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VAGAS RESERVADAS NO ENSINO SUPERIOR: IGUALDADE
DE OPORTUNIDADES
Danielle de Oliveira Cabral Faria
Mestre pelo Centro de Pós-Graduação da ITE
Advogada militante
SUMÁRIO: Introdução. 1. A questão da igualdade: a não-discriminação e a
discriminação positiva. 2. Minorias, grupos vulneráveis e ações afirmativas. 3. O
dever do Estado com a educação no ensino superior: a discussão sobre a reserva
de vagas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Muito se discute, na atualidade, sobre a questão da reserva de vagas no
ensino superior. Alguns se posicionam favoravelmente, entendendo ser essa a
iniciativa necessária para que seja efetivada a igualdade de oportunidades aos
“excluídos” na educação. Outros, contrariamente, manifestam aversão a esse
“modelo” de inclusão social, alegando haver, no caso, violação ao princípio da
igualdade e afirmando que o correto seria a melhoria substancial do ensino
médio público do Brasil.
Em que pese esses debates, a realidade é que nosso país está iniciando a
2
política de ações afirmativas no campo da educação no ensino superior.
Primeiro, foram algumas universidades, que de forma ousada, sem que houvesse
lei federal que impusesse essa conduta, estipularam reserva de vagas,
especialmente para negros, nas seleções para ingresso aos cursos de graduação.
Atualmente, o governo federal tem demonstrado empenho no assunto, havendo
projeto de lei federal sobre o tema e, também, sua inserção no anteprojeto de
reforma universitária.
No que concerne aos critérios adotados para tanto, alternam entre raça e
condição econômica. O modo de se comprovar a realidade de quem declara
necessitar desse apoio do Estado, dessa “discriminação positiva”, também são
muitos.
No presente trabalho discorreremos sobre a relação existente entre a
igualdade de oportunidades e as vagas reservadas no ensino superior.
1. A QUESTÃO DA IGUALDADE: A NÃO-DISCRIMINAÇÃO E
A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA
A Constituição Federal de 1988 prescreve o princípio da igualdade logo no
“caput” do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, (...)”. Celso Antônio
Bandeira de Mello frisa que “(...) o alcance do princípio não se restringe a
nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode
ser editada em desconformidade com a isonomia”1.
1
Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade, p. 09.
3
Referido princípio quer significar que, diante de uma lei, todos devem ser
tratados da mesma forma, somente sendo admissível distinções que a própria lei
regulamente e desde que essas sejam justificáveis.
O problema que surge é a questão de saber quando seria possível a lei
estabelecer discriminações e quando essa conduta seria vedada.
A máxima aristotélica que proclama “tratamento igual aos iguais e
desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade”, não traz a resposta da
questão, uma vez que como salientam Luiz Alberto David Araujo e Vidal
Serrano Nunes Júnior, a expressão, em que pese ser correta “(...) parece não
concretizar explicação adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da
isonomia, porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em
cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida
dessa igualdade”2.
Celso Antônio Bandeira de Mello, discorrendo sobre critérios para
identificação do desrespeito à isonomia, assim se manifesta:
“(...) tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério
discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional,
isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido,
atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da
desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou
fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os
valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se
guarda ou não harmonia com eles”3.
2
3
Curso de direito constitucional, p. 102.
Ibid., p. 21-22.
4
Assim, de acordo com o ilustre autor, necessário se mostra a observância
cumulativa desses três aspectos para que não haja objeção a uma lei que
estabeleça diferenciação.
Porém, nesse ponto, necessário frisar que o princípio da igualdade,
prescrito no caput do art. 5º da Constituição Federal exprime o sentido de nãodiscriminação.
Hédio Silva Júnior, ao escrever o artigo “Ação afirmativa para negros
(as) nas universidades: a concretização do princípio constitucional da
igualdade”, afirma que igualdade se traduziria por não discriminar, “(...) donde
se deduz que o princípio da igualdade seria densificado por um conteúdo
essencialmente negativo, uma obrigação negativa, abstencionista, passiva: nãodiscriminar”. No entanto, ressalta o autor que a história demonstra a
insuficiência dessa mera “não-discriminação”, uma vez que não basta “(...) que
o Estado se abstenha de praticar a discriminação em suas leis”. Dessa forma,
diz que “(...) incumbe ao Estado esforçar-se para favorecer a criação de
condições que permitam a todos se beneficiar da igualdade de oportunidade e
eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou indireta”. A isso, acrescenta,
corresponderia a ação afirmativa4.
Fica, desse modo, demonstrada a insuficiência da igualdade formal, sendo
necessário, para a efetiva promoção da igualdade material, possibilitar a
igualdade de oportunidades.
4
Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica, p. 103.
5
Podemos citar, como exemplos, alguns dispositivos constitucionais,
trazidos à colação pelo autor supracitado5, que traduzem essa idéia, de promoção
da igualdade: art. 3º, IV (“promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”);
art. 23, X (“combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”); art. 227, II
(“criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os
portadores de deficiência física...”). Ainda, cita normas que discriminam como
forma de compensar a desigualdade de oportunidades: art. 7º, XX; art. 37, VIII,
dentre outras.
Gabi Wucher discorre sobre a não-discriminação e a discriminação
positiva, afirmando que ambas têm por base o princípio da igualdade6.
A autora ressalta que o princípio da não-discriminação teve destaque após
a Segunda Guerra Mundial, passando a incorporar grande parte dos instrumentos
internacionais de direitos humanos da ONU, que cuidam das várias espécies de
direitos e pessoas a serem protegidas. Salienta que referido princípio consagrouse “como princípio universal do direito internacional de direitos humanos e,
também, como princípio básico de proteção de minorias (...)”7.
Dessa forma, seguindo o raciocício da autora, o “princípio da nãodiscriminação” impede que sejam estabelecidas discriminações gratuitas e,
também, que minorias ou grupos vulneráveis sejam diferençados, mediante
inferiorização, em relação aos segmentos visivelmente dominantes da sociedade.
Ibid., p. 107-108.
Minorias: proteção internacional em prol da democracia, p. 51.
7
Ibid., p. 52.
5
6
6
Paulo Bonavides, discorrendo sobre a interpretação constitucional do
princípio da igualdade, afirma que o Estado social é Estado gerador de igualdade
fática, sendo que isto deve, acrescenta, “(...) iluminar sempre toda a
hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de
direitos”. E salienta: impõe ao Estado, se necessário, a realização de prestações
positivas e a adoção de providências com a finalidade de realizar os comandos
normativos de isonomia8.
De todo o exposto até o momento, podemos concluir que o que é vedado é
que a lei estabeleça discriminações infundadas, gratuitas. Já a discriminação que
tenha “correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação
procedida”9 ou, ainda, a “discriminação positiva”, são admitidas pelo nosso
ordenamento jurídico-constitucional.
2.
MINORIAS,
GRUPOS
VULNERÁVEIS
E
AÇÕES
AFIRMATIVAS
O pluralismo é característica da sociedade democrática, como é a nossa. A
diversidade, portanto, faz parte do meio social em que vivemos, sendo essencial
para o desenvolvimento da comunidade. Partindo-se desse raciocínio, podemos
observar a importância da proteção das minorias ou grupos vulneráveis.
O Novo Dicionário Aurélio assim descreve minoria: inferioridade
numérica; a parte menos numerosa duma corporação deliberativa, e que sustenta
idéias contrárias às do maior número; menoridade.
8
9
Curso de direito constitucional, p. 343.
Celso Antônio Bandeira de Mello. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, passim.
7
Discorrendo sobre o assunto, Elida Séguin afirma ser complexo conceituar
minorias, uma vez que diante das conquistas modernas não poderia haver
restrição somente a critérios étnicos, religiosos, lingüísticos ou culturais10.
Lembra a autora que, em princípio, o termo “minorias” é pensado sob o
aspecto de um número inferior de pessoas, “(...) como grupos de indivíduos,
destacados por uma característica que os distingue dos outros habitantes do
país, estando em quantidade menor em relação à população deste”11 o que vem
de encontro com o significado acima descrito pelo dicionário.
Dessa forma, ressalta ainda que haveria um contra-senso na designação de
algumas minorias aprioristicamente, dando como exemplo as mulheres e os
idosos12.
Mais adiante, discorre sobre grupos vulneráveis e chega à conclusão de
que o melhor, para o trabalho que desenvolve, é não se apegar a diferenciações:
“Existe certa confusão entre minorias e grupos vulneráveis. As primeiras
seriam caracterizadas por ocupar uma posição de não-dominância no país
onde vivem. Os grupos vulneráveis podem se constituir num grande
contingente numericamente falando, como as mulheres, crianças e idosos.
Para alguns são grupos vulneráveis, posto destituídos de poder mas
guardam a cidadania e os demais elementos que poderiam transformá-los
em minorias.
Na prática tanto os grupos vulneráveis quanto as minorias sofrem
discriminação e são vítimas da intolerância, motivo que nos levou, no
presente estudo, a não nos atermos a diferença existente”13.
Minorias e grupos vulneráveis: uma abordagem jurídica, p. 09.
Ibid., mesma página.
12
Ibid., p. 10.
13
Ibid., p. 12.
10
11
8
Gabi Wucher, também discorrendo sobre o assunto afirma:
“O elemento numérico per se não é, sem dúvida, suficiente para
caracterizar uma minoria que precise de proteção especial. A situação na
África do Sul, durante o regime de apartheid, caracterizada pela
dominância exercida pela minoria branca sobre a maioria – a população
negra -, é ilustrativa nesse contexto. Para ser objeto de proteção
internacional, a minoria precisa imprescindivelmente ser caracterizada por
uma posição de não-dominância que ocupa no âmbito do Estado em que
vive. No entanto, o elemento de não-dominância per se é o que igualmente
caracteriza os chamados ‘grupos vulneráveis’, conceito de abrangência
maior que o de ‘minorias’. Grupos vulneráveis podem, mas não precisam
necessariamente constituir-se em grupos numericamente pequenos:
mulheres, crianças e idosos podem ser considerados ‘grupos vulneráveis’,
sem, no entanto, se constituírem em minoria. Mesmo um grupo pequeno em
posição de não-dominância ainda pode não ser considerado uma minoria,
como, por exemplo, trabalhadores migrantes (por não serem cidadãos do
país em que vivem) ou pessoas portadoras de deficiência (por falta de
solidariedade com vistas à preservação de cultura, tradições, religiões ou
idioma)”14.
A mesma autora faz distinção entre minorias “by force” e minorias “by
will”, dizendo que as primeiras reclamam “a assimilação em relação à
maioria”, e as outras “ao reclamarem a integração na sociedade em que vivem,
aspiram à concomitante preservação de suas características”15.
No presente trabalho, não se fará distinção entre minorias e grupos
vulneráveis, uma vez que o melhor entendimento, para tratar da temática, parece
ser o que considera os dois grupos merecedores de proteção, de uma conduta
ativa do Estado.
Joaquim B. Barbosa Gomes, discorrendo sobre a posição estatal nos mais
diversos aspectos assim se manifesta:
14
Minorias: proteção internacional em prol da democracia, p. 46.
15
Ibid., p. 52.
9
“A sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéiaschave a noção de neutralidade estatal que se expressa de diversas
maneiras: não intervenção em matéria econômica, no domínio espiritual e
na esfera íntima das pessoas. No campo do Direito, tais idéias tiveram e
continuam a ter conseqüências relevantes, especialmente no que diz respeito
à postura do Estado em relação aos diversos grupos componentes da
Nação, bem como no que concerne à interação desses grupos entre si. De
especial importância, nesse sentido, é o tratamento jurídico do problema da
igualdade. Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o
abstencionismo estatal se traduziu na crença de que a mera introdução nas
respectivas Constituições de princípios e regras asseguradoras de uma
igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos componentes da
Nação, seria suficiente para garantir a existência de sociedades
harmônicas, onde seriam assegurados a todos, independentemente de raça,
credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que
comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo”16.
O autor prossegue lembrando sobre o fracasso que se tem mostrado a idéia
de neutralidade estatal. Conclui, então, que apenas proclamações jurídicas não
são suficientes para alterar esse panorama social enraizado na cultura dos mais
variados países, na mente da coletividade, na compreensão difundida de que uns
dominam e outros são subordinados. Salienta, ainda, que a reversão dessa
situação somente ocorrerá “(...) com a renúncia do Estado à sua histórica
neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição
ativa (...)”17.
Essa “posição ativa” do Estado teve início com as políticas de ações
afirmativas, planejadas, inicialmente, nos Estados Unidos da América. Em
seguida, colocada em prática por diversos países, também no Brasil passou a
fazer parte da “agenda estatal”, tendo se iniciado timidamente e, aos poucos, foi
conscientizando e conquistando mais adeptos nos mais diversos segmentos da
sociedade brasileira.
Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de
transformação social: a experiência dos Estados Unidos, p. 36.
17
Ibid., p. 37.
16
10
Dessa forma, parece evidente que o Estado brasileiro não mais pode
assumir uma postura neutra. De acordo com Luiz Alberto David Araujo e Vidal
Serrano Nunes Júnior, uma análise sistemática da Constituição comprova que
muitos dispositivos constitucionais percorreram a direção do Estado do bemestar social. Assim afirmam os autores: “(...) a busca do bem-estar social
permeia toda a Constituição Federal de 1988, de tal modo que esse aspecto não
pode ser desconsiderado na tarefa de delimitar o perfil constitucional do Estado
brasileiro”. E continuam: “(...) parece inquestionável que a Constituição do
Brasil institui um Estado Democrático Social de Direito”18.
Lenio Luiz Streck também discorre sobre o Estado do bem-estar:
“(...) o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independente
de sua situação social, tem direito a ser protegido contra dependências de
curta ou longa duração. Seria o Estado que garante tipos mínimos de renda,
alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não
como caridade mas como direito político.
Há uma garantia cidadã ao bem-estar pela ação positiva do Estado como
afiançador da qualidade de vida do indivíduo. Todavia, algumas situações
históricas produziram um novo conceito. O Estado Democrático de Direito
emerge como um aprofundamento da fórmula, de um lado, do Estado de
Direito e, de outro, do Welfare State. Resumidamente, pode-se dizer que, ao
mesmo tempo em que se tem a permanência em voga da já tradicional
questão social, há como que a sua qualificação pela questão da igualdade.
Assim, o conteúdo deste se aprimora e se complexifica, posto que impõe à
ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação
do status quo. Produz-se, aqui, um pressuposto teleológico cujo sentido deve
ser incorporado aos mecanismos próprios ao Estado do Bem-Estar,
construídos desde há muito.
É este o conceito que, vindo estampado no texto constitucional (art. 1º),
define os contornos do Estado brasileiro, a partir de 1988 (...)”19.
18
19
Curso de direito constitucional, p. 77-78.
Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito, p. 56-57.
11
Diante disso, podemos afirmar que as políticas de ações afirmativas devem
fazer parte do rol de prestações a que o Estado brasileiro está obrigado a realizar.
Joaquim B. Barbosa Gomes assim define ações afirmativas:
“Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto
de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou
voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de
gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes
da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização
do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a
educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais
antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo,
que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente
instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto,
as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a
discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é,
formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou
através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas
práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas
e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e
por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à
concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o
da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm
direito”20.
A Constituição Federal de 1988 tomou algumas iniciativas acerca do
assunto quando tratou, por exemplo, das pessoas portadoras de deficiência (Art.
37, VIII), do trabalho da mulher (Art. 7º, XX), dentre outras.
Como já salientado anteriormente, aos poucos o Estado brasileiro foi
abarcando maiores possibilidades na admissibilidade de ações afirmativas. A
consciência acerca da inclusão social foi se alastrando e hoje já podemos contar
com algumas dessas políticas em nosso país, especialmente no campo do
trabalho e da educação. Certo é afirmar que ainda estamos engatinhando no
assunto. Porém, não podemos deixar de reconhecer os avanços nos últimos anos.
20
Ibid., p. 40-41.
12
Tema que vem sendo discutido com veemência na atualidade é a questão
das quotas no ensino superior, que passaremos a tratar no próximo tópico.
3. O DEVER DO ESTADO COM A EDUCAÇÃO NO ENSINO
SUPERIOR: A DISCUSSÃO SOBRE A RESERVA DE VAGAS
A educação, direito social previsto no artigo 6º da Constituição Federal,
está incluída no Título II do texto constitucional, do que podemos concluir que
se trata de um direito fundamental. Pertence aos chamados direitos fundamentais
de segunda geração, os quais requerem uma prestação positiva do Estado.
Regina Maria Fonseca Muniz salienta ser o direito à educação um dos
direitos humanos, que possui origem no direito natural. Segundo a autora, a
educação “Ínsita no direito à vida, é instrumento fundamental para que o
homem possa se realizar como homem”21.
Paulo Bonavides, discorrendo sobre os direitos fundamentais, assim se
manifesta:
“Os direitos fundamentais não mudaram, mas se enriqueceram de uma
dimensão nova e adicional com a introdução dos direitos sociais básicos. A
igualdade não revogou a liberdade, mas a liberdade sem a igualdade é
valor vulnerável. Em última análise, o que aconteceu foi a passagem da
liberdade jurídica para a liberdade real, do mesmo modo que da igualdade
abstrata se intenta passar para a igualdade fática”22.
21
22
O direito à educação, p. 79.
Curso de direito constitucional, p. 343.
13
Passaremos a tratar, especificamente, da educação no ensino superior.
Necessário deixar claro, inicialmente, que esse nível do ensino não pode mais ser
considerado privilégio de poucos, pois não há mais espaço para essa mentalidade
no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, que cada vez mais
requer melhores qualificações das pessoas para que possam lograr um emprego
capaz de prover dignamente a subsistência.
Iniciaremos, então, a discussão acerca dos dispositivos constitucionais que
tratam do assunto, para, a partir deles, se comprovar a responsabilidade do
Estado na tarefa de proporcionar às camadas menos favorecidas do nosso país o
efetivo direito ao acesso aos níveis mais elevados da educação.
O Art. 205 da Constituição de 1988 prescreve que “A educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Nesse ponto resta demonstrado o papel da educação como forma de
desenvolvimento da pessoa humana e necessária para lhe proporcionar atributos
objetivando o emprego.
O inciso I do Art. 206 traz como um dos princípios do ensino a
“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Aqui, parece
explícita a intenção de garantir a igualdade material, igualdade de oportunidades.
Mais adiante, no Art. 208, inciso V, o ensino superior é tratado de forma
mais específica: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de: acesso aos níveis mais elevados do ensino (...)”. De acordo com
Wilson Donizeti Liberati, esse direito “(...) é a garantia de concretização do
14
pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes que ingressam no Sistema de
Ensino”23.
Esses dispositivos constitucionais supracitados já vêm comprovar, em
grande parte, o dever de prestação do Estado na educação de nível superior.
Porém, necessário ainda, trazermos à colação outras regras constantes da
Constituição de 1988 para que possamos avançar no tema.
O Art. 1º da Lei Maior traz como fundamentos do Estado Democrático de
Direito, dentre outros “a cidadania” e “a dignidade da pessoa humana”. A
seguir, no Art. 3º, onde constam os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, podemos citar os que aqui nos interessam: “construir uma
sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”.
Esses preceitos constitucionais que foram trazidos à colação, relacionamse, claramente, com a necessidade, para o cumprimento dos ditames da
Constituição Federal, de ações afirmativas do Estado no campo do ensino
superior. Diariamente nos deparamos com noticiários que comprovam,
estatisticamente, que a maior parte dos alunos matriculados no ensino superior,
especialmente no público, trata-se de pessoas que pertencem às camadas mais
abastadas da sociedade brasileira.
23
Direito à educação: uma questão de justiça, p. 238.
15
A promoção da igualdade material, nesse setor, somente pode ser
efetivada por meio de políticas de ações afirmativas, que visem tanto aos
excluídos em razão da raça, quanto aos excluídos em razão da situação
econômica.
Parece evidente, tendo em vista as regras acima transcritas do texto
constitucional, que deve haver compromisso do Estado e da sociedade no sentido
de proporcionar aos “excluídos” socialmente o acesso ao ensino superior, até em
razão de, através desse comportamento, não apenas diminuir as desigualdades
existentes no nosso país, mas também objetivando o desenvolvimento do Brasil.
Não nos parece plausível que continuemos, tanto Estado quanto sociedade,
assumindo uma posição passiva diante das gritantes diferenças sociais existentes.
Já passamos muitos anos assistindo a esse “filme”: pais que não tiveram
oportunidades de estudar e se qualificar, tendo que aceitar baixos salários por
empregos que exigem mínima ou nenhuma qualificação e, os filhos, crescem e
passam a fazer parte desse círculo vicioso. E a cadeia se renova, sem nenhuma
alteração.
Algumas universidades já implantaram o sistema de reserva de vagas.
Ocorre que, não são raras as ações judiciais contra essas instituições em razão da
ausência de lei federal que regule o tema.
O Estado brasileiro começa a demonstrar sua preocupação com o
problema. Recentemente foi sancionada a Lei do Prouni (Programa Universidade
para Todos – Lei nº 11.096/2005). O programa se destina à concessão de bolsas
de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de
16
formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem
fins lucrativos.
Há, também, projeto de lei de nº 3.627/2004, que institui Sistema Especial
de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial
negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior. Este
prevê que no mínimo 50% das vagas dos concursos para seleção de candidatos
para ingresso nos cursos de graduação das instituições públicas federais de
educação superior serão reservadas para estudantes que tenham cursado o ensino
médio, integralmente, em escolas públicas. Essas vagas deverão ser preenchidas
por
uma
proporção
mínima
de
autodeclarados
negros
e
indígenas
proporcionalmente à quantidade destes na população da unidade da Federação
onde está instalada a instituição.
Por último, cabe citar o projeto de lei da reforma universitária, que
também trata do assunto e abrange a política de ações afirmativas nos moldes do
projeto de lei acima citado.
Temos consciência de que muitas têm sido as críticas a respeito do tema.
Destacamos duas: a primeira que afirma que o correto seria a melhoria do ensino
médio público ao invés da reserva de vagas no ensino superior, e, a outra, que
diz respeito aos critérios adotados para comprovar a veracidade de quem declara
necessitar dessa “proteção” do Estado.
A melhoria do ensino médio público trata-se de esforço que requer muitas
mudanças, o que levará décadas para sua efetivação.
17
No que concerne à segunda crítica, deve ser salientado que, por todos os
motivos que já ficaram evidenciados pela presente exposição, existem grupos, e
os “excluídos” da educação superior fazem parte de um destes, que para
conquistarem a igualdade material necessitam dessa “discriminação positiva”.
Assim, o que resta fazer é procurar meios de aperfeiçoar essas ações afirmativas
e não, simplesmente pelo fato de possuírem falhas, rejeitá-las.
CONCLUSÃO
No presente trabalho procuramos demonstrar que a reserva de vagas no
ensino superior está relacionada com a igualdade material, igualdade de
oportunidades.
Uma análise do texto constitucional nos faz verificar que o Estado
brasileiro deve constituir um Estado do bem-estar social. Assim, não mais se
justifica, que diante das diversas desigualdades presentes no nosso país, o Estado
assuma uma posição neutra. Necessário se mostra uma posição ativa do Estado.
Aqui entra a questão das políticas de ações afirmativas.
A Constituição de 1988 muito já evoluiu no assunto. Citamos, a título de
exemplos, os Arts. 7º, XX e 37, VIII. Porém, outros campos devem ser
explorados para que seja possível a integração social de setores desfavorecidos,
para, dessa forma, combater as desigualdades.
18
A reserva de vagas no ensino superior é um deles. Somente com essa
conduta ativa do Estado é que o acesso aos níveis mais elevados do ensino será
democratizado. Esse comportamento se mostra conveniente, uma vez que a
melhoria do ensino médio público no Brasil, para que fosse possível “equivaler
os saberes” é tarefa muito mais árdua e demorada para se concretizar. Assim,
enquanto o Estado não possuir aptidão para a melhora do ensino médio público,
a reserva de vagas continuará sendo a melhor solução para concretizar a
igualdade de oportunidades.
REFERÊNCIAS
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direito constitucional. 8ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. rev. atual. amp.
São Paulo: Malheiros, 2000.
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GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz; SILVÉRIO, Valter Roberto (orgs.).
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São Paulo: Malheiros, 2004.
19
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igualdade. 3ª ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2003.
MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O direito à educação. Renovar: Rio de Janeiro,
2002.
SÉGUIN, Elida. Minorias e grupos vulneráveis: uma abordagem jurídica. Rio
de Janeiro: Forense, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova
crítica do direito. 2ª ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
WUCHER, Gabi. Minorias: proteção internacional em prol da democracia. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.
Download

vagas reservadas no ensino superior: igualdade de oportunidades