófica, o olhar para tais questões é, para os designers, um campo fértil para criar e propor reflexões sobre percepções do mundo. Para desenvolver este estudo, portanto, no primeiro capitulo apresentamos o trabalho problematizador no campo do design de moda, visto como um diálogo com a realidade. Assim como os artistas dialogaram com o vestuário, neste capitulo apresentaremos aspectos da interação entre arte e moda, encontrada nos trabalhos de alguns designers de moda que desafiam as fronteiras entre esses campos. No segundo capitulo realizamos uma discussão sobre a compreensão de um fazer: a criação que alterca que desmantela, que não responde apenas às demandas de produção do mercado, mas que também levante questões. Na pesquisa bibliográfica, encontramos nas ações de Marcel Duchamp e, posteriormente, nas estratégias de criação da arte conceitual, princípios de criação que romperam com as ideias tradicionais da arte e questionaram seu lugar. Usamos também os dados bibliográficos para investigar o trabalho de alguns artistas que transitaram pelo campo do vestuário. Percorremos o caminho que vai da apropriação como suporte de criação artística, até o uso como elemento autônomo, que busca a problematização de seus significados. Faz-­‐se necessário ressaltar que a fundamentação teórica pretendeu realçar as estratégias de criação artística presentes em obras ditas conceituais, como 14 instrumento para identificar criações questionadoras, que rompam com os fundamentos tradicionais de seu campo. Com tal propósito e abordagem descritos, foram identificados no trabalho do designer de moda Martin Margiela, alguns princípios e estratégias que nos parecem exercer o mesmo papel no campo da moda. Nesse sentido, aspectos da interação entre moda e arte são analisados no terceiro capitulo, pelo viés de um diálogo entre os princípios conceituais do artista Marcel Duchamp e as estratégias que norteiam o trabalho do designer de moda Martin Margiela. 15 CAPÍTULO 1 Design de Moda 1.1 Design de moda: projeto e criação Nesta pesquisa, o design será abordado como um modo de trabalho de elaboração de produtos do universo da moda, e o designer, como um profissional que tem em seu trabalho a possibilidade de unir informações subjetivas e objetivas na construção de seu objeto, no caso, roupas e acessórios. Antes de abordar as primeiras aplicações da função do designer, é preciso se reportar à interpretação semântica da palavra design, para entendermos o que ela significa em nosso “discurso atual sobre cultura”. Voltando os olhos para o significado da palavra em inglês, observamos que ela pode ser usada tanto como verbo quanto como substantivo, pois dentre seus significados consta “propósito”, “esquema maligno”, “conspiração” e “forma”, ou seja está diretamente ligada a significados como “astúcia e fraude”. (FLUSSER, 2007, p.181) Assim, podemos dizer que, neste contexto, o designer é um conspirador, que usa a técnica para dar uma forma, uma função e um significado a um material qualquer escolhido por ele. A técnica usada no planejamento processual – que pode ser manual ou mecanizada – tem como fim criar produtos com informações subjetivas e formais, que vão ao encontro de todas as necessidades e desejos do consumidor, assim o seduzindo constantemente, a cada lançamento de produtos. De modo geral, o design vem ganhando mais importância no espaço contemporâneo, com outras exigências somadas à formal e a estética, como as considerações ambientais, sociais e econômicas. A relação do design com as questões sociais e culturais faz da criação um exercício multidisciplinar. Os produtos concebidos, além de solucionar um “problema”, ou seja, realizar sua 16 função utilitária, devem também satisfazer os anseios imateriais do consumidor, como aponta Cardoso, em entrevista publicada no site Itaú Cultural (2008): O design tende a se afastar da materialidade e caminhar em direção à experiência, ao uso e à emoção. Cada vez mais os objetos de design serão imateriais. (CARDOSO apud FIOCHI, 2008) Por algum tempo, a tendência estilística de produção foi proporcionada pela produção contínua de variados modelos, ou variados designs, provocando a “obsolência estética do produto”. Tal estratégia visava despertar o desejo de consumo além das necessidades do cliente, que se via tentado a comprar sempre o último modelo em voga. Com o crescimento do mercado e a aceleração do consumo por esses novos produtos, o uso do design, que até então era visto como desenho estilístico, foi substituído pelo design organizacional de planejamento, cujo trabalho passou a ser fundamental para o aumento e desenvolvimento da produção. (CARDOSO, 2008, p.134-­‐135). A ambigüidade de significados na origem da própria palavra design, como cita Cardoso (2004, p.14), que “[…] se refere tanto à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à de configuração, arranjo, estrutura […]”, pode ter sido um fator contribuinte para o atraso no uso do termo com uma abordagem sistêmica, como modo de trabalho e de planejamento da produção de itens que carregam em si tanto aspectos subjetivos como objetivos. O exercício de unir informações subjetivas ou abstratas e aspectos concretos, formais e objetivos será aqui abordado pelo foco do design de moda. Para dar conta do crescimento e segmentação do mercado de vestuário, da procura de produtos com valor de moda e de consumidores cada vez mais exigentes, fez-­‐se necessária uma nova metodologia projetual que garantisse a constante renovação e inovação dos produtos, como ressaltado por Sanches (2008, p.290): 17 [...] projetos de design não se restringem ao aspecto estético-­‐formal de um produto, como é entendido pelo senso comum, seu cerne está justamente na abrangência do processo projetual, o qual envolve uma visão panorâmica e multidisciplinar. O design na moda é um modus operandi, ou seja, é uma diretriz metodológica para projetos de produtos de moda, que associa valores a esses produtos, os planeja e os executa. O design, nesta abordagem, se estabelece como um fio condutor do processo de desenvolvimento criativo, de elaboração de um produto, no caso, o vestuário. Esse processo é definido por Maldonado (1991, p.14), como: […] coordenar, integrar e articular todos aqueles factores que, de uma maneira ou outra, participam no processo constitutivo da forma de um produto. E, mais precisamente, alude-­‐se tanto aos factores relativos à utilização, à fruição e ao consumo individual ou social do produto (factores funcionais, simbólicos ou culturais) como aos que se relacionam com a sua produção (factores técnico-­‐sistêmicos, técnico-­‐produtivo e técnico-­‐distribuitivos). Sabendo que, segundo Treptow (2007, p.17), “A indústria têxtil e de confecções tem sua estrutura baseada na criação, produção e venda de produtos.”, o processo de desenvolvimento do produto é dividido por etapas em um grande sistema cíclico de produção, onde sua definição, produção, venda e análise de receptividade no mercado tem em vista o melhor direcionamento, qualidade e sucesso dos produtos de maneira eficaz e planejada. A criação de uma coleção de moda é dividida em diversas partes, etapas que não necessitam ser seguidas em ordem, mas que se relacionam entre si no desenvolvimento do projeto. Considera-­‐se etapas do planejamento: especificação do projeto, pesquisa, modelagem, elaboração e criação de 18 alternativas, escolha de materiais e aviamentos, e outras específicas relacionadas ao tipo de produto. O designer, ao planejar uma coleção, deverá realizar pesquisas sobre comportamento, para definir as preferências de seu público consumidor, e buscar novos materiais, aviamentos, tinturas, lavagens, processos de estamparia, etc. Após a definição do tema da coleção, ou seja, o motivo ou, assunto que será abordado na criação das roupas, ele passará a pensar na maneira – quais cores, texturas, tecidos e silhuetas representarão ou irão compor a história que ele contará para narrar o tema escolhido e desenhar os looks1. Nessa conceitualização e criação dos looks, destacamos a importância de um trabalho de desenvolvimento que produza uma obra de moda, que represente os valores sócio-­‐culturais da sociedade, seus questionamentos ou que problematize seus valores, assim como acontece no processo de criação artística. Outras etapas mais técnicas, como por exemplo a elaboração da modelagem, requer conhecimento das proporções e medidas do corpo, noções de construção ergonômica2, de costura e ainda da característica de cada tipo diferente de tecido e seu comportamento em relação aos aspectos do design da peça. Todas essas e outras etapas teóricas e práticas não citadas aqui se inter-­‐relacionam e são necessárias na criação de um produto ou de uma coleção de moda. Para chegar neste modo do trabalho, como conhecemos hoje, o profissional da área da moda sofreu mudanças fundamentais. O papel dos costureiros, assim 1 Palavra de origem inglesa que pode ser traduzida como visual. O look de uma pessoa refere-­‐se à sua aparência natural ou à aparência conquistada, através do uso de determinadas roupas, penteados e acessórios. (SABINO, 2007, pág.407). 2 No design de moda, os conhecimentos da ergonomia relativos à sua metodologia projetual são absolutamente necessários. Sua aplicação contempla o universo de produtos que configuram o vestuário e seus acessórios complementares e concorre como um instrumental valioso para a melhor adequação desses produtos aos seus usuários consumidores. Disponível em <joaogomes.com.br/A%20Ergonomia%20no%20Design%20da%20Moda.pdf> Acesso: 14 jun 2011. 19 como dos artesãos, era exercer tarefas de forma completa, e isso incluía desde o esboço de um modelo, corte, costura e realização do acabamento de uma roupa, de acordo com o pedido do cliente, até a confecção de peças extremamente elaboradas, como verdadeiros artistas. Na história da moda, podemos detectar alguns momentos em que a figura do criador foi relevante. Destacamos como um marco na historia da moda o famoso costureiro inglês radicado em Paris, Charles Frederick Worth, que na segunda metade do século XIX foi o primeiro costureiro a apresentar suas coleções exclusivas previamente elaboradas em desfiles de modelos vivos a cada estação do ano, o que deu início não só ao ciclo sazonal da moda como também ao trabalho que ficou conhecido como “alta costura”. Esse ciclo determinou o que estava na moda ou fora dela, e a reação de Worth foi, segundo Johnson (2006, p.230), “[...] com impressionante criatividade e crueldade. Inventou a ‘obsolescência planejada’ um século antes de o termo ser cunhado.” Com a alta costura, Worth foi reconhecido como “artista”, podendo assinar suas criações, agregando valor a seu trabalho como criação artística única. O próprio Worth, segundo Grumbach (2009, p.18), declarou que o ato criador “...não é apenas executar, mas principalmente criar. A criação é o segredo do meu sucesso. Não quero que as pessoas encomendem suas roupas”. Pode-­‐se considerar este momento como ponto de origem do “criador de moda”. Paul Poiret3 também pode ser citado como outro criador de moda fundamental na evolução da vestimenta e do trabalho do designer, pois possuía o olhar visionário dos diversos caminhos ou segmentos de produtos que uma marca de moda poderia desenvolver, rompendo com os conceitos de seus antecessores. A partir da produção industrial em série na moda, consolida-­‐se o sistema 3 Paul Poiret (1879-­‐ 1944) um dos mais importantes e visionários estilistas franceses. (SABINO, 2007, p.483). 20 chamado de prêt-­‐à-­‐porter4. Esse fenômeno democratizou o acesso aos produtos de moda, apresentando uma diversidade maior de opções de compra dirigidas a diferentes classes sociais. Se antes a moda era um fenômeno social que vinha de cima, sendo copiada pelas classes menos favorecidas, agora todos poderiam consumi-­‐la simultaneamente. Os olhares e buscas de tendência, antes vindos das classes mais ricas, passaram a ter sua origem nas ruas. Com a produção em série e seu consumo desenfreado, a criação de uma coleção de roupa passou a ser banalizada pela reprodução em massa, perdendo o valor de uma criação original. Na produção em série, que caracterizou o início do prêt-­‐à-­‐ porter na década de 1960, as criações eram elaboradas pelos designers de moda, multiplicadas em larga escala, e as peças de mais aceitação e procura, passavam a ser copiadas por outras empresas e reproduzidas deliberadamente. Nesse momento, podemos dizer que a criação pelos designers de roupas que captam e traduzem questões culturais e sociais de sua época foi se perdendo em meio a um design massificado de produção padronizada pelas tendências da moda. Nesta abordagem do design, como ação projetual e como criação, é que somos levados a olhar para o designer de moda como aquele que, segundo Castilho e Preciosa (2005, p.34), “[...] consegue melhor traduzir em roupa o espírito de uma época, que redesenha e adota o corpo de uma gestualidade que dialoga com seu tempo.”. 4 Prêt-­‐à-­‐Porter do francês -­‐ pronto para usar. Moda que se contrapõe aos modelos exclusivos e feitos sob medida da alta-­‐ costura.” Dicionário da moda – (Cataguases, 2002)
21 1.2 Design de moda e arte: diálogos e fronteiras Ao falar sobre o trabalho do designer, Munari (1997, p.24) revela que ele “[...] é o artista do nosso tempo. Não porque seja um gênio, mas porque, com o seu método de trabalho, re-­‐estabelece o contato entre a arte e o público”. Os campos do design e da arte são constituídos de várias modalidades ou categorias, com suas especificidades e seus diferenciais. Por exemplo, dentro do universo artístico, encontramos as belas artes e as artes aplicadas que, segundo a historiadora Dempsey (2003), diferem-­‐se das belas artes na elaboração da obra, cujo foco é a criação de produtos que sejam artísticos e comerciais ao mesmo tempo. O artesão, dotado de conhecimento e habilidade em todas as etapas do desenho e construção de objetos, tornou-­‐se, depois da Revolução Industrial, o desenhista responsável pela criação de projetos, ou seja o designer. Nesse momento surgiu a valorização desse novo profissional, que possuía tanto a experiência e o conhecimento técnico da concepção de uma ideia, quanto a habilidade e a noção de desenho. O designer estaria ligado a funções técnicas e formais da criação de um produto. O criador, então, deveria, além de planejar os aspectos para a realização, materialização e fabricação do produto, levar em conta principalmente sua responsabilidade pelas informações formais e subjetivas do mesmo. Para Christo (2008,p.34) o resultado do trabalho do designer não está relacionado somente ao atendimento das “[...] necessidades objetivas dos usuários, já que estes também possuem necessidades subjetivas, provenientes de seus desejos, anseios, expectativas.” Considerando o aspecto subjetivo do trabalho do designer, ou seja, dos assuntos relacionados a necessidades e desejos dos consumidores que vão além do material, a autora segue sua reflexão: [...] se o designer deve levar em consideração as necessidades 22 subjetivas do usuário e os significados adquiridos pelos objetos, sua atuação não está vinculada apenas às questões produtivas e técnicas, mas também às questões expressivas e simbólicas. (CHRISTO 2008,p.34) A função e a responsabilidade do designer em criar um objeto ou um produto que satisfaça o consumidor em seus anseios além do material, além da proposta formal de seu desenho, são reveladas por Cardoso, em entrevista ao Itaú Cultural (2008), quando defende a ideia de que o design, cada vez mais, afasta-­‐se do técnico e do material e vai “[...] em direção a uma outra coisa. Que coisa é essa? Experiência, uso, emoção [...]”. Tanto as artes plásticas como a moda possuem a característica de problematizar questões sociais, marcando suas épocas e quebrando barreiras e preconceitos. É através dos diversos estilos de objetos e movimentos artísticos que identificamos as características e questões de uma sociedade, ou um determinado momento dela, pois ambos estão ligados a questões que perpassam o cotidiano. O relacionamento do campo do design com a cultura e a produção de linguagem o aproxima do universo da arte pelo aspecto da criação. Sendo o designer e o artista criadores, o design age, segundo Moura (2005, p.2), a partir da relação com a arte “[...] enquanto processo de criação, de referência e também a partir de interferências, influências e inter-­‐relações entre estes dois campos”. Partindo do principio de que a criação de um produto é a materialização de conteúdos culturais e sociais, Munari (1993) também considera o designer um artista, artista de nosso tempo, pois deve enfrentar e resolver as necessidades e exigências da sociedade. No século XX, um grande número de criadores de moda dialogaram com artistas de seu tempo, quando as conexões e movimentos de interesse mútuo entre arte e design de moda foram cada vez mais entrelaçadas. Um dos primeiros estilistas a fazer uso das artes foi Paul Poiret, que pediu ao fovista 23 Raul Dufy para criar estampas exclusivas para seus tecidos. Poiret tinha grande afeição pelas artes, tanto que costumava organizar exposições e colecionar obras para ter reconhecimento nesse campo. Ele inovou, segundo Svendsen (2010, p.103), dando às suas criações nomes característicos da arte, em oposição aos números, que eram usados naquela época, “[...] provavelmente para acrescentar uma dimensão simbólica adicional às roupas.”. Outro nome que, segundo Svendsen (2010, p.106) usou a arte “[...] para aumentar o capital cultural [...]”, de suas criações foi Coco Chanel5. Ela trabalhou criando roupas para Diaghilev6 e Jean Cocteau7, ousando fazer uso das idéias do funcionalismo modernista para criar suas roupas com aspectos simples e inspirações no guarda-­‐ roupa masculino. Já Elsa Schiaparelli8 teve forte ligação com o surrealismo, enlaçando a moda com aspectos do inconsciente, deixando-­‐se influenciar por Dalí, Tzara e Picabia, criando roupas trompe-­‐l’oeil9, chapéu com molde de sapato, entre outros. Para Svendsen (2010, p.109), Schiaparelli 5 Gabrielle Chanel (1883-­‐1971), estilista francesa que liberou o corpo das mulheres com seus modelos soltos, resgatou peças do guarda-­‐roupa masculino para suas criações, fez com que copiassem seu corte de cabelos. Considerada uma mulher à frente de seu tempo, criou “uniformes” femininos como, por exemplo, o vestido “pretinho básico” e o tailleur confeccionado em tweed. (SABINO, 2007, p.158) 6 Sergei Diaghilev (1872 -­‐1929), bailarino russo, ocupa lugar de destaque na história da dança contemporânea pela inestimável contribuição de seu trabalho renovador e por ter apresentado o ballet russo ao mundo ocidental pela primeira vez. Exibindo-­‐se em vários teatros do Ocidente, a companhia de Ballets Russes de Diaghilev estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1913, com La Sylphide, Le Spectre de la Rose, Le Pavillon d'Armide e Danças Polovtsianas do Príncipe Ígor. Disponível em: <amagiadoballet.blogspot.com/2007/12/serge-­‐diaghilev> acesso: 16 jun 2011. 7 Jean Cocteau Maurice Eugene Clemente (1889-­‐1963), poeta francês, escritor, artista e cineasta. Disponível em:<www.jeancocteau.com>. Acesso : 16 jun 2011 8 Elsa Schiaparelli (1890-­‐1973), era chamada “a italiana” por Gabrielle Chanel e foi uma pessoa de espírito vanguardista, tendo, em seu círculo de amigos figuras das artes e literatura, como Salvador Dali e Jean Cocteau, em cujos trabalhos se inspirou para criar modelos de casacos, chapéus e outras peças (SABINO, 2007, p.250). 9 Trompe-­‐ l’oeil: técnica que cria ilusão ótica imitando texturas, imagens, tecidos, etc. Dicionário da moda (Cataguases, 2002). 24 [...] foi a primeira estilista a de fato pertencer à vanguarda, e foi uma pioneira das estratégias de vanguarda usadas mais tarde pela moda, como contextualizar e descontextualizar objetos, misturar “sublime” e “ordinário” e usar cores e materiais inesperados. Outra manifestação da arte na moda se deu nas criações de Yves Saint Laurent10, que teve como inspiração obras de pintores como Renoir, Matisse, Wasselman, Bracque e Picasso. As de maior repercussão foram uma jaqueta, onde imprimiu os lírios de van Gogh (fig.1) e, talvez a maior delas, o vestido evasê com a estampa do neoplasticista Piet Mondrian (fig.2). Yves Saint Laurent também lançou coleção baseada na Pop Art, usando o conceito artístico do movimento na linguagem da moda, rompendo as barreiras entre a arte e a vida comum, retratando uma geração que aceitava o processo de produção em massa (MÜLLER 2000, p.5,10). 10 Yves Saint Laurent (1936-­‐2008), estilista nascido na Argélia que em 1953 foi para Paris, iniciando uma carreira que o consagraria como um dos estilistas de moda mais conhecidos do planeta. (SABINO, 2007, p.648). 25 Figura 1: Yves Saint-­‐Laurent, vestido com estampa van Gogh, 1988 Fonte: <www.freakshowbusiness.com/2010/04/23/> Acesso: 12 jan 2011 Figura 2: Yves Saint-­‐Laurent, vestido com estampa Piet Mondrian, 1965 Fonte: <www.freakshowbusiness.com/2010/04/23/> Acesso: 12 jan 2011 Essa interação com a arte também foi encontrada no trabalho de Pacco Rabanne11, que aplicou o processo usado pelo artista Julio le Parc12 na criação de seus móbiles para construir suas peças de roupa. Criou roupas com materiais alternativos e inusitados, como malhas de metal e plástico, quebrando de vez com a estética moderna, onde cada linguagem deveria trabalhar somente com 11 Pacco Rabanne(1934 -­‐ ), estilista espanhol radicado na França, na década de 60 criou coleções consideradas utópicas pelo uso de materiais inusitados(LEHNERT, 2001,p.68). 12 Julio le Parc(1928 -­‐ ), artista experimental argentino, considerado um dos maiores artistas da arte cinética (CHILVERS, 1996, p.304). 26 suas especificidades, abrindo mais o caminho da moda como expressão artística. (MÜLLER, 2000, p.11) Na década de 1970, caracterizada por movimentos politizados na arte, a moda foi considerada um reflexo fútil do capitalismo, e a arte procurou então se manter contrária a ela, sendo raros, nesse período, as interações de criações entre esses dois campos. Foi depois dos anos 1980, que o diálogo de conceitos artísticos e a criação dos designers de moda se fizeram cada vez mais presentes. Dentre alguns nomes do mundo da moda, a Comme des Garçons, de Rei Kawakubo13, é um exemplo de marca que se destaca em seu investimento em problematizar as regras ou normas da moda. Através da desconstrução da roupa, ela cria coleções que desafiam as convenções de beleza e forma padronizadas e sedimentadas na sociedade, como a criação de colarinhos duplos e o uso de diversos tamanhos de botões numa mesma camisa, que “[...] evocam o movimento fortuito [...]” (GRAND 2010, p.8). Para o autor (2010, p.13), Kawakubo, “O belo não se encontra necessariamente ao lado do bonito”. Kawakubo criou tecidos deformados pela desconfiguração padrão das máquinas que os teciam de maneira irregular, assimétrica e com aspectos de defeituosos, deixando-­‐os depois expostos ao ar livre e aos fenômenos naturais do tempo. Em sua marca, Comme des Garçons se apropria de aspectos culturais e artísticos em seus produtos e propagandas, contando com a participação de artistas em suas campanhas. Apesar das características inovadoras, que muitas vezes causam espanto, movimentou milhões de dólares ao ano, ou seja, nesse caso, a marca procurou trabalhar com artistas ou conceitos artísticos por seu valor cultural, procurando, assim, aumentar seu valor comercial ou capital financeiro. De seu interesse pela fotografia e pelas artes gráficas, Kawakubo criou a “Six”, sua própria revista; segundo Grand (2000, p.7), “[...] sem a obrigação de periodicidade, na qual Comme des Garçons remete a outro imaginário, ou 13 Rei Kawakubo(1942 -­‐ ), estilista japonesa que criou em 1973 a marca Comme dês Garçons (SABINO, 2007, p.517). 27 objetivação de si, uma espécie de barômetro do tempo da moda, às vezes complementar à coleção, feito apenas de imagens”. A qualidade artística e a estética vanguardista de seus trabalhos inspiraram um crítico a assim comentá-­‐
los: As roupas que ela [comme des garçons] fabrica e vende são semelhantes a arte em todos os aspectos, só que não são arte. E agora ela criou uma das ótimas revistas de arte de nosso tempo, só que não é realmente uma revista de arte, mas um catálogo de roupas.” (SVENDSEN, 2010, p.111) Depois que um vestido desenhado por Issey Miyake14 ganhou a capa da conceituada revista de arte americana Artforum, em 1982 (fig.3), quando foi considerado uma obra de arte em suas características, estreitaram-­‐se ainda mais os laços dos conceitos de criação artística dentro do universo da moda. Durante a década seguinte, designers de moda, como Kawakubo, Martin Margiela, e Miyake, estiveram presentes nas influentes revistas de arte, tanto em matérias poéticas como em publicidade artística (SVENDSEN, 2010, p.111). 14 Issey Miyake(1938 -­‐ ), estilista japonês que ficou conhecido por contestar, pesquisar, questionar e estar sempre à procura de novos caminhos para a indumentária (SABINO,2007, p.357). 28 Figura 3: Capa da revista ArtForum, 1982 Fonte: < www.inamori-­‐f.or.jp/laureates/k22_c_issey/img/lct_e.pdf> Acesso:15 jun 2011 A partir dos anos 1990, a poética artística habita com mais frequência os ateliês de designers de moda, que buscam fazer de seu trabalho um exercício conceitual de criação. O designer de moda inglês Alexander McQueen15 fez suas criações influenciado pela grande tendência da década de 1990, quando temas como drogas, morte e violência marcaram a entrada da “realidade” até então desconhecida no mundo belo da moda. Assim, McQueen recebeu destaque por seus trabalhos controversos, como os títulos com conotações sexuais pesadas e temas de violência física em desfiles trabalhados com elementos cênicos complexos que, de maneira poética e bela, criticaram tais temas . McQueen, em uma postura artística de vanguarda, chegou a declarar que preferia um desfile que causasse desconforto no público a um que fosse um coquetel agradável (SVENDSEN, 2010, p.115). 15 Alexander McQueen (1969-­‐ 2010), estilista inglês, trabalhou em seu universo de criação caveiras, borboletas, referências indígenas e piratas dentre outros (SABINO, 2007, p.28). 29 O designer de moda Hussein Chalayan16 também buscou, através de seu trabalho, alcançar o papel de questionador social, centrando-­‐se muitas vezes no deslocamento cultural, algo que ele próprio vivenciou. Como exemplo, numa de suas primeiras coleções, intitulada “Between” (primavera-­‐verão de 1998), Chalayan criou um espaço de discussão sobre os diferentes padrões culturais e sua relação com o corpo. Fez também uso de formas que, de alguma maneira, escondiam a face das modelos, derrubando padrões que nos privam de nossa individualidade e identidade. Chalayan também usou estratégias artísticas na elaboração de seus desfiles, com textos explicativos de todo o processo de concepção das roupas, a exemplo de sua coleção de formatura na Central St. Martin’s School of Art, em 1994, onde as peças haviam sido enterradas por semanas, ficando sujeitas à ação do tempo. Muitas de suas criações se assemelham mais à arte do que à moda, por seu caráter conceitual. Em seu trabalho, Chalayan recorre à tecnologia e à ciência com aspectos futuristas e experimentais, criando roupas que se transformam, que se abrem ou fecham evoluindo para outras formas. Em sua coleção “After Words” (inverno 2000/01), usou tecidos inteligentes, que projetavam imagens ou geravam luz, e até madeira, criando peças de roupa que se transformavam em objetos de mobília (fig.4). (CHALAYAN, 2010; SVENDSEN, 2010, p.104). 16 Hussein Chalayan (1970 -­‐), designer de moda turco, diplomou-­‐se no londrino Central St Martin’s College of Art and Design em 1993. Criou a saia-­‐mesa, confeccionada em módulos circulares de madeira, vestidos geométricos com golas levantadas, desfiles performáticos e conceituais. Radicado em Londres (SABINO, 2007, p.326). 30 Figura 4: Saia que se transforma em mesa, colecao Chalayan, 2000/01 Fonte: <www.designboom.com/eng/interview/chalayan.html> Acesso: 15 jun 2011 Assim como Kawakubo, Chalayan ou McQueen, no Brasil temos como exemplo de criador que problematiza seu tempo e transita por essas fronteiras, o designer de moda mineiro Ronaldo Fraga17. Fraga utiliza a linguagem da moda para refletir sobre questões contemporâneas. Trabalhos que enfocam a identidade, o tempo, a memória ou o corpo, expõem em forma de desfiles e coleções suas inquietações sobre o presente. Na coleção de 2002, intitulada “Corpo cru”, Fraga começa questionando o consumo excessivo e a efemeridade das tendências de moda, bem como a relação de nosso corpo com a roupa. No release da coleção o designer comenta: O que o mundo menos precisa é de mais uma coleção, mais um desfile ou mais uma lista de tendências de moda. Acreditando nisso, agarro-­‐me cada vez mais àquela vertente da moda – que é a que me dá mais tesão – que surge quando 17 Ronaldo Fraga (1967 -­‐ ), designer de moda mineiro, cuja marca que leva seu nome foi fundada nos anos 90 (SABINO,2007, p.529). 31 ela cumpre o papel de espelho e documenta a cara do tempo por onde passa.18 Nesse desfile, as roupas e acessórios foram mostrados em bonecos, e partes do corpo, como pernas e braços, cortados em placas finas de madeira (fig.5). Esses “manequins” foram pendurados em sequência, numa estrutura giratória, uma espécie de roldana mecânica, como que num “carrossel”, como se fossem pedaços de carne pendurados em um açougue. Assim, as roupas vestidas nos bonecos eram apreciadas pelo público (fig.6). Figura 5: Desfile “Corpo Cru”, 2002 Fonte: <www.ronaldofraga.com.br/port/index.html> Acesso: 09 jun 2011 18 Texto de divulgação do desfile Corpo Cru, 2002, de Ronaldo Fraga, disponível em <www.ronaldofraga.com.br> Acesso: 09 jun 2011 32 Figura 6: Desfile “Corpo Cru”, 2002 Fonte: <www.ronaldofraga.com.br/port/index.html>. Acesso: 09 jun 2011 A ausência do corpo de modelos humanas fez com que o público usasse a imaginação ao tentar visualizar o caimento das roupas. Ao retirar o corpo de cena, Fraga exaltou seu valor. A ausência do corpo vivo, como representação de um tempo finito, explicita a duração dos produtos, que assim como a carne crua, são transitórios e fugazes. O desfile criou uma atmosfera onde roupas transitavam livremente à procura de um corpo para possuir. Nesse sentido, consideramos que o papel de problematizador, antes restrito ao trabalho do artista, passa a ser, contemporaneamente, desempenhado também por alguns designers de moda. Segundo Ronaldo Fraga em entrevista à revista TOP, a moda “[...] é o canal de comunicação mais eficiente do nosso tempo” (SANTOS, 2009, ano 11, ed.126, p.88). O designer de moda não é mais considerado apenas pelo valor comercial de seu trabalho, gerando empregos e crescimento mercadológico, mas está sendo levado em consideração também seu alcance ideológico na transmissão de ideias e conceitos, em seu papel de questionador social, criando enquadramento e propondo reflexões. 33 Nesse contexto, o trabalho do designer de moda é também o de criar valores, de forma que o produto final não apenas impulsione as engrenagens de desejo, criação e consumo da moda, mas também traga novas proposições e questões ao próprio campo da moda, derrubando preceitos, ou “inventando” novas realidades. A partir de tais exemplos, retomamos o enfoque desta pesquisa sobre a figura do criador no campo do design de moda. Para abordar alguns aspectos dos processos de criação que atravessam sua atuação, nossa trajetória se faz por caminhos que perpassam os processos de criação da arte. Para tanto – e para que o campo do vestuário seja privilegiado – elegemos a arte conceitual como o campo de investigação dos princípios de criação que a fundamentam. 34 CAPÍTULO 2 Princípios de criação e ações da arte conceitual Visto que no primeiro capítulo abordamos aspectos do trabalho do designer como um profissional cuja tarefa é propor soluções que atendam às necessidades, neste capitulo buscaremos na arte conceitual princípios de criação que fazem do trabalho artístico uma ação problematizadora. Para tanto, adotaremos alguns trabalhos de Marcel Duchamp e de outros artistas conceituais como parâmetro para nossa análise sobre alguns desses princípios de criação. Faremos um breve histórico sobre a arte conceitual e, em especial, sobre o trabalho de Duchamp. O trabalho do artista será investigado como uma das expressões capazes de captar a realidade e ao mesmo tempo, interferir e questionar valores e padrões. Para isso, procuraremos em Salles (2009) e Ostrower (1999) uma breve contextualização dos princípios de criação artística exemplificados em alguns dos trabalhos conceituais, a fim de os correlacionar posteriormente com o trabalho de um criador de moda. Mostraremos também como o universo do vestuário é um dos campos do cotidiano apropriado pela arte. 35 2.1 Marcel Duchamp e a Arte conceitual Movimentos como o Surrealismo, o Dadaísmo e o Futurismo, que questionavam ideias de criação e interpretação da arte nas primeiras décadas do século XX, foram os precursores de um movimento conceitual que teve inicio algumas décadas depois, em 1960. O artista cujo trabalho teve mais destaque e repercussão nessa trajetória rumo à reestruturação dos conceitos artísticos foi Marcel Duchamp. Para entendermos melhor a trajetória de Duchamp, é necessário conhecermos um pouco de sua biografia. Filho de um escrivão de Auvergne, Justin-­‐Isidore Duchamp, e de Marie-­‐Caroline-­‐Lucie Nicolle, nasce, em 28 de julho de 1887, Henri-­‐Robert-­‐Marcel Duchamp, em Blanville, Normandia. A influência artística veio de seu avô materno, o pintor, desenhista e gravador Emile-­‐Frédéric, do qual Marcel e seus irmãos seguiram os passos artísticos. Seus dois irmãos mais velhos, Gaston19 e Raymond20, e uma irmã, Suzanne21, seguiram os passos da pintura e da escultura, e outras duas irmãs, Yvonne e Magdeleine, dedicaram-­‐se à música. Marcel manteve forte relação com eles e com o jogo de xadrez, que era uma forma de ligação entre eles, por toda a vida (PETRUSCHANSKY, 2008, p.27). Duchamp muda-­‐se para Paris no início do século XX, onde a efervescente troca e surgimento de ideias e os progressos tecnológicos impulsionavam o surgimento contínuo de diferentes movimentos artísticos. Depois de frequentar a Academia de Artes Julian, em Paris, realizar trabalhos com influência pós-­‐
impressionista, expressionista e cubista e participar de diversos salões de exposição e de grupos como o Section d’or, formado também por seus irmãos, Duchamp iniciou sua busca por novas expressões, que problematizariam o 19 Gaston (1875-­‐1963), pintor, assinava sob o pseudônimo de Jacques Villon (Petruschansky, 2008, p.27). 20 Raymond (1876-­‐1918), escultor, assinava sob o pseudônimo de Duchamp-­‐Villon (Ibid., 2008, p.27). 21 Suzanne (1889-­‐1963), pintora (Ibid., 2008, p.27).
36 sistema de legitimação da obra de arte. Diferente dos artistas de sua época, Duchamp colocou “[...] a pintura a serviço da mente.”, o que resultou na “[...] realização da mais excepcional e controversa de suas pinturas: Nu descendant un escalier n.2 (fig.7). Essa obra nasceu em 1912, inspirada nos avanços da cronofotografia de Etienne Jules Marey e Edward Muybridge, cujos trabalhos registravam as pessoas em movimento, em um sistema de pontilhados que delimitava seus movimentos. Tais recursos deram ao trabalho de Duchamp uma “[...] expressão visual da ideia de movimento.” (PETRUSCHANSKY, 2008; p.30-­‐31). Figura 7: Nu descendo uma escada n.2, 1912 Fonte: Petruschansky (2008, p.32) Trabalhando na biblioteca Sainte-­‐Genéviève, Duchamp consultou inúmeros livros sobre perspectiva e filosofia, em especial o do filosofo grego Pirro de Elis (365-­‐275 a.C.), de quem usa a ideia de “beleza da indiferença”22. Nesse mesmo 22 Conceito emprestado do pensamento do filósofo Pirro de Elis, como uma escolha movida com ausência de qualquer sentimento pelos aspectos visuais das coisas. Tomkins comenta: “Opondo-­‐se à teoria das formas de 37 ano, deu início a um conjunto de obras que originaram uma das transformações mais profundas, cujo impacto permanesce na história da arte contemporânea (PETRUSCHANSKY, 2008; p.34). A concepção dessa série de trabalhos foi caracterizada pela rescisão de Duchamp de técnicas tradicionais de criação artística e pela apropriação de materiais da produção industrial. Os objetos, retirados do cotidiano, eram escolhidos por uma absoluta indiferença visual e formal, ou seja, eram escolhidos aleatoriamente, sem levar em conta sua função original ou qualquer outra opinião prévia. Duchamp se apropriava deles e os re-­‐contextualizava dentro do universo da arte. Como no caso da “Roda de Bicicleta” (1913) que, posicionada sobre um banco, foi transformada em objeto de apreciação visual estético (fig.8), ou ainda do urinol de cabeça para baixo, que se tornou a “Fonte” (1917) (fig.9). Essa ação foi denominada ready-­‐made. Para contextualizar o interesse inicial por objetos utilitários ou de desenho industrial, podemos citar a visita de Duchamp e de seu amigo e escultor, Constantin Brancusi23, ao Salão da Locomotiva Aérea, em 1912. Nessa exposição de artefatos aéreos, Duchamp revela sua inclinação para uma postura intelectual sobre a dependência de todo artista que preparava e concebia seu trabalho, assim como um artesão o faz, pretendendo, assim, afastar-­‐se do aspecto físico da pintura. Marcel Duchamp, extático com o design de um avião, diz a Brancusi, segundo Petruschansky (2008, p.34), “A pintura acabou. Quem pode fazer algo melhor do que esta hélice? [...]”. Platão, Pirro negava a existência de absolutos. Segundo ele, era impossível atingir a verdade objetiva, porque ‘nada é em si, tudo é aparência’. Uma vez que nada era totalmente verdadeiro ou falso, só restava cultivar uma atitude de ‘indiferença’ e ‘imperturbabilidade’ na vida, evitando julgamentos e opiniões, mas mantendo-­‐se vigilante sobre a passagem de cada instante” (TOMKINS, 2004, p.142). 23 Constantin Brancusi (1876-­‐1957), escultor de origem romena, foi pioneiro da escultura abstrata. Disponível em < http://www.pitoresco.com.br/escultura/brancusi/brancusi.htm>.Acesso: 14 jun 2011
38 Figura 8: Duchamp junto a Roda de Bicicleta, Pasadena Art Museum,1963 Fonte: Petruschansky (2008, p.35) Figura 9: Fonte, 1917 Fonte: Petruschansky (2008, p.39) Esse princípio de criação – ready-­‐made – talvez seja a mais controversa e significativa contribuição, que Duchamp tenha trazido para o campo da arte. Os ready-­‐mades consistem na ação de retirar um objeto utilitário de seu contexto habitual, no qual exerce uma função, e recolocá-­‐lo em um contexto artístico. O ato de selecionar objetos comuns produzidos industrialmente destrói a noção de singularidade dos objetos artísticos. Tal ação promove o questionamento da importância dada à materialização como resultado de um trabalho artístico. 39 Ao selecionar um objeto do cotidiano, Duchamp mostra que um objeto artístico pode ou não ser feito pelas mãos do próprio artista, mas sua decisão por tal objeto é o que importa, apontando, assim, para uma desmaterialização da obra, desmentindo seu caráter sagrado e desnudando os mecanismos de legitimação da arte. Essa atitude de Duchamp revela a arte como um processo mental, intelectual, e afirma o princípio de que o artista é que define o que é sua obra, o que é arte (CAMPOS, 2006; p.107). Com o ato de utilizar objetos industriais do cotidiano, como uma roda de bicicleta com que criou seu primeiro ready-­‐made (a “Roda de Bicicleta”, 1913), Duchamp criticou os limites sobre o que era ou o que não era arte e questionou o território do utilitário e do artístico, mostrando que um objeto utilitário qualquer, desprovido de qualquer valor artístico, poderia ser apresentado como obra de arte. Essa ação dos ready-­‐mades questionou alguns padrões tradicionais da arte, sendo um ato crítico a seu sistema de valor e riqueza, como também aos conceitos do que poderia ou não ser considerado arte. Com tal feito, Duchamp ampliou os limites que atribuíam valor a uma obra, pois esse valor, antes atribuído ao trabalho técnico do artista, agora era considerado a partir da ideia por ele elaborada, como um “[...] puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade” (ARGAN, 1993, p.358). Uma das transformações lideradas por Duchamp foi a de desmistificar a figura sacralizada do artista, que afastava a interpretação pública da obra de arte. Os espectadores, indiferentemente às suas subjetividades particulares, enxergavam e compartilhavam da mesma narrativa. Duchamp mudou essa relação pois acreditava que a obra era realizada duas vezes: a primeira pelo artista, ao expor suas escolhas, e depois pelo espectador, ao relacionar seus conhecimentos à obra, podendo, às vezes, apreender algo que não fora intencionado pelo criador. Uma de suas estratégias era realizar obras que pudessem causar emoções de maneira particular em cada espectador. Outra característica da obra de Duchamp foi a procura por atingir o espectador 40 de modo inebriante, usando nomes e títulos com trocadilhos espirituosos. Como exemplo, podemos citar seu personagem feminino, travestido e interpretado por Duchamp, Rrose Selavy, nome cuja sonoridade, lida em francês, assemelha-­‐se a “Eros: c’est la vie; ‘eros, a vida é isso aí’”. Outro exemplo que podemos citar é sua versão para a pintura de Monalisa. Esse trabalho, feito a partir da apropriação da imagem da pintura da Gioconda de Leonardo da Vinci, chamada Monalisa, que sofreu interferência de Duchamp que desenhou um bigode e uma barbicha. Essa pintura, além de levantar questões sobre a autoria, pela apropriação do trabalho de outro artista, a dessacraliza, ao fazer crítica à veneração passiva do público à obra de arte. Duchamp nomeia esta obra como L.H.O.O.Q.(1919), letras que pronunciadas em francês formariam a sentença “Elle a chaud au cul", cuja tradução coloquial significaria algo como “Ela tem fogo na bunda” (fig.10). Figura 10: L.H.O.O.Q., 1919 Fonte: <lalandedigitalpress.blogspot.com/2007/07/la-­‐carte-­‐postale.html> Acesso: 14 jun 2011 41 Para Duchamp, as palavras deveriam fazer parte da obra e não apenas de um rascunho de processo. Ao renunciar à arte retiniana, ou seja, à pintura que agrada somente aos olhos, ele parte para anotações, rabiscos e jogos de palavras significando ideias que eram para ele o mais importante. A partir desse momento, segundo Petruschansky (2008, p.34-­‐42). “[...] a linguagem vai se convertendo em um aspecto essencial de sua obra [...]”, o que o levou a guardar por muito tempo rascunhos de seus trabalhos. Tais escritos foram usados como “fontes crípticas” e publicadas na “Caixa de 1914” e, em 1934, na “Caixa Verde”. Esses e outros princípios de criação apresentados nos trabalhos de Duchamp foram posteriormente explorados na arte conceitual, que questionou as ideias de como fazer e interpretar a arte. A arte conceitual, segundo Freire (2006, p.8), “[...] problematiza justamente essa concepção de arte, seus sistemas de legitimação, e opera não com objetos ou formas, mas com ideias e conceitos”. A partir de 1950, a arte começou a adquirir conteúdos sócio-­‐políticos; foi em 1960 e 1970 que o movimento conceitual chegou com questões como a desmaterialização e a contextualização da obra, a visão da arte como produto reprodutível e transitório, a citação ou apropriação crítica e irônica de outros artistas, a inspiração no cotidiano e outros assuntos de efeitos duradouros. É interessante destacar que a arte conceitual foi um movimento particular, um fenômeno histórico que ocupou um período da arte contemporânea, acareado com a presença de uma vertente conceitualista mais ampla que ganhou força no decorrer do século XX, incluindo outras maneiras de expressão, como performances, vídeoart, arte postal, caderno de artista, etc. (FREIRE, 2006, p.7-­‐
9). Apesar da observação feita por Freire (2006), não abordaremos a arte conceitual como um movimento na história da arte, limitada entre as décadas 42 de 1960 e 1970, mas sim seus princípios de criação que reflitam a ideia de criar e de criticar, tais como [...] estratégias utilizadas na elaboração das obras (preponderância da idéia), algumas características freqüentes nas proposições (especialmente a transitoriedade dos meios e precariedade dos materiais utilizados), a atitude crítica frente às instituições artísticas (notadamente o museu), assim como as particularidades nas formas de circulação e recepção de certo universo de obras numa determinada época. (FREIRE, 1999, p.15) 24
O artista, Henry Flynt , participante do grupo Fluxus, em Nova Iorque, foi o primeiro a publicar um texto que evidenciava o interesse e alguns princípios dessas ações. Em 1963, segundo Wood (2002, pg.8), ele explicita que o conceito antecede a matéria e é o que tem mais importância nesse tipo de arte, 'Arte Conceito' é acima de tudo uma arte na qual o material são os 'conceitos', argumentando em seguida que, 'uma vez que os conceitos' são estritamente vinculados à linguagem, a arte conceitual é um tipo de arte na qual o material é a linguagem. Neste sentido, podemos citar o artista John Baldessari25 que no trabalho "Compondo sobre tela" (1966-­‐8), pintou um texto com perguntas extraídas de livros sobre crítica de arte, questões para serem refletidas ao se olhar uma pintura (fig.11). Outro vanguardista foi Joseph Kosuth26, cuja obra "Uma e três 24 Henry Flynt (1940 -­‐ ), artista, musico e filósofo americano . Disponível em: <http://www.henryflynt.org/overviews/henryflynt_new.htm> Acesso: 15 jun 2011 25 John Baldessari (1931 -­‐ ) artista conceitual americano, conhecido por seu trabalho com fotografia e apropriação de imagens. Disponível em :<http://en.wikipedia.org/wiki/John_Baldessari>. Acesso: 15 jun 2011 26 Joseph Kosuth (1945), artista conceitual americano. Seu trabalho foi em grande parte influenciado pelos questionamentos que usavam a linguagem para investigar a função e natureza da arte, assim como a relação entre produtor e receptor do trabalho artístico. Disponível em: <http://revistamododeusar.blogspot.com/2008/09/joseph-­‐kosuth.html>. Acesso: 15 jun 2011
43 cadeiras" (1965) mostrava uma cadeira materializada, uma fotografia dessa mesma cadeira e a definição de cadeira do dicionário, assim derrubando ideias tradicionais de maneira diferente (fig.12). Figura 11: John Baldessari, Compondo sobre tela 1966-­‐8 Fonte: Wood (2002, p.32) Figura 12: Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, 1965 Fonte: <lastofcatfishes.blogspot.com>. Acesso: 18 jan 2011 A abstração falava de uma busca pela raiz da representação pictórica, que questionava também o sistema pelo qual uma obra abstrata era validada formal 44 ou esteticamente pelos críticos de arte. Tal questão foi problematizada por artistas vanguardistas como Duchamp, que buscou transpor objetos comuns dentro do contexto da arte. Os ready-­‐mades foram essenciais na problematização do que é ou não arte, delimitando o domínio do estético antes de começar o do utilitário, de acordo com a intenção do próprio Duchamp, servindo para “[...] fazer com que a arte se voltasse ao pensamento” (WOOD, 2002, p.19). Artistas como Kosuth, Robert Smithson27 e Sol LeWitt28 foram fundamentais no questionamento sobre os indivíduos que fazem parte do sistema da arte, legitimando o que era arte ou não, assim como levantando críticas à estética e sua função na obra de arte. A indiferença sobre os modos de representação artística, a exemplo do trabalho de Kosuth, já citado, problematiza os aspectos e implicações que definem o próprio conceito de arte, propondo uma reflexão da natureza linguística composta nas proposições artísticas, independentemente dos meios ou materiais usados (FREIRE, 2006, p.12-­‐13). Pode-­‐se considerar, então, que a arte conceitual é o próprio conteúdo do conceito da arte em exposição. Como no exemplo de Kosuth, citado anteriormente, o que torna seu trabalho arte são os conceitos de arte problematizados por ele sobre o objeto formal, a construção dos signos visuais, suas conotações, denotações e estética. A concepção tradicional de que a arte está ligada ao belo, fez crescer, segundo Kosuth (1969, p.2, trad. nossa), “[…] a noção de que havia uma conexão conceitual entre a arte e a estética, o que não é verdade”. O artista afirma inclusive, que acredita ser “[...] necessário separar a estética da arte […]”29. 27 Robert Smithson (1938-­‐ 1973), pintor americano e artista da “land art”. Disponível em: <http://www.robertsmithson.com/>. Acesso: 24 mai 2011 28 Sol LeWitt (1928-­‐ 2007), artista Americano, conhecido por seus trabalhos conceituais e minimalistas. disponível em: < http://www.nga.gov/lewitt.shtm>. Acesso: 24 mai 2011 29 Kosuth, Art After Philosophy, download do texto. Disponível em : <scribd.com/doc/32913914/Art-­‐After-­‐
Philosophy-­‐1969-­‐Joseph-­‐Kosuth>. Acesso: 11 nov 2010 45 Kosuth rejeita também toda arte feita antes de Duchamp e propõe, segundo Wood (2002, p.43), uma "[...] análise linguística... [que marcará o ]... fim da filosofia tradicional", mostrando que a ideia ou o pensar a arte é o mais importante em sua criação, deixando a materialização como algo fútil, inútil, visto que a definição de arte conceitual era uma indagação da base principal, da fundação dos conceitos da arte. As qualidades distintivas da arte conceitual são principalmente a valorização do processo artístico, a contextualização e a análise da ideia da obra. (FREIRE, 1999, p.36). No caso de Duchamp, por exemplo, o interesse pelas anotações foi crescendo ao mesmo tempo em que diminuía o interesse pela pintura tradicional, ele considerava suas notas matérias-­‐primas para a produção de ideias, material que se tornou fundamento do pensamento conceitual. Todas as anotações feitas eram importantes para ele, mesmo que muitos as considerassem atos secundários como [...] Frases cortadas, especulações, observações cotidianas, instruções, teoremas pseudocientíficos, reflexões teóricas complexas – tudo se encontrava num lugar desordenado, nesses papéis. Folhas sempre soltas, normalmente fragmentos, que poderiam surgir primeiramente na forma de uma fatura de hotel, uma conta de gás ou até de um rótulo de queijo Camembert. (FILIPOVIC, 2008; p.79-­‐80) Outro grupo importante foi o Arte & Linguagem, iniciado na Inglaterra em 1966, que buscou desmantelar o significado de ser artista e seu suposto fazer, trazendo importantes questionamentos junto à arte conceitual. Esse trabalho problematizou a definição do trabalho do artista desde a criação até a materialização, ou idealização, e a circulação, fazendo-­‐nos principalmente refletir e entender de forma crítica, como diz Freire (2006, p.75), estes “[...]mecanismos num contexto muito mais amplo que é o próprio mundo social em sua dinâmica histórica e política”. 46 As correntes de contracultura que retratavam o cotidiano, como o movimento Americano contra a Guerra do Vietnã, o movimento estudantil de 1968, pedindo mudanças sociais na França, e, no Brasil, contra a repressão da ditadura militar, entre algumas exposições, contribuíram para o desenvolvimento da arte conceitual. A primeira exposição onde o processo criativo do artista foi destacado como principal ocorreu na Suíça, em 1969, tendo curadoria de Harald Szeemann30, que revelou, segundo Freire (2006, p.22), a “arte como processo”, onde o importante era o “[...] processo criativo do artista [...]”, e cujos “[...] conceitos, processos e informações são as expressões dessa arte que se pauta na vivência [...]”. No Brasil, podemos dizer que a arte conceitual não foi tão baseada na filosofia da linguagem como em Kosuth. Entretanto, foi mais voltada para questões sócio-­‐políticas. O país vivia no período do regime militar, da censura a todos os meios de comunicação e expressão, como jornais, cinema, música e arte; os cidadãos tiveram seus direitos políticos e constitucionais cancelados, os sindicatos receberam intervenção do governo, e houve perseguição política e repressão aos que eram contra tal regime , essas questões inspiraram muitos artistas em suas criações. Nomes como Lygia Clark31, Hélio Oiticica32, Cildo Meireles33 e Lygia Pape34 estão entre os artistas brasileiros do período da ditadura militar que realizaram obras 30 Harald Szeemann (1933-­‐ 2005), historiador e curador de arte suíço. Disponível em:<http://www.frieze.com/issue/article/harald_szeemann_1933_2005/>. Acesso: 15 jun 2011 31 Lygia Clark (1920-­‐ 1988), pintora, escultora e artista multimídia brasileira, participou do Grupo Neo Concreto e do Grupo Frente, aplicado no estudo espacial e na concretude do ritmo como condutor de expressão plástica. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/sobre/cultura/artistas-­‐brasileiros/artes-­‐plasticas/lygia-­‐clark-­‐1920-­‐
1988>. Acesso: 17 jun 2011 32 Hélio Oiticica (1937-­‐ 1980), artista performático, pintor e escultor brasileiro. É considerado um dos artistas que revolucionou seu tempo com sua obra experimental e inovadora. Fundou o Grupo Neo Concreto. Disponível em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_v
erbete=2020>. Acesso: 17 jun 2011 33 Cildo Meireles (1948 -­‐ ), artista multimídia brasileiro. Conhecido por seus trabalhos conceituais de cunho político. Disponível 47 de cunho conceitual. Algumas questões iniciais da arte contemporânea brasileira, como a “[...] abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais, éticos [...] a participação do espectador [...] o ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte” (FREIRE, 2006, p.20-­‐21) foram destacadas no texto divulgado no catálogo da exposição intitulada “Nova objetividade”, de 1967, do qual Oiticica participou, e que já demonstrava um caminho para uma arte desmaterializada. Outro exemplo brasileiro é o artista Cildo Meireles, com sua série "Inserções em circuitos ideológicos", iniciada em 1969. Esse trabalho ficou mais conhecido em 1970, com o "Projeto Coca-­‐ Cola", no qual foi resgatada a ideia de ready-­‐made, retirando-­‐se objetos que circulavam na sociedade, interferindo neles com mensagens politizadas, que refletiam e criticavam aquele momento histórico, e os colocando de volta em circulação (fig.13). Com o interesse de diminuir o espaço entre arte e vida, Meireles buscou desviar objetos do cotidiano que fossem próximos de nosso dia-­‐a-­‐dia, principalmente pelo caráter simbólico que tinham, como por exemplo as notas de dinheiro. Neste sentido, considera-­‐se que o trabalho de Meireles tivesse um caráter ambíguo, que dependeria da compreensão de mundo de seu espectador (FREIRE, 2006, p.22; FARIAS, 2002, p. 71-­‐72). em:<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_v
erbete=581>. Acesso: 17 jun 2011 34 Lygia Pape (1927-­‐ 2004), gravadora, escultora, pintora, professora e artista multimídia brasileira. Participou também do Grupo Frente. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/sobre/cultura/artistas-­‐brasileiros/artes-­‐
plasticas/lygia-­‐pape-­‐1927-­‐2004>. Acesso: 17 jun 2011 48 Figura 13: Cildo Meireles, Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-­‐Cola, 1970 Fonte: Marzona (2007, p.24) Nesse contexto, podemos considerar que as definições da arte, foram como que reinventadas na década de 1960, por artistas que questionavam a “essência” da arte em vários aspectos, desde a materialização até a forma de sua comercialização. Como o objeto de arte muitas vezes era visto como simples peça de decoração para os mais abastados, os artistas da época problematizaram a questão, dando mais valor à ideia como "estrutura conceitual", dessa forma, desmaterializando o objeto artístico. A ação contestatória sobre o sistema da arte e o espaço institucional, iniciada no início do século XX por Duchamp, teve continuidade também por artistas brasileiros, nas décadas de 1960 e 1970, como Nelson Leirner35, que questionou diretamente os critérios dos júris do Salão de Brasília (1967) após aceitarem um trabalho de um porco empalhado enviado por ele. O trabalho consistia de um porco empalhado, enjaulado dentro de um caixote de madeira. Podemos considerar que essa obra de Leirner também é um vestígio deixado por Duchamp com seus ready-­‐mades, que leva a realidade trivial ou cotidiana para 35 Nelson Leirner (1932 -­‐ ), pintor, desenhista, cenógrafo, realizador de happenings e instalações . disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verb
ete=879>. Acesso: 17 jun 2011 49 o museu e a galeria, levantando mais uma vez a ambiguidade da relação arte-­‐
vida e criticando os alicerces da arte tradicional (FREIRE, 2006, p.36-­‐37). 50 2.2 Breve abordagem sobre a criação artística e os princípios de ação da arte conceitual O ato de criar sempre esteve associado às atividades humanas ao longo da história de sua civilização, resultando em obras que, mesmo traduzindo uma necessidade do criador ou da sociedade, tiveram como ponto de partida a ideia, a sensibilidade e a percepção de mundo. O entendimento da gênese de uma obra pode ser feito pela análise do processo percorrido pelo criador, registrado em cadernos, depoimentos, entrevistas e qualquer outro tipo de documentos e vestígios que indiquem o caminho percorrido pelo artista. A base do comportamento criativo do indivíduo é vista como o resultado da interação entre a sensibilidade do sujeito e os acontecimentos, no contexto em que ele se insere coletivamente. Podemos afirmar que toda interação do homem no mundo gera conhecimento. Em âmbito geral, o indivíduo potencializa seu conhecimento, imaginação e criatividade através de sua sensibilidade. No que se refere ao meio artístico, a forma como cada artista interage, assimila, absorve e interpreta as informações do mundo é o que o individualiza. O modo individual pelo qual ele reunirá e trabalhará as informações, os signos e objetos coletados em seu percurso é o que fará de seu projeto artístico um caminho único e particular. Esse modo particular pelo qual cada artista se diferencia em suas criações é descrito pela pesquisadora Salles (2009)36 como um “trajeto com tendência”, o que nada mais é que “um norte” que sempre estará presente, mesmo que de forma vaga ou obscura, direcionando e impulsionando o artista em seu percurso de criação de uma obra. É nesse contexto de eterno crescimento e desenvolvimento que ocorre a criação, acompanhando a inconstância do pensamento. 36 No livro Gesto Inacabado (2009), Cecília de Almeida Salles propõe a investigação do processo de criação a partir dos diferente vestígios deixados no construção da obra pelo artista. 51 A intensidade desses pensamentos e seu rumo nebuloso são a força motriz do artista na busca de uma forma de organizar suas ideias. O artista inquieto procurará através de tentativas combinatórias a construção de seu objeto artístico. O tempo, para Salles (2009), atuará como um dos níveis da construção, sendo fundamental para esse “trajeto com tendência”, ou seja, esse percurso nebuloso que estimula o artista, a ser revelado mais substancialmente. Segundo a autora, o processo de criação, porém, resulta sempre é inacabado, pois apesar, muitas vezes, gerar um objeto, o processo pode continuar tentativas e experimentações, em constante desenvolvimento e adaptação. É na inquietude, e não na satisfação do artista, que surgem formas diversas de concretização desses pensamentos. Tal condição é dinâmica e leva a uma constante construção, renovando-­‐se a cada criação de uma obra. Uma obra deve ser considerada como um momento, como parte de um trajeto criativo, composto por inúmeras aproximações de diferentes signos coletados pelo artista, que dialogam com a matéria. O processo de criação existe como uma espécie de necessidade contínua que o artista tem de conhecer mais sobre a vida e, consequentemente, sobre si mesmo, o que o faz crescer não só como artista, mas como indivíduo social-­‐cultural também. Assim, podemos ver a obra como uma interação do pensamento do artista com a realidade, uma forma de ver e interpretar seu universo e seu tempo. O tecer contínuo do desenvolvimento criativo propõe que as escolhas feitas pelo artista sejam costuradas umas às outras, como em uma grande malha de relações, onde sentidos são estabelecidos. A ação de criar, nesse aspecto, aparece, segundo Salles (2009, p.92, 93), “[...] como um processo inferencial, na medida em que toda ação, que dá forma ao sistema ou aos “mundos” novos, está relacionada a outras ações [...]”. Os rastros dessa construção são observados nos documentos de processo, onde se pode observar as escolhas do criador que “[...] manipula a vida em uma permanente transformação poética para a construção da obra”. 52 A pesquisadora também colabora para nos fazer entender que o processo criador tende a construir uma linguagem sobre determinado suporte, como a escrita, o desenho, a pintura, o objeto ou a instalação. Essa ação de construir e estabelecer linguagens na arte contemporânea se amplia e se mistura. No desenvolvimento de um trabalho, é comum haver um processo híbrido dos códigos registrados, um cineasta pode fixar suas ideias de um roteiro através de desenhos ou um escultor registrar seu pensamento em palavras; ou seja, diferentes linguagens podem servir de ideia nesse tecer criador. 37 O realizar, criar, conceber ou dar forma está diretamente ligado ao trabalho de criação. É no trabalho, no fazer, que o individuo lida com a matéria, manipula e interage intelectual e fisicamente com ela, experimentando soluções possíveis. O ato criador abrange, portanto, a capacidade do individuo de compreender e interagir com as informações com os acontecimentos e situações externas a ele, interpretando-­‐as e investigando possibilidades de relacionar, configurar e significar, transformando-­‐as em formas e devolvendo-­‐as ao mundo. O resultante da criação de uma forma, nesse contexto, pode ser interpretado como mais que um objeto físico, mas como uma linguagem simbólica. A forma pode ser considerada como o resultado de inúmeras relações dentro de um contexto. Em outras palavras, abrange várias experiências e expressões de vida, do tempo e do contexto em que o indivíduo criador está inserido. A atividade de criar consiste em revelar as possibilidades ocultadas internamente para o mundo real, como uma expressão intensificada das experiências de vida; a criação da obra aparece, assim, como uma manifestação densa da relação entre o artista e os materiais por ele utilizados. Neste contexto, podemos considerar que na arte, a criação de um novo conceito não o qualifica como criativo ou inovador se ele persistir no estado 37 Neste trabalho também pesquisamos o trabalho de Fayga Ostrower, em seu livro, Criatividade e Processo de Criação, entretanto pela singularidade dos processos da arte conceitual, optamos por enfocar o pensamento de Salles (2009). Ostrower, Fayga. Criatividade e Processo de Criação. 14ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 53 formal externo, sem mudança ou proposições que reestruturam a linguagem de seu campo. Criar é assim procurar atingir um nível mais profundo do conhecimento das coisas, oferecendo novos conceitos e outras realidades. É nesse sentido que podemos relacionar os conceitos de criação artística com algumas estratégias praticadas na arte conceitual. A arte conceitual tem como uma de suas propostas a crítica à linguagem tradicional da arte, rejeitando-­‐a e questionando-­‐a através de uma arte visual “invisível”, que se encontra em seu conceito essencial, não no trabalho material do artista (ARGAN, 1993, p.358). A partir do contexto de discussão sobre o sistema da arte levantado por Duchamp, os artistas conceituais passaram, como sujeitos culturais, conscientes e sensíveis, a problematizar as maneiras de representação artísticas, como cita Freire (1999, p.128), Se o limite entre obra e não-­‐obra se atualiza pela utilização de lugares não convencionais para exposição, também no espaço do catálogo as fronteiras se misturam, e a figura do artista separada do crítico ou do curador também se volatiliza. O artista passa a ser crítico de sua obra. A tradicional divisão entre quem faz e quem interpreta (críticos, curadores, etc.) se desfaz com freqüência. O artista passa a falar, por ele mesmo, de sua produção, desenvolve conceitos que sustentem seu processo criativo, articula a realidade da obra à sua interpretação. Pode-­‐se dizer, então, que a arte conceitual explicita parte do próprio conceito da arte. Como no exemplo de Kosuth, citado anteriormente, o que faz o trabalho do artista são os conceitos de arte problematizados por ele sobre o objeto formal, a construção dos signos visuais, suas conotações, suas denotações e sua estética, ou seja, a ideia e não o produto. A concepção tradicional de que a arte está ligada ao belo, assim relacionando qualquer ramo da filosofia que estudasse beleza e arte, fez crescer, segundo Kosuth (1969, p.2, trad. nossa), “[…] a noção de que havia uma conexão conceitual entre a arte e a estética, o que não é verdade”, afirmando inclusive que “é necessário separar a estética da arte […]”. 54 Assim, as definições de arte, que estavam em decadência, foram reinventadas na década de 1960 por artistas que questionavam a “essência” da arte em vários aspectos, da materialização à forma de comercialização. Como o objeto de arte era, muitas vezes, visto como simples peça de decoração para os mais abastados, os artistas da época problematizaram a questão, dando mais valor à ideia como uma "estrutura conceitual", desmaterializando, dessa forma, o objeto artístico. As questões sobre as possibilidades do fazer artístico, levantadas por Duchamp e exploradas pelos artistas conceituais, problematizam alguns dos conceitos de criação artística expostos por Salles (2009) como “reestruturadores” ou problematizadores da realidade. Nesse contexto, citaremos a seguir alguns dos princípios que, consideramos, mais significativos no trabalho de alguns artistas conceituais em especial Duchamp, no sentido de, mais adiante, correlacioná-­‐
los com o trabalho de um criador de moda. Seguem os princípios da criação artística considerados aqui: a) O valor da Ideia A percepção do significado de uma obra nos leva novamente a Duchamp, que a traduziu como conceito ao trabalhar suas obras no nível das ideias, deixando-­‐a se sobrepor à materialidade do objeto. Com isso, Duchamp contribuiu para que os valores e as representações passassem a fazer parte do significado da obra de arte. Em relação ao “dar forma”, podemos considerar que Duchamp e a arte conceitual não só questionam as possibilidades de materialização como vão além. Na criação conceitual, uma vez que o mais importante é a ideia e não o objeto, os artistas podem materializar ou não seu projeto. Além disso, sua execução não precisa ser feita pelas mãos do artista, que pode delegar o 55 trabalho a uma pessoa que tenha habilidade técnica específica. O que importa é a criação da obra enquanto conceito, aquilo que ocorre antes de sua materialização. Sobre o ato de materializar uma ideia, segundo Freire (1999), o artista pode fazê-­‐lo pelo “processo de des-­‐realização”, que não foca a materialização do trabalho, mesmo que este não seja elaborado pelo próprio artista, esse tipo de trabalho, o processo de criação, como desenvolvimento de uma ideia em uma expressão artística recebe destaque. Podemos citar como exemplo de criação conceitual desmaterializada o “Ar de Paris” (1919). Nesse trabalho, Duchamp leva de presente para seu amigo americano Walter Arensberg uma ampola farmacêutica com 50cm cúbicos contendo o ar de Paris, a atmosfera e o clima da cidade. Duchamp revela o invisível, transforma em objeto um conteúdo que, por natureza, não é materializável. O que o artista faz é apresentar um significado e o conceito imaterial da cidade de Paris, delegando ao frasco de ar o poder de revelar uma paisagem. b) Processo e acabamento Em relação a esse princípio, o que podemos perceber no trabalho dos artistas conceituais é uma maior valorização do processo de criação em relação à sua conclusão ou materialização. Em outras palavras, o próprio processo de criação, mesmo ainda em desenvolvimento, é exposto como obra em diversas ocasiões. Dessa forma, o trabalho artístico, como um processo, tem aspecto de inacabado, mantendo-­‐se, em constante desenvolvimento. O artista fica livre para realizar mudanças em seus projetos realizados, ou seja, para voltar a determinados trabalhos e modificar ou dar continuidade no processo de realização de sua ideia. Tal percepção do processo, portanto, valoriza as estratégias utilizadas pelo artista na construção de seu projeto, mesmo 56 inacabado ou ainda no plano das ideias, pois dentro desse princípio, um trabalho em processo já é um trabalho em si. O curador Harald Szeemann, da exposição When attitudes become form –
works-­‐concepts-­‐processes-­‐situation-­‐ information, inaugurada na Suíça em 1969, teve como proposta a “[...] negação da arte objetual [...]”, o uso de “[...] materiais ‘precários’ e não convencionais”, bem como a abertura para o uso de locais de exposição não convencionais. O foco ali e em muitos outros exemplos, é o processo utilizado pelo artista e não o produto final, alem da base de criação ser a própria vivência (FREIRE, 2006, p.22). Entre 1912 e 1923, Marcel Duchamp reuniu no que chamou de “Caixa verde” (1934) suas ideias, desenhos e projetos, com a intenção de que eles auxiliassem na compreensão de sua obra, “O grande vidro” (1915-­‐23). Para Duchamp, aquilo fazia parte da pintura “O grande vidro”, já que por anos ele havia testado técnicas e preparado suas ideias para essa pintura em vidro, mas mesmo depois de realizá-­‐la, não a considerava acabada, como se aquela obra fosse um estudo, um caminho o qual pretendia percorrer. Todas essas anotações e desenhos, muitos deles de difícil interpretação, eram o registro de seu processo de desenvolvimento artístico. c) Apropriação do cotidiano Podemos observar este princípio de criação da arte conceitual nos ready-­‐mades de Duchamp. Como vimos anteriormente, os ready-­‐mades eram objetos retirados do cotidiano, escolhidos por Duchamp por sua indiferença estética e re-­‐contextualizados dentro do ambiente artístico. Tal ato artístico critica os próprios valores do fazer da arte e modifica a “noção de obra”. Embora a ideia principal dos ready-­‐mades seja a contradição, esta não requer para si um novo valor, mas destrói a ideia tradicional de valor da obra. 57 Dentre os ready-­‐mades, podemos citar o “Porta-­‐garrafas” (1914), um escorredor de garrafas encontrado em um bazar realizado pela Prefeitura de Paris e escolhido como escultura já pronta. Assim como o “Porta-­‐garrafas”, foi a “Roda de Bicicleta” (1913), também realizada com objetos escolhidos pela indiferença visual do produto de origem industrial, com o desejo de transformá-­‐
lo em peça a ser apreciada como arte, assim como uma escultura. A ideia dos ready-­‐mades, objetos do dia-­‐a-­‐dia transferidos para o universo da arte e expostos como tal, aproxima a arte do cotidiano. Os ready-­‐mades, como um princípio de apropriação de objetos do cotidiano, transformam o ato da escolha de determinado objeto em obra de arte, pelo fato de assim anular sua funcionalidade original, transferindo-­‐o para outro ambiente e contexto; a adição de um título cria um novo pensamento para o objeto. Outro exemplo que seguiu tal princípio foi o trabalho de Cildo Meireles, a série “Inserções em circuitos ideológicos” (1969) utilizou objetos do cotidiano – garrafas de refrigerante –, imprimindo no corpo desses objetos mensagens politizadas que refletiam e criticavam aquele momento histórico, devolvendo-­‐
os à realidade após a resignificação. Como Duchamp, Meireles levou o cotidiano para o universo da arte, problematizando a relação arte-­‐vida. A eleição de objetos com funções utilitárias no cotidiano pode ser considerada um dos princípios da criação usados por Duchamp que mais problematizaram os padrões de criação e a valorização da arte. Tal ação fez refletir sobre o que é e o que não é arte, sobre as possibilidades de realizar e apresentar um trabalho que pode ter o status de arte, questionando ainda a importância das instituições e do sistema de valorização da arte, como veremos também nos itens a seguir. 58 d) Subversão da autoria A questão tradicional da autoria artística de um artista artesão foi desmistificada por Duchamp. Ao realizar muitas de suas obras com os ready-­‐
mades, o artista problematizou tal paradigma através de um trabalho cuja autoria era muitas vezes compartilhada, pois os objetos retirados do cotidiano não haviam sido elaborados por ele, mas escolhidos e apropriados. A “Fonte” (1917), por exemplo, é um urinol de cerâmica comprado por Duchamp que inverte sua posição e assina o nome de “R.Mutt”. Nesse caso, além de dividir a autoria de uma peça, ele também a confere a outro nome que não o seu, ausentando-­‐se da criação do objeto. Este trabalho de apropriação e questionamento sobre a autoria de um trabalho é realizado também em sua obra. Ao se apropriar e interferir sobre o trabalho de outro artista, Duchamp criticou questões sobre autoria, como na pintura da Monalisa com bigode e barbicha, intitulada “L.H.O.O.Q.” (1919). Nesse trabalho, Duchamp se apropria de uma pintura clássica da história da arte, o retrato de uma mulher sorrindo, feito por Leonardo da Vinci, e a modifica, pintando-­‐a pelos na face. Duchamp se torna coautor e reinventor da pintura. Além das críticas relacionadas à autoria, Duchamp também controverte a veneração passiva do público pelas obras, dessacralizando-­‐as e favorecendo sua interação com a arte, tornando o público também autor da obra. Esse aspecto da criação artística envolve a utilização de objetos industriais aleatórios e sua recontextualização na arte. Os ready-­‐mades, são objetos cotidianos apropriados pelo artista que os transforma em obra de arte, assim compartilhando a autoria do objeto já pronto (FREIRE, 2006, p.35). 59 e) Questionamento do lugar institucionalizado da arte O princípio do trabalho do ready-­‐made de Duchamp também problematiza os espaços institucionalizados da arte ao mostrar que um objeto industrial, ou qualquer outro retirado do cotidiano e colocado em um museu ou galeria, torna-­‐se um objeto com valor de criação, por sua re-­‐contextualização nesses espaços, como por exemplo o urinol colocado em exposição no museu, ele não é um objeto de arte nem está completando sua função prática, mas ao ser exposto dentro do universo da arte, ganha valor artístico. Segundo Freire (1999,p.50), esse raciocínio proposto por Duchamp revela, que “[...] o significado de uma obra não se instala dentro de si, mas através do lugar que ocupa num determinado sistema de valores e representações do qual participa”, Nesse contexto, o ready-­‐made se destaca como obra de arte, levando o espectador a rever o significado do objeto exposto e sua relação com a arte, com sua utilidade no cotidiano e com o ambiente de exposição, uma vez que esse espaço tanto pode interferir na percepção que o espectador tem da obra como o inverso, produzindo o que Freire (2006, p.37) chama de “[...] curto-­‐circuito entre arte e vida que revela o espaço institucional como criador de valores e percepções” . A apropriação do cotidiano com um olhar problematizador e uma ação contestatória, iniciada por Duchamp, também pode ser vista no trabalho do artista brasileiro Nelson Leirner, quando escolheu um animal empalhado como objeto pronto e o enviou ao Salão Nacional de Brasília, em 1967. O artista revela seu questionamento sobre a autoridade das instituições da arte e o sistema de legitimação do que seria ou não arte. Ao ter sua obra, o porco, aceita pelo Salão de Brasília, Leirner ainda indaga ao próprio comitê de júris quais seriam os critérios de avaliação e aceitação dos trabalhos de arte. Finalizamos este tópico realçando os cinco princípios de criação em arte conceitual relevantes para esta pesquisa. Essas estratégias iluminam os principios de criação levantados no capitulo final. Neste momento, 60 apresentaremos alguns outros diálogos entre os campos da arte e da moda, agora a partir da perspectiva, de alguns trabalhos que envolvem o campo do vestuário, seja formal, técnica ou conceitualmente. 61 2.3 O artista e a roupa: da representação à produção de sentido Se fizermos uma breve avaliação do papel da arte na sociedade, perceberemos que, tanto na roupa e adornos, quanto em outros objetos, a arte se faz presente em vários momentos e ciclos de nossa vida. Podemos afirmar que a arte tem sido companheira do homem em sua trajetória de vida, manifestando-­‐
se de várias maneiras em suas experiências cotidianas, sobretudo quando busca registrar e reproduzir interpretações da vida e dos acontecimentos históricos, podendo se tornar, segundo Pareyson (1989, p.41), [...] ela própria uma forma de vida, a primeira forma do viver humano, a infância da humanidade; que tem uma missão a cumprir na vida humana, contribuindo para a civilização, para a edificação do regnum hominis, para a difusão dos valores especulativos e morais, para a vida política e civil, porque, cônscia das próprias responsabilidades, canta as aspirações do homem, acompanha e decide suas lutas, promove seus ideais, educa seu espírito [...] A partir da investigação feita sobre o trabalho de Marcel Duchamp e outros artistas que o sucederam, entendemos que a apropriação de objetos que fazem parte de nosso universo passou a ganhar cada vez mais espaço nas linguagens artísticas. Os artistas se apropriaram dos produtos comerciais, de trabalhos como os da publicidade, da ilustração de revista e das histórias em quadrinhos. Neles encontraram aspectos do ambiente visual contemporâneo menosprezados pelos artistas acadêmicos, mas usados anteriormente por Duchamp e outros artistas dadaístas que nada queriam com a opinião ortodoxa da academia de artes. O crítico de arte brasileiro Agnaldo Farias, em texto sobre a exposição “Consumo-­‐Cotidiano/Arte” (1999/2000), expõe a tendência ao uso de outros 62 materiais que não o pincel e a tela para a construção de uma obra, e a quebra da figuração para outras possibilidades de expressão: No início deste século, quando a arte atingiu a abstração, passou a reivindicar sua autonomia; abdicava do papel de ser um campo de representações das coisas visíveis e passava ela mesma a ser uma coisa visível. Uma coisa entre coisas. Um objeto entre objetos. Demonstrando que ao artista cabe produzir novos sentidos para as coisas.38 No contexto da arte, outros acontecimentos históricos, como a invenção da fotografia, a mecanização da indústria, o uso da eletricidade e o avanço dos processos de reprodução de imagens e palavras, criaram um cenário de mudanças na forma de organizar a sociedade que repercutiu em uma grande variação das formas de expressão. No campo do vestuário, em particular, nossa área de estudo, podemos considerar que a relação dos artistas com as roupas se intensificou. Os artistas que se indagavam sobre o modo de fazer tradicional da arte problematizavam acontecimentos contemporâneos e experimentavam, na busca de outras maneiras de expressão. O vestuário passou a ser objeto, meio e suporte das mais variadas criações artísticas. Em pesquisa realizada por Costa (2009, p.9-­‐13), a roupa é apresentada dentro do universo artístico de criação desde o Renascimento, período em que a vestimenta começa a ganhar mais importância. A autora faz também uma divisão nesse percurso da “roupa de artista”, apontando o vestuário no trajeto entre “um suplemento expressivo” e “um elemento plástico autônomo”. No primeiro momento, o vestuário é reproduzido em quadros e esculturas, ou então revelando posições de poder e status social . 38 Citação retirada do texto de Agnaldo Farias, publicado no <www.itaucultural.org.br> por ocasião da exposição Consumo – Cotidiano/Arte (Novembro/1999 – Fevereiro/2000) 63 Em outro momento, a roupa é utilizada de outro modo. Nas palavras de Costa (2009, p.10), podemos considerá-­‐la como “[...] veículo para crítica, expressão de utopias, conceitos e metáforas”. o vestuário passa a ser usado pelos artistas como um modo de expressão, produzindo sentidos39. A autora ainda apresenta a roupa usada pelo artista como sendo, ela mesma, uma produtora de sentido, uma crítica, um questionamento ou um cenário da problematização social, ambiental e cultural, entre outras questões do contexto no qual o artista se encontra. A pesquisa da autora pontua alguns exemplos de criações artísticas que procuraram no vestuário seu meio de expressão; sobre essa ação podemos observar nas vanguardas artísticas alguns exemplos de criações envolvendo a moda, como os trabalhos de Sonia Delaunay40 e Robert Delaunay41, participantes do Orfismo, que experimentaram a cor e seus variados tons em formas principalmente geométricas, onde em vários trabalhos criaram designs de estampas para tecidos. Outro exemplo são os artistas futuristas, como Giácomo Balla e Fortunato Depero, que criaram vestimentas com cortes e formas inusitadas a partir dos conceitos de velocidade, ritmo e movimento do futurismo, transpondo-­‐os para as linhas, formas e composição das cores, até então inéditas nas roupas. Dessa maneira, avaliando as estratégias usadas para as criações desses dois futuristas, podemos considerá-­‐las um complexo conjunto de experimentações plásticas e tecnológicas. Para obter seus resultados formais, e sobretudo visuais, eles 39 Nesta pesquisa consideramos um trabalho que produza de sentido, aquele que dentro da história na arte passou de representação visual do vestuário em pinturas para um trabalho autônomo da roupa, onde o próprio vestuário é um trabalho de expressão artística. (COSTA,2009,p.7-­‐9) 40 Sonia Delaunay-­‐Terk, (1885-­‐ 1979), pintora, nascida na Ucrânia, radicada na França. Seus trabalhos mais conhecidos partiram de seus estudos sobre diversas cores sob a influência da luz e do movimento. Disponível em <http://www.kettererkunst.com/bio/SoniaDelaunay-­‐Terk-­‐1885-­‐1979.shtml>. Acesso: 18 jun 2011 41 Robert Delaunay, (1885-­‐ 1941), pintor francês. Seu trabalho tem características dos conceitos abstratos cubistas e orfistas. Disponível em: <http://www.tate.org.uk/servlet/ArtistWorks?cgroupid=999999961&artistid=992&tabview=bio>. Acesso: 18 jun 2011
64 usavam também recursos elétricos, como lâmpadas e aplicações mecânicas, e com isso deram ao vestuário o mesmo valor de criação das outras realizações artísticas, como a pintura e a escultura. Para os artistas russos construtivistas42, a vestimenta era vista como uma maneira de interferir na revolução sócio-­‐produtiva do comunismo; artistas como Vladímir Tátlin43, Liubov Popova44 e Alexander Rodchenko45 conceberam trajes funcionais que consistiam em uma vestimenta confortável e de boa mobilidade (fig.14), para serem produzidas em série, visando às questões de bom aproveitamento do material na produção em grande escala. 42 Construtivismo russo, considerava a pintura e a escultura como construções, visando à produção utilitária, e acreditavam também que a arte tinha um poder transformador para a sociedade. (JANSON, H; JANSON, A, 2000, p.406). 43 Vladímir Tátlin, (1885-­‐ 1953), pintor, escultor e arquiteto russo. Fez parte do construtivismo russo que influenciou diretamente os primórdios do design moderno. Disponível em < http://alternativapost.blogspot.com/2009_10_01_archive.html>. Acesso: 18 jun 2011 44 Liubov Popova (1889-­‐1924), pintor russo, fez parte da vanguarda russa. Disponível em <http://arts.jrank.org/pages/16443/Liubov-­‐Popova.html>. Acesso: 18 jun 2011 45 Alexander Rodchenko, (1891-­‐1956), pintor, escultor, designer gráfico e fotógrafo russo, seu trabalho foi influente para as vanguardas artísticas e suas imagens têm contribuído para a difusão do Construtivismo russo. Disponível em <http://www.artfact.com/artist/rodchenko-­‐alexander-­‐tviivdd2kg>. Acesso: 18 jun 2011 65 Figura 14: Alexander Rodchenko, veste Traje Produtivista, 1922 Fonte: Costa (2009, p.189) Já os Surrealistas, trabalharam a roupa a partir dos conceitos que o movimento defendia sobre o poder do inconsciente, aplicando na vestimenta, assim como nos acessórios e jóias, uma possibilidade de expressar seus sonhos e suas visões eróticas do mundo. Como exemplo de algumas dessas obras, encontramos os trajes e objetos feitos de sapatos criados por Salvador Dalí, e a pintura “Filosofia do Boudoir” de 1948 de René Magritte, trabalho figurativo que reproduz partes pontuais do corpo femininos sobre um vestido pendurado em um cabide (fig.15). 66 Figura 15: René Magritte, Filosofia do Boudoir, 1948 Fonte: Costa (2009, p.199) A partir da década de 1960, podemos dizer que o vestuário fez uma passagem: deixou de ser apenas funcional para ser absorvido como forma de expressão artística com linguagem questionadora e suporte para a investigação do corpo e do espaço. Dentre os artistas que fizeram trabalhos usando a roupa como objeto artístico enquanto investigação plástica, podemos citar Lucio Fontana46, Christo47 e Saint Phalle48. Eles fizeram da vestimenta um veículo para criticar os significados do o corpo e do espaço problematizando valores sociais, culturais, sexuais e mercadológicos vigentes. Em 1969, o artista coreano Nam June Paik49, especialista em arte eletrônica neo-­‐dadaísta e participante do grupo Fluxus, cria seu “Sutiã de TV para escultura viva”. Essa obra, composta por dois monitores pequenos de televisão que cobrem os seios de uma mulher, foi usada em uma performance musical; 46 Lucio Fontana (1899-­‐1968), pintor e escultor argentino/italiano. Para mais informação ver: < http://www.lucio-­‐fontana.com/> Acesso: 28 jun 2011 47 Christo (1935 -­‐ ), artista búlgaro. Para mais informação ver: < http://www.christojeanneclaude.net/> Acesso: 28 jun 2011 48 Niki de Saint Phalle (1930-­‐2002), pintora e escultora francesa. Para mais informação ver: < http://www.nikidesaintphalle.com/> Acesso: 28 jun 2011
49 Nam June Paik (1932-­‐2006), vídeoartista sul-­‐coreano. Para mais informação ver: < http://www.paikstudios.com/bio.html> Acesso: 28 jun 2011 67 as imagens se alternavam nos monitores, mudando as projeções na tela de acordo com a variação de tons da música tocada na performance, tal ação tinha o intuito de fazer a música dar vida aos movimentos do corpo ao mesmo tempo que buscava criticar o lugar íntimo que a tecnologia passou a ocupar na modernidade, na vida de cada um (COSTA, 2009, p.65). É também dentro de um contexto crítico que vemos o trabalho de Joseph Beuys50, escultor, desenhista e artista performático alemão, considerado um dos líderes mais influentes da arte de vanguarda europeia das décadas de 1970 e 1980. No início da década de 1970, ele começou seu trabalho artístico com propostas para transformar e libertar a sociedade, adotando a arte como veículo de revolução. Beuys criou o “Terno de Feltro” (1970), como forma de materialização de seus questionamentos sobre as potencialidades imateriais da roupa (fig.16). É através da abordagem de sua história de vida que Beuys, por exemplo, contextualiza o significado da característica isolante do feltro, tanto no sentido de proteção como no sentido da incomunicabilidade, ressaltando também o corpo que nele estava ausente (COSTA, 2009, p.65). Para entendermos um pouco melhor essa abordagem, vale lembrar um pouco do percurso da vida de Joseph Beuys: ele era piloto da Luftwaffe, em 1943 sofreu um acidente de avião e foi abatido na Criméia, hoje República Autônoma da Ucrânia. O corpo acidentado foi encontrado por nômades tártaros que lhe prestaram socorro e deram os cuidados necessários para sua recuperação, mantendo-­‐o vivo e aquecido com uma mistura de gordura e feltro – tais materiais passaram a fazer parte essencial dos elementos que compõem suas criações, apresentando-­‐se, sobretudo, na elaboração de seus objetos e em suas instalações e performances. 50 Joseph Beuys (1921-­‐1986), artista visual alemão. Disponível em: < http://www.theartstory.org/artist-­‐beuys-­‐
joseph.htm> Acesso: 28 jun 2011
68 Figura 16: Joseph Beuys, Terno de Feltro, 1970 Fonte: Costa (2009, p.229) No que se refere à performance, podemos citar no, Brasil, as ações do artista Flávio de Carvalho51, que já há algum tempo se dedicava ao estudo da história e do significado da vestimenta e também da “[...] moda enquanto fenômeno que regula a forma de vestir, calçar e ornamentar-­‐se”. A vestimenta, para Carvalho, é um “[...] elemento primeiro e nuclear da arte” e “[...] a roupa como um envoltório psíquico e não como uma necessidade [...]”. Em 1956, ele lançou a proposta de um novo traje para o homem brasileiro em uma performance intitulada “Experiência nº 3” (fig.17); essa ação criticava a submissão brasileira aos ditames da moda e dos trajes internacionais, que nada tinham a ver com nosso clima e cultura. Com esse trabalho, Flávio de Carvalho abriu possibilidades de reflexão sobre algumas questões relacionadas à moda brasileira e aos conceitos e materiais do Brasil adequados ao corpo; o fazer de 51 Flávio de Carvalho (1899-­‐ 1973), pintor, desenhista, arquiteto, cenógrafo, decorador, escritor, teatrólogo e engenheiro brasileiro. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Flavio_de_Carvalho> Acesso: 28 jun 2011 69 uma moda por brasileiros e para brasileiros, propondo então uma moda local mais independente e que refletisse a cultura do Brasil (COSTA, 2009, p.51-­‐52). Figura 17: Flávio de Carvalho, O Traje New Look, 1956 Fonte: Costa (2009, p.205) Além de Carvalho, na década de 1960 outros artistas brasileiros passaram a manifestar suas questões relacionadas à vestimenta e ao corpo através de suas criações. Artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark criaram vestimentas híbridas, trabalhos que propunham transformações tanto plásticas quanto sensoriais. As obras, além de expressarem suas ideias e conceitos, contavam também com a participação do espectador, participação esta que iria além da observação; o público espectador passou a ser convidado a interagir com suas criações, não só para vivenciá-­‐la, mas, sobretudo, para completá-­‐las. Esse conceito faz do espectador um participante, o que o torna, junto com o objeto artístico, uma obra vestida. Foi nessa mesma década que o artista plástico Nelson Leirner executou sua primeira obra utilizando materiais comuns do mundo do vestuário, buscando 70 investigar as barreiras do corpo e da roupa. Leirner realizou uma homenagem a Lucio Fontana e seu conceito de espaço com suas telas cortadas. A “Homenagem a Fontana” (1967), série de quadros construída com zíperes, lembrava os cortes da tela de Fontana, onde o público poderia abri-­‐los e fechá-­‐
los, interagindo com a obra. No ano seguinte, Leirner adaptou esse conceito para a roupa. Com o “Stripencores” (1968), criou um vestido longo com zíperes que ao serem abertos poderiam proporcionar uma performance de descoberta ao corpo encoberto, um “discreto strip-­‐tease”52. Provavelmente seu trabalho mais conhecido, “Noivos” (1973), consiste na união da vestimenta masculina com a feminina, como uma só roupa, uma crítica ao casamento como a fundição de duas pessoas distintas em um ser anormal (COSTA, 2009, p.58). Outro artista, apontado na pesquisa de Costa (2009), que nesse mesmo período realizou obras que dialogavam com o corpo e a roupa foi Rubens Gerchman53. A partir da ideia de que a roupa é um abrigo, uma proteção ao corpo, criou “Novas caixas de morar” (1967) em tecidos e armações, produzindo verdadeiras casas para quem as vestisse. Do ponto de vista da apropriação das roupas pelos artistas, destacaremos ainda os trabalhos de Leonilson54 e Laura Lima55, dois artistas brasileiros que, cada um com sua peculiaridade, buscaram no universo do vestuário sua forma de expressão artística. Leonilson revelou em pedaços de tecidos e peças de seu próprio guarda-­‐roupa seus questionamentos sobre a cultura e a sociedade na qual se integra e da qual participa. Laura Lima, por sua vez, problematizou o universo da moda e suas implicações na padronização do corpo, buscando no 52 Como citado no artigo do jornal O Estado de São Paulo, 04 de fevereiro de 1968. Suplemento Feminino, no livro-­‐catalogo “Retrospectiva Nelson Leirner”, Paço das Artes, São Paulo, 1994. 53 Rubens Gerchman (1942-­‐ 2008), pintor, desenhista, gravador e escultor brasileiro. Disponível em < http://www.pitoresco.com/brasil/gerchman.htm> Acesso: 28 jun 2011 54 José Leonilson Bezerra Dias (1957-­‐1993), pintor, escultor e desenhista brasileiro. Sua obra é predominantemente autobiográfica. Ver mais em < http://www.projetoleonilson.com.br/cronobiografia.php> Acesso: 28 jun 2011 55 Laura Lima (1971-­‐ ), artista visual brasileira. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Disponível em < www.galerialuisastrina.com.br>. Acesso: 28 jun 2011 71 material plástico possibilidades de experimentações visuais corporais. Primeiro abordaremos o trabalho de Leonilson, artista cearense, filho de comerciante de tecidos; situação familiar que o levou a passar parte de sua infância em meio a retalhos de tecido. Já adulto, durante uma viagem a Nova York, ele visitou uma exposição de design que exibia o trabalho manual dos Shakers56, integrantes de uma seita religiosa que tem como fundamento o otimismo, abordagem que veio a influenciar seu trabalho posteriormente. Os Shakers possuíam, além da aptidão ao trabalho manual, uma grande capacidade inventiva. Eles criavam seus próprios tecidos e objetos utilitários, produziam diversos emblemas com linhas, textos e mapas formados com elementos da natureza e com base em referências do mundo construído pelo homem e do mundo espiritual (LAGNADO, 1995, p. 35). As representações geográficas, os mapas encontrados na iconografia dos Shakers, estão presentes também no trabalho de Leonilson, que [...] substitui o prazer das tintas pela sensualidade de cada tecido (o voile, o feltro e o veludo). Com a perfeição do bordado (o verso do pano tem o mesmo cuidado que a parte da frente), a devoção encontra uma justificativa na crença emprestada dos Shakers da vida eterna do espírito, segundo a qual a morte é passagem para um estágio superior. Bordar, única atividade que Leonilson conseguirá exercer mesmo atado por limitações físicas, toma a forma de um desenho. (LAGNADO, 1995, p. 35-­‐36) O tecido, enquanto vestimenta, deu forma a uma instalação idealizada e projetada por Leonilson um pouco antes de seu falecimento. A partir de anotações em que constavam as indicações sobre como deveria ser montada, a 56 Shakers, foram um dos vários grupos religiosos que se formou na Inglaterra do século 18, ficaram conhecidos pelas suas contribuicoes culturais, dentro da musica, da arquitetura, artesanato e de mobiliários. Para eles o ato de criar com cuidado seus móveis e artesanatos, significava "um ato de oração." Disponível em < http://www.shakers.org/discover-­‐and-­‐learn/the-­‐shakers.html> Acesso: 18 jun 2011
72 obra foi realizada em 1993 (fig.18). Na instalação são utilizadas suas próprias peças de roupa, como parte do trabalho. Tal atitude nos revela um olhar poético em relação à roupa que transmitia. Nas palavras de Costa (2009, p.66), [...] uma anotação de sua frágil situação pessoal: todas de tecido leves, frágeis, já gastos e meio transparentes, predominantemente brancos que, como observa Lisette Lagnado, ‘acentuam a questão da desmaterialização tanto da obra como de seu criador. Figura 18: Leonilson, Instalação na Capela Morumbi, 1993 Fonte: <projetoleonilson.com.br/obra.php?tipo=5> Acesso: 18 mai 2011 A percepção da finitude da vida levou Leonilson, segundo Lagnado (1995, p.64), a “[...]um processo ainda mais radical de purificação”, revelado nas roupas que produziu sem o uso de muitas cores, no predomínio do branco e dos tecidos leves, o que sugeria certa desmaterialização não apenas da obra, mas também de seu autor. Além do uso do tecido, outro recurso interessante no trabalho de Leonilson é a palavra, que aparece registrada e expressada de várias maneiras; em alguns momentos surge bordada nos retalhos, em pequenos pedaços e fragmentos de tecido; em outros, é registrada como pintura, escrita nas telas com tinta; no 73 papel, ganha espaço nas aquarelas; nos nanquins e nos cadernos as frases são escritas simplesmente com esferográfica. Em seu trabalho, a linguagem é uma ferramenta que estimula os sentidos do espectador, sendo usada como intensificadora de sua poética. Nessa relação com a linguagem, podemos considerar que Leonilson se coloca como um “ativista cultural”, problematizando questões padronizadas sobre a própria vida, sobre os comportamentos humanos e sobre o tempo. No trabalho citado anteriormente, Leonilson, apresenta uma visão poética de sua situação de homem doente e frágil, atua como interrogador de paradigmas morais e éticos, assim como da situação de transitoriedade. Vemos a passagem do tempo expressa pelos tecidos gastos e pelas costuras esgarçadas, e também pelas frases bordadas, que levantavam principalmente questões sobre a fragilidade e o sobrenatural, elaboradas como “orações”, baseadas em “[...] símbolos de uma religião primitiva, [que] liga o indivíduo a uma entidade superior” (LAGNADO,1997, p.s/n). Ainda segundo Lagnado, ao mesmo tempo em que pode parecer primitivo e rústico, seu trabalho mostra-­‐se coeso ao apontar a relação do homem com o “sobrenatural” e com o desconhecido, questionando seu próprio destino e mostrando sua fragilidade. A atitude do artista, aponta o comportamento vanglorioso da sociedade de sua época e desarranja paradigmas da razão e da ciência, revela sua inquietação como individuo sobre o rumo de sua vida e do mundo. A intensidade de pensamentos como esses e de sua inquietação como sujeito em relação à cultura se manifestou na diversidade e na poética de seus trabalhos. Podemos considerar, nesse sentido, que sua obra consiste na expressão dos anseios, angústias e amores, sendo eles reais ou abstratos. Dando continuidade à abordagem de artistas que trabalham a roupa como suporte e linguagem, lembramos a artista brasileira Laura Lima que criou duas coleções compostas por acessórios, máscaras, ornamentos, capacetes, sapatos e trajes que ela nomeou de “Costumes”. Os costumes são esculturas vestíveis, 74 trajes que fazem parte de uma instalação que reproduz a estutura das lojas de varejo de moda. A montagem do trabalho obedece a alguns elementos de uma loja comercial, como cabideiros e provadores, que por suas funções de serviço acabam convidando e instigando o público a experimentá-­‐los (fig.19 e 20). Desta forma, Lima critica não só o conceito de corpo em nossa sociedade, como também aspectos do consumo e do mercado de moda, provocando, assim, a reflexão sobre os valores do capitalismo (COSTA, 2009). Laura Lima estimula o espectador a vestir, experimentar, testar e dar diferentes formas à obra, criando diferentes “esculturas” (fig. 21 e 22). Na elaboração dos Costumes, ela parte de formas planificadas cortadas em vinil. É a partir da experiência do público ao vestir que seu trabalho se completa. Lima usa o vestuário como representação de costumes e hábitos cotidianos em algumas de suas significações e propõe a seus espectadores posturas desafiantes diante do vestuário. Figura 19: Laura Lima, Novos Costumes, 2007 Fonte: <itisnot.net/2010/09/10/arte-­‐moda-­‐laura-­‐lima/> Acesso: 16 jun 2011 75 Figura 20: Laura Lima, Novos Costumes, 2007 Fonte: <itisnot.net/2010/09/10/arte-­‐moda-­‐laura-­‐lima/> Acesso: 16 jun 2011 Figura 21: Experimentos com os Costumes 1 Fonte: < http://www.casatriangulo.com/site.htm> Acesso: 12 abr 2011 76 Figura 22: Costumes sendo experimentado, em outra possibilidade Fonte: < http://www.casatriangulo.com/site.htm> Acesso: 12 abr 2011 Com a interação do espectador, a obra se completa e se concretiza. Entendemos portanto que o trabalho de Lima resgata um objeto do cotidiano com seus diversos significados e os recria em outras formas. Essas formas experimentadas nos corpos formam outros corpos, assim como deformam e os desconstroem, questionando a postura humana e dando lugar a novas possibilidades. Dessa maneira, o trabalho alterca sobre hábitos e práticas da vida contemporânea, tais como a adaptação e a massificação. Tais articulações entre princípios da arte conceitual, processos de criação artística e elementos do vestuário colaboram para a abordagem que se segue. Buscaremos estabelecer diálogos entre esses campos com o design de moda, intuito explicitado a partir da apresentação do trabalho do criador belga Martin Margiela. 77 CAPÍTULO 3 Os princípios de criação artística e o design de moda de Martin Margiela Para entender a moda como expressão do contemporâneo, buscamos analisar o processo de criação do designer na construção de seu trabalho. Assim, poderemos melhor compreendê-­‐lo como um individuo constituído e constituinte do contexto no qual está inserido. Uma coleção de moda pode ser proposta como forma de comunicação e problematização. As peças de roupas, os acessórios e os outros elementos constituintes da coleção e também as imagens são capazes de construir múltiplos sentidos, particulares e coletivos. Neste capitulo, buscaremos o trabalho de um designer de moda questionador e problematizador, revelando, no contexto da moda possibilidades de “perguntar”, ao invés de “responder” às tendências massificadoras e padronizadas do mercado, ou seja, aquele que Para ilustrar esta possibilidade criadora no campo do design de moda, procuraremos apontar possibilidades de relação entre as estratégias de criação elencadas a partir do trabalho de Marcel Duchamp entre outros artistas conceituais e algumas estratégias que se aparecem nos processos de trabalho do designer Martin Margiela. Seus princípios de criação rompem alguns dos paradigmas dos conceitos do design e da moda. O foco no trabalho de Margiela teve como base suas ações e princípios, que reforçam seus objetivos de instigar e de desmantelar os valores do universo da moda, alem de problematizar aspectos dos modos de vida contemporâneos. Nessa perspectiva consideramos que o ato de criação, tanto do artista quanto do designer, é repleto de singularidades. Esta pesquisa foi realizada a partir da análise de publicações elaboradas pela própria Maison Martin Margiela, como o livro-­‐catálogo da exposição comemorativa dos 20 anos de sua marca, realizada em 2008. O livro sobre a 78 Maison Martin Margiela foi publicado em 2009, com textos de jornalistas, designers e artistas e fotografias dos trabalhos e desfiles. Outras fontes foram o catálogo da exposição, Radical Fashion (2001), do Victoria and Albert Museum, assim como diversos livros de história da moda. Como base da pesquisa na web, o site da marca entre outros sítios que apresentam releases e textos sobre coleções e desfiles. Atentamos para o fato de que a marca tem como uma de suas estratégias a escolha pela ausência da primeira pessoa em todos os textos, ou seja, a assinatura não é de Martin Margiela mas da equipe integrante da Maison Martin Margiela. Tal postura restringe a pesquisa, pois a dificuldade de encontrar registros e documentações, é acentuada por sua recusa a conceder entrevistas, e se apresentar para fotos. 79 3.1 Quem é Martin Margiela? Martin Margiela é belga, nasceu em 1957, na província de Louvain. Sua formação foi na Academia Real de Belas Artes da Antuérpia, de 1977 a 1979. A Academia Real é uma das mais antigas do gênero na Europa, possuindo grande prestígio internacional. Foi fundada em 1663 e nos anos 1960 novos departamentos foram adicionados: design gráfico, fotografia, design de joias, cerâmica artística e design de moda. Foi nesse ambiente criativo e artístico que Margiela foi estimulado a diferentes experimentações. O departamento de moda da Academia Real é conhecido pelo treinamento dado ao aluno, que busca estimular a inovação, tendo como objetivo incentivá-­‐
los a criar e explorar formas experimentais, combinações inéditas de cores e tratamentos originais dos materiais. A abordagem da escola, segundo o texto de divulgação do site, “[…] é focada na experimentação, improvisação e inovação formal.”57 A abordagem criativa dessa Academia ficou em evidência desde a década de 1980, quando um grupo de seis alunos já formados, a saber, Ann Demeulemeester, Walter Van Beirendonck, Dries Van Noten, Dirk Van Saene, Dirk Bikkembergs e Marina Yee, lançaram-­‐se como o “Antwerp Six”58, ganhou evidência com surpreendentes criações no circuito internacional da moda. Para Margiela, a contribuição recebida em sua formação e criatividade pessoal o levou a trabalhar durante três anos como assistente de Jean Paul Gaultier59, renomado e influente criador de moda. Em 1988 ele funda sua marca, a Maison Martin Margiela, em parceria com Jenny Meirens. No mesmo ano mostra sua 57 Texto de divulgação sobre o departamento de design de moda da Academia Real de Belas Artes da Antuérpia. Disponível em: < http://www.antwerp-­‐fashion.be/> Acesso: 28 jun 2011 58 “Antwerp Six” ou o “Grupo dos 6”, coletivo de criadores de moda vanguardistas, composto por ex alunos da Academia Real de Belas Artes. 59 Jean Paul Gaultier(1952) estilista francês que trabalhou no iníco da carreira com Pierre Cardin. (SABINO, 2007, p.364)
80 primeira coleção feminina prêt-­‐à-­‐porter, primavera-­‐verão 1989. Em 1997 é escolhido para criar a linha prêt-­‐à-­‐porter da marca Hermes, ficando responsável pelo desenvolvimento da linha feminina até 2003. Em 1999 participa da publicação da revista Street, com dois volumes, e da criação do catálogo 3Suisses60, junto com Karl Lagerfelt61, Thierry Mugler62, Jean Paul Gaultier. Martin Margiela foi o primeiro designer de moda a ganhar o prêmio da ANDAM63, associação que elege jovens criadores talentosos e lhes dá suporte financeiro para o desenvolvimento de suas estruturas (BAUDOT, 2005, p.341; WATSON, 2004, p.300). Após inaugurar sua Maison, Margiela não se deixa ser fotografado, muito menos se apresenta para o público no final de seus desfiles. Sua figura de designer de moda é mantida em segredo e, juntamente com a equipe de sua Maison, divide todo o crédito dos trabalhos, passando a utilizar em seus textos e releases somente a primeira pessoa do plural. Tudo aquilo que sua marca produz é assumido como trabalho coletivo, de modo a enfatizar que não existe um designer “celebridade” que receba todo o crédito. A opção por manifestar em seu discurso somente pelo pronome pessoal “Nós”, demonstra também que na Maison Martin Margiela o trabalho coletivo existe para colocar as criações em evidência. Outro fator relevante a ser mencionado é o uso da etiqueta. Na Maison Martin Margiela, assume a forma de um retângulo branco, sem nome e sem logotipo. Assim como outros materiais e embalagens a cor branca e a superfície lisa fazem uma ode ao anonimato. 60 3Suisses. marca francesa de moda feminina e infantil. Mais informações ver < http://www.3suisses.com/> 61 Karl Lagerfelt designer de moda de origem alemã, atua como diretor de criação da Maison Chanel, possuindo também uma marca com seu nome. Disponível em: <http://www.karllagerfeld.com/> Acesso: 26 mai 2011 62 Thierry Mugler , designer de moda francês, famoso por suas criações não convencionais da década de 1980 e 1990. Disponível em: <http://www.mugler.com> Acesso: 26 mai 2011 63 ANDAM (Association Nationale pour le Développement des Arts de la Mode), Associação Nacional para o Desenvolvimento das Artes da Moda, criada em 1989, na França, por Nathalie Dufour, e presidida por Pierre Bergé. Disponível em: < http://www.andam.fr/pg/indexFL.php> Acesso: 26 mai 2011 81 3.2 O design de Martin Margiela Consideramos que a criatividade e o exercício insistente de romper com as estruturas vigentes no mundo da moda nos permite dizer que Martin Margiela impacta e problematiza os modos de funcionamento convencionais. Entendemos que sua maneira de desconstruir os paradigmas da moda “inco-­‐
moda”, não no sentido de chocar os olhos, mas de provocar, com uma estranha beleza de combinações “[...] que fala ao mundo sensível de todos nós” (Mesquita, 2010). Sua abordagem ímpar se multiplica em ações: os convites para os desfiles, a forma e o uso das etiqueta, a edição e produção de imagens, o design gráfico de seus catálogos e publicações, a arquitetura e o design de interiores das lojas e do atelier, e finalmente, a criação de roupas e acessórios. Em 2008 foram celebrados os 20 anos de criações da Maison Martin Margiela. Como parte das comemorações, ocorreu a exposição intitulada “20th The Exhibition”. No texto do catálogo, o curador enfatiza alguns princípios: [...] A abordagem diferenciada da casa não deixa de ser uma crítica sobre os métodos de outras casas de moda, nem é uma zombaria dirigida a este último como o projeto, visualizar, comunicar e comercializar a sua moda. Pelo contrário, é o produto final de uma perspectiva única, que é constantemente seguida por todos os aspectos da abordagem desta casa de moda, enquanto testemunho de um grande respeito e paixão extrema para a história da moda tanto como uma disciplina criativa e um ofício. (DEBO, 2008,p.3, trad.nossa) Sobre esse catálogo, podemos destacar a arte gráfica adotada para a capa: a editoração reproduz a dinâmica existente nos dicionários (fig.23) e apresenta o significado da Maison Martin Margiela, que aqui traduzimos: 82 Maison Martin Margiela substantivo próprio, plural, deriva do nome de um estilista belga. Empresa de moda criada em Paris, em 1988. Sede situada no número 163 da rua Saint Maur, 75011, Paris. Conhecido por seu gosto pela transgressão, seus desfiles em lugares inesperados, seu "casting de rua" misturando todas as idades. Categorizado sucessivamente como underground, desconstruído, destruído, grunge, minimalista, provocador, consagrado. ◊ 1º Vestuário para mulheres, oferecendo várias coleções, de pronto-­‐a-­‐vestir a peças únicas (coleção Artesanal). A coleção principal utiliza um rótulo branco liso sem escritas, costurada na roupa à mão, com quatro pontos brancos . As outras coleções, das quais há 12, são identificados por um número circulado na etiqueta. ◊ 2º Clientes do sexo masculino também são considerados, desde 1998, com quatro coleções distintas. ◊ 3º Comunica exclusivamente na primeira pessoa do plural "nós", a fim de focar a atenção no trabalho em equipe (16 nacionalidades) e de respeitar o desejo do criador de anonimato. "A única coisa que queremos com vanguarda é a nossa moda". ◊ 4º Conhecido pelo seu gosto pela recuperação e reciclagem de materiais. ◊ 5º Pode ir tão longe como re-­‐lançar uma peça de roupa existente (coleção Réplicas). ◊ 6º Desde sua criação, tem favorecido a utilização do branco – paredes, pisos, prateleiras, acessórios, cabideiros – em suas lojas, showrooms e escritórios. ◊ 7º Seus funcionários usam jalecos brancos (dos ateliers de "alta-­‐
costura”) como um "uniforme" ao apresentarem-­‐se em público. ◊ 8º Ext. Óculos de sol, joias, perfumes. ◊ 9º Um objeto de estudo em escolas de moda.◊ 10º Nome utilizado internacionalmente em livros, artigos e exposições. 83 Figura 23: Detalhe da capa do catalogo “20th The Exhibition” Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, capa) Seguindo com suas abordagens de criação, vale dizer que Martin Margiela separa seus trabalhos em séries que chama de “linhas”, numeradas de 0 a 23. Podemos identificar a linha de vestuário à qual a peça pertence através do número circulado nas etiquetas brancas (fig.25). O surgimento de cada linha de produto não segue ordens numéricas, sendo elas criadas ao longo de sua trajetória, de modo que alguns números permanecem sem descrição. As linhas de cada coleção são: Linha ‘0’ – a coleção “Artesanal”, presente desde 1988, é feita a mão a partir de itens já usados e produtos de segunda mão que são trabalhados de maneira inusitada. Linha ‘1’ – é a coleção na qual a Maison Martin Margiela expressa seu interesse e envolvimento pelo design, por questões conceituais e pelo processo da criatividade e da vanguarda. É através desta linha que a Maison questiona ideias já propostas sobre a moda, e 84 que na passarela apresenta atos de desconstrução e transformação. Linha ‘6’ – surge em 1997, como uma visão complementar sobre a feminilidade. Em 2004 evolui para MM6 e ganha uma nova etiqueta. Esta coleção costuma ser composta por modelagens e formas mais simples, como por exemplo, camisetas de malha. Linha ‘22’ – a coleção de calçados para mulheres, foi criada em 1998. Em 2005 passa a ser conhecida somente como calçados, com a inclusão de modelos masculinos. Linha ‘10’ – nasce em 1998, a coleção de roupas masculinas, uma versão para homens da linha ‘1’. Linha ‘13’ – é também em 1998 que a Maison dá inicio a suas publicações, começando pelo livro “2000-­‐1 by Mark Borthwick”. Em 1999, publica uma versão compilada dos dois volumes especiais sobre a Maison da Street magazine. Essa linha de produtos inclui objetos diversos, tais como canetas, tapetes, papéis de parede e projetos especiais. Linha ‘4’ – em 2003 a linha denominada “guarda-­‐roupas para mulheres” se junta a outras linhas de produto. Ela evoca a atemporalidade e funciona independentemente das temporadas de lançamento de moda. Linha ‘14’ – em 2004 uma nova linha masculina nasce, como complemento da linha ‘10’, funcionando como uma versão masculina de coleção atemporal (linha ‘4’). Linha ‘11’ – em 2005 nasce a coleção de acessórios tanto para o público masculino quanto para o feminino. Linha ‘8’ – em 2008 surge sua linha de óculos. 85 Linha ‘12’ – também em 2008 nasce a primeira coleção de joalheria, realizada em parceria com o grupo Damiani. Linha ‘3’ – a linha de fragrâncias masculina e feminina também é criada em 2008, em parceria com a L’Oréal Luxury Product Division. (MARGIELA, 2009, p.360.a-­‐360.c) Figura 24: Exemplo de algumas Linhas, índex do 20’ The exhibition da Maison Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.index) Figura 25: Etiqueta Maison Martin Margiela, Linha 10 Fonte: <helvetia.com.br/etiquetandoamoda/martin-­‐margiela-­‐uma-­‐questao-­‐de-­‐estilo/> Acesso: 17 mai 2011 86 A primeira coleção da Maison Martin Margiela foi Primavera-­‐Verão 1989, apresentada em 23 de outubro de 1989. O local escolhido foi o Café de la Gare, em um bairro da periferia de Paris frequentado por atores de teatro. Segundo Saillard (2009, p.264.a-­‐264.b), “[...], um lugar onde geralmente qualquer iniciante, exceto as pessoas do mundo da moda, pensavam em começar”. Figura 26: Desfile Primavera-­‐Verão 1989 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.37) Nesse primeiro desfile, a Maison banhou suas modelos em tinta vermelha. Ao desfilarem na passarela coberta de tecido de algodão branco, elas deixaram suas pegadas, impressões vermelhas sobre a passarela de algodão, que deixou de ser branca (fig.26). O mesmo tecido foi usado na apresentação da coleção seguinte, Outono-­‐Inverno 1989-­‐1990, em uma exposição composta por coletes, todos feitos com o algodão da passarela “manchada” pelas pegadas do primeiro desfile (DEBO, 2008, p.37). 87 Figura 27: Sapatos “Tabi” Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.38) Nessa coleção foram apresentadas as botas “tabi”, calçado que se tornou um dos objetos mais emblemáticos da história da Maison Martin Margiela. Elas foram inspiradas pelo Tabi japonês: meias longas que possuem divisão entre o dedão do pé e os outros dedos e são usadas com sandália japonesa tradicional. As meias com versões sola de borracha ainda são usadas na Ásia por trabalhadores da construção civil, agricultores e jardineiros. Elas permitem maior agilidade para os pés e dedos dos pés, facilitando a montagem de andaimes tradicionais de bambu. A proposta da tabi criada por Margiela está presente desde a primeira coleção; as botas compõem parte significativa da obra da Maison, produzindo nos últimos 20 anos inúmeras variações confeccionadas em diferentes materiais (fig.27). A criação da bota tabi, realizada pela Maison Margiela, soma a divisão do dedo do pé, inspirada da tabi original com o salto alto redondo, característico da década de 1970 (DEBO, 2008, p.39). Na primavera-­‐verão 1997, a Maison Martin Margiela apresenta uma coleção baseada na boneca de modelagem e nas etapas de desenvolvimento na construção da alfaiataria tradicional. O desfile aconteceu em uma sala 88 ambientada com mesas, cadeiras e pilastras, todos pintados de branco; sobre o chão foi plantado um campo de girassóis artificiais e ali, em meio às flores, ficaram os espectadores, compradores e jornalistas (fig.28). Figura 28: Sala de desfile Fonte: Margiela, (2009,p.301) A coleção foi inspirada na estrutura que compõe um manequim de alfaiate (ou manequim de modelagem). Margiela usa as marcações da forma básica desse objeto, medidas e composições para reconstruí-­‐lo em tecido, como o linho rústico, por exemplo. Os pespontos das peças, as marcações das costuras e até mesmo os números e letras existentes no manequim são fielmente reproduzidos, de forma semelhante aos encontrados nos manequins fabricados por Siegel & Stockman64. Porém, Margiela retira o nome da marca original do manequim, deixando apenas a inscrição "semi-­‐couture". “Semi-­‐couture” pode ser traduzido tanto como "quase como alta costura” quanto “como se fosse alfaitaria", ou seja, em algum lugar entre prêt-­‐a-­‐porter e alta costura (MARGIELA, 2009, p.204). 64 Siegel & Stockman, fornecedor de manequins para a alta costura francesa e para as vitrines das lojas de departamentos de luxo norte-­‐americano (MARGIELA, 2009, p.204). 89 Figura 29: Desfile Primavera-­‐Verão 1997 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008,p.46) As peças de roupa inspiradas na boneca de modelagem são usadas diretamente sobre a pele (fig.29) e somadas às outras peças, como uma falsa saia que só cobre a frente das pernas ou uma saia costurada diretamente na blusa. As peças dessa coleção, tais como blusas, casacos ou coletes, carregavam em si vestígios do processo de construção de roupa de alfaiate. Tais vestígios eram elementos como ombreiras sobrepostas, rabiscos e estudos sobre a peça. Cada registro feito com riscos de giz e debruns foi fixado na superfície das peças, mostrando os diferentes estágios no desenvolvimento da roupa. Aspeças que compunham a parte de baixo do look, tanto saias quanto calças, também possuíam aspecto de formas inacabadas, como se ainda fossem testes de roupas em construção, não finalizadas (DEBO, 2008, p.15). Os casacos da coleção aparecem com ou sem mangas, modelados para o corpo masculino e ganham ombreiras sobrepostas encaixadas, criando assim uma segunda forma: a silhueta feminina dentro das próprias peças de modelagem masculina. Os cardigans de tricot também são construídos sem mangas, ganhando aspecto inacabado. As camisetas surgem desbotadas, possuindo a mesma silhueta de ombro das jaquetas. A parte superior das roupas era usada 90 apenas na parte da frente de um modelo tradicional de saia, ou ainda somente com o forro da saia. Tais experiências foram mostradas na coleção primavera-­‐
verão de 1997, conforme é descrito no catálogo: Jaquetas são cortadas nas proporções de um homem. Uma vez terminado, a estrutura interna é removida e uma segunda forma de ombro feminino, é adicionado com o uso de ombreiras sobre o formato original, onde a linha do ombro masculino permanece. (DEBO, 2008, p.15, trad.nossa) A cartela de cores da coleção mostra a escolha pelos neutros: cores que vão do branco ao cinza pálido, do azul-­‐marinho ao preto. O cinza metalizado, único ponto de cor quente, foi composto por uma série de partes frontais das roupas estruturadas em veludo tendo seu forro costurado por inteiro. Vestidos estreitos dão à roupa uma forma única e irregular quando usada no corpo. Metades dos pedaços que compõem as várias partes de um vestido drapeado em chiffon são estruturadas à mão em bases elásticas ou de espartilho, assim formando novas peças de vestuário. Os sapatos também parecem estudos de peças em construção, sendo feitos simplesmente de solas de sapatos presas em um salto redondo, fixado nos pés por fita adesiva transparente (fig.30) (MARGIELA, 2009, p.204). Figura 30: Sapato usado em desfile. Primavera-­‐Verão 1997 Fonte: <thurston-­‐gore.tumblr.com/post/4891632302> Acesso: 21 mai 2011 91 Para a coleção de primavera-­‐verão 1994, Margiela selecionou de cada um de seus 10 últimos desfiles as peças preferidas e as consideradas mais notáveis. Essa nova coleção, composta pelas peças mais marcantes da Maison até então, também ficou conhecida como coleção “Retrospectiva”. Para dar unidade às diferentes peças, elas foram tingidas de cinza, formando e criando uma harmonia, uma ligação entre todas elas. A apresentação da coleção, aconteceu em um supermercado abandonado, onde foi aproveitada toda a instalação original característica do espaço comercial, com seus vários corredores formados de prateleiras. Os compradores e jornalistas receberam o convite para ir à apresentação, que ocorreu do dia 9 ao dia 17 de outubro, pouco mais que uma semana de “compras” para a coleção (MARGIELA, 2009, p.208). As peças de roupas e os acessórios foram colocados nas prateleiras, como mercadorias expostas no supermercado. Os compradores circulavam livremente nos corredores, olhando a mercadoria e fazendo seus pedidos aos funcionários da Maison. Um filme com cenas editadas dos últimos dez respectivos desfiles era mostrado repetitivamente. Em um espaço reservado, um pequeno ambiente de trabalho foi montado para mostrar ao público como se dava a realização de sua produção feita a mão. Cada uma das diferentes peças era também desfilada por uma modelo. O corpo de cada uma das dez modelos, estava carimbada a referência da temporada na qual aquela roupa foi criada (fig.31). Todas as peças dessa coleção foram comercializadas com uma estampa que continha informações de sua respectiva temporada original (MARGIELA, 2009, p.208). 92 Figura 31: Modelo com a descrição da coleção estampada no pescoço Fonte: Margiela, (2009, p.251) O desfile primavera-­‐verão 2000 foi organizado no Stade de France, um estádio de futebol afastado do centro de Paris. No release entregue à imprensa havia a descrição de como se daria o desfile: Vinte mesas de banquetes circular, com três metros de diâmetro, são cobertos com toalhas de algodão branco. Vinte cadeiras douradas cercam cada mesa. Um lugar em cada mesa não tem nenhuma cadeira. Pouco antes do show começar, degraus de madeira [são puxados] debaixo da mesa para preencher o lugar vago. Vinte mulheres entram na escuridão e cada uma ocupa um lugar vazio das mesas. Um ponto forte vertical de luz é ligado sobre cada mesa. As mulheres sobem os degraus para ficar em cima da mesa, mostrando suas roupas para o público sentado e em pé ao redor da mesa. A sala cai na escuridão após 25 segundos e cada mulher se muda para outra tabela. Cada mulher passa de mesa em mesa até que tenham estado em todas elas. No final do show, todas as modelos colocam nossa “blusa branca" sobre a roupa e saem da sala. (DEBO, 2008, p.10, trad.nossa) 93 Figura 32: Desfile Primavera-­‐Verão 2000 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.80) Essa maneira de organizar a apresentação traz a roupa para o primeiro plano, como o “prato principal”, deixando de lado o “espetáculo” do desfile de moda. A iluminação momentânea feita sobre cada silhueta separadamente, para um número limitado de espectadores, aumentou a atenção deles sobre as peças. Tal estratégia privilegiou a atenção sobre cada roupa isolada deixando a modelo em um lugar destacado (fig. 32) (DEBO, 2008, p.10). Figura 33: Paletó coleção Primavera-­‐Verão 2000 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.85) 94 Figura 34: Paletó coleção Primavera-­‐Verão 2000 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.87) Figura 35: Roupas oversized Fonte: Margiela (2009,p.289) Nessa coleção, como também em algumas outras, a Maison Martin Margiela se desviou significativamente do corpo padronizado prescrito pelo mundo da moda como o “ideal” ou o “bonito”. Assim, explorou a ideia de roupas 95 oversized65. A coleção foi composta por peças feitas para o vestuário masculino, como o casaco, o blusão, o blazer e o paletó. As peças apropriadas do guarda-­‐
roupa masculino foram confeccionadas em algodão branco para enfatizar as características básicas da forma e de suas dimensões. Uma versão ampliada dessas roupas foi produzida em tamanho italiano 74 (fig. 33 e 34). As ampliações também incluíam vestidos de segunda mão, blusas e saias cujas formas e tamanhos originais foram transformados a mão, criando um tamanho 74 uniforme para todas as peças de vestuário da coleção (fig.35) (DEBO, 2008, p.14 e 85). Na coleção outono-­‐inverno 1994-­‐1995, as peças de vestuário e os acessórios foram feitos a partir de reproduções de roupas de boneca, como os brinquedos americanos Ken e Barbie66 e os bonecos de ação G.I. Joe67. Para desenvolver as peças, Margiela faz ampliações seguindo as proporções das roupas dos bonecos, ou seja, as roupas dos brinquedos foram graduadas com base em suas medidas e proporções (fig.36). Esses itens, roupas e acessórios, são fornecidos com uma segunda etiqueta que diz, segundo descreve Debo (2008, p.14, trad. nossa): "Vestuário reproduzido a partir do guarda-­‐roupa de bonecas (Detalhes e desproporções são reproduzidos na ampliação)". O que é desfilado são peças do vestuário com uma quantidade enorme de desproporções de medidas e mau acabamento, igual as das bonecas, mas que só se consegue notar quando são ampliadas para as dimensões humanas (fig.37). 65 oversize, do inglês, um tamanho propositamente maior que o tamanho usual. Disponível em: < http://www.merriam-­‐webster.com/dictionary/oversize> Acesso: 27 mai 2011 66 Ken e Barbie, bonecos de brinquedos popular infantil. A Barbie foi criada em 1959, podendo ser encontrada em diversos modelos, como Barbie dançarina, princesa, etc. O boneco Ken, versão masculina, foi criado em 1961. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Barbie> Acesso: 15 jun 2011 67 G.I. Joe. boneco de ação popular infantil. Baseado em soldados, foi criado na década de 1970. Disponível em:< http://aletp.com/2008/05/14/comercial-­‐da-­‐decada-­‐de-­‐70-­‐dos-­‐bonecos-­‐gi-­‐joe-­‐da-­‐hasbro/> Acesso: 15 jun 2011 96 Figura 36: Coleção outono-­‐inverno 1994-­‐1995 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p. 92). Figura 37: Coleção outono-­‐inverno 1994-­‐1995 Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p. 92). Do ponto de vista de uma produção industrial, na fabricação dessas roupas que vestem os brinquedos, é impossível diminuir o tamanho de elementos como prendedores e zíperes para as proporções dos bonecos. Então, quando tais componentes são ampliados dos bonecos para a proporção humana, tornam-­‐se monstruosos. Além disso, Maison Martin Margiela também ampliou os pontos do tricot de lã, o que resultou em pontos extremamente grossos para os 97 sweaters. Por causa dos custos de produção, as roupas para bonecas muitas vezes carecem de um acabamento detalhado, pois gastariam-­‐se muito tempo em cada uma das pequenas peças. Por exemplo, o excesso de fios das costuras nunca é cortado, enquanto que na parte de trás das peças, as golas das blusas e casacos não são totalmente costurados porque o trabalho necessário para um bom acabamento custaria tempo e dinheiro. Margiela levou esse aspecto em consideração ao ampliar as roupas em miniatura. Os colares são parcialmente abertos atrás e o excesso de linha não foi arrematado (DEBO, 2008, p.14-­‐15). 98 3.3 Princípios que regem as criações de Martin Margiela No presente estudo, nomeamos alguns princípios que consideramos permear os processos de criação da Maison Martin Margiela. Eles possuem como base os preceitos de criação listados no capítulo anterior, que aborda a arte conceitual. Nesse sentido, a nomenclatura adotada busca fazer uma correspondência com os outros principios elencados. Entretanto, alguns dos títulos seguiram uma adequação, para melhor revelar o contexto do criador em questão. a) Exercício da precariedade e do inacabamento Um dos princípios trabalhados pela Maison Martin Margiela é a exposição do acabamento da roupa, ou seja, em muitas peças as costuras, as marcações e os pespontos que ficam escondidos do lado avesso, estão à mostra do lado de fora. As linhas e as sobras de tecido de um recorte, por exemplo, fazem parte do processo de construção e elaboração de algumas peças. Com a exposição dos elementos que constituem a estrutura da peça de roupa as partes da construção e o processo de costura ficam aparentes e a roupa é desvendada em sua confecção, deixando claro como ela foi montada e costurada. Esse princípio pode ser observado na coleção de primavera-­‐verão 1997, citada anteriormente, e na coleção seguinte, outono-­‐inverno 1997/98. Nessas duas coleções, o manequim de modelagem foi explorado como ponto de partida para a coleção inteira. Foi utilizada tanto a própria forma do manequim como a ideia do que ele representa: a base para a construção de uma peça. Nessas coleções, pode-­‐se observar jaquetas e coletes feitos em semelhança com a forma do manequim, tais como vestidos, blusas, saias e calças com aspecto de “ainda em construção”. As peças de roupa eram inacabadas, umas com costuras abertas, outras com costura do lado de fora, vestidos riscados com caneta de alfaiate que marca recortes e pences da peça e ainda elementos 99 construtivos, como ombreiras e zíperes, costurados como na fase de experimentação da peça (fig.38 e 39). Figura 38: Vestido inacabado com o forro a mostra, outono-­‐inverno 2003/04 Fonte: Margiela, ‘20th the Exhibition’, (2008, p.48) Figura 39: Vestido com as marcações de pences e de construção da peça, outono-­‐
inverno 1997/98 Fonte: Margiela, ‘20th the Exhibition’ (2008, p.45) Em outro desfile, primavera-­‐verão 2006 Margiela deixou mais uma vez o processo de construção da roupa inacabado. As peças da coleção foram 100 costuradas somente de um lado. Vestidos, saias, calças e trench coat foram desfilados com apenas um dos lados da peça construído, finalizado e costurado. Em alguns momentos, a modelo caminhava com um rolo de tecido ou um carretel de linhas ligados à sua roupa. Podemos entender que esses resultados provocam críticas sobre a velocidade com a qual as empresas de moda produzem centenas de peças em tempo limitado. A vulnerabilidade do processo de construção e confecção do vestuário também é enfatizada com a colocação de fitas adesivas com o termo “frágil” que envolvem sapados e acessórios (DEBO, 2008, p.12). entendemos também que a precariedade e o inacabamento são exercitados e explicitados de modo a provocar um certo embate com as regras do bem vestir mais convencional e do perfeccionismo que atravessa a lógica de produção do mercado, e as demandas dos consumidores. b) Apropriação do cotidiano Em diversas coleções, Margiela se apropria de objetos comuns diversos, mas essa estratégia de trabalho se revela ainda mais em sua linha Artesanal. A linha identificada nas etiquetas com o ‘0’ circulado é composta por peças elaboradas a partir de objetos e materiais já prontos. Em geral Margiela desloca o propósito inicial desses materiais e os utiliza na construção de roupas. Podemos citar alguns dos mais conhecidos trabalhos dessa linha, como o casaco feito com meias (fig.40). As meias que compõem a clássica indumentária do exército militar, foram garimpadas em lojas de segunda mão, recortadas e costuradas de modo a constituírem um casaco. 101 Figura 40: Casaco realizado a partir de meias, outono-­‐inverno 1991/92 Fonte: Margiela (2008,p.26) Outro exemplo são os acessórios feitos com os cristais de um candelabro: as pequenas formas cortadas em cristais são usadas de várias maneiras, tanto juntas, formando um colar, como separadas, criando pingentes (fig.42). Outras peças que revelam este princípio de criação são as blusas feitas a partir de um globo espelhado de discoteca, ou os vestidos feitos de telas de pinturas retiradas do suporte de madeira (fig.41). Nessas peças, as telas pintadas a óleo passaram por um tratamento especial a fim de serem amolecidas e então elas foram forradas com tecido de seda, e se transformaram em saias e vestidos. Todos os materiais utilizados nesta coleção são de segunda mão, roupas e objetos usados e descartados por seus donos. Ao serem reapropriados, retrabalhados ou tratados especialmente para servirem de material na construção de peças de roupa, ganharam outros significados e funções. 102 Figura 41: vestido realizado a partir de telas de pintura, primavera-­‐verão 2007 Fonte: <maisonmartinmargiela.com/en/collections/PE2007/collection-­‐1.html> Acesso: 20 mai 2011 Figura 42: Colar com pendente realizado a partir de lustre de cristal, outono-­‐inverno 2005 Fonte: Margiela (2009p.340) 103 c) Ode à ausência e diluição da autoria Dentro de sua Maison, Margiela elege alguns suportes para expressar o anonimato de várias maneiras, a etiqueta costurada na roupa é uma delas. Símbolo que certifica a autenticidade de uma peça, a etiqueta agrega valor pela marca ali grifada. Na Maison Martin Margiela, ela assume a forma de um simples retângulo de algodão branco com uma numeração indicadora da linha do produto estampada, costurado manualmente na roupa (fig.43). Essa ideia vai contra alguns dos vários princípios do marketing de moda. Alem disso revela a intenção de nomear as coleções, de forma simples identificando-­‐as somente por números. Anonymity é descrita no glossário como "Uma reação contra o popularizado e disseminado sistema de celebridades, o desejo de deixar a ideia falar por si mesma" (MARGIELA, 2009, p.360.a, trad.nossa). Figura 43: Etiqueta branca presa com quadro pontos de costura Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.17) O anonimato é exercitado de diversas maneiras, entre elas, a recusa do designer Martin Margiela em aparecer na passarela de seus desfiles, e de ser registradro por meios fotográficos ou vídeos. Alem disso, nas criações o anonimato se manifesta na etiqueta “sem nome” e na escolha por modelos desconhecidas para os desfiles, em contraposição ao culto às top models. A Maison também propõe formas de esconder a face das modelos em algumas coleções (fig. 46 e 47). Uma das estratégias usada em um desfile foi tarjar os olhos de preto. Em outra apresentação, os cabelos aparecem penteados de 104 forma a cobrir o rosto delas que em outra apresentação são cobertos por véus feitos de tecido. As tarjas pretas se remetem ao jornalismo investigativo, entre outras instancias nas quais a identidade precisa ser preservada. Essa estratégia de cobrir os olhos, deu origem aos óculos de sol da coleção primavera-­‐verão 2008, batizada de “Incógnito”, que apresenta uma peça retangular que cobre inteiramente os olhos de quem usa (fig.44 e 45). Figura 44: Óculos Incógnito Fonte: <http://www.bemresolvida.com.br/?p=17128> Acesso: 28 jun 2011 Figura 45: Óculos Incógnito em duas versões. Fonte: < http://www.oki-­‐ni.com/invt/mm0088blk> Acesso: 19 jun 2011 105 Figura 46: Modelos “sem rosto”, desfiles diversos. Fonte: Seeling (2011, p. 394) Figura 47: Modelos “sem rosto”, desfiles diversos. Fonte: Seeling (2011, p. 398) A etiqueta branca costurada nos quatro cantos sobre a roupa também afirma o desejo de anonimato, conforme aparece no texto do catalogo: “Um símbolo 106 afirmativo de anonimato, um desejo de não influenciar uma vestimenta pela presença de uma marca, uma resposta à tirania de logos” (MARGIELA, 2009, p.360.a, trad. nossa). Podemos citar também outro momento em que Margiela problematiza questões sobre a autoria na coleção “Réplica” (fig.48). Ela foi introduzida nas linhas 4 e 14 a partir de 2003 e as peças são, como diz a própria etiqueta da coleção, “Reproduções de vestuários encontrados de diferentes fontes e períodos” (DEBO, 2008, p.65, trad.nossa), Essas peças de alfaiataria, originarias de várias décadas, foram encontradas em brechós. O trabalho de Margiela foi restaurar, preservando o significado que as respectivas peças têm na história do vestuário, para, em seguida, colocá-­‐las de volta à circulação. Ao reformar as peças, elas recebem a etiqueta da Maison juntamente com outra, “Replica”, onde constam informações sobre o local e o período no qual, originalmente a peça foi criada. Figura 48: Camisa masculina da coleção Replica, detalhe da etiqueta. Fonte: Margiela (2008, p.66) Este princípio não apenas questiona a autoria como também provoca indagações sobre o valor mercadológico daquilo que é considerado “original” ou “novo” no campo do design de moda. 107 d) Subversão das hierarquias da engrenagem da moda Em suas apresentações, Margiela também balança as estruturas vigentes em relação à “valorização” conferida aos assentos marcados nas fileiras das salas de desfile. A fila “A”, a primeira, geralmente tem vista privilegiada da passarela, e seus assentos são, em sua maioria, destinados a jornalistas, compradores, pessoas influentes e formadoras de opinião. Um lugar nessa fileira, é cobiçado pela maioria dos expectadores e por celebridades criadas pela mídia. São lugares cobiçados também por personalidades dos meios artísticos, tais como atores e cantores, e passou a ser um símbolo de status, tanto para o convidado, “presenteado” com aquele lugar na platéia, quanto para a marca que usa de forma publicitária a presença do “espectador”, famoso prestigia o desfile. No entanto, Margiela desconstrói essa hierarquia, como podemos perceber no exemplo que se segue. Os convites para os desfiles possuem grande importância visual e muito valor simbólico para quem os recebe; portanto, a arte-­‐final de um convite guarda um conjunto de decisões de uma marca. “Desde o final dos anos 1970 [...] o desfile de moda lembra um espetáculo teatral. [...] Os convites dessas celebrações bianuais são tratados como obras de arte por desenhistas, pintores e fotógrafos” (BOUCHER, 2010, p.429). Em um dos desfiles da Maison Martin Margiela, primavera-­‐ verão 2007, todo o processo de escolha para o formato do convite foi decidido a partir da matéria-­‐prima escolhida. Optou-­‐se pelo uso do papelão, no qual foram cortadas as letras do alfabeto que representam a numeração das fileiras em grande escala e nelas foram estampadas as informações do desfile, como data e local. A organização dos assentos, por sua vez, não estava em ordem, como de costume, a letra “A” indicando a primeira fila, a letra “B” a segunda e assim por diante. O que se viu foram convidados que seguravam orgulhosos as letras classificatórias de sua “importância” sendo surpreendidos ao perceberem que a letra “A” não representava melhor fileira que a “D” (WIERINK, 2009, p.344.a-­‐344.b). 108 Entendemos que Margiela concebeu uma nova configuração em um período no qual a maioria dos designers e marcas seguiam praticamente as mesmas tendências exclusivistas, extravagantes e elitistas. Margiela surgiu em um momento em que os designers de moda estavam sendo elevados a super estrelas; porém, desde o início, ele escolheu permanecer anônimo e deixar que seu trabalho falasse por ele (DEBO, 2008, p.5). A ideia do desfile-­‐espetáculo é frequentemente combatida pela Maison que escolhe espaços alternativos às salas da semana de lançamento como um estádio esportivo, um supermercado abandonado, vagões de trem estacionados na estação, vitrine de loja, a própria rua, e até mesmo bares tradicionais do circuito da boemia parisiense. Esse princípio de escolha nos revela questionamentos sobre o glamour que envolve os desfiles da alta-­‐
costura francesa. Além dos lugares incomuns também os formados das apresentações são pensados como ações que apontem para um “fora” da instituição moda. No ano 2000, o desfile outono-­‐inverno 2000/01, ocorreu numa estação-­‐
depósito de trens da companhia férrea nacional francesa. Doze vagões tiveram sua decoração interior refeita e os convidados para o desfile se sentavam em cadeiras douradas, por onde as modelos transitavam lentamente, de vagão em vagão. Outro exemplo é a apresentação da coleção de primavera-­‐verão 2002, realizada em um típico café na região central de Paris, durante o horário de funcionamento normal, estando aberto ao público frequentador habitual. Na ocasião, compradores e jornalistas internacionais foram convidados para tomar um “drink” no respectivo café, onde a coleção era mostrada em pequenos e simples televisores posicionados sobre algumas mesas. Acompanhando a apresentação, estavam juntos alguns funcionários da equipe da Maison, vestidos com jalecos brancos, que se disponibilizavam para fornecer a jornalistas, compradores e até mesmo aos frequentadores habituais do café, informações e explicações mais detalhadas sobre a coleção, além de 109 apresentarem as peças em cabides para quem desejasse, naquele momento, vê-­‐las e tocá-­‐las (DEBO, 2008, p.11). e) Exercício poético da temporalidade O tempo, como elemento de registro de duração ou transitoriedade, é incorporado no conceito de criação da marca através do uso de materiais que mostram literalmente sua ação sobre eles. A utilização de tecidos envelhecidos e de cor branca realçam estas inquietações. Interpretamos que a escolha do branco, para Margiela, revela um tempo em constante movimento, em deslocamento contínuo que deixa suas marcas nessa cor. O material branco que cobre os móveis de suas lojas e atelier foi escolhido por deixar claramente visíveis as marcas deixadas pela passagem das pessoas e pelo desgaste do tempo (fig.49). Assim, em suas roupas e objetos brancos, o tempo é revelado e evidenciado em sua transitoriedade (VINKEN, 2008, p.111). A valorização daquilo que é novo ou que está por vir tão comum às lógicas da moda é relevada pela insistência poética em revelar o passado. O uso do branco nas paredes e nas mobílias encobertas de tecido no atelier e nas lojas (fig.50), assim como nas embalagens e até nas capas de livros e catálogos, registra a marca do tempo na superfície branca dos suportes. É importante lembrar que a cor branca por si só já fica amarelada ou acinzentada com a ação do tempo e para a Maison, o branco tem um significado especifico: [...] branco significa a força da fragilidade e a fragilidade da passagem do tempo. Uma expressão de unidade, pureza e honestidade. Não é apenas branco, porém – brancos – em todos os tons possíveis. Nós geralmente usamos o branco mate de maneira que a passagem do tempo fique mais evidente. (DEBO, 2008, p.10, trad. nossa) 110 Figura 49: Loja encobertos por tecido branco e tinta branca Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.21) Figura 50: Ambientes do Atelier e Loja encobertos por tecido branco e tinta branca Fonte: Margiela, ‘20’ The exhibition (2008, p.20) 111 Constatamos que a ação de registrar a passagem do tempo esteve presente desde a apresentação de sua primeira coleção, em 1989, quando Margiela cobriu de tinta vermelha os sapatos das modelos antes de elas entrarem na passarela, fazendo com que cada uma deixasse suas pegadas registradas na passarela coberta por um tecido branco. Esse tecido que cobria o piso da passarela foi usado na coleção seguinte, transformado em peças de roupas, onde foram estampadas as datas do desfile em que elas foram “concebidas” originalmente (fig.51). Declarações como essas revelam que desde o início a Maison trabalha as questões relativas ao tempo como marcas significativas. Tanto quando e registrado na roupa como quando é revelado em seu processo, ou ainda através do diálogo estabelecido por suas criações (DEBO, 2008, p.10). Figura 51: Tecido branco da passarela de 1989 com pegadas da bota “Tabi” e foto do desfile seguinte 1989/90 com o tecido transformado em blusa com a data da sua concepção. Fonte: <flickr.com/photos/synaes/5652079554/in/photostream/> Acesso:16 jun 2011 112 3.4 A coleção Artesanal de Maison Martin Margiela: Linha zero A coleção linha ‘0’ funciona como uma única e grande coleção trabalhada a cada temporada continuamente. A cada temporada de desfile, Margiela dá continuidade à linha apresentando mais algumas criações elaboradas até o período que antecede a apresentação. A concepção das ideias e a elaboração das peças para realizar esta linha em cada desfile é que se sobrepõe às coleções. Nessa linha, especificamente, o valor de sua ideia é revelado na problematização que ela traz sobre questões sociais e culturais relativas ao consumo. Procuraremos descrever nos próximos parágrafos esta problematização. Desde o início de sua carreira, em 1988, Margiela tem usado roupas, acessórios e outros itens de segunda mão, como também objetos e materiais novos ou inusitados, transformando-­‐os em matéria-­‐prima para realizar suas criações. Objetos e materiais fabricados para funções diversas são apropriados pelo criador e trabalhados manualmente, reparados e tratados para serem transformados em peças do vestuário. A partir da temporada de 2005, Margiela busca manter esta abordagem ao desfilar sempre uma coleção nessa linha de criação, durante as apresentações da alta costura parisiense, duas vezes por ano. Como acontecem os desdobramentos na abordagem dessa linha? Como se dá a construção dessas peças? Um dos fatores importantes a respeito dessa linha é o trabalho manual, que refaz as peças: cada peça é feita ou reformulada inteiramente à mão, no ateliê da Maison em Paris, recebendo por isso a identificação “artesanal”. Na realização de cada peça, o tempo ganha um valor extra: podemos dizer que ele se transforma, sobretudo, em sinônimo de qualidade na execução das criações. O tempo necessário para fazer cada item, a quantidade de horas gastas na concepção de cada peça é considerada informação importante e por isso, o registro das horas de trabalho é apontado 113 em todas as etiquetas dessa linha. Cada item é completamente único e produzido em quantidades restritas, pequenas produções em série, devido à limitação dos materiais de base. A etiqueta numerada com o '0' circulado é costurada, estampada ou gravada, de acordo com o material do vestuário. As peças ganham também outra etiqueta, que vem pendurada na roupa com a descrição e informações sobre a coleção Artesanal (fig.52) (MARGIELA, 2009, p.360.a-­‐360.b). Figura 52: Tag da coleção Artesanal Fonte: < http://blog.thefind.com/2009/09/fashions%E2%80%94a-­‐closer-­‐look-­‐
at-­‐martin-­‐margiela-­‐artisanal-­‐collection/> Acesso: 28 jun 2011 A partir do momento que Margiela utiliza materiais comuns, considerados ordinários, ele estabelece um contraponto ao realizar peças de roupas e acessórios únicos em um trabalho manual com técnicas de construção complexas, buscando com isso aluir o sistema de valores da alta costura tradicional. A Maison Martin Margiela se apropria do trabalho meticuloso da alta costura, como o trabalho manual e a criação de itens exclusivos, para criar peças reinventadas. No que diz respeito ao uso de materiais luxuosos e matérias-­‐primas caras da alta costura, Margiela desmantela alguns dos padrões 114 de refinamento da moda, ao usar materiais considerados sem apelo comercial ou sem valor de mercado. Percebemos que sua crítica vai também em direção ao princípio de descarte e a efemeridade dos itens produzidos em massa pela cadeia de moda e à submissão do público às tendências estilísticas do vestuário. Tal submissão acaba afetando a percepção de valores dos itens do vestuário e acessório. Esse é um exemplo do princípio de subversão das engrenagens da moda, com questionamentos sobre a submissão dos consumidores aos padrões de valor convencionais (MARGIELA, 2009, p.360.a-­‐360.b). Como vimos anteriormente, a linha de vestuário “Artesanal”, apresenta-­‐se como uma coleção contínua no qual o conceito de criação permanece e, a cada temporada, novos materiais são explorados dentro dessa mesma cadeia de criação, como um princípio de trabalho processual. Podemos citar alguns exemplos de coleções, como a de outono-­‐inverno 2005, no qual materiais diversos foram explorados. As perucas, a atadura e a tapeçaria (fig.53-­‐55), trabalhadas em suas tramas, texturas e formas, geraram jaquetas, blusas e vestidos. As saias e joias foram criadas da mesma maneira, a partir de peças diversas, tanto no que se refere à forma quanto ao conteúdo material; como no caso das peças de lustres de cristais (fig.56). Outro exemplo da continuidade do uso de peças de segunda mão, são as peças nas quais a reorganização material e visual dos tecidos aconteceu a partir do uso de fita adesiva preta. As fitas cobriram as peças, que passaram a ter a forma do material; cada peça foi coberta completamente, ganhando o aspecto de um banho de tinta nanquim (fig.57). 115 Figura 53: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/ AH2005/collection_artisanal.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 54: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/AH2005/collection_artisanal.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 55: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 Fonte:<martinmargiela.com/en/collections/AH2005/collection_artisanal.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 56: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/AH2005/collection_artisanal.html> Acesso: 12 mai 2011 116 Figura 57: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐ Inverno 2005 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/AH2005/collection_artisanal.html> Acesso: 12 mai 201 A coleção Artesanal outono-­‐inverno 2006 trabalhou com cintos e golas, explorou a pele de casacos antigos, buscou nas gravatas borboletas garimpadas em brechós (fig.58), nos vestidos de festa infantil e em conjuntos de tricot feminino da década de 1950 as peças necessárias para dar forma à coleção. Todas as peças foram desconstruídas, cortadas, reunidas e re-­‐costuradas, modelando vestidos, blusas e jaquetas. Da reorganização e agrupamento de vários cintos, por exemplo, surgiu uma calça comprida com listras horizontais, formada pela variação de cores e tons de cada cinto (fig.59). Para dar forma a um acessório feminino, foi no universo dos motociclistas que Margiela buscou a referência, ao encontrar no desenho do capacete a forma ideal para a execução de bolsas (fig.60). O designer inverteu a posição funcional de uso do capacete de modo que um acessório que, a princípio, foi criado para proteger e prevenir acidentes em uma parte específica do corpo, muda de função e se transforma em outra coisa. 117 Figura 58: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006. Fonte:<martinmargiela.com/en/collections/AH2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 59: Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/AH2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 118 Figura 60 : Peça da Coleção Artesanal, Outono-­‐Inverno 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/AH2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Dentro dessa linha de criação, onde a continuidade é o fio condutor dos trabalhos, iremos focar uma temporada em particular, e dentro dela, buscaremos analisar algumas peças de maneira mais detalhada. Para a coleção primavera-­‐verão Artesanal 2006, Margiela elaborou um desfile privado, com convidados selecionados. A opção de apresentação foi mostrar algumas peças vestidas pelas modelos e outras ficarem apenas em exposição. O ambiente do evento foi dividido por paredes, construídas por tecidos brancos com recortes vazados retangulares, como se fossem quadros emoldurados em uma parede, o que funcionou como uma janela onde aparecia o outro ambiente, por trás da parede. Nesse local, os modelos aparecem no retângulo do quadro ou janela, cada um ficando ali parado, de maneira a exibir a peça que veste em vários os ângulos (fig.61). Cada janela, recortada nessa parede é localizada em alturas e tamanhos estratégicos, de maneira que, quando o modelo aparece por trás, fica em evidência somente a altura de seu corpo, onde se encontra a peça de vestuário da coleção (fig.62). Como a parede é feita em tecido branco, e há um foco de luz por trás de cada modelo, é possível ver sua silhueta, mas somente a peça pode ser vista pela janela, de forma que o modelo permanece anônimo atrás da parede. 119 Figura 61: Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 62: Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Nessa coleção, diversos materiais inusitados são explorados de várias maneiras, tanto na modelagem feminina quanto na masculina. Os materiais escolhidos para o desenho da coleção são trabalhados tanto em suas formas originais 120 quanto em releituras. Por exemplo, através do processamento material e visual, cordões de pérolas fantasia68 e fios formados de miçangas estruturam blusas. Os acessórios ganham espaços específicos no corpo, são pendurados em estruturas localizadas em alguns pontos estratégicos da silhueta, como braços, punho e decote. Na cintura, uma semiargola forma a base onde esses cordões são presos, cordões que são usados também para criar os cintos. Para a coleção masculina, explora materiais como a lona usada pelo exército, material rígido e de cor esgarçada, usado para camuflagem na selva (fig.63). Figura 63: Calça e jaqueta de lona. Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 A sandália de verão masculina de couro também é usada, aproveitando o cabedal69 inteiro e aberto de seu formato. Da sandália, ele faz uso inclusive dos fechos em metal de sua estrutura, eles são presos e costurados uns aos outros formando jaquetas e coletes em vários tons de marrom, preto e branco. A coleção usou também cartas de baralho que, após serem tratadas, impermeabilizadas e envernizadas, foram sobrepostas e coladas umas às 68 Pérolas fantasia é o termo adotado no mercado joalheiro por designers e ourives para denominar pérolas não verdadeiras no uso de suas criações. 69 Cabedal: Parte superior do calçado destinada a cobrir e proteger a parte de cima do pé. Compreende praticamente toda a extensão do sapato, menos a sola. Divide-­‐se em gáspea (parte da frente) e traseiro (parte lateral e de trás do calçado). O cabedal é para o calçado mais ou menos o que a carroceria é para o carro. Disponível em:<marcvisao.blogspot.com/2009/08/conhecendo-­‐seu-­‐sapato.html>. Acesso: 12 mai 2011 121 outras, modelando coletes masculinos (fig.64). Também foram feitos coletes de tampas de metal de garrafa de vidro, presas uma a uma com argolas de metal entre si, formando uma rede que lembra o aspecto da renda de fuxico (fig.65). Lenços de pano antigos aparecem unidos e costurados formando um patchwork em camisas (fig.66); almofadas são esvaziadas e transformadas em casacos (fig.67). A criação dos acessórios partiu de pequenos objetos, como rolhas de vinho, tampas de garrafa pet, conchas do mar, tampinhas de plástico e pedaços de peças de plástico unidas com argolas de metal dourada. Essas criações ou realizações de Margiela nos remetem à apropriação dos objetos do cotidiano: são objetos considerados ordinários que têm determinada função e ao serem apropriados pela Maison, são transformados em moda. Figura 64: Colete de cartas de baralho. Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <flickr.com/photos/synaes/5651389569/in/photostream/> Acesso: 12 mai 2011 122 Figura 65: Colete de tampa de metal. Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Figura 66: Camisa patchwork de lenços. Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 123 Figura 67: Casaco de almofadas, Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Dentre as peças que selecionamos na coleção Artesanal outono-­‐inverno 2006, analisaremos três criações: 1) a jaqueta de cordões de pérolas fantasia, 2) a jaqueta de sandálias, 3) o colar de pequenos objetos. Primeiramente, destacaremos a jaqueta feita de cordões de pérolas antigas (fig.68), peça que necessitou de uma elaboração apurada em sua estrutura de formação. Os cordões que compõem a peça passaram por uma avaliação baseada em pesos e medidas, para que no processo de sua construção existisse uma distribuição equilibrada dessas pequenas esferas na estrutura final. Para que os cordões tomassem a forma de um casaco, foi usado um material semelhante à barbatana que estrutura um espartilho. Essa barbatana é presa na boneca de modelagem, obedecendo às partes estruturais, como decote, cavas, braços e punho, fazendo o desenho do casaco. Os cordões então são presos e costurados à mão como tiras, linhas verticais que, lado a lado, vão 124 tomando a forma de uma jaqueta. Os fechos dos cordões são aproveitados e usados como o próprio fecho do casaco. São colares e cordões de pérolas, contas ou miçangas antigas originarias de diferentes períodos que, presas nessas bases de barbatana dão vida ao casaco. O tempo de trabalho para a realização de cada uma dessas jaquetas, chegou a ser de 41 horas. Margiela exalta o valor da peça através do uso de sua própria transitoriedade e no registro do tempo de suas ações. Partindo da valorização do tempo e da história do objeto, abordaremos suscintamente um dos materiais utilizados na peça: a pérola, matéria-­‐prima fundamental na realização dessa jaqueta. A pérola, gema de origem orgânica em sua formação natural, surge quando um grão de areia, corpo estranho à concha, vai para o interior do molusco e começa a machucá-­‐lo. Para se proteger, o molusco reage química e fisicamente, o que faz surgir a pérola, a partir de um processo onde o grão é envolvido em uma substância dando forma à gema. A pérola transforma a dor em preciosidade, joia considerada por várias civilizações como símbolo de pureza e riqueza. No universo da moda, ela foi imortalizada por Coco Chanel na década de 1920, como símbolo de elegância, quando criou peças misturando pérolas verdadeiras com pérolas fantasia. A jaqueta feita de cordões de pérolas (falsas ou verdadeiras) não foi estruturada por cordões novos comprados a metro no atacado. Ao adquirir esses colares e pulseiras já usados, constatamos que Margiela criou uma peça a partir de vários fragmentos de histórias vividas por aqueles que as carregaram. Esses cordões de pérolas, carregam em si um pouco da vida e da memória de seus donos. Por serem usados, trazem as marcas singulares através das manchas e do cheiro de seus antigos donos. 125 Figura 68: Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 A segunda abordagem é sobre as jaquetas e coletes feitos de sandálias de couro (fig.69). Da estrutura das sandálias de couro de verão masculinas, foi usada a parte de cima, o cabedal. As sandálias foram destacadas, retiradas da sola, abertas por inteiro e colocadas sobre o manequim. Ali reunidas e costuradas, formaram um casaco ou deram forma a um colete. Dessas sandálias de couro de diferentes modelos foram usadas inclusive as fivelas de metal e as tiras do calcanhar. Tal modelo foi feito em três diferentes variações de cores, no tom natural do couro, em preto e em branco. Sobre o tempo de execução, nessa série cada peça foi realizada e concluída em 22 horas de trabalho. Podemos reconhecer nesse exemplo o que podemos nomear de princípio da diluição da autoria da criação. As sandálias de couro selecionadas vieram de diferentes fabricantes, lugares diversos, e criações distintas. Ao se apropriar delas, e transformá-­‐las para outro uso, vemos que Margiela critica as ideias convencionais de criação de moda, tal como a utilização de materiais específicos para cada tipo de vestimenta. Margiela não criou nem fabricou as sandálias, mas as re-­‐contextualizou e as transformou em outra coisa, deu a elas 126 outra função, transformando-­‐as em casacos. Figura 69: Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Ao observarmos essas peças feitas das sandálias de couro, vemos uma trama que nos remete a uma renda de pontos grandes e largos. Ao mesmo tempo que o couro confere certa rigidez ou peso à peça, a maneira como as sandálias foram reunidas e os espaços vazados, criam uma superfície leve. Temos também os desenhos e formatos próprios já existentes das sandálias. Eles, por sua vez, formam também diversos desenhos como se fossem diferentes texturas. A princípio, não é possível identificar de imediato de qual material se trata, que material estrutura a peça. Um segundo olhar, possibilita perceber que se trata de sandálias de couro usadas, calçados antigos, descartados e resgatados por Margiela. Percebemos que o olhar de Margiela transcende a origem e a qualidade do couro, permitindo sua transformação em “tecido” de base para uma nova peça. O uso do couro pela indústria da moda vem sendo criticado, sobretudo nos últimos 20 anos, quando posturas éticas começaram a ganhar visibilidade e 127 passaram a ser sinônimo de consciência ecológica, e contribuição para a preservação do planeta – o couro é um material de origem animal. Partindo do princípio de que a moda tem como uma de suas características a efemeridade, vemos a indústria usar tal material de forma considerada negligente ao produzir milhares de peças a partir do couro de animais. Muitas das peças criadas e executadas para uma coleção, serão descartadas. Analisando o processo de criação das jaquetas, vemos um investimento no sentido contrário. Esta ação parte de uma desfiguração do design original da sandália, e oferece uma nova forma visual ao objeto. A construção da nova peça transforma o objeto original em um patchwork de retalhos de couro. Com tal processo, Margiela modifica também o contexto, pois apesar de a sandália ser feita para ser “vestida”, seu uso é destinado aos pés. Esta reutilização não somente questiona o uso do couro, mas problematiza questões sócio-­‐político-­‐culturais e ambientais relacionadas ao descarte. A terceira análise é sobre o colar da coleção de 2006 (fig.70), único registro de adorno que encontramos em nossa pesquisa dentro desta coleção. O colar é formado por pequenos objetos retirados do cotidiano. Temos, por exemplo, uma rolha de vinho, que lacra uma garrafa de vidro, geralmente com valor monetário representativo e/ou com valor afetivo, agindo como marco ou celebração de um acontecimento. Outro objeto é uma tampa de metal, que lacra garrafas de vidro. Na composição do colar também aparecem pedaços de objetos plásticos, tampas de pasta de dente, uma das metades de um prendedor plástico de roupas e pequenas conchas do mar. Cada objeto é furado e preso com argolas douradas que os unem alternadamente. O colar é portanto formado por um conjunto de objetos que de diferentes formas, escalas, cores e texturas, de aspecto irregular. Nessa peça, Margiela extrai do “lixo”, um valor poético, a partir da reunião de objetos descartados e conchas do mar. É interessante observar que a união desses dois elementos é o que completa o significado da criação do designer: o 128 diálogo entre o fim e o recomeço de um objeto transformado, cujo fim seria o descarte. O designer cria uma situação em que tais objetos criados pelo homem encontram elementos da natureza, possibilitando associações com a questão das conseqüências para a natureza. Figura 70: Desfile Coleção Artesanal, 2006 Fonte: <martinmargiela.com/en/collections/PE2006/collection-­‐1.html> Acesso: 12 mai 2011 Essa estratégia de utilização de materiais inusitados retirados do cotidiano e reelaborados como vestimenta também nos faz refletir sobre o processo de criação de um designer, sobre o olhar de quem não quer somente seguir as tendências efêmeras impostas a cada estação, colocando no mercado inúmeras quantidades de peças que entrarão em desuso para responder a uma demanda de consumo. No sentido de concluir nossa analise dos processos de criação do designer Martin Margiela, vale dizer que ele encontra no contexto contemporâneo, sobretudo nas questões referentes a seu próprio universo criativo, a possibilidade de explorar ainda mais suas ideias e materiais. Uma das principais 129 questões tratadas por ele é a produção massificada de produtos que seguem tendências efêmeras do mercado de consumo. Verificamos que Margiela procura matéria-­‐prima da coleção em lugares que a maioria dos designers considera como o fim. Esse gesto de resgate também demonstra outros valores para além do design em si. Percebemos a existência de uma valorização do tempo e da memória como importantes conceitos na concepção e execução de seu trabalho. Ao contrário da grande maioria dos designers, podemos dizer que Martin Margiela não segue as tendências de moda, mas, busca no ordinário e no cotidiano suas inspirações e materiais. O foco na análise da coleção artesanal reflete diversas estrategias de Martin Margiela como criador. Ali constatamos, dentre outras coisas, a busca do designer por processos e produtos que materializem os conceitos que o conduzem O olhar questionador de Margiela revela seu potencial criador, revelando um designer que usa seu trabalho como um meio de explicitar paradoxos do próprio mundo da moda. Esta postura nos remete a abordagem de Flusser (2007), quando nos lembra que o designer em seu processo criativo, deve levar em conta a responsabilidade de criar um objeto que seja um obstáculo construtivo para a liberdade cultural em que nos encontramos. Nesse aspecto levantado por Flusser (2007, p.198), Margiela pode ser considerado como um criador que usa seu trabalho como “veículos de comunicação entre os homens”, com um foco que vai além do objeto, desafiando os padrões de produção efêmeras da moda, fazendo uso de “dejetos” como sua matéria-­‐prima . O trabalho de Margiela é “controverso” no sentido de criar valores e questioná-­‐los, de forma que o produto final de seu trabalho seja visto como um objeto que problematiza os padrões do ciclo de produção de moda e explicita aspectos deste campo que ele próprio não tem interesse em revelar. 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU UM POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE DUCHAMP E MARGIELA O objetivo principal desta pesquisa foi identificar alguns princípios de criação na arte conceitual que possam ser articulados com a criação em design de moda, propondo questionamentos e reflexões. Tal relação se dá ao abordarmos os princípios de criação encontrados principalmente no trabalho do artista Marcel Duchamp, que afronta os tradicionais conceitos de beleza, originalidade, criatividade e autonomia ao usar estratégias como a apropriação e a descontextualização do objeto. Apontamos também como alguns artistas transitaram pelo território do vestuário em suas diferentes possibilidades de produção de sentido. O designer de moda foi abordado como um profissional cujo trabalho acontece através da manipulação de diversos materiais. Porém, destacamos o trabalho daqueles designers que procuraram estabelecer ligações com o campo da arte em busca de proposições e experimentações. Nesse sentido, consideramos que o designer possa agir como um criador atuante em processos de reflexão e expressão que acontecem em relação aos contextos, social e cultural. Com base nas ideias e nas ações de Duchamp, assim como na repercursão que seus trabalhos causaram no universo da arte, que identificamos em Martin Margiela o papel do designer de moda como um propositor de conceitos. A escolha pelo trabalho de Margiela foi baseada no que ele desenvolveu ao longo de sua carreira, trabalhos que priorizaram a construção de um discurso capaz de interferir, problematizar ou ainda causar um estranhamento no próprio campo onde atua, além de reverberações em outros contextos. Procuramos percorrer alguns caminhos nos campos da arte e da moda na busca de estabelecer alguns diálogos entre elas. Nesse sentido, apontamos possibilidades para um diálogo entre Margiela e Duchamp, pelo viés dos 131 princípios dos processos de criação. O trajeto percorrido por Margiela na construção de sua obra e as várias formas e maneiras como a trabalhou para apresentá-­‐la em seus desfiles nos revela características e princípios relevantes de sua criação. Margiela desmantela valores e padrões da moda, assim como questões ligadas ao design e consumo de produtos em geral. Ele também questiona a moda como design, um design focado na indústria, na produção, na técnica, que acaba se distanciando ou se perdendo do campo da criação, do valor do trabalho e da valorização do produto para além do valor de mercado. Nesse sentido, nos remete a alguns autores que revelam a criação como um ato e expressão de um sujeito conectado com seu tempo. Para Agamben (2009, p.63), o ser contemporâneo é estar no presente e ter a percepção e a sensibilidade de captar seu entorno, não somente aquilo que ilumina os olhos, mas também os pequenos “buracos escuros” que passam despercebidos pela maioria dos indivíduos. Esse tal “escuro”, porém, não é um vazio: são luzes que se distanciam, não chegando a nos alcançar. Contemporâneo, então, , é aquele que “[...] não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade”, pois no tempo estão a sombra e a luz, ambas nos falando algo. Enxergar aquilo que está ao alcance de nossos olhos, ver as coisas que nos atraem visualmente, nos sensibilizando, é um ato involuntário, do dia-­‐a-­‐dia, é o que fazemos sem mesmo perceber. Mas, para enxergar além do obvio, além dos holofotes que destacam situações que ofuscam nosso olhar, é necessário estarmos atentos e sensíveis. Tais situações podem obscurecer outras que, embora discretas, não são menos importantes e revelam àqueles sensíveis indivíduos aspectos presentes da contemporaneidade. Esse sujeito atento ao “escuro” de seu tempo é o criador, cujo trabalho propõe incessantemente reflexões e novas “realidades”. Assim agiu Duchamp e sua obra, no campo da arte; assim vem agindo Margiela e seu design no campo da moda. 132 Vemos a relação entre o poeta e seu tempo descrita para Agambem (2009) como contemporaneidade, como a singular relação que o individuo tem com o próprio tempo. A partir desse pensamento, convocamos também Preciosa (2005) que aborda os modos de visão de mundo a partir da prosa e da poesia. A visão da prosa seria uma maneira trivial de interação com o mundo, um modo de viver no qual nossas ações são atos obrigatórios e o trabalho se revela como uma resposta às exigências mercadológicas que seguem tendências gerais, sem expressão própria. A poesia é o outro modo de interagir: é a forma poética de ver e interpretar o mundo. Essa é a visão de um sujeito atento a “enxergar luz”, nas coisas que o cercam, em especial nas coisas ordinárias que, geralmente, passam despercebidas. Nesta pesquisa, o designer, que consideramos criador é aquele que apresenta uma dimensão poética. É aquele que nos sensibiliza, que instiga nossos sentidos, pensamentos e ideias. É ele quem nos faz questionar, pois atua como um propositor de reflexões sobre o contemporâneo, oferecendo-­‐nos um trabalho que parte de suas inquietações, mas propõe “novos” modos de perceber e se relacionar com o mundo em que vivemos. 133 REFERÊNCIAS AGRA, Lúcio. História da Arte do Século XX: ideias e movimentos. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2004. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI , Nelson. Toda a História: história geral e história do Brasil. São Paulo: Ática, 1994. AZZI, Christine Ferreira. 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