ESCRITA SOBRE NADA
Cristiano Bedin da Costa1
Marcele Pereira da Rosa2
Resumo:
E se, tal como o poeta Manoel de Barros, tentássemos uma escrita sobre nada? Não o nada
metafísico, mas sim o nada mesmo, coisa nenhuma por escrito. Uma escrita que avança para
o começo, que ultrapassa os limites da memória, que repousa no estancamento das
significações, que diz do indizível, do inominável, inventando-os. E se não buscássemos
outra coisa que não fosse fazer o nada aparecer, não estaríamos assim próximos daquilo que
a Filosofia da Diferença, proposta por autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari, acredita
ser o trabalho da escrita, o movimento próprio de um estilo? Não estaríamos nós em busca
da liberação de uma multiplicidade, de uma vida aprisionada, de uma sensação ainda não
experimentada, de um novo conteúdo, de um novo sentido? Quando a escrita dá de ombros,
se faz de louca e escapa no final de alguma linha, é preciso tentar acompanhá-la...
Palavras-chave: Filosofia da diferença. Criação. Escrita.
Introdução: Nada
“Tudo que não invento é falso”
(Manoel de Barros, Livro sobre nada)
E se fizéssemos como Manoel de Barros e tentássemos uma escrita sobre nada? Não
o nada metafísico, o nada existencial, mas sim o nada mesmo, coisa nenhuma por escrito.
Uma escrita que avança para o começo, que chega ao criançamento das palavras, lá onde
elas ainda urinam na perna e ainda não tenham sido modeladas pelas mãos (Barros, 2004,
p.47). Uma escrita que ultrapassa os limites da memória, que repousa no estancamento das
significações, que diz do indizível, do inominável, inventando-os. E se fizéssemos brinquedo
com as palavras, operássemos coisas desúteis, circulássemos pelos litorais da escrita,
desmanchando o que não se sabe fazer em frases? E se não buscássemos outra coisa que não
fosse fazer o nada aparecer (perder o nada é um empobrecimento, como já advertiu o velho
1
Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria, mestrando em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa “Filosofia da diferença e educação”, sob orientação da Profª. Drª.
Sandra Mara Corazza. Endereço eletrônico: [email protected]
2
Psicóloga pela Universidade Federal de Santa Maria, mestranda em Psicologia Social e Institucional pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dentro da linha de pesquisa “Modos de Subjetivações
Contemporâneos”, sob orientação da Profª. Drª. Rosane Neves da Silva. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico:
[email protected]
2
poeta), seria essa uma boa ambição?
Em se tratando de escrita, parece mesmo que a única questão é a de saber quais são
as boas e más composições, os bons e maus encontros. “Aumentam ou diminuem nossa
potência de agir? Fazem a vida vibrar e se renovar? Acionam a diferença, a criação, a
invenção?” (Corazza; Tadeu, 2003, p.72). Deleuze e Guattari (1995, p.12) referem que o ato
de escrever “nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que
sejam regiões ainda por vir”, uma vez que o importante, quando se escreve, é saber com que
a máquina literária pode (e deve) ser ligada para funcionar. A questão da escrita é, assim, a
de fazer passar intensidades, liberar devires capazes de arrastar aquele que a encontra, seja o
escritor ou o leitor.
O pretexto geral de um “Livro sobre nada” (Barros, 2004) nos parece bastante
próximo daquilo que Deleuze e Guattari acreditam ser o trabalho da escrita, seja ela literária,
acadêmica ou filosófica. Um livro ao qual não se pode atribuir um tema, pois se sustenta
apenas por seu estilo, por seu modelo anormal de expressão; um livro que não tem objeto
nem sujeito, feito de matérias as mais diversas, sejam elas formadas ou não; um livro do
qual não se possa perguntar o que quer dizer, qual o seu significado ou significante; que não
se busque compreender, mas sim saber com o que ele funciona, quais são as suas
multiplicidades e com quais outras elas se conectam para poderem se metamorfosear, criar
novas sensações. Se a questão da arte, da filosofia ou da literatura é mesmo da ordem de
uma criação, e se – para ficarmos apenas com a escrita –, tal como é referido por Deleuze
(1992, p.176), o ato de escrever não tem outra motivação que não a de dar a vida, de liberar
a vida onde ela está aprisionada, de traçar linhas de fuga, isso se dá pela insistência de uma
vida não orgânica, não subjetivada, que pode se fazer presente numa linha de escrita e que
faz o nada aparecer. O nada de organização, o nada de significação, o nada de
desenvolvimento, o nada de clichês, o nada de condutas, o nada de etiquetas, regras e
tabulações, o nada de normas, o nada de formas, de funcionamentos, totalizações e unidades.
Nada.
Matéria de escrita
“Ninguém pode dizer a si mesmo,
‘Eu estou desesperado’, mas ‘Tu estás desesperado?’,
e ninguém pode afirmar, ‘Eu escrevo’,
mas somente ‘Tu escreves? Sim? Escreverás?”.
(Maurice Blanchot, O espaço literário).
Para Manoel de Barros, qualquer coisa cujo valor pode ser disputado no cuspe à
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distância serve como matéria de poesia. Já Bukowski diz que o segredo mesmo é ficar longe
de igrejas, bares e museus, ser paciente e evitar essa sujeira toda, permanecendo apenas com
uma ou duas cervejas, por ora. Com Blanchot, descobrimos que não se trata de mostrar ou
fazer aparecer absolutamente nada, mas sim testemunhar o desaparecimento das coisas e de
si no que se escreve. Sutil vazamento. A necessidade da abertura de um espaço, criado e
povoado pela impossibilidade de um corpo pleno da escrita. De fato, a escrita não existe
enquanto há eu subjetivado, sendo que o movimento próprio da literatura é mesmo o de se
voltar contra aquele que escreve, como “um dardo na mão dos espíritos” (Blanchot, 1997,
p.56). Rosto extraviado, identidade deteriorada, desaparecimento, tornar-se imperceptível.
Kafka dizia escrever para morrer, para dar à morte aquilo que a ela era essencial, sua fonte de
invisibilidade, mas sabia também que para isso a morte precisaria, ao mesmo tempo, também
escrever nele. Era preciso que a morte fizesse do corpo kafkaniano o ponto vazio onde o
impessoal se afirma (Blanchot, 1987, p.148).
Como referem Deleuze e Guattari (1997, p.21), o escrever é “atravessado por
estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo,
etc.”, lembrando que isso não se trata de imitar, nem mesmo identificar-se, mas sim de
“encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade, ou de indiferenciação, tal que já não
seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula” (Deleuze,
1997, p.11), com o artigo indefinido não remetendo a uma generalidade, mas sim a uma
singularidade. Espécie de involução, de uma composição e contágio entre heterogêneos,
onde a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades. Involução não
como sinônimo de regressão, de ir até o menos indiferenciado, mas sim, estar “entre3 os
termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 19). A
involução é criadora, o devir é involutivo. A animalidade da língua fazendo-a alcançar o seu
limite. Pular a cerca das boas maneiras. Como diz Deleuze:
Escrever é empurrar a linguagem - e empurrar a sintaxe, pois a
linguagem é a sintaxe - a um certo limite, que pode-se expressar de
diversas maneiras: limite que separa a linguagem do silêncio; limite
que separa a linguagem da música; limite que separa a linguagem do
piado doloroso... (Deleuze, Abecedário. Vocábulo A de animal)
Bem, o filósofo Deleuze lida com a escrita e o faz dizendo que há uma música e uma
3
“Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma
direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói
suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze; Guattari, 1995, p.37).
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pintura próprias da escrita. Efeitos de sons, sonoridades e cores que se elevam acima das
palavras. É através das palavras, entre as palavras que se vê e que se ouve. Essa música de
palavras, essa pintura com palavras, que fazem com que as próprias palavras silenciem,
incapazes de atingir tal limite de sensação. Um limite alcançado pela escrita onde a
linguagem, tal como a conhecemos, já não é suficiente. Uma mudança de códigos silenciosa,
necessária, respondendo ao apelo do conteúdo até então anônimo.
Passaremos do limite? Iremos longe demais? Um passeio rápido por entre o universo
de Manoel de Barros e logo, com ele, podemos dizer: uma rã me pedra. Transgredido para
pedra, retirado dos limites do ser humano e ampliado para coisa, largado no chão a criar
musgos para tapetes de insetos (Barros, 1998, p.13). O silêncio das palavras aí é corrompido,
invadido, pode-se arrancar um pouco do que nele transita, com o que não operamos de outro
modo.
Como escreve Bruno Schulz (1996, p.49), “a matéria goza de uma fecundidade
infinita, uma força vital inesgotável e, ao mesmo tempo, um poder de sedução que nos leva a
moldá-la” e como bem disse Paul Klee (2001, p.43), a questão na pintura é a de tornar visível
o não visível, e não apenas reproduzir o visível; da mesma forma, na escrita, trata-se de dar
voz àquelas intensidades desconhecidas, àquele povo anônimo e afásico até então sufocado
pela impossibilidade de sua fala. Espécie de busca pela multiplicidade liberada nela mesma,
sem uma forma ou um clichê que a contenha. A multiplicidade em sua potência múltipla,
extraída de qualquer unidade que a possa sobredeterminar.
Para Deleuze e Guattari (1995, p.8), a multiplicidade é a própria realidade, não
supondo assim nenhuma unidade, não entrando em nenhuma totalidade e tampouco
remetendo a um sujeito. Subjetivações, totalizações e unificações, dizem eles, “são processos
que se produzem e aparecem nas multiplicidades”4. Ora, estamos no plano da expressão,
tratamos com substâncias, matérias formadas, estratificações no corpo do texto, e a grande
questão é a de saber o que seremos capazes de fazer com isso. Tom Zé (2003, p.22), falando
sobre suas primeiras maquinações com a música, conta da ambição que tinha em limpar o
campo musical, de sua necessidade de acabar com a sujeira impregnada na canção
tradicional da época, passando à margem do corpo-cancional já instituído e que dizia ser para
ele inatingível. Experimentava então uma cantiga feita de outra matéria, plasmada com
outras substâncias que não fossem aquelas já previsíveis e tacitamente aceitas. No caso da
4
Como refere Deleuze, todos os processos se produzem numa multiplicidade assinalável: “as unificações,
subjetivações, racionalizações, centralizações não têm qualquer privilégio, sendo freqüentemente impasses e
clausuras que impedem o crescimento da multiplicidade, o prolongamento e o desenvolvimento de suas linhas, a
produção do novo” (Deleuze, 1992, p. 182).
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escrita, talvez seja isso também. Limpar o campo, mas apenas para liberar o espaço para
novos elementos, novas poluições, infecções e contágios. Uma nova sujeira, sem tantos
ranços. Uma sujeira inventada, tramada, ainda por vir.
A filosofia e seus intercessores
(...) a filosofia, arte e a ciência entram em relações
de ressonância mútua e em relações de troca, mas a
cada vez por razões intrínsecas. É em função de sua
evolução própria que elas percutem uma na outra.
Nesse sentido, é preciso considerar a filosofia, a
arte e a ciência como espécies de linhas melódicas
estrangeiras umas às outras e que não cessam de
interferir entre si (Gilles Deleuze, Conversações).
Para Deleuze e Guattari, a filosofia não é comunicativa, assim como não é
contemplativa e nem reflexiva. O filósofo é criador, e não reflexivo, sendo até mesmo
necessário retirar-lhe o direito à reflexão “sobre” (Deleuze, 1992, p. 152). O trabalho da
filosofia consiste sempre em inventar conceitos (Deleuze; Guattari, 1992, p.10). Ninguém
mais pode fazer isso em seu lugar. Desse modo, a filosofia vai se definir pela capacidade
para criar conceitos que reorientem o pensamento, que levem o pensamento para além do
senso comum e da representação. Conceitos não são rótulos ou nomes que damos às coisas,
eles produzem uma orientação, uma nova direção para o pensamento. Assim, não podemos
dizer que criar conceitos consiste apenas na invenção de uma nova palavra, mas sim na
criação de uma nova forma de pensar. “Os conceitos são filosóficos precisamente porque
criam possibilidades para o pensamento que vão além daquilo que já é conhecido ou
pressuposto” (Colebrook, 2002, p. 18), é a experiência que se abre para novas intensidades.
Tal realidade é o que garante à filosofia sua natureza criadora e revolucionária.
O conceito, tal como o entendem Deleuze e Guattari, “é o que impede que o
pensamento seja uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma tagarelice”
(Deleuze, 1992, p. 170), sendo assim, forçosamente um paradoxo, uma potência de ir além
do que sabemos e experimentamos para pensar como a experiência pode ser ampliada. Nasce
pela exigência imposta por problemas colocados no interior de uma determinada filosofia,
em seu tempo e em relação com seus devires. Como escrevem Deleuze e Guattari (1992,
p.41), “se um conceito é ‘melhor’ que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações e
ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos”. Ou seja, um conceito sempre será
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criado em função de um desconhecido, de algo não representado, ou até mesmo de algo
irrepresentável, o que lhe garante não apenas uma proximidade com o estranho, mas também
a necessidade constante de sua criação. Criação esta que, no entanto, não aniquila a
estranheza, mas sim possibilita novas experiências.
Esse desconhecido não se faz presente apenas na criação filosófica, mas também nas
artes e na ciência. É a necessidade de confrontá-lo que irá garantir a exigência do que
Deleuze chamou de “intercessores”, os encontros que fazem com que o pensamento saia de
sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não
há pensamento. É por meio deles que podemos relacionar filosofia e arte, a invenção de
conceitos e a criação de agregados sensíveis, pois em Deleuze a questão fundamental do
pensamento é a criação. Pensar é inventar o caminho habitual da vida, é fazer o novo, é
tornar novamente o pensamento possível. A filosofia, tanto como a ciência, a arte, a
literatura, se define por seu poder criador e pela exigência de criação de um novo
pensamento. Escreve Deleuze:
O que me interessa são as relações entre as artes, a ciência e a
filosofia. Não há nenhum privilégio de uma destas disciplinas em
relação a outra. Cada uma delas é criadora. O verdadeiro objeto da
ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é criar agregados
sensíveis e o objeto da filosofia, criar conceitos. A partir daí (...)
podemos formular a questão dos ecos e das ressonâncias entre elas
(Deleuze, 1992, p. 154).
O conceito não se move apenas em si mesmo, através de uma compreensão filosófica,
mas também se move nas coisas e em nós, inspirando-nos novos perceptos, que são blocos de
sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam (ao mesmo tempo em que
possibilitam novas maneiras de ver, sentir ou escutar) e novos afectos, que não são
sentimentos, mas sim devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro,
completaria Deleuze), além das novas maneiras de pensar que ele – o conceito – carrega
consigo.
Essa trindade filosófica composta pelo conceito, pelo percepto e pelo afecto, é
necessária para fazer um estilo, o movimento do conceito, um pássaro de fogo, que irá
constituir a filosofia como uma verdadeira ópera, ganhando movimento na inter-relação dos
três pólos. Daí, Deleuze (1996, p.97-100) poder dizer que os grandes filósofos são também
grandes estilistas, capazes de fazer vibrar as três línguas, em uma tripla tensão. O conceito, o
percepto e o afecto constituem-se como três potências inseparáveis, que vão da arte à filosofia
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e vice-versa, em uma espécie de câmara de ecos, de filtros capazes de modificar aquilo que
por eles perpassa.
São justamente esses movimentos interplanos, essas relações de ressonância entre
domínios diversos que possibilitam a criação, assegurados pelo fascínio que as sensações
criadas na arte exercem sobre o universo propriamente filosófico. Como bem lembram
Corazza, Tadeu e Zordan (2004, p.170), o estilo é o próprio método da filosofia da diferença,
estando ligado tanto à política quanto à estética, uma vez que escrever com estilo é escrever
para colocar a língua sempre em variação contínua, escrever para devir, tornar-se. O estilo em
filosofia é aquele que acompanha o movimento do conceito ao mesmo tempo em que o
movimenta, submetendo a língua a variações. Ligação da filosofia com a escrita em
desequilíbrio, com a prática, com o estilo. A necessidade de arrancar da linguagem suas
figuras mais subversivas, de uma desmontagem contínua da sintaxe enquanto forma de
expressão organizada. “É preciso sempre fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, de maneira simples, com sobriedade, no nível das
dimensões que se dispõe, sempre n-1” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 14-15). Escrever a n-1,
arrancando a unidade, o único, da multiplicidade a ser constituída, da vida a ser liberada.
Uma escrita sobre nada
Uma escrita para nada, escrita suja, carnal e fecunda, vizinha do estrangeiro, da falta
de representação, pois atravessada por devires, não consegue tomar distância de uma política,
de um modo de estar no mundo, de uma maneira de ser que inventa seus próprios meios de
respirar. Talvez seja essa mesma a nossa tarefa, deixar-se apaixonar pelos vazios e não pelos
cheios, ao modo daquele menino que gostava de carregar água na peneira, sabedor de que os
primeiros são maiores e até infinitos (Barros, 1999). Se o terreno de nossa prática é mesmo o
da página, que nele possamos então encontrar um tanto mais de vazio, um tanto mais de nada.
Escrever para nada, com nada, pelo nada. Mesmo que assim nada passe e se não
passar não grude e se não grudar não fique e se não ficar não vá e se não for não passe e se
não passar não ressoe e se não ressoar não se curve e daí bem se saiba, bem se insista na
permanência, bem se vire no assim mesmo. Mas se virar já é uma outra coisa, e a idéia
talvez seja essa mesmo. Não há nenhum problema nisso. Só assim se cansa, só assim dança ao menos por enquanto - só assim esgota, só assim tropeça, só assim se perde, só assim
desiste. Escrever transpondo a faca do mendigo, atirando lírios aos anjos, sentando no meio
de um refrão, dançando apenas quando a agulha salta. Escrever apreciando o odeia eu diário,
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esquecendo memórias, abstrações e fantasmas. Escrever pelos cérebros que estão mal, por
tanto(s) nó(s) e por aquele pequeno e solitário ponto sem contraponto, por aquela pintinha
qualquer que sonha com a massa, que quer ser elemento de uma constelação, animal em uma
matilha, multiplicidade de sardas sobre um rosto... Escrever como um cão que faz seu
buraco, um rato que faz sua toca (Deleuze E Guattari, 1977, p.28), encontrando assim seu
próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio deserto. Escrever
escavando a linguagem, fazendo-a seguir em uma linha errante, sóbria, em condições
revolucionárias no seio de uma língua estabelecida. Tornar-se o nômade de sua própria
língua. Assim, quem sabe se possa correr o risco de dar em nada...
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______. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998.
BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997.
______. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
COLEBROOK, Claire. Gilles Deleuze. Londres: Ed. Routledge, 2002.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
______. O Abecedário de Gilles Deleuze. Descrição de entrevista realizada por Claire Parnet,
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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Ed.
Imago, 1977.
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______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed 34, 1997.
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SCHULZ, Bruno. Tratado dos Manequins ou O Segundo Gênese. In: ____. As Lojas de
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TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de Escrita. Belo Horizonte:
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___; ____. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
9
ZÉ, Tom. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.
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