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DIÁRIOS DE AGRICULTORES: UMA PRÁTICA “SINGULAR” DE ESCRITA
Vania Grim Thies (PPGE/Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS)
Apoio Financeiro: Capes
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a escrita de diários de três irmãos
agricultores com pouca escolarização, moradores da zona rural dos municípios de
Morro Redondo e Pelotas (RS, Brasil). Um dos irmãos, o precursor das escritas na
família, escreve diariamente o correspondente a trinta e oito anos consecutivos sem
deixar o registro por um dia sequer. As escritas estão relacionadas ao trabalho no
cotidiano rural, ao tempo, lazer e as atividades sociais da vida comunitária da família. A
metodologia utilizada é a análise dos diários juntamente com a história oral, através de
entrevista semi estruturadas e ainda, o registro em caderno de campo. O referencial
teórico está apoiado em autores como Castillo Gómez (2003), Chartier (2001) e Britto
(2005), os quais têm problematizado o conceito de cultura escrita ou a cultura do escrito
juntamente com autores que buscam compreender o sujeito e suas pluralidades, entre
eles, Lahire (2002, 2005). O estudo aponta que há sentidos diferentes para as escritas de
cada irmão. Entendo que tal abordagem traz contribuições significativas ao campo da
cultura escrita, na medida em que apresenta a prática da escrita de diários como uma
prática social e cultural mais ampla.
Palavras-chave: Agricultores, cultura escrita, zona rural, diários
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DIÁRIOS DE AGRICULTORES: UMA PRÁTICA “SINGULAR” DE ESCRITA
A escrita tem para mim, um poder mágico que me leva ao conhecimento de
práticas cotidianas, reveladores de sujeitos rurais que “contam” a vida de um modo
peculiar e muito diferente de histórias ilustrativas ou histórias da carochinha. São
escritas de seres humanos que deixam o registro de sua vida em folhas de caderno,
rabiscadas pelas mãos calejadas da enxada e do arado que formam um rico patrimônio a
ser pesquisado. Falo de um registro descomprometido com atividades prestigiadas e
formais, de uma escrita ordinária (FABRE, 2003) produzida para “deixar os traços do
vivido”. É este tipo de escrita que o presente trabalho tem por objetivo problematizar:
diários produzidos por homens de uma mesma família (Aldo, Clemer e Clenderci1),
irmãos agricultores com pouca escolarização, moradores da zona rural dos municípios
Pelotas e Morro Redondo (RS). O trabalho faz parte dos estudos de doutoramento que
tem por objetivo analisar a escrita dos irmãos agricultores através de seus diários.
O estudo tem por lócus a zona rural, pois, muitas vezes, é considerada como o
lugar apenas do trabalho braçal, desprovido de bens culturais. A escola e a zona urbana
são tomadas como espaço educativo de acesso a bens culturais por excelência, entre eles
a escrita. Nesse trabalho, busco mostrar que a escrita não é apenas “urbana”, procurando
desmistificar a falsa impressão de que esta inexiste no campo. Procuro mostrar que a
escrita está presente no meio rural, desconstruindo, sem romantizar, o mito de que
agricultores não lêem ou não escrevem sistematicamente.
Ao analisarmos campo/cidade, sabemos que ambos têm uma interdependência,
mas a cidade ainda é considerada como o lugar “mais desenvolvido”, sendo preferido
pela maioria das pessoas, o que resulta em muitos casos de migração no campo. Nesse
sentido, o campo é abandonado por muitas pessoas que buscam na zona urbana uma
oportunidade de ascensão social. Este fato faz parte de um imaginário social construído
ao longo dos anos e no qual as referências ao rural são as grandes propriedades rurais ou
mesmo apenas o trabalho sofrido das pessoas que não tiveram oportunidades de estudo.
Por isso, minhas reflexões estão em busca da desmistificação deste imaginário social
que estigmatiza os agricultores evidenciando apenas o trabalho braçal e deixando que se
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Os nomes se encontram no original e foi permito através do termo de autorização, bem como o uso dos
diários, fotos e demais materiais.
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silenciem outras práticas sociais presentes, como é o caso das escritas. Para Dias (1999),
“o meio rural, de modo geral, é visto, ainda hoje, em nossa sociedade, como o lugar do
atraso, do “Jeca Tatu”, dos analfabetos. Insiste-se ainda na dicotomia campo/cidade,
na qual a segunda representa todo o ideal de desenvolvimento” (p. 34). Dessa maneira,
a autora deixa claro que há uma visão do campo como o lugar das pessoas “sem
estudo”, mas é preciso ressaltar que mesmo com pouco, nenhum ou um alto grau de
escolarização, os indivíduos se utilizam da cultura escrita servindo-se de diferentes
estratégias.
Tendo-se a zona rural como lócus da discussão, é possível problematizar
questões urbanas e rurais, não como campos oposto, mas sim complementares, na
medida em que são interdependentes. Nesse sentido, o trabalho de pesquisa também se
propõe colocar em evidência que as práticas de escrita e de leitura não são elementos
somente urbanos, mas permite revelar outros espaços e outras instâncias, nas quais as
fronteiras entre rural e urbano, popular e erudito, antigo e moderno, não estão tão
distante como parecem.
O referencial teórico esta apoiado em Bernard Lahire (2002; 2005), na busca
de compreender a pluralidade dos sujeitos singulares; nas idéias do Circulo de Bakhtin
(FARACO, 2009) e ainda nos autores que tem trabalhado com a cultura escrita ou a
cultura do escrito tais como, Castillo Gómez (2003), Britto (2005) e Chartier (2001).
A metodologia utilizada é análise conjunta dos diários, a história oral através
de entrevistas semi estruturadas e ainda o registro em caderno de campo, o qual tem
possibilitado a apreensão de dados importantes, colhidos em conversas informais e em
outras situações fora do contexto da pesquisa.
A FAMÍLIA DOS AGRICULTORES: UM BREVE PERFIL
Para que se possa compreender um pouco mais do processo da pesquisa, é
importante que se compreenda também como se constitui a família dos irmãos Schmidt.
O pai, senhor Henrique Pedro Schmidt, 91 anos, conta que sua família paterna era da
Alemanha, o avô era filho de um pastor evangélico e veio daquele país para o Brasil ainda
muito pequeno. Os avós maternos eram professores da rede pública do município de
Pelotas. O senhor Henrique nasceu e cresceu na localidade de Santa Áurea (Pelotas/RS),
residindo nesta localidade até os dias de hoje. Casou-se com a senhora Alda Kohls
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Schmidt, já falecida, e desse matrimônio nasceram doze filhos, sendo seis mulheres e seis
homens, dos quais três serão evidenciados neste texto.
Aldo iniciou suas escritas em 1972, enquanto era solteiro e morava na casa
paterna. Em 1976, casou-se, constituiu família e continuou escrevendo diários com a
“nova” família, prática que exerce até os dias atuais. Já o irmão Clemer escreveu diários
de 1975, enquanto solteiro, na casa do pai, até 1979, quando se casou e parou de
escrever. Clenderci dá início aos diários em 1982 quando se casa e sai da casa paterna,
constituindo uma nova família, porém, ele permanece escrevendo até 1993. O acervo de
diários que me foram disponibilizados para a pesquisa é de 21 diários.
Perfil de Aldo:
Aldo Kohls Schmidt é um pequeno agricultor, morador da zona rural do
município de Pelotas (RS), Colônia Santo Antônio, 7º distrito. Possui em torno de 20
hectares de terra para o cultivo de suas lavouras, trabalho realizado com mão de obra
familiar. Além disso, arrenda alguns hectares, em terras vizinhas, para o plantio de suas
culturas. É casado e tem dois filhos que atualmente trabalham na lavoura com o pai. Os
dois filhos concluíram o Ensino Médio em uma escola na zona rural. Sua escolaridade
foi até a 5ª série primária. As práticas de escrita de Aldo já foram abordadas da pesquisa
de dissertação de Mestrado. Os diários de Aldo são os seguintes:
- Diário nº 1:
5 de julho de 1972 a 17 de fevereiro de 1976;
- Diário nº 2:
18 de fevereiro de 1976 a 16 de junho de 1979;
- Diário nº 3:
17 de junho de 1979 a 31 de dezembro de 1984;
- Diário nº 4:
1º de janeiro de 1985 a 31 de dezembro de 1987;
- Diário nº 5:
1º de janeiro de 1988 a 11 de março de 1991;
- Diário nº 6:
12 de março de 1991 a 31 de dezembro de 1994;
- Diário nº 7:
1º de janeiro de 1995 a 10 de julho de 1997;
- Diário nº 8:
11 de julho de 1997 a 17 de fevereiro de 2000;
- Diário nº 9:
18 de fevereiro de 2000 a 27 de agosto de 2002;
- Diário nº 10: 28 de agosto de 2002 a 31 de dezembro de 2004
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- Diário nº 11: 1º de janeiro de 2005 a 30 de abril de 20072.
Aldo Schmidt, segundo filho mais velho de uma família de doze irmãos, iniciou
a escrita de diários no ano de 1972, especificamente na data em que completava 25 anos
e morava com seu pai e os irmãos na Colônia Santa Áurea, também município de
Pelotas (RS).
Na entrevista realizada com Aldo (08/02/2007), ele revelou o que sente em
relação aos diários com uma simples frase: “aqui está toda a minha vida”, deixando
sobre a mesa os onze cadernos escritos. Ao dizer isso, Aldo atribui um sentido para sua
prática de escrita: deixar a sua vida por escrito. Aldo institui um significado para a
“escrita de si” e jamais delega essa tarefa para a esposa ou para os filhos, por exemplo.
O começo da escrita compõe-se de algumas páginas rememorando sua infância e
os principais fatos de sua vida até a idade dos vinte e cinco anos, em julho de 1972.
Traz recordações do tempo da infância, do primeiro dia de aula – “no dia 5 de março de
1955 pela primeira vez me arrumava para ir para a aula”; as notas escolares com
precisão; a Copa do Mundo de 1962 no Chile – “quando Brasil foi bi-campeão”; o
primeiro baile – “no dia 8 do mês de maio de 1966 fui ao 1º baile no Salão
Bosembecker”; o ingresso no quartel e os colegas de pelotão deste período; seus
deslocamentos para outras cidades; seus treinamentos; suas pretendentes; a primeira
carta de amor; a primeira visita na casa da namorada Nair Belletti – “pela 1ª vez
chegava a sua residência para lhe visitar”; a sua eleição como membro de uma
comunidade religiosa. Depois, ele passa a realizar os registros dia a dia e ainda mantém
esta prática atualmente totalizando 38 anos de escritas ininterruptas.
Perfil de Clemer:
Clemer Kohls Schmidt tem quatro filhos, sendo dois homens (gêmeos), uma
filha e um filho caçula. Todos freqüentaram a escola, e o caçula começou a trajetória
escolar no ano letivo de 2008. A filha concluiu o Ensino Técnico no curso de
Edificações e segue suas atividades conforme sua formação, um dos gêmeos cursou o
Ensino Técnico em Eletrônica e trabalha nesta área, sendo que o outro concluiu o
Ensino Médio e dedica-se aos trabalhos de agricultura junto ao pai. Clemer possui, para
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Há mais um diário em uso, Diário nº 12, no qual as escritas atuais estão sendo feitas, compreende o
período de 1º de maio de 2007 até a atualidade.
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cultivo, 23 hectares de terra que não são suas. Ele apenas mora no local e cultiva, mas a
propriedade não é sua, de forma que o sistema de produção é de “parceria”, ou seja,
toda a produção é dividida com seu “parceiro”, que recebe 25% do total colhido. O
agricultor, que se utiliza do trabalho coletivo da sua família para o cultivo das lavouras,
também planta nas terras que pertencem a Hilma, sua esposa. Essas terras, porém, ficam
distantes alguns quilômetros do local onde mora.
Clemer escreveu diários na casa paterna enquanto solteiro, no período de 1975 à
1980, porém diferentemente do irmão Aldo, os diários escritos por Clemer representam
uma prática coletiva da família, pois não eram apenas dele, mas sim ele era o
responsável pela escrita do dia. O objetivo não era a privacidade e sim a coletividade.
Uma forma de organizar o mundo da família, conforme as ocupações daquele dia.
Também é importante ressaltar que quando Clemer constitui nova família com o
casamento e sai da casa do pai, os demais irmãos que permaneceram na casa paterna
continuaram esses registros. Isso demonstra que os diários escritos por Clemer têm um
sentido diferente dos diários do irmão Aldo: registrar o que aconteceu no dia de maneira
coletiva.
Visualizando o material de Clemer, tem-se o seguinte:
- 1º caderno: 27 de janeiro de 1975 a 22 de julho de 1975;
- 2º caderno: 23 de julho de 1975 a 27 de abril de 1978;
- 3º caderno: 28 de abril de 1978 a 22 de outubro de 1980.
As duas irmãs que moram com o pai afirmam que na casa paterna o diário nunca
deixou de ser realizado. Atualmente, elas são responsáveis pelos registros.
Perfil de Clenderci:
Clenderci Kohls Schmidt completou os estudos primários até a 5ª série do
ensino primário. É pequeno agricultor, atualmente dedica-se intensivamente à plantação
de rosas, morador na Colônia Santa Áurea, (Pelotas/ RS). É casado e tem uma filha que
está cursando a faculdade de Agronomia. Clenderci escreveu diários no período de 1982
à 1993, totalizando sete cadernos, numerados por ele. Um fato importante é que a
análise indica que ele começou a escrita após o casamento em 1982, diferente dos
irmãos Aldo e Clemer.
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O início da escrita do diário após o casamento demonstra que enquanto os filhos
moravam na casa paterna, o registro era coletivo, com exceção dos diários de Aldo. Por
ser um diário coletivo, Clenderci começa suas escritas após o casamento. O agricultor
fez seus registros até o ano de 1993, período em que estava engajado em um grupo de
agricultores de sua região que fazia feiras de produtos coloniais no centro urbano. Como
argumento para não escrever mais no diário, ele diz que é por que foi “cansando”,
porém se percebe pelo caderno de controle das vendas da feira que ele realizava na
época, que é também neste mesmo período que só Clenderci escreve, fazendo a
contabilidade das vendas. Então é como se uma prática de escrita substituísse a outra, ou
seja, o diário foi substituído pela escrita da contabilidade.
Hoje o grupo dos agricultores não existe mais, mas a documentação existente
está sob a guarda de Clenderci. Folheando essa documentação percebi que quando ele
registra os resultados da feira, sempre há uma observação quanto ao tempo de saída, de
chegada, da duração da feira. Para o seu caso, a escrita está presente, diariamente em
seu contexto. Atualmente ele não escreve diário e não realiza os registros do grupo de
agricultores como anteriormente fazia. Porém, através do cultivo e da venda de rosas,
ele faz uso constante da caneta e do caderno para as encomendas que recebe.
Segue abaixo os diários escritos por Clenderci:
- Caderno nº 1 - 8 de março de 1982 a 6 de agosto de 1983;
- Caderno nº 2 - 7 de agosto de 1983 a 21 de julho de 1985;
- Caderno nº 3 - 22 de julho de 1985 a 8 de junho de1986;
- Caderno nº 4 - 9 de junho de 1986 a 17 de abril de 1988;
- Caderno nº 5 - 18 de abril de 1988 a 22 de março de 1990;
- Caderno nº 6 - 23 de março de 1990 a 18 de fevereiro de1991;
- Caderno nº 7- 19 de fevereiro de 1991 a 26 de novembro de 1992.3
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO METODOLÓGICAS
As investigações sobre os usos socioculturais da escrita se configuram de
diferentes modos em espaços e grupos sociais diversos. Para o caso aqui analisado,
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No mesmo caderno, há o início da escrita no ano de 1993 (de 1º de janeiro a 5 de janeiro), porém a
maioria das folhas permanece em branco no restante do caderno.
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destacamos as práticas de escritas ordinárias como meio de registrar o cotidiano.
Segundo o conceito de Daniel Fabre (1993), a escrita de diários corresponde a escritas
ordinárias, as quais não têm o objetivo de consagrar um autor ou uma obra. Possui,
portanto, a função de deixar os traços do fazer (laisse trace) diário, opondo-se ao
universo prestigiado da escrita literária e científica.
Tendo a investigação situada no campo da História da Cultura Escrita, se torna
necessário algumas problematizações a cerca deste conceito. Para Castillo Gómez
(2003), a história da cultura escrita é “resultado de uma tríplice conjugação: história das
normas, capacidades e usos da escrita, história do livro e, por extensão, dos objetos
escritos (manuscritos, impressos, eletrônicos ou qualquer outro suporte), e história das
maneiras e práticas de leitura” (p. 97). Na perspectiva do autor, a História da Cultura
Escrita “deve constituir o ponto onde confluam duas tradições que até então haviam
percorrido caminhos paralelos: de um lado a história da escrita e de outro a história do
livro e da leitura” (p. 97/98). Desse modo, consideramos que o conceito de cultura
escrita é bastante amplo e envolve desde a leitura de um jornal, a escrita de um diário ou
carta, até a produção literária, conforme o conceito problematizado por Chartier (2001):
Não se pode falar de uma cultura do impresso, da leitura dos livros
impressos, sem antes situar essa prática ou esses objetos em um marco
mais amplo, que é o que define em uma sociedade a cultura do escrito. E
a cultura do escrito vai desde o livro ou o jornal impresso até a mais
ordinária, a mais cotidiana das produções escritas, as notas feitas em um
caderno, as cartas enviadas, o escrito para si mesmo, etc. [...] Na cultura
do escrito há um continuum desde a prática da escrita ordinária até a
prática da escrita literária (p. 84).
Dentre os estudos que envolvem a cultura do escrito, estão as investigações
relacionadas à história do livro, das práticas de leitura e de escrita. Para Britto (2005),
cultura escrita caracteriza “um modo de organização social cuja base é a escrita” (p.15),
presente em nossa vida desde o nascimento até a morte. Nesse sentido, pertencemos a
uma sociedade de cultura escrita, sendo importante ressaltar que as práticas de leitura e
de escrita não estão necessariamente sempre relacionadas a práticas profissionais,
legitimadas. No estudo em questão, por exemplo, os indivíduos escrevem para satisfazer
necessidades pessoais do cotidiano, dando sentido próprio a tais práticas.
Segundo a teoria do sociólogo Bernard Lahire (2002, 2005) os atores não são
feitos todos no mesmo molde (2002), o que serve a um ator, pode não servir a outro,
mas “o social refratado num corpo individual que tem particularidades de atravessar
instituições, grupos, campo de forças e de lutas ou cenas diferentes” (2005, p.14).
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Por isso, mesmo na família há práticas de cultura escrita diferenciadas entre os
irmãos Aldo, Clemer e Clenderci, conforme se pode observar no breve perfil de cada
um. Aldo iniciou suas escritas na casa paterna, se casou e perpetuou a escrita dos
diários, mantendo-as ainda atualmente. Clemer dá início às escritas posterior ao irmão,
também na casa paterna e de forma coletiva com os demais irmãos, mas abandona a
prática com o casamento. Clenderci começa a escrever seus diários depois que sai da
casa do pai, quando forma uma nova família. É importante frisar que a prática social é a
mesma para os três irmãos – a escrita -, o que os diferencia são suas individualidades
sustentadas pelas disposições adquiridas de maneira distinta por cada irmão, segundo
seus contextos de socialização.
Estas disposições são reforçadas segundo o seu contexto, mas também podem
entrar em estado de vigília, enfraquecer ou ainda, sofrer atualizações. Para o caso de
Aldo e Clenderci o casamento atualizou a disposição incorporada, mesmo que para o
caso deste último, a atualização permaneceu por algum tempo. Já para o caso de Clemer
o casamento significou a “morte” das escritas, ou seja, a disposição ficou enfraquecida.
Tudo isso dependerá de maneira como foram adquiridas essas disposições
ou hábitos, do momento da biografia individual em que eles foram
adquiridos e, ainda, do “contexto” atual da sua atualização. Assim, os
hábitos que foram interiorizados precocemente, em condições favoráveis
à sua boa interiorização e que encontram condições positivas de
concretização, podem dar lugar àquilo que é comumente denominado por
paixão. (LAHIRE, 2005, p. 22)
Poderia dizer, ainda, que o casamento para os irmãos foi decisivo para continuar
escrevendo, parar ou mesmo dar início as escritas, pois representa uma “ruptura
biográfica ou transformações importantes nas trajetórias individuais” (LAHIRE, 2002).
Desta maneira, analisar a família Schmidt e, em especial os três irmãos
escritores de diários, é estudar a pluralidade interna dos indivíduos, necessária para
apreender o que é singular a cada irmão, ou ainda, a pluralidade de cada indivíduo é o
que os tornam singulares (LAHIRE, 2005). Essa pluralidade de cada indivíduo é o
resultado de suas múltiplas experiências socializadoras: família, escola, religião e
demais grupos sociais que vão “moldando” as ações dos indivíduos segundo o momento
de vida de cada pessoa. Mais uma vez, retomo o exemplo dos três irmãos e seus
contextos que podem ter sido os mesmos, mas atingiu cada um em um momento
diferente de sua biografia e, conseqüentemente, os tornou singulares em suas práticas de
escrita.
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Bernard Lahire foi leitor da teoria do Círculo de Bakhtin e, diante disso, percebo
aproximações entre as duas teorias. As idéias do Círculo estão ancoradas em três
dimensões, segundo Faraco (2009): a unicidade do ser e do evento, a relação eu/outro e
a dimensão axiológica. É sobre esta última que procuro direcionar meu olhar para
pensar a escrita de agricultores como a linguagem em sua dimensão axiológica na qual
“viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento; é posicionar-se com respeito
aos valores” (FARACO, 2009, p. 25). Portanto, é muito mais que olhar as escrita sob
uma visão lingüística, é observar a dimensão constitutiva do ser humano, uma dimensão
que a reflita como uma “necessidade” de escrever a vida, uma dimensão sociológica,
mas também filosófica, pois, o diário revelado na forma de uma linguagem escrita
revela os agricultores e o seu modo de vida no contexto social em que vivem, através de
registros sobre o trabalho, tempo, clima, lazer e atividade sociais da vida comunitária,
conforme se pode observar no registro do diário de Clemer:
30: Limpamos o galpão de milho de manhã de tarde o Cleber e o
Clemer carregaram esterco para a cebola: Cledinei e o pai prepararam
as vasílias para o vinho. (Clemer Schmidt, 1º caderno, Janeiro de
1975).
27 de junho - Domingo. A turma toda na dança do Casarin de
caminhão, o Aldo na festa da colheita e futebol no Bachini e o Clemer
também nas danças na Maciel. (Clemer Schmidt, 1º caderno, Junho de
1975).
O material referente aos irmãos é o mesmo (diários), mas a significação no ato
social concreto de enunciação revelado na forma de escritas depende da voz social em
que estão ancorados. As diferentes vozes sociais acabam por produzir uma cadeia de
responsividade, pois criam e provocam mais respostas de modo que cada irmão tenha
um período diferente de escrita e ainda uma maneira especifica de escrever o seu dia.
Para o caso aqui descrito, as diferentes vozes sociais podem ser as diferentes instituições
freqüentadas pelos irmãos, tais como a igreja, o grupo de agricultores, as pessoas do
grupo de convívio da localidade onde moram e ainda a própria família. Vejamos alguns
exemplos dos diários que podem ilustrar melhor.
Dia 15: eu todo dia participei da mesa Eleitoral na 71 cessão e a Nair
foi votar e fez pão de tarde ceifou o asevém e capinou vassoura. (Aldo
Schmidt, Diário nº 2, novembro de 1978).
31 de março, Quinta-feira tempo bom, de manhã eu, na lenha, Nádia
em casa, S. Augustinho também, D. Erna voltou e Maneco esteve
aqui, a tarde Nane veio e eu e Nádia e Mário e Neca fomos com ele
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fazer o curso para Batisado da Geruza na igreja do Sagrado Coração
de Jesus na Cristal, a noite Nene veio” (Clenderci Kohls
Schmidt,Caderno nº 1, março de 1983).
Os vários “trabalhos” realizados durante o dia no cotidiano rural, registrados
lado a lado com o “curso de batizado” e a “participação na mesa eleitoral”, revelam a
constituição de agricultores que estão vinculados a outros grupos sociais, a igreja, por
exemplo. A escrita assume a dimensão axiológica na medida em que assume também
uma valoração sobre as escolhas daquilo que vai deixar registrado para o dia. Além
disso, “a escrita permite selecionar, como no cinema, as melhores tomadas” (LAHIRE,
2002, p.131), aspecto claro nos exemplos acima, nos quais há “seleções” das atividades
de determinado dia.
Neste sentido é que retomo a idéia dos autores sobre a pluralidade interna dos
sujeitos “o sujeito é social de ponta a ponta (a origem do alimento e da lógica da
consciência é externa à consciência) e singular de ponta a ponta (os modos como cada
consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada
um é um evento único do Ser)” (FARACO, 2009, p. 86). Percebe-se melhor essa idéia
ao olhar os exemplos citados acima, nos quais o estilo da escrita é o mesmo, revelando a
escrita como prática social, mas cada irmão tem sua maneira particular de escrever e de
atribuir significados e valorações para sua prática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trabalhar com as escritas de agricultores tendo a zona rural como lócus, revela
outros espaços e outras instâncias, desvelando alguns “mitos” e revelando ainda que as
fronteiras zona rural e zona urbana, assim como popular e o erudito são aspectos que
não estão tão distantes quanto parecem. O trabalho procurou mostrar a prática de escrita
de agricultores através do registro nos diários, sujeitos do mundo rural com pouca
escolaridade que nos fazem repensar sobre as diversas funções da escrita em nossa
sociedade: escrita como estratégia de memória, como organização do pensamento, como
correspondência, escrita da e na vida, registro do que se fez no dia. Sujeitos singulares
com uma pluralidade interna que os faz escrever cada um ao seu modo e em algum
período de suas vidas ou, durante trinta e oito anos.
O estudo procura trazer contribuições significativas ao campo da cultura escrita,
na medida em que a prática da escrita corresponde a práticas socioculturais mais amplas
e nem sempre legitimadas. Assim, tornam-se visíveis outras dimensões para o uso da
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escrita, (e também da leitura) em contextos não profissionais, não formais, ou seja,
escreve-se para deixar sua vida por escrito, para tornar o passado mais presente, para
deixar os traços do vivido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITTO, Luiz Percival Leme. Letramento e Alfabetização: implicações para a
Educação Infantil. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de & MELLO, Suely Amaral (Orgs.).
O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas: Autores Associados,
p. 5 – 21, 2005.
CASTILLO GOMÉZ, Antonio. Historia de la cultura escrita: ideas para el debate.
Revista Brasileira de História da Educação. SBHE, n. 5. São Paulo: Autores
Associados. jan. / jul. p. 93 – 124, 2003.
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artmed, 2001.
DIAS, Vânia Aparecidas Costa. Práticas de leitura de professoras no meio rural.
Dissertação de mestrado: Belo Horizonte. Fae / UFMG. Fev. 1994.
FABRE, Daniel (Org.). Écritures Ordinaires. Paris, Centre Georges Pompidou,
Bibliothéque Publique d’ Information, p. 11-94, 1993.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
LAHIRE, Bernard. Homem plural. Os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
LAHIRE, Bernard. Patrimônios Individuais de Disposições: para uma Sociologia à
Escala Individual. Sociologia, Problemas e Práticas. N.º 49, p.11-42, 2005.
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diários de agricultores: uma prática “singular” de escrita