Viriato Soromenho-Marques
Uma Gramática do Português em Tempos de Crise e Incerteza
Há pelo menos duas grandes razões para saudar o aparecimento desta
Gramática do Português, uma obra extraordinária pela dimensão, ousadia de
propósito e qualidade de execução.
A primeira foi referida na intervenção de Eduardo Paiva Raposo, ao
mencionar como este monumental projecto procurou estabelecer uma ponte
contemporânea .
Dito de outro modo, a primeira razão que singulariza positivamente esta obra
prende-se com a sua habitação, sábia e tranquila, do tumultuoso espírito do
tempo (retomando, pelo menos parcialmente, o significado da expressão
hegeliana de Zeitgeist) em que os estudos sobre Gramática e Linguística hoje têm,
necessariamente, de navegar.
A segunda razão liga-se directamente aos conteúdos da exposição que
acabámos de escutar a Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, prolongando-se
para o delicado terreno das relações entre língua nacional e identidade. Um tema
sempre controverso, que ganha uma temperatura particularmente elevada nestes
perigosos tempos de sombra que Portugal atravessa.
I
Escrever uma Gramática, tendo como ponto de partida as primeiras
décadas do século XXI, implica ter consciência de que se está a trabalhar sobre
um terreno construído sobre múltiplas camadas e estratos, alguns deles tão
frágeis, que ameaçam tornar-se em armadilhas para quem sobre eles caminhe.
A Gramática talvez nunca tenha sido, mas hoje não o é seguramente, uma
disciplina tranquila. A Gramática já não pode ser hoje a mera reflexão, a um
tempo descritiva e normativa, sobre uma língua concreta, filtrada e decantada
pela aventura histórica dos seus falantes e protagonistas. A Gramática das línguas
nacionais respira hoje a mesma atmosfera das ciências da linguagem, dos estudos
da linguagem, caracterizados por um horizonte que só pode ser o da
universalidade. E isso num complexo quadro espiritual, mesmo complicado,
definido por diferentes leituras ou modos de expressar as decepções e angústias
da nossa modernidade. Desde o tempo do niilismo , anunciado na visão de
Nietzsche para o desafio do futuro europeu, até à enumeração de variadas
propostas de crepúsculo, decadência, colapso, ou, incerta metamorfose.
A verdade é que perdemos para sempre a inocência de uma linguagem
que se julgava em condições de representar o mundo com rigor e transparência.
Seja a língua universal do programa de convergência cosmopolita de Leibniz,
sejam os projectos de apropriação do futuro pela restauração do latim, defendido
por Lorenzo de Valla no século XV, seja na investigação de uma língua adâmica,
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de que o hebreu seria um parente seminal, como nos recorda Olga Pombo, numa
importante e já clássica investigação.
A Linguagem, essa força magmática de onde emanam e para onde
regressam todas as línguas, deixou de pretender conhecer o Mundo, para, em
alternativa, se reconhecer a si própria como Mundo. E não se trata apenas do
, popularizado por Richard Rorty, mas com raízes em Frege,
Wittgenstein, Russell, e ramificações múltiplas onde não podem deixar de marcar
presença a Linguística de Saussure, as escolas do estruturalismo e da sua herança
e dissidência, onde o pensamento da linguagem é tema central, como são o caso
de Julia Kristeva, de Michel Foucault ou Jacques Derrida.
A Gramática, que hoje se apresenta e celebra, não se detém nessas viagens
do espírito, mas não as ignora, nem lhes retira o lugar, que pode ser o do
horizonte envolvente, ou o da alusão, mesmo a da simples menção de passagem.
Esta obra sabe cumprir a sua função, que é a de entrar, com clareza e rigor, no
software da Língua Portuguesa, mas sabe fazer o seu caminho em espaço aberto,
mantendo sempre uma ligação de plena visibilidade com as paisagens
envolventes. A Gramática não pode ignorar que a sua matéria, a língua, é aquilo
em que a substância do mundo melhor se oferece. Ao longo dos últimos dois
séculos não foi apenas a Linguagem que se transformou no objecto de uma nova
Ontologia, mas as ciências e os saberes que no acto da sua fundação, refundação,
ou busca de uma legitimidade reforçada foram buscar à Gramática os seus
métodos e disciplina de trabalho. Por vezes, quase o seu estilo. E isso, depois do
século XVIII, ocorre de um modo não só mais intenso, mas de uma forma
diferente, daquele parentesco que Michel Foucault encontrava, por exemplo,
entre a História Natural de Lineu e de Buffon, e a Gramática Geral de Bauzée
(1767).
Vejamos um exemplo de enorme relevo. Na filosofia crítica de Kant, a
estrutura transcendental do sujeito e das suas faculdades e interesses, do conhecer
ao agir, do juízo nas suas diferentes modalidades, todo esse grande sistema que,
de acordo com o próprio autor se poderia condensar numa grande antropologia
filosófica, evoca os procedimentos gramaticais. As formas puras da intuição
sensível, o esquematismo da imaginação, as categorias do entendimento, as
ideias puras da razão, todas essas figuras que povoam o universo das condições
de possibilidade do conhecimento universal, aparecem como uma imensa
Gramática Transcendental. Por exemplo, na Crítica da Razão Pura (1781), ao
escalpelizar o uso exorbitante das ideias da razão no âmbito do interesse teórico
da mesma, mais do que uma analogia com o trabalho do juiz definindo a (in)
conformidade com a lei, o quid juris, na verdade o que o filósofo efectua é a
fundamentação, analogicamente gramatical, da variante padrão da filosofia,
enquanto crítica transcendental. O uso dialéctico da razão assumir-se-ia, a esta
luz de uma gramática filosófica normativa, como um desvio às boas regras da
sintaxe com consequências semânticas inapropriadas e inaceitáveis.
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Outro exemplo significativo. Na sua obra fundadora da Psicanálise, O
Significado dos Sonhos (Die Traumdeutung, 1899), Freud não se limita a tratar os
sonhos como uma espécie de matéria textual, ele vai mais longe. Há uma
linguagem onírica, que se serve de todos os instrumentos que permitem a
construção linguística e discursiva. Não só a hermenêutica onírica implica
desmontar os tropos de uma espécie de retórica oculta, como a produção dos
sonhos, enquanto simbólica significativa, permite desvendar processos de
trabalho
(Verdichtung) e o
(Verschiebung)
lança
perspectiva, ser colocados em linha com as técnicas de decifração onírica
identificadas pelo fundador da Psicanálise.
A Gramática penetrou de tal modo os outros campos de saber que, quando
Carl von Clausewitz, o grande filósofo moderno da guerra e o mais notável
pensador da grande estratégia, quis manifestar a sua ideia nuclear da
dependência da arte militar em relação à acção política, isto é, a necessidade de
os militares saberem que as suas competências técnicas específicas, e
indispensáveis, não eram, todavia, fonte de uma legitimidade peculiar e
alternativa, ele usou a analogia das relações entre Gramática e Lógica. Num
conflito bélico escreveu o autor de Vom Kriege -- a Gramática é castrense, mas
a Lógica, a fonte das finalidades legítimas, é sempre e só competência do poder
político.
II
Falar de Clasusewitz ajuda-nos a fazer a travessia para a segunda razão
que confere a esta Gramática, agora colocada à exposição do julgamento do
público leitor, uma tonalidade excepcional.
O desenvolvimento do saber gramatical acompanhou na Idade Moderna a
afirmação do poder dos Estados europeus, saindo da longa neblina da
fragmentação medieval. O nascimento das Gramáticas das línguas europeias
acompanha a afirmação do Leviatã estadual nas diversas regiões do Velho
Continente, com o seu característico odor a pólvora. Não surpreende que no caso
português, o Fernão de Oliveira da Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de
1536, seja o mesmo frade dominicano que se distinguiu como primeiro teórico
moderno da guerra marítima, e notável construtor naval, como as suas obras Ars
Nautica (talvez 1570), e o Livro da Fábrica das Naos (1580), o ilustram. Entre
1415 e 1974 a estrutura territorial do Estado português tornou-se descontínua. O
pequeno rincão europeu projectou-se em três ciclos ultramarinos (asiático,
americano e africano), permitindo sempre a Lisboa contar com uma linha de
retaguarda longínqua para salvar a soberania, como se viu na importância do
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Brasil para as campanhas da Restauração, mesmo antes de 1640, e para a
resistência às invasões napoleónicas, com a retirada da Corte para o Rio de
Janeiro, em 1807. Só com a revolução democrática iniciada em 25 de Abril de
1974, abandonou Portugal, definitivamente, o limes imperial africano, e asiático
residual (em Timor Leste e Macau), para se consagrar à aventura da construção
democrática e da integração europeia, para onde entrámos com o entusiasmo e a
ingenuidade dos neófitos.
Esta Gramática do Português, como nos mostrou Maria Fernanda Bacelar
do Nascimento na sua intervenção, é uma obra monumental contendo o
resultado do labor de investigação durante mais de uma década, por parte de 40
autores, provenientes de doze Universidades e centros de investigação distintos.
Ela percorre sobretudo o português padrão contemporâneo que se pratica na
Europa, mas esta Gramática vai também às raízes, convoca os textos medievais, e
não esquece as consequências e repercussões, incluindo também textos do
português que se fala no Brasil, mas também em África. Numa altura em que o
sonho europeu de Portugal desembarcou num pesadelo de que parece não haver
despertar próximo, sabe bem recordar, através desta Gramática, que o português
é a sexta língua mundial com mais falantes nativos, ou falantes primários. Numa
altura em que Portugal é tratado como um país vencido por uma guerra, onde os
seus aliados se transmutam em vencedores implacáveis, consola-nos o espírito
saber que lá muito longe, em Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor Leste, ou
no imenso Brasil, o povo mais simples ou os mais notáveis escritores de craveira
universal se expressam numa língua que se formou neste extremo peninsular
europeu.
É um conforto psicológico recordar que no século XVI, com o já referido
Fernão de Oliveira, mas também com a Gramática da Língua Portuguesa (1540),
de João de Barros, e os estudos sobre ortografia e sobre a história da língua
nacional, de Duarte Nunes de Lião, o português era já uma língua
suficientemente robusta para estar na vanguarda das obras científicas e técnicas
publicadas nesse século, como ficou graficamente demonstrado pela excelente
exposição 360º Ciência Descoberta, recentemente oferecida ao público pela
Fundação Calouste Gulbenkian, tendo Henrique Leitão como comissário. O
Português era uma língua, que já em 1572, foi capaz de dar à estampa os
Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, fazendo da história portuguesa um diálogo e
uma continuação da tradição épica de Homero e Virgílio. Ou, usando uma forma
de expressão mimética da de Nietzsche, fazendo da história europeia a
continuação da herança da Antiguidade Clássica, nos seus ideais mais altos e
nobres.
A serenidade e o rigor académicos que percorrem esta Gramática
correspondem à modéstia tranquila com que os portugueses habitam na sua
língua. Ao contrário de outras línguas, que só mais tarde se afirmariam no
panorama europeu, o Português não precisa de olhar para o lado, antes de se
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olhar ao espelho. Ao longo de tantos séculos, houve e há, certamente, oscilações
entre a nostalgia pela grandeza perdida, e a tentativa de contrariar o declínio do
Português na hierarquia das línguas portadoras de ciência (que tem sido, aliás,
contrariado nas décadas mais recentes). Contudo, não cometemos o erro do
desprezo e da abdicação total da nossa língua. Nem tentámos corrigir a
negligência pelo nosso património linguístico com a desmesura do apreço pelo
que antes havíamos desprezado, acentuando esse elogio em causa e casa própria
através do amesquinhamento dos outros.
Por exemplo, em 1780, numa altura em que a língua alemã já contava
com as obras de Lessing, Kant, e do jovem Goethe, entre uma multidão de
notáveis pensadores e poetas, o grande rei prussiano Frederico II ofendia os seus
súbditos mais cultos, num ensaio sobre a literatura alemã, escrito como sempre
no seu francês dos huguenotes de Seiscentos, onde a dado passo escrevia:
"Comecemos pela língua alemã, que eu acuso de ser difusa, difícil de manejar,
pouco sonora, e que não tem para além disso abundância de termos metafóricos
tão necessários para fornecer novas maneiras de dizer" (14 [15]; V.S.-M-37 [421];
23 [7-48]).
Que os governantes opinem sobre o que desconhecem é algo que já não
causa espanto, em nenhuma parte do mundo conhecido, agora que os filósofos
consagrados se comportem com a falta de discernimento do mais comum nos
néscios é algo para lamentar ainda mais. Numa entrevista concedida em 23 de
Setembro de 1966, ao Der Spiegel, e que só foi publicada postumamente, eis
como o autor de O Ser e o Tempo
«Penso no especial parentesco íntimo entre o
idioma alemão e o idioma grego e os seus pensadores. É o que os franceses me
reafirmam actualmente, repetidas vezes. Quando começam a pensar, falam
alemão. Asseguram que com a sua língua não seriam capazes.», (HEIDEGGER,
Martin, "Nur noch ein Gott kann uns retten", Der Spiegel, Sonderausgabe 19471997, pp. 280-287). A grandeza da língua alemã, onde o espírito humano travou
e trava tantas batalhas pelo conhecimento de si e do mundo, dispensaria com
proveito tão infeliz e grosseiro apanágio.
Se é verdade que a língua portuguesa pode ser uma pátria, como afirmava
Fernando Pessoa, e que da língua portuguesa se vê o mar, como escreveu Vergílio
Ferreira, a verdade é que essa pátria não é apenas Portugal, e esse mar, há muito
que deixou de ser apenas o das praias atlânticas do limite ocidental da Península
Ibérica. Tecnicamente, o português é uma língua imperial, mas os portugueses há
muito que reconstruiram o seu pacto constitucional de destino numa vocação de
contínua procura da paz com justiça, na Europa e no mundo, na linha, aliás, da
visão recentemente reafirmada por esse grande pensador europeu, de língua
alemã, Jürgen Habermas (Essay zur Verfassung Europas, 2011), que temos o
privilégio de ter hoje entre nós. Os grandes escritores contemporâneos de língua
portuguesa, oriundos de Cabo Verde, como Manuel Lopes e Germano Almeida,
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de Moçambique, como José Craveirinha, ou Mia Couto, de Angola, como
Agualusa ou Ondjaki, do Brasil, como Cecília Meireles ou Jorge Amado, entre
tantos outros, não escrevem ou não escreveram em português num registo de
resistência contra o opressor, como o fizeram, pelo menos parcialmente, os
grandes escritores irlandeses, de Oscar Wilde e Bernard Shaw, a Yeats e Joyce,
fazendo da língua inglesa um obediente instrumento ao serviço do génio irlandês.
O Português é uma pátria aberta, de onde se contemplam todos os oceanos, e
onde se podem acolher todos aqueles que nasceram seus falantes naturais, mas
também aqueles que, usando uma fantástica, fórmula de Amin Maalouf, a
queiram
langue du coeur).
É tudo isso que esta Gramática do Português nos recorda e ensina,
Também por esse motivo, os seus coordenadores, Eduardo Paiva Raposo, Maria
Fernanda Bacelar do Nascimento, Maria Antónia da Mota, Luísa Segura e Amália
Mendes, todos os restantes autores, assim como a Fundação Calouste Gulbenkian
são merecedores do tributo da nossa gratidão.
28 De Outubro de 2013
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