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Bartolomeu Lourenço de Gusmão O padre inventor
Bartolomeu Lourenço de Gusmão
O padre inventor
brasiliana da biblioteca joanina da universidade de coimbra
~ volume i ~
B r a s i l i ana
da
B i b l i ot e c a Joan i na
da U n i v e r s i da d e
d e Co i m b r a
volume
~I~
Bartolomeu Lourenço
de Gusmão
O padre inventor
textos de
Carlos Fiolhais
Francisco Caruso e Adílio Jorge Marques
Lorelai Brilhante Kury
Célia Cristina da Silva Tavares
2011
Anônimo
Passarola
1709, gravura
fundação biblioteca nacional
A Odebrecht, que participou do sonho da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – Uerj de construir o seu campus, agora tem também o grande
orgulho de patrocinar este primeiro volume
da Coleção Brasiliana da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra,
obra histórica que comemora os 60 anos da instituição fluminense.
Este livro mostra que o sonho de voar encontrou em Bartolomeu de Gusmão
uma solução prática, aparentemente simples, fruto da engenhosidade
e visão do perseverante artífice.
O balão inventado pelo brasileiro contagiou o imaginário popular
e as investigações técnico-científicas nos séculos seguintes,
mudando para sempre a vida humana.
Os elementos usados pelo “Padre Voador”, em 1793, na construção do seu
invento, já estavam disponíveis há milhares de anos.
Isolados, tecido, papel, cordas e fogo não representavam uma inovação
tecnológica, mas, unidos pelo gênio criativo, iniciaram uma
revolução que continua até hoje.
A realização dos sonhos, como comprova Bartolomeu de Gusmão,
pode levar o homem a transcender sua própria condição.
Com a Uerj, queremos continuar a sonhar e a construir o futuro.
© Universidade do Estado do Rio de Janeiro – uerj, 2011
c h an c e l e r | G ov e r na d o r
Sergio Cabral
vice-c hancel e r | s e c r et á r i o d e c i ê n c i a e t e c n o lo g i a
Alexandre Cardoso
reitor da un i v e r s i da d e d o e s ta d o d o r i o d e jan e i ro
Ricardo Vieiralves de Castro
p ro d u ç ã o e d i to r i a l e g r á f i c a
Andrea Jakobsson Estúdio Editorial
c o o r d e naç ã o e d i to r i a l
Fernando Rodrigues e Ana Amélia Velloso
s u pe rvi s ã o e d i to r i a l
Lorelai Brilhante Kury
c on s u lto r i a
Carlos Ziller e Iris Kantor
t r an s c r i ç ã o d e m an u s c r i to s
A. E. Maia do Amaral
p ro j eto g r á f i c o
Victor Burton
as s i s t e n t e s d e d e s i g n
Natali Nabekura e Isis Daou
s u pe rvi s ã o g r á f i c a
Renata Arouca
t r ata m e n to d e i m ag e n s
Trio Studio
r e vi s ã o e pa d ron i zaç ã o
Rosalina Gouveia
Todos os direitos reservados
Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda.
Rua Senador Dantas 75 grupo 1310
Rio de Janeiro, RJ, 20031-204
www.jakobssonestudio.com.br
sumário
Apresentação
9
Bartolomeu de Gusmão e o seu balão
Carlos Fiolhais
15
Bartolomeu de Gusmão:
Raízes de um espírito inovador incompreendido
Francisco Caruso e Adílio Jorge Marques
33
Bartolomeu Lourenço:
Fragmentos sobre a invenção de um herói
Lorelai Brilhante Kury
57
Bartolomeu Lourenço de Gusmão
e a Inquisição portuguesa – século XVIII
Célia Cristina da Silva Tavares
75
Apêndices
92
an e xo s
{Facsímiles de manuscritos da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra}
Manifesto sumário para os que ignoraõ
poderse navegar pello elemento do Ar
Petição [de Bartolomeu Lourenço
para lhe ser concedido o Privilégio de só ele
poder fabricar instrumentos para voar]
Textos contemporâneos sobre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
Memoria do Padre Bartholomeo Lourenço
chamado vulgarmente o Voador
pella razaõ que abaixo se relata
a p r e s e n taç ã o
A Brasiliana
da Biblioteca Joanina da
Universidade de Coimbra
Depois de uma reunião de trabalho do Grupo Coimbra de
Universidades Brasileiras, quando fomos apresentados, na bela Biblioteca
Joanina, ao acervo referente a estudantes brasileiros da Universidade de
Coimbra que se destacaram tanto nacional como internacionalmente, ficou resolvido criar a Coleção Brasiliana da Biblioteca Joanina.
O primeiro livro da coleção é dedicado a Bartolomeu de Gusmão, o Padre
Voador. Escolhemos o padre brasileiro por algumas razões: a primeira, e talvez a
mais importante, é a possibilidade de reapresentarmos esse homem corajoso e inventivo, lamentavelmente pouco conhecido entre nós, a brasileiros e portugueses;
a segunda, não menos relevante, é que os manuscritos e a história do Padre Voador
nos permitem conhecer uma complexidade de temas que atravessam a história, o
pensamento científico e natural, a perseguição religiosa e política, as intrigas da
corte portuguesa e o relacionamento entre Brasil e Portugal no século XVIII.
A escolha do título da coleção como Brasiliana da Biblioteca Joanina da
Universidade de Coimbra vai ao encontro de um de nossos dilemas como brasileiros, que atravessa os séculos e que diz respeito à nossa identidade como país e
nação. Nossa história colonial, a escravidão negra e indígena, a miscigenação, o
império e diversas situações e contextos em governos republicanos nos fizeram
ter o Brasil como uma representação, no mínimo, intrigante, porque singular.
Alaor Filho
Campus – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Fotografia, 2011
~9 ~
~ Ba rto lo m e u L o u r e n ç o d e Gu s m ã o ~
Marilena Chauí, em seu ensaio Brasil, mito fundador e sociedade autoritária,1
afirma que há
assim uma crença generalizada de que o Brasil: 1) é um “dom de Deus e da
Natureza”; 2) tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo
quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos (é raro o emprego da expressão mais
sofisticada “democracia racial”), desconhecendo discriminação de raça e de credo, e
praticando a mestiçagem como padrão fortificador da raça; 4) é um país acolhedor
para todos os que nele desejam trabalhar e, aqui, só não melhora e só não progride
quem não trabalha, não havendo por isso discriminação de classe e sim repúdio da vagabundagem, que, como se sabe, é a mãe da delinquência e da violência; 5) é um
“país dos contrastes” regionais, destinado por isto à pluralidade econômica e cultural. Essa crença se completa com a suposição de que o que ainda falta ao país é a modernização – isto é, uma economia avançada, com a tecnologia de ponta e moeda forte –, com a qual sentar-se-á à mesa dos donos do mundo.
Nada muito diferente da pesquisa coordenada por Celso Sá e Paula Castro,2
desenvolvida por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do
Brasil e que entrevistou 500 portugueses residentes em Lisboa e 789 brasileiros
residentes em sete diferentes capitais do Brasil. Os resultados dessa pesquisa
apontam características favoráveis e desfavoráveis associadas ao Brasil: alegria
do povo, o “jeitinho brasileiro”, a grande extensão territorial, a integração racial
na sociedade, a qualidade da música brasileira, a aparência física do brasileiro e
o sabor da comida, mas também, o subdesenvolvimento econômico, a ciência e
a tecnologia pouco desenvolvidas, a devastação das florestas, a corrupção nos
governos, a má distribuição de terras, a violência na sociedade, a grande desigualdade social, o baixo nível educacional da população, a pouca consciência dos
direitos e deveres e o desenvolvimento desigual das regiões.
Essas representações sobre o Brasil e os brasileiros foram sendo forjadas no
decorrer de nossa existência a partir da chegada dos portugueses por aqui, em
1500. O interessante é que uma representação tão clara e fechada, ao nos conferir uma identidade e nos atribuir um valor e um significado singular diante dos
“outros” do mundo, precisa, para ser construída, de um olhar especial sobre
nossa história e memória.
Abordei esse tema em um texto que escrevi sobre o esquecimento social.
Nele afirmo que:
(…) o dito popular e corrente de que os “brasileiros não têm memória” é algo que
tem sentido na dinâmica social. Ou seja, se esta representação é repetida, comparti~ 10 ~
~ A p r e s e n taç ã o ~
lhada e disseminada na sociedade brasileira, em todos os extratos sociais, não é desprezível o autoconceito de “desmemoriado”, principalmente porque este esquecimento
é direcionado aos fatos políticos, aos sujeitos que tiveram participação neles e às crises, traumas e valores que estiveram associados a estes fatos. Esta máxima do esquecimento social e político brasileiro é, com muito vigor, a possibilidade de entendimento da relação entre Estado e Sociedade no Brasil e, principalmente, de como se
processam as relações de poder em sentido lato e stricto.3
E esse é decerto o paradoxo que vivemos em relação à nossa identidade como
país e nação. Temos uma representação forte e fechada sobre nós mesmos e nosso país e, ao mesmo tempo, nos consideramos “desmemoriados” sobre nossa
história e os acontecimentos que nos fundaram.
Talvez aí se constitua o nosso Enigma. Não o deciframos. Creio que a nossa
esfinge é a nossa memória e a nossa história. É preciso perder o medo de nos encontrarmos com nossa história e, assim, como nos avisava Oswald de Andrade,
é preciso que nos devoremos.
A Coleção Brasiliana da Biblioteca Joanina vem para nos inquietar diante de
nós mesmos. Potencializar nosso Enigma como país e nação para que nos enfrentemos e nos devoremos; para que a nossa memória e a nossa história criem
novos valores e que, como o Padre Voador, um brasileiro corajoso e notável, tenhamos a coragem de voar.
Os excelentes artigos que introduzem e refletem sobre os manuscritos relativos a Bartolomeu de Gusmão e a literatura burlesca do século XVIII, que o critica com ferocidade, nos permitirão uma aproximação contextualizada dos cenários e da sua personalidade.
Carlos Fiolhais, físico eminente e diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, nos apresenta a Biblioteca Joanina, assim denominada por
ter sido construída por D. João V, o Magnânimo (para muitos) ou Freirático
(para outros). D. João V é contemporâneo do Padre Voador e, ao que parece,
seu cúmplice no projeto de voar. O artigo de Fiolhais é uma revelação sobre
Portugal no século XVIII.
Francisco Caruso é um cientista preocupado com a história e com a difusão
da ciência, tendo publicado vários artigos e livros sobre esse tema. Ele e o coautor Adílio Jorge Marques, ambos físicos, nos posicionam na ciência do século
XVIII e mostram como Bartolomeu transitou pelos conceitos naturais e científicos da época. Caruso e Marques nos dizem que, “de qualquer forma, é inconteste que o ‘Padre Voador’ foi o pioneiro da física aplicada nas Américas!”
~ 11 ~
~ Ba rto lo m e u L o u r e n ç o d e Gu s m ã o ~
Lorelai Kury, historiadora, redescobre o Padre Voador e os mitos construídos em torno de sua história, apesar das poucas fontes existentes para sua biografia. Fez uma pesquisa rigorosa, e seu artigo, com certeza, é uma referência
crítica sobre a história de Bartolomeu de Gusmão. Ensina-nos Lorelai que: seus
engenhos são fruto de uma visão da filosofia como algo aplicável ao mundo e à resolução de questões práticas. Sua memória foi construída a partir de fragmentos e do desejo de encontrar no Brasil e em Portugal homens dignos de figurarem no panteão da
glória universal. (…) O que quer que tenha acontecido, o personagem de Gusmão fez
carreira na historiografia e, sem dúvida, é de se lamentar que não possamos saber
mais, muito mais, sobre esse padre bastante extraordinário.
O texto de Célia Cristina da Silva Tavares, historiadora, é esclarecedor sobre a ação da inquisição portuguesa no século XVIII. Em sua análise histórica
cuidadosa, afirma que a “marca peculiar da Inquisição na Península Ibérica foi
a perseguição aos cristãos-novos”. O Padre Voador foi investigado pela inquisição e acusado de práticas judaizantes. O artigo de Célia Cristina disserta sobre a
ação da inquisição contra Bartolomeu de Gusmão e a trajetória de seu pensamento. Também é curioso como a autora demonstra como os versos populares
de ataque ao Padre Voador foram importantes para a ação inquisitorial. Tomás
Pinto Brandão “foi autor de um verso publicado em 1732, muitos anos depois da
morte do religioso, intitulado ‘O Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o
Homem-Voador que foi pelos ares, o que se compreende bem, porque tinha parte com o diabo’”.
A Coleção Brasiliana da Biblioteca Joanina tem na presente edição um começo promissor. Várias pessoas e instituições contribuíram para o sucesso deste
empreendimento, além do então Reitor Fernando Seabra Santos, que concordou
de imediato com o projeto.
Agradecemos
A Carlos Fiolhais, diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,
pela gentileza, paixão pelos livros e pelo sentimento acadêmico de conferir acesso
aos tesouros daquela biblioteca. Sem sua entusiástica adesão, nada teria ocorrido.
Ao diretor-adjunto da Biblioteca Geral, dr. Maia do Amaral, pela presteza e
competência, bem como pela primorosa transcrição dos manuscritos. Às suas colaboradoras bibliotecárias, Maria José S. Pereira, Maria de Fátima Bogalho e
Jaqueline Neves pela procura e identificação dos manuscritos referentes ao Brasil.
~ 12 ~
~ A p r e s e n taç ã o ~
Estamos certos que contaremos com o apoio do atual Reitor João Gabriel da
Silva no desenvolvimento desse projeto.
Agradecemos também:
À Odebrecht Infraestrutura, empresa nacional e comprometida com a cultura, que apoiou prontamente o projeto e que, mais uma vez, se vincula à história
de nossa Universidade, tendo sido responsável pela construção do campus principal no Maracanã, executada com uma qualidade invejável.
A A. Fernando Rodrigues que, por parte da Uerj, com competência, delicadeza e firmeza de propósito, realizou todas as gestões para que o projeto se concretizasse. A Marco A. da Costa, Paulo Roberto Volpato e Eliseu Fagundes pela
decisiva opinião na escolha do tema a ser explorado, diante de tantos possíveis.
A Ana Amélia Velloso, competente produtora cultural, que percebeu a importância desta edição desde o início, sensibilizando-se com a relevância do tema
para os brasileiros.
A Andrea Jakobsson, editora do livro, uma referência de qualidade editorial,
que se encantou pela Biblioteca de Coimbra e seus livros. Uma boa editora tem
paixão por livros. Sua escolha por Victor Burton como designer adicionou criatividade à beleza digna do valor desta obra.
Aos professores da Uerj que escreveram os artigos contextualizando o Padre
Voador. A competência de seus escritos demonstra a grandeza e a qualidade acadêmica de nossa Universidade. Senti, ao ler seus ensaios, um orgulho imensurável da minha instituição.
A Brasiliana que, longe de resolver o nosso Enigma como país e nação, nos
permitirá uma leitura mais crítica e apurada sobre nossa identidade.
Devorem este belo livro.
— Ricardo Vieiralves de Castro
R e i t o r da U n i v e r s i da d e d o E s ta d o d o R i o d e Jan e i ro
1
c hauí, Marilena. 2000. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu
Abramo.
2 sá, Celso Pereira de e castro, Paula (orgs.). 2005. Memórias do Descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: Museu da República.
3 vieiralves de castro, Ricardo. 2005. O esquecimento social: ensaios sobre a contemporaneidade. Em Psicologia clínica. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, Departamento de Psicologia, v. 17, 1, p. 115.
~ 13 ~
Bartolomeu de Gusmão
e o seu balão
Carlos Fiolhais
Professor de física no Departamento de Física da Universidade de Coimbra
e Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
A quem passa os umbrais da grande porta da Biblioteca
Joanina, no Pátio das Escolas, no coração da Universidade de Coimbra, pode
parecer que entra num templo, tal é o esplendor da arte barroca que enche o
seu interior e que rapidamente enche o olho. Há até turistas incautos que, em
gesto reflexo, pensando que estão a entrar numa igreja, se persignam. Mas o altar está substituído pelo grande retrato de D. João V,1 o monarca que, em 1716,
mandou construir o edifício da Biblioteca, chamado na época Casa da Livraria, merecendo assim deixar o seu nome associado à que é considerada uma
das bibliotecas mais belas do mundo.2 O reinado do monarca que ficou conhecido como O Magnânimo foi um período de ouro da história portuguesa ou,
pelo menos, um período de “folha dourada”, pelo brilho com que o Rei Sol
português gostava de tudo cobrir para ser mais admirado. Nessa ostentação
imitava o Rei Sol verdadeiro, Luís XIV, soberano da França quando D. João
V foi, em 1707, com apenas 18 anos, entronizado em Portugal. Em boa verdade, foi um período de ouro não só da história de Portugal mas também da história luso-brasileira, pois nessa altura o grande império lusitano abarcava o
Brasil, de onde vinha afinal o ouro que serviu para pagar as avultadas despesas de construção (foi no início do século XVIII que se deu a corrida ao ouro
nos ribeirões de Minas Gerais).
Paulo Mendes
Vista do andar nobre, Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
2007
biblioteca geral da universidade de coimbra
~ 15 ~
~ Ba rto lo m e u L o u r e n ç o d e Gu s m ã o ~
Pierre-Antoine Quillard
D. João V
óleo sobre tela
fundação ricardo de espírito santo silva
~ 16 ~
~ Ba rto lo m e u d e Gu s m ã o e o s e u ba l ã o ~
Com exceção da universidade jesuítica de Évora, que durou exatamente duzentos anos entre os séculos XVI e XVIII, a Universidade de Coimbra, fundada em 1290, permaneceu até a implantação da República, em 1910, a única
Universidade em todo o vasto Império português. Por isso, os jovens mais talentosos do Brasil que procuravam a continuação dos estudos eram obrigados a vir
para Coimbra, após terem feito os estudos secundários na sua terra natal.
Bartolomeu Lourenço de Gusmão,3 nascido em Santos em 1685, e que deve ter
sido uma “criança-prodígio”, não foi o primeiro e esteve longe de ser o último:
para só falar de cientistas, depois dele passaram por Coimbra como alunos ou
professores personagens tão ilustres como o químico Vicente Coelho de
Seabra, natural de Congonhas do Campo (Minas Gerais), o mineralogista e
metalúrgico José Bonifácio de Andrada e Silva, natural de Santos tal como
Gusmão, e o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, natural de Salvador, capital do atual Estado da Bahia. O reitor que empreendeu a notável Reforma da
Universidade de Coimbra ordenada pelo Marquês de Pombal em 1772 era também um brasileiro: D. Francisco de Lemos, natural do Rio de Janeiro.4
Passados escassos dois anos do longo reinado de D. João V (que, nascido em
1689, morreu em 1750), um evento científico-tecnológico veio reforçar o intenso brilho desse tempo luso-brasileiro das luzes. O padre Bartolomeu Lourenço,
que mais tarde haveria de tomar o nome de Gusmão em homenagem ao seu antigo mentor brasileiro (o jesuíta Alexandre de Gusmão, que não deve ser confundido com um irmão de Bartolomeu com o mesmo nome), estudante na
Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra na altura com apenas 23
anos, escreveu ao rei (quatro anos mais novo do que ele!) uma petição para construir um “instrumento para se andar pelo ar”, da qual se conserva uma cópia,
feita por mão anónima, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.5 Reza
assim, logo no início, essa solicitação, escrita numa linguagem deliciosa (a grafia deste e doutros documentos setecentistas citados a seguir foi atualizada para
maior comodidade de leitura):
Senhor, diz Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para se
andar pelo ar, da mesma sorte que pela terra, e pelo mar, e com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, no qual instrumento se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos e terras muito
remotas quase no mesmo tempo em que se resolverem: em que interessa Vossa
Majestade muito mais que nenhum dos outros Príncipes pela maior distância do seu
~ 17 ~
~ Ba rto lo m e u L o u r e n ç o d e Gu s m ã o ~
Paulo Mendes
Detalhes da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
biblioteca geral da universidade de coimbra
páginas seguintes:
Dirck Stoop
Terreiro do Paço no século XVII
óleo sobre tela; museu da cidade de lisboa / Câmara Municipal de Lisboa
~ 18 ~
~ Ba rto lo m e u d e Gu s m ã o e o s e u ba l ã o ~
domínio, evitando-se desta sorte os desgovernos das conquistas, que procedem em
grande parte de chegar muito tarde a notícia deles a Vossa Majestade. Além do que
poderá Vossa Majestade mandar vir todo o precioso delas muito mais brevemente e
mais seguro. Poderão os homens de negócio passar letras de cabedais com a mesma
brevidade. Todas as Praças sitiadas poderão ser socorridas tanto de gente como de
munições e víveres a todo o tempo, e retirar-se delas as pessoas que quiserem sem que
o inimigo o possa impedir. Descobrir-se-ão as Regiões que ficam mais vizinhas aos
Polos do Mundo, sendo da Nação Portuguesa a glória deste descobrimento que tantas vezes têm intentado, inutilmente, os estrangeiros.
Não havia decerto toda a burocracia que há hoje ou então o peticionário era
protegido da corte, pois a solicitação foi logo deferida por alvará de 19 de abril
de 1709, bem guardado hoje nos preciosos depósitos da Torre do Tombo, o arquivo nacional português:6
Hei por bem fazer-lhe mercê ao Suplicante de lhe conceder o privilégio de que,
pondo por obra o invento, de que trata, nenhuma pessoa de qualidade que for, possa
usar dele em nenhum tempo deste Reino e suas Conquistas, com qualquer pretexto,
sem licença do Suplicante, ou de seus herdeiros.
Foi, sem dúvida, uma das primeiras “patentes” concedidas na área aeronáutica, então ainda na sua pré-história.
O anunciado era, de facto, inaudito. As notícias do invento atravessaram
logo as fronteiras nacionais suscitando não só estupefação, como era natural,
mas também, e sobretudo, o que também era natural, abundante chacota. O jornal Wienerisches Diarium (Diário de Viena), datado de 1 a 4 de junho, saído na
capital da Áustria, que era a terra de D. Maria Ana, a esposa de D. João V, publicou a primeira tradução em alemão de um folheto português, num suplemento especial de quatro páginas, com figura e tudo, onde se exibia a “nova barca”
que prometia atravessar célere os ares (ver página 4 deste livro).
Gusmão, a quem o rei entregou, além do alvará, as chaves da sua quinta em
Alcântara, Lisboa, para nela construir e testar o anunciado engenho, não demorou a “pô-lo por obra”. O balão de Gusmão – pois do meio de transporte que
hoje chamamos balão se tratava – foi, finalmente, demonstrado com sucesso
diante de D. João V, no Paço Real, no Terreiro do Paço em Lisboa, a 8 de agosto de 1709. Fez, portanto, em 2009 precisamente 300 anos esse sucesso. As pri~ 19 ~
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