UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
TAÍS CERVI
E MAIS UMA VEZ, ERA UMA VEZ:
A CRIANÇA E SEU MUNDO DO FAZ DE CONTA
Ijuí
2006
2
TAÍS CERVI
E MAIS UMA VEZ, ERA UMA VEZ:
A CRIANÇA E O SEU MUNDO DO FAZ DE CONTA
Trabalho
de
pesquisa
supervisionado
apresentado como requisito parcial para a
conclusão
do
curso
Psicólogo.
Orientadora: Ângela Schneider Drügg
Banca examinadora: Ana Maria de Souza Dias
Larry Antônio Wizniewsky
Ijuí
2006
de
formação
de
3
DEDICATÓRIA
Aos meus familiares, pelas angústias, preocupações
que passaram por minha causa; pelo amor, carinho e estímulo que
me ofereceram. Dedico também ao meu namorado que por tantas
vezes soube ser paciente e um grande companheiro nos momentos
difíceis. A todos, dedico esta conquista como gratidão.
4
AGRADECIMENTO
Agradeço aos meus pais que me abriram o caminho
mágico dos contos de fadas e com isso também abriram caminho
para esta história.
Agradeço a minha querida irmã que comigo
compartilhou esse mundo dos contos de fadas e pela força nos
momentos difíceis.
Agradeço ao meu príncipe encantado que faz parte
desta história e com quem agora continuo a construir outra
história. Agradeço aos momentos de compreensão.
Agradeço a minha orientadora e primeira leitora que
me
orientou
nessa
história
com
muita
disponibilidade,
criatividade e paciência.
Agradeço as minhas amigas Rosvani e Viviane pela
compreensão nos momentos difíceis dessa caminhada e pelos
momentos de alegria que me proporcionaram.
5
E MAIS UMA VEZ, ERA UMA VEZ:
A CRIANÇA E O SEU MUNDO DO FAZ DE CONTA
Este trabalho refere-se a algo muito importante para a constituição psíquica da
criança: os contos de fadas. O trabalho mostra que os contos de fadas possuem, em geral, uma
origem nada infantil. Esta remonta aos mitos, contos ou ainda histórias populares, depois
adaptadas para as crianças (que passaram a ser diferenciadas em relação aos adultos e
socialmente aceitas como pequenos seres humanos que precisavam de uma atenção especial e
diferenciada dos adultos). Essas narrativas, vindas da tradição oral em tempos remotos,
representam estruturas inconscientes do ser humano; prestam-se a trabalhar, simbolizar e
talvez aliviar o pesado fardo carregado pela criança durante o seu desenvolvimento. O
trabalho trata ainda do sentimento de medo, tão presente ao longo das páginas dos contos de
fadas, trabalhado especialmente em três histórinhas (O Lobo e os Sete Cabritinhos,
Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos), encarnado na figura do lobo mau, tendo como
seu ancestral o lobisomem. É, portanto, através do lobo mau que a criança pode encontrar
uma maneira de simbolizar suas fobias (no sentido constitutivo e não patológico) e seus
medos. Além disso, o lobo mau é um ótimo recurso utilizado pela criança para dar conta das
questões relativas à Lei e, por conseqüência, questões referentes à função paterna, bem como
questões relacionadas à castração (tomada do ponto de vista tanto de Freud quanto de Dolto).
Portanto, o presente trabalho é um instrumento que pode ser utilizado por quem deseja
aproximar-se da riquíssima realidade das crianças e de alguns aspectos do seu
desenvolvimento.
Palavras-chave:
contos de fadas - medo - lobo mau
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 7
1 UM POUCO DE HISTÓRIA .......................................................................................... 10
1.1 SOBRE AS FONTES .................................................................................................... 10
1.2 MITO x LITERATURA ............................................................................................... 11
1.2.1 A Evolução dos Mitos ................................................................................................ 11
1.2.2 O Mito Troca de Roupa ............................................................................................. 15
1.2.3 O Mito e O Conto de Fada ........................................................................................ 18
1.3 HISTÓRIAS QUE OS CAMPONESES CONTAVAM ............................................. 22
1.4 UM TESOURO PARA AS CRIANÇAS ..................................................................... 29
1.5 O SEGREDO DA PERMANÊNCIA DOS CONTOS DE FADAS ........................... 32
1.6 ERA UMA VEZ: O CONTO DE FADAS E SUA EFICÁCIA PSICOLÓGICA .... 35
1.7 UMA BOA HISTÓRIA E SEU VALOR ..................................................................... 40
2 NO CAMINHO DO LOBO MAU .................................................................................. 43
2.1 LOBISOMEM: O DESCONHECIDO LADO DO LOBO MAU ............................. 44
2.1.1 A Origem Mitológica do Lobisomem ....................................................................... 44
2.1.2 O Possível Berço da Licantropia ............................................................................... 46
2.1.3 Lobisomem: uma Condição ou uma Doença? ......................................................... 47
2.1.4 Permanência do Lobisomem ..................................................................................... 50
2.1.5 Da Licantropia à Vovozinha ..................................................................................... 51
2.2 ENFIM, O LOBO MAU ............................................................................................... 52
2.3 NA TERRA DAS FADAS ............................................................................................ 54
2.3.1 O Medo de ser Devorado ........................................................................................... 54
2.3.2 O que quer Chapeuzinho? ........................................................................................ 55
2.3.3 Quem Pensou em Devorar, Acabou sendo Devorado ............................................. 60
2.4 O SENHOR LOBO ENQUANTO OBJETO FÓBICO ............................................. 62
2.5 A FACE OCULTA DO LOBO MAU .......................................................................... 67
2.5.1 A Castração sob o Olhar de Freud ........................................................................... 67
2.5.2 A Castração sob o Olhar de Dolto ............................................................................ 69
2.5.2.1 Castração Umbilical: Olá Mundo Cruel ............................................................... 70
2.5.2.2 Castração Oral: O Paraíso Perdido ...................................................................... 70
2.5.2.3 Castração Anal: A Entrada de um Lobo .............................................................. 76
2.5.2.4 Castração Primária e Castração Edípica: Pai Incestuoso x Pai Castrador ....... 78
2.5.2.5 O Espelho e o Édipo ................................................................................................ 82
2.6 OS RESTOS DO FINAL DA HISTÓRIA .................................................................. 83
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 85
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 88
7
APRESENTAÇÃO
Uma vida é uma história, e o que contamos dela é sempre um tipo de ficção. Uma
pessoa constrói a sua própria história e, portanto, o seu próprio roteiro, que se enlaça com uma
trama na qual cada história possui medidas diferentes de frustrações, alegrias, aventuras...
Portanto, escutar outras histórias através dos livros, TV, filmes... faz com que cada pessoa
reflita sobre seu destino, pense na sua existência, defronte-se com seus ideais e desejos, não
de uma forma direta, mas simbólica.
A paixão por histórias que trazem em seu enredo a fantasia e a ficção começa desde
cedo, de forma que não existe infância sem elas. A partir do momento em que a infância
passou a ter um reconhecimento social, os contos de fadas passaram a ser a forma mais
comum de ficção, e progressivamente, destinados ao público infantil. Na atualidade, os contos
de fadas são coisa de criança, são uma fatia de imaginário destinados a elas. Mas,
curiosamente, notamos que eles nem sempre foram destinados a este público e nem sempre
foram contados como são hoje. Como foi, então, que estes restos do passado foram parar
exatamente nas mãos das crianças? Qual é a sua origem e por que surgiram? Quais são as suas
contribuições para a estruturação psíquica da criança? Frente a tantas histórias, por que as
crianças demonstram mais interesse por histórias que contemplam o medo?
Com vistas a esclarecer essas questões, o presente trabalho está organizado em dois
momentos. O primeiro direciona-se ao modo como os contos de fadas surgiram e por que
surgiram. Nesse sentido, alguns aspectos referentes ao mito e ao seu desenvolvimento no
âmbito da literatura são abordados. Por isso, refazemos a trajetória do mito desde a
antigüidade até os tempos modernos, observando as principais modificações ocorridas nesse
percurso. Além disso, procuramos detectar alguns possíveis fatores que motivaram essas
transformações. Em seguida, abordamos alguns estudos acerca de gêneros literários nos quais
se pode perceber a permanência de, ao menos, alguns aspectos do pensamento mítico.
Detemo-nos também, no aspecto referente à eficácia dos contos de fadas na estruturação
psíquica da criança. Dentro disso, algumas hipóteses são traçadas no que diz respeito ao
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motivo pelo qual eles ainda se mantêm vivos depois de muitos anos. Embora tenha ocorrido
muita mudança no império dos homens, parece que certos assuntos permanecem ainda vivos e
surpreendentemente encontram lugar entre as crianças. Certamente, essas histórias têm suas
razões para existirem ainda, caso contrário teriam desaparecido.
Num segundo momento, o trabalho busca responder por quais motivos as crianças
demonstram um nítido interesse em narrativas que ressaltam o medo. É interessante destacar
que o medo será, inicialmente, abordado numa dimensão que antecedeu os contos de fadas, na
dimensão do mito. Assim, é por meio do mito do lobisomem que começamos a trabalhar o
medo, pois é por meio do desenvolvimento e da difusão deste mito que surge o lobo mau nos
contos de fadas.
É sabido que as crianças demonstram muito mais interesse por histórias de temáticas
assustadoras e personagens monstruosos, as quais estão longe de lhes provocar aversão. Elas
procuram o medo. Se este desaparece, elas o reinventam. É por meio desse tipo de contos que
as crianças elaboram as suas fantasias e suas angústias - angústia de ser devorado, angústia de
ser engolido.... Podemos dizer que é uma maneira de a criança se haver com aquilo que lhe
parece estranho e que, no entanto, lhe é familiar. Assim, por intermédio da história, de uma
forma simbólica e não no real, a criança depara o estranho e, paradoxalmente, familiar. E o
lobo mau entra aqui como um intermediário, como um personagem que permite à criança
projetar nele todos os seus medos, suas angústias frente a castração e frente a lei imposta pela
função paterna.
Considerando que tanto o universo dos contos de fadas como o universo da ficção é
muito vasto, o segundo momento do trabalho segue um caminho demonstrativo, no qual é
realizado o exame de algumas histórias bem conhecidas, pelo significado e prazer que se pode
obter delas. São histórias que carregam consigo a dimensão do medo encarnada na figura do
lobo mau. Dessa forma, os contos de fada escolhidos foram: O Lobo e os Sete Cabritinhos,
Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos, pois estes trazem o medo encarnado na figura
do lobo, principal animal tomado pelas crianças para a elaboração de suas fobias (fobias não
no sentido patológico, mas no sentido constituinte). Com efeito, a análise desses contos
parece-nos ser uma forma agradável e interessante de compreender o porquê da preferência
das crianças por narrativas que suscitam o medo.
Outro fator que justifica o trabalho: o vasto território de ficção que é destinada às
crianças, pois nunca houve tanta preocupação com o crescimento e com a estruturação do eu.
9
Acreditamos muito nas influências precoces que são destinadas à criança, sendo que os contos
de fadas fazem parte deste recheio de influências oferecidas.
Assim, este trabalho pretende contribuir para elucidar as razões que levam os contos
a existirem até hoje e serem tão consagrados.
10
CAPÍTULO I
UM POUCO DE HISTÓRIA
"O conto,[...] é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças,
porque ele foi, outrora, o primeiro conselheiro dos homens,
perpetuam-se, secretamente, na narração"
(BENJAMIN apud GUTFREIND, 2003, p.157).
1.1 SOBRE AS FONTES
Preocupamo-nos crescente e obsessivamente com as crianças. Ocuparmo-nos das
crianças e seu desenvolvimento é hoje uma necessidade cultural imperiosa. Nunca tanto
investimento foi feito em seres tão pequenos, em gente tão novinha, nunca se esperou tanto
deles. Além disso, cada vez mais acreditamos nas influências precoces da formação no
destino dos seres humanos. Dentro desse contexto, bem como ante a preocupação com os
estímulos necessários para um perfeito desenvolvimento das crianças, encontramos os contos
de fadas que são lidos ou escutados pelas crianças.
Falamos muito nos contos de fadas, porém pouco ou quase nada falamos sobre como
surgiram e por que surgiram. Não falamos da sua origem, de quando começaram a ser
contados para as crianças. O que todo mundo sabe é que "no tempo da minha avó eles já
existiam". E como temos o estranho e comum hábito de esquecer nossas origens, eles parecem
ter existido desde sempre. Portanto, como e por que eles nasceram?
Desde já, podemos antecipar que algo é certo: não podemos tomar os contos de fadas
num sentido atemporal, como se sempre desempenhassem a mesma função para um público
similar, obedecendo sentidos padronizados. Enquanto histórias nasceram e morreram, os
contos de fadas parecem desafiar o tempo, atravessando dezenas de séculos e várias formas de
organização social, atingindo durante o seu percurso diferentes públicos.
Diante desse questionamento, Corso e Corso (2006, p.25) nos auxiliam à medida que
afirmam que na sua origem não serviram a uma parcela restrita de pessoas; eles nasceram para
todos. "Durante séculos, faziam parte de momentos coletivos, em que um bom contador de
histórias emocionava sua platéia, incluindo gente de todas as idades" (p.25). Com o passar dos
tempos essas formas de narrativas mágicas foram sendo empurradas para o domínio infantil.
11
Nesse sentido, podemos concordar com vários pensadores como Eliade, por
exemplo, que afirma que a origem dos contos de fadas está relacionada com mitos e com ritos
de iniciação ou ritos de passagem. Vejamos o que Bettelheim ressaltou sobre o que Platão e
Aristóteles escreveram a respeito dos mitos:
Platão - que entendeu possivelmente a formação da mente humana melhor
do que alguns de nossos contemporâneos, que desejam suas crianças expostas
apenas a pessoas e acontecimentos cotidianos 'reais' - sabia o quanto as experiências
intelectuais contribuem para a verdadeira humanidade. Ele sugeriu que os futuros
cidadãos de sua república ideal começassem sua educação literária com a narração
dos mitos, em vez de meros fatos ou os ditos ensinamentos racionais. Mesmo
Aristóteles, mestre da razão pura, disse: 'O amigo da sabedoria é também um amigo
do mito' (1980, p.45).
O mínimo que podemos pensar, então, é que eles se encontram deslocados de suas
significações originais. A partir daí, o mito encontra no âmbito da literatura um meio de
desenvolvimento. No entanto, para que possamos entender a origem dos contos de fadas,
precisamos também entender os laços existentes entre os contos de fadas e os mitos. Além
disso, faz-se necessário o entendimento a respeito da origem do mito, ou seja, as suas
primeiras significações e a sua evolução até a contemporaneidade.
1.2 MITO x LITERATURA
1.2.1 A Evolução do Mito
Monfardini (2005, p.50), utilizando-se de Vernant, afirma que inicialmente não havia
a distinção entre mythos (pensamento mítico) e logos (pensamento lógico) na relação do mito
com a sociedade. Este distanciamento só ocorreu entre os séculos oitavo e quarto a.C.,
distanciamento este que proporcionou o surgimento da palavra escrita que inaugura uma nova
forma de pensamento. Estabelece-se, assim, a distinção entre mythos e logos, sendo o
primeiro localizado na ordem do fascinante, do fabuloso, do maravilhoso, e o segundo, na
ordem do verdadeiro e do inteligível" (MONFARDINI, 2005, p.51). Essa distinção acontece
porque também aparece uma oposição entre palavra escrita e palavra falada, em que o
narrador busca encantar o ouvinte, ao passo que aquele que escreve busca convencer o leitor.
"[...] é no campo da literatura que o mito vai encontrar abrigo, e é aí que terá
continuidade, ainda que sofrendo algumas alterações" (Idem, ibidem.). Entender essas
alterações implica compreender o mito e seu funcionamento primitivo.
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Eliade, ao analisar a importância dos mitos (1986, p.7), considera que nas sociedades
arcaicas a narrativa mítica desempenhava uma importante função dentro da estrutura social e
por isso o mito era compreendido como uma história verdadeira, de caráter sagrado, exemplar
e significativo. O autor define o mito como uma narrativa que:
[...] conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'. Em outros termos, o mito narra como,
graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal,
um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, uma narrativa de
uma 'criação': ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito
fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente (1986, p.11)
[grifo do autor].
Por ser considerado uma narrativa de uma criação, o mito pode ser um revelador de
"modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a
alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria" (ELIADE,
1986, p.13). Ou como escreve Lacan (1995), o mito diz "de temas da vida e da morte, da
existência e da não-existência, do nascimento, em especial, isto é, da aparição daquilo que
ainda não existe. Trata-se, pois, de temas ligados, [...] à existência do próprio sujeito e aos
horizontes que sua experiência lhe traz [...] (p.257). "Ao narrar como as coisas foram feitas,
os mitos revelam por quem e por que o foram, e em quais circunstâncias" (ELIADE, 1986,
p.128). Dessa forma, a função do mito consiste em fornecer uma significação ao mundo e à
existência humana. Eis aqui o seu papel na constituição do homem.
Rocha (1988) também considera o mito como uma narrativa, como um discurso, uma
fala que carrega consigo uma mensagem que não está dita diretamente. De acordo com o
mesmo autor, o mito não é verdadeiro no seu conteúdo manifesto, literal, expresso, dado. No
entanto, possui um valor e, mais que isso, uma eficácia na vida social. Assim sendo, o mito é
capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção de existência e das
relações que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca.
Nas sociedades arcaicas, há uma distinção entre histórias verdadeiras e histórias
falsas. Sendo assim, o caráter sagrado e sobrenatural diz das histórias verdadeiras, onde se
encontram também os contos e o conteúdo profano, diz das histórias falsas (ELIADE, 1986,
p.13).
Podemos considerar significativa a distinção feita entre histórias verdadeiras e
histórias falsas:
13
Ambas as categorias de narrativas apresentam 'histórias', isto é, relatam
uma série de eventos que se verificam num passado distante e fabuloso. Embora os
protagonistas dos mitos sejam geralmente Deuses e Entes Sobrenaturais, enquanto
os dos contos são heróis ou animais miraculosos, todos esses personagens têm uma
característica em comum: eles não pertencem ao mundo quotidiano (ELIADE, 1986,
p.15).
Assim, "os mitos descrevem acontecimentos que dizem respeito ao ser humano;
relatam não apenas a origem das coisas, mas os acontecimentos primordiais que determinaram
a condição do homem no mundo e o constituíram tal como ele é" (MONFARDINI, 2005,
p.51-2). "[...] ao passo que os contos e as fábulas se referem a acontecimentos que, embora
tendo ocasionado mudanças no Mundo [...], não modificaram a condição humana como tal"
(ELIADE, 1986, p.15)1.
Escrevendo sobre o caráter constitutivo do mito, Eliade estabelece uma relação entre
mito e história e diz que o homem das sociedades arcaicas era constituído pelos eventos dos
mitos, ao passo que o homem moderno é constituído pela história. A diferença é, segundo
Monfardini (2005, p.52), que a história é linear e irreversível e a narrativa mítica assenta-se
sobre a intemporalidade. Isto é, no dizer de Lévis-Strauss (1955), "um mito diz respeito,
sempre a acontecimentos passados [...]. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de
que esses acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo, formam
também uma estrutura permanente. Esta se relaciona simultaneamente ao passado, ao presente
e ao futuro" (p.241). Assim, o tempo do mito é reversível porque está sempre presente, mas
cada vivência mítica particular é irreversível no tempo porque é individual. Assim, o homem
primitivo precisa não somente conhecê-la, mas reatualizá-la. Nesse sentido, Monfardini
continua, dizendo que, para o homem das sociedades arcaicas, conhecer o mito é saber sobre a
origem das coisas e assim poder repetir o ato criador. Porém, para que a repetição do ato de
criação se torne possível, é preciso não só conhecer o mito de origem mas também recitá-lo.
Isso, evidencia o poder criador da palavra.
A palavra, segundo Cassirer (1992), assume um caráter de arquipotência em todas as
cosmogonias míticas, chegando ao ponto de sobrepor-se ao poder dos deuses ou até mesmo
confundindo-se com eles. Analisando a relação existente entre mito e linguagem, Cassirer
menciona uma possível existência de uma raiz comum que une a consciência lingüística à
consciência mítica, assentando que ambas repousam sobre uma mesma forma de concepção
1
É importante ressaltar que o que para um povo pode ser considerado uma história verdadeira, para outro pode
ser considerado como uma história falsa. Porém, os primitivos sempre distinguiram mito (histórias verdadeiras)
de contos e lendas (histórias falsas).
14
mental: o pensar metafórico. Chamando a atenção para uma relação entre forma lingüística e
forma mítica, o autor afirma que existe uma influência recíproca entre linguagem e mito:
[...] a linguagem e o mito se acham originalmente em relação
indissolúvel, dá qual só aos poucos cada um se vai desprendendo como membro
independente. Ambos são ramos diversos do mesmo impulso de enformação
simbólica, que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboração espiritual, da
concentração e elevação da simples percepção sensorial (1992, p.106).
Lévis-Strauss também atribui relações entre mito e linguagem, dizendo que "[...] o
mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do
discurso" (1955, p.240). Mais adiante, afirma: "se queremos perceber os caracteres
específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está,
simultaneamente, na linguagem e além dela" (1955, p.240).
Na linguagem, bem como no mito, ocorre uma transposição simbólica do conteúdo
sensível em uma conformação objetiva. As metáforas, tanto lingüística quanto mítica, nascem
do mesmo esforço de concentração da percepção sensorial, peculiar a toda enformação, seja
lingüística ou mítica.
Nesse ponto, Cassirer (1992) evidencia o contraste entre conceitualização lógicodiscursiva e mítica-lingüística. No primeiro tipo de formação de conceitos há um esforço de
ampliação, de reunião das partes ao todo, sem que haja a perda da delimitação de cada um, ao
passo que no segundo, observamos o contrário, havendo um esforço no sentido da
concentração e do nivelamento, de apagamento das diferenças específicas.
É nessa distinção entre os tipos de formação de conceitos que podemos compreender
o distanciamento entre linguagem e mito. Segundo Cassirer (1992), nas formações míticas
atua apenas o tipo de conceitualização mítico-lingüística, ao passo que, na linguagem atua
também a força do logos. Essa força aumenta e reduz o poder original da palavra que acaba se
reduzindo cada vez mais a meros signos conceituais. Esse caráter metafórico original da
linguagem, que se aproxima do mito, não é totalmente suprimido; ele sobrevive na expressão
artística e na poesia - principalmente a poesia lírica - onde a conexão entre linguagem e mito
torna-se mais evidente.
Como salienta Cassirer (1992, p.114), "mito, linguagem e arte formam inicialmente
uma unidade concreta ainda indivisa, que só pouco a pouco se desdobra em uma tríade de
modos independentes [...]". Dentre estas, o mito pode ser considerado uma primeira tentativa
de racionalização sobre as coisas. À medida que o pensamento lógico-científico desenvolveu-
15
se e conquistou a sua supremacia sobre o pensamento mítico, este se restringiu cada vez mais
ao campo da imaginação, da fantasia, do devaneio, da arte...
Com isso, ao longo dos anos, percebemos um declínio dos mitos. Monfardini (2006)
salienta que Lévis-Strauss, tratando da morte dos mitos, analisa as alterações que eles
sofreram ao longo dos anos, perdendo o estatuto de narrativa fundadora, e assumindo outras
funções como a de legitimação de histórias em lendas, por exemplo. Percebemos, então, a
extenuação da formação mítica, sem, no entanto, verificarmos o seu total desaparecimento:
É, no entanto, com o advento da psicanálise que o mito é reabilitado,
passando a merecer maior atenção dos estudiosos. As pesquisas de Freud sobre o
inconsciente abrem caminho para diversas investigações acerca do imaginário.
Através das descrições dos sonhos de seus pacientes, o psicanalista pôde detectar
manifestações de dramas existenciais já representados nos mitos gregos (veja-se o
complexo de Édipo, por exemplo). O inconsciente humano, que vem à tona
principalmente no sonho, revela-se, assim, o último reduto desse pensamento mítico
que, com a evolução do espírito, foi relegado ao estatuto de pura imaginação. As
imagens guardadas no inconsciente surgem, então, como a grande chave para o
conhecimento do ser humano (MONFARDINI, 2005, p.53).
Dessa forma, são as imagens e os símbolos que condensam as narrativas míticas. Os
mitos primitivos, que dizem respeito à humanidade e à origem, reduzem-se em imagens
individuais que se relacionam com o imaginário coletivo. Assim, são essas imagens e
símbolos, presentes no sonho e na literatura, que revelam a permanência do pensamento
mítico. No entanto, podemos pensar que um gênero literário que revela a permanência dos
mitos são os nossos contos de fadas ou contos maravilhosos (como chamou Vladimir Propp
em seu livro Morfologia do Conto Maravilhoso).
1.2.2 O Mito Troca de Roupa
Como vimos, no decorrer da evolução do pensamento humano, a elaboração mítica
modificou-se, porém, ela não desapareceu totalmente. Vários elementos constitutivos dos
mitos aparecem nas elaborações da ficção moderna - entre essas elaborações encontramos os
contos de fadas. Mielietinsky afirma que a literatura está geneticamente relacionada com a
mitologia e que o conto maravilhoso também é uma forma de conservação e superação da
mitologia (apud MONFARDINI, 2005, p.55). Ou seja, "a mitologia converteu-se,
conseqüentemente, no produto da linguagem" (CASSIRER, 1992, p.103), de modo que "o
mito recebe da linguagem, sempre de novo, vivificação e enriquecimento interior, tal como,
reciprocamente, a linguagem os recebe do mito" (Idem. ibidem).
16
Percebemos, então, uma espécie de "mitologização" (MONFARDINI, 2005, p.55)
nas elaborações da ficção moderna, pois se considerarmos o mito como um narrador de
acontecimentos de questões da razão humana que são inexplicáveis, perceberemos o caráter
mítico e fantástico presente na ficção moderna.
Segundo Monfardini (2005, p.55), a partir do século XVIII até o início do século
XX, podemos observar o abandono dos temas tradicionais, o que colaborou para o processo
de desmitologização da literatura. Entretanto, junto com as correntes realista e romântica
surgem outras formas de relação com a mitologia. A corrente romântica, que oscila entre o
fantástico e o misticismo, abre um caminho para a mitologização:
[...] Mielietinsky aponta para uma série de elementos representativos
dessa nova mitologia. Observa-se, por exemplo, a presença do fantástico e do
maravilhoso acompanhado freqüentemente [...] pela utilização dos processos do
pensamento infantil; a intercalação de relatos de caráter mitológico, etc.
[...] O fantástico do cotidiano se desenvolve com base na máxima
interpenetração do maravilhoso no cotidiano. Por um lado, atrás das pessoas, dos
objetos e situações mais comuns desdobram-se forças maravilhosas, fantásticas e
míticas do outro mundo [...] (apud MONFARDINI, 2005, p.56).
Outras peculiaridades da mitologia romântica, segundo Monfardini (2005, p.56) são:
a síntese de diversas tradições mitológicas, a infinita repetição de heróis no espaço e no tempo
e a representação da dualidade de mundos, ou seja, a oposição entre cotidiano e fantástico.
Todorov (1975, p.47-8) refere-se a maravilhoso e estranho, ao estudar o gênero do
fantástico, e afirma que este último se encontra entre ambos. O fantástico se coloca quando há
uma indecisão acerca da natureza de um acontecimento. Se decidimos que se trata de um
acontecimento sobrenatural, regido por leis estranhas às do mundo que conhecemos, entramos
no âmbito do maravilhoso. Então, "[...] o maravilhoso corresponde a um fenômeno
desconhecido, jamais visto, por vir, logo a um futuro" (p.49). Se, ao contrário, conseguimos
dar uma explicação possível no mundo real, o acontecimento passa ao campo do estranho.
Assim, "[...] no estranho [...] o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência
prévia, e daí ao passado" (p.49). No entanto, para que o fantástico se sustente, é preciso que
exista a hesitação do leitor.
O mesmo autor, na seqüência de seu texto, caracteriza o maravilhoso afirmado
dizendo que elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação particular nem aos
personagens, nem ao leitor. Dessa forma, o que caracteriza este gênero não é a atitude para
com os acontecimentos narrados, mas a própria natureza desses acontecimentos. Devido a
isso,
17
relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de
fadas não é senão uma das variedades do conto maravilhoso e os acontecimentos
sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem anos, nem o
lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para citar apenas alguns elementos
dos contos de Perrault). O que distingue o conto de fadas é uma certa escritura, não
o estatuto do sobrenatural (TODOROV, 1975, p.60).
Por fim, considerando os temas do fantástico, Todorov aproxima-se dos postulados
da psicanálise, dividindo os temas em dois grupos: os temas do eu, "que concernem
essencialmente à estruturação da relação entre o homem e o mundo" (1975, p.128) e os temas
do tu, que tratam "da relação do homem com o seu desejo e, por isto mesmo, com seu
inconsciente" (1975, p.148). Depois de realizar uma análise temática de algumas obras do
gênero fantástico, o autor conclui e ressalta que a função do sobrenatural é "[...] subtrair o
texto à ação da lei e com isto mesmo transgredi-la" (1975, p.168). Portanto, o fantástico teria
a função de possibilitar a expressão de temas que eram até então considerados tabus, os quais
aparecem numa roupagem sobrenatural. Essa roupagem torna-se desnecessária à medida que
surge a psicanálise, pois os temas da literatura fantástica tornaram-se os mesmos das
investigações psicológicas, denotando, assim, a relação da literatura fantástica com as
imagens que estariam submersas no inconsciente humano.
Eliade (1986, p.163) também salienta a importância da corrente romântica nas
sociedades modernas, pois esta, segundo ele, tomou o lugar ocupado pela recitação dos mitos
e dos contos nas sociedades tradicionais e populares. Nesse sentido, ressalta que certos
romances modernos podem demonstrar a sobrevivência literária dos grandes temas e dos
personagens mitológicos. Portanto, o romance, bem como outros gêneros literários, prolonga
a narrativa mitológica, apesar de possuir outros fins e outros planos.
Portanto, embora o pensamento mítico dos primitivos tenha sofrido inúmeras
transformações e suprimido partes em favor do pensamento lógico, essa supressão não foi
total, pois são visíveis as formulações míticas que possuem raízes no imaginário universal.
"Alguns 'comportamentos míticos' ainda sobrevivem sob os nossos olhos. Não que se trate de
'sobrevivências' de uma mentalidade arcaica. Mas alguns aspectos e funções do pensamento
mítico são constituintes do ser humano" (ELIADE, 1986, p.157). Dessa forma, a expressão do
pensamento mítico pode evidenciar questões que dizem respeito à humanidade como um todo
e à sua condição de existência.
Se considerarmos, assim como Eliade, que apesar de todas as transformações pelas
quais a sociedade e o homem passaram, alguns comportamentos míticos sobrevivem, mesmo
18
que sob camuflagem, poderemos pensar que os contos, de uma forma geral (incluindo
também os contos de fadas), são uma dessas manifestações camufladas dos mitos que se
encontram vivas nos dias atuais e que se manifestam por meio da literatura.
Podemos perceber aqui uma importante função da literatura. Considerando, como já
foi ressaltado, que o mito é originalmente uma narração oral espontânea que se cristaliza ao
longo de gerações, a literatura age como um instrumento que tenta explicar, classificar e
desenvolver o mito que havia nascido de forma fragmentária e, por vezes, pouco coerente. À
medida que é adaptado à esfera e às dimensões da vida humana, manipulado e elaborado
conscientemente pelos indivíduos, o mito se dilui em suas características originais para
metamorfosear-se em contos, por exemplo.
Porém, embora camuflado, o mito ainda continua a cumprir sua função:
Poder-se-ia quase dizer que o conto repete, em outro plano e através de
outros meios, o enredo iniciatório exemplar. O conto reata e prolonga a 'iniciação' ao
nível do imaginário. Se ele representa um divertimento ou uma evasão, é apenas
para a consciência banalizada e, particularmente, para a consciência do homem
moderno; na psique profunda, os enredos iniciatórios conservam sua seriedade e
continuam a transmitir sua mensagem, a produzir mutações. Sem se dar conta e
acreditando estar se divertindo ou se evadindo, o homem das sociedades modernas
ainda se beneficia dessa iniciação imaginária proporcionada pelos contos (ELIADE,
1986, p.174).
1.2.3 O Mito e o Conto de Fada
Diante disso, podemos entender que os mitos são freqüentemente misturados aos
contos e que ora possuem certas semelhanças, ora possuem certas diferenças. Eliade (1986,
p.172), influenciado por Vries, salienta que existe uma estrutura comum entre o mito e o
conto e que há um contraste entre o pessimismo do mito e o otimismo do conto. Bettelheim
(1980) também trabalha com a questão do contraste e escreve que,
o mito é pessimista, enquanto que a estória de fadas é otimista, mesmo que alguns
traços sejam terrivelmente sérios. É essa diferença decisiva que separa o conto de
fadas de outras estórias nas quais igualmente ocorrem coisas fantásticas, que o
resultado seja feliz devido às virtudes do herói, à sorte, ou a interferência de figuras
sobrenaturais (p.47-8).
19
Nesse sentido, o autor observa que os mitos envolvem solicitações do superego em
conflito com ações motivadas pelo id e com os desejos autopreservadores do ego2. Dessa
forma, um mero mortal é muito frágil para enfrentar os desafios dos deuses. Portanto,
os mitos projetam uma personalidade ideal agindo na base das exigências do
superego, enquanto os contos de fadas descrevem uma integração do ego que
permite uma satisfação apropriada dos desejos do id. Esta diferença responde pelo
contraste entre o pessimismo penetrante dos mitos e o otimismo essencial dos contos
de fadas (BETTELHEIM, 1980, p.52).
Bettelheim toma este caminho e segue fazendo comparações e estabelecendo
diferenças entre mito e conto de fadas. Ao mesmo tempo em que deixa transparecer os
motivos pelos quais os contos são mais atraentes do que os mitos, também não deixa de lado a
relação que um possui com o outro:
Embora as mesmas figuras exemplares e situações se encontrem em
ambos, e acontecimentos igualmente miraculosos ocorram nos dois, há uma
diferença crucial na maneira como são comunicados. Colocado de forma simples, o
sentimento dominante que o mito transmite é: isto é absolutamente singular; não
poderia acontecer com nenhuma outra pessoa, ou em qualquer outro quadro; os
acontecimentos são grandiosos, inspiram admiração e não poderia possivelmente
acontecer a um mortal como você ou eu. A razão não é tanto que os eventos sejam
miraculosos, mas porque são descritos assim. Em contraste, embora as situações nos
contos de fadas sejam com freqüência inusitadas e improváveis, são apresentadas
como comuns, algo que poderia acontecer a você ou a mim ou à pessoa do lado
quando estivesse caminhando na floresta. Mesmo os mais notáveis encontros são
relatados de maneira casual e cotidiana (1980, p.47).
O autor estabelece, ainda, outra diferença referente ao final tanto dos mitos quanto
dos contos, afirmando que "[...] nos mitos é quase sempre trágico, enquanto sempre feliz nos
contos" (1980, p.47). É esse final feliz que garante à criança sugestões sob formas simbólicas
de como conseguir uma auto-realização e uma saída positiva para seus conflitos, já que na
infância tudo está em transformação e, por isso, muitos conflitos aparecem. Como exemplo,
Bettelheim toma os heróis e afirma que os heróis míticos incorporam exigências rigorosas de
forma que a criança se sente desencorajada a tomar esse caminho para a construção da
integração de sua personalidade. "Enquanto o herói mítico vivencia uma transfiguração para a
vida eterna no céu, [...], alguns contos de fadas concluem com a informação de que, se por
2
Os três termos (superego, id e ego) são referentes à segunda tópica freudiana e dizem respeito à estruturação da
personalidade. O superego reprime ou apóia o impulso que for moral e socialmente reprovável ou aceito. O id
busca a satisfação irracional. O ego ajusta as exigências e impulsos do id ao mundo da realidade.
20
acaso não morreu, o herói ainda deve estar vivo" (1980, p.50). Assim, uma existência feliz é
projetada pelos contos de fadas como resultado das provações envolvidas nos processos de
crescimento.
Segundo Bettelheim, embora os contos de fadas também estejam constituídos por
problemáticas e exista a oferta de imagens simbólicas para a solução dos problemas, estas
problemáticas são comuns: uma criança sofrendo de ciúmes e discriminação de suas irmãs,
como em "A Gata Borralheira", ou uma criança que é considerada incompetente por um dos
pais, como em muitos contos... Além disso, o herói vence esses problemas na terra e não no
céu.
Outro aspecto apontado pelo autor é a questão de que nos mitos a história é de um
herói particular: Teseu, Hércules, Brunhilda... Esses personagens não só têm nomes, como
também são ditos os nomes de seus pais e de outras figuras que aparecem no desenrolar do
mito. Em contraponto com os mitos, nos contos de fadas, a história se refere a pessoas muito
parecidas conosco. Os títulos seguem um determinado padrão que pode servir a qualquer
criança: "A Bela e a Fera", "Chapeuzinho Vermelho", "O patinho Feio"... Os protagonistas
são referidos como "moça", "moço", "o irmão mais velho", "mãe"... Mesmo quando recebem
um nome, como na história de "João e Maria", o uso de nomes bem comuns torna-os
genéricos, valendo para qualquer menino e qualquer menina.
Assim, os heróis míticos apresentam dimensões sobrenaturais, ao passo que nos
contos de fadas eles se assemelham a pessoas, o que faz com que a criança se interesse pelos
contos:
Tentar ser guiada e inspirada por um ideal que nenhum ser humano pode
alcançar plenamente pelo menos não traz sentimento de derrota - mas empenhar-se
em copiar os efeitos de grandes pessoas reais parece pouco esperançoso para a
criança e cria sentimentos de inferioridade: primeiro, porque sabe-se que uma pessoa
não pode fazê-lo, e em segundo lugar, porque se teme que outros o possam
(BETTELHEIM, 1980, p.51).
Uma última diferenciação, agora feita por Rank (apud RAMOS, 1954, p.208),
observa que,
21
[...] enquanto no mito os desejos se satisfazem de modo direto, revelando os apetites
primitivos da humanidade, no conto, os mecanismos de sublimação se aperfeiçoam.
Aqui os disfarces e as elaborações secundárias são mais intensos, o trabalho da
censura é maior [...]. Por isso, o conto reflete já as conquistas da civilização, embora
conservando as sobrevivências dos motivos míticos. Os complexos primitivos, o
romance familiar, a poligamia mítica se reduzem e procuram conter-se [...]. No mito,
o complexo paterno domina a situação; os complexos secundários giram em tôrno
(sic) daquele. No conto, a situação familiar, já reflete as conquistas sociais, e o
romance familiar se atenua [grifo do autor].
Se, por um lado, existem várias diferenças entre o mito e o conto de fadas, por outro,
existem várias semelhanças que são de enorme valia para todo esse contexto. Corso e Corso
(2006) afirmam que "os contos de fadas têm em comum com os mitos o fato de não
possuírem propriamente um sentido, são sim estruturas que permitem gerar sentidos, por isso
toda a interpretação será sempre parcial" (p.28). Nesse sentido, Rocha (1988) contribui
dizendo que o mito possui diferentes possibilidades de interpretação. "[...] o mito se deixa
eternamente interpretar e essa interpretação torna-se, ela mesma, um novo mito. Em outras
palavras, as interpretações não esgotam o mito. Antes, de outra maneira, a ele se agregam
como novas formas de o mito expor suas mensagens" (p.48).
Embora Rocha fale-nos apenas dos mitos, podemos relacionar essa contribuição com
a interpretação dos contos de fadas. Entendemos que estes facilitam o recurso a uma ou outra
fantasia e, portanto, podem ser percebidos das mais variadas formas. Sendo assim, as
interpretações também serão referentes ao momento em que cada um se encontra e, por isso,
são inúmeras. "[...] os efeitos de determinados contos nas crianças são os mais variáveis e
imprevistos, as histórias de fadas possuem personagens e passagens fortes que as cativam
vivamente, mas no seu uso os efeitos não são únicos" (CORSO e CORSO, 2006, p.166).
Portanto, "a mitologia comparece como uma sabedoria do passado, a mais
indomesticada das produções culturais, algo que segue ao mesmo tempo fascinando e nos
desafiando sobre seu sentido" (Idem, ibidem, p.258). Cassirer discorrendo sobre a mitologia,
também chama a atenção para a sua importância. Nesse sentido, diz que a mitologia é uma
necessidade inerente à linguagem à medida que reconhecemos nesta a forma externa do
pensamento. "[...] a mitologia irrompe com maior força nos tempos mais antigos da história
do pensamento humano, mas nunca desaparece por inteiro. Sem dúvida, temos hoje nossa
mitologia, tal como nos tempos de Homero, com a diferença de que atualmente não
reparamos nela [...]" (1992, p.19).
22
1.3 HISTÓRIAS QUE OS CAMPONESES CONTAVAM
As modernas versões dos contos de fadas, segundo Corso e Corso (2006, p.16), que
encantaram tanto nossos antepassados quanto as crianças de hoje, datam do século XIX. Foi a
partir dessa data que as narrativas populares européias, matrizes dos modernos contos de
fadas, passaram a integrar a mitologia universal. Essas narrativas "não apresentavam a riqueza
simbólica que faz dos contos de fadas um depositário de significações inconscientes [...]"
(CORSO e CORSO, 2006, p.16). Elas nem sequer eram destinadas exclusivamente às
crianças.
Nessa perspectiva,
evidências escritas provam que os contos existiam antes de ser concebido o 'folclore'
[...]. Os pregadores medievais utilizavam elementos da tradição oral para ilustrar
argumentos morais. Seus sermões, transcritos em coleções de 'Exempla' dos séculos
XII ao XV, referem-se às mesmas histórias que foram recolhidas, nas cabanas dos
camponeses, pelos folcloristas do século XIX. Apesar da obscuridade que cerca as
origens dos romances de cavalaria, as canções de gesta e os fabliaux, parece que boa
parte da literatura medieval bebeu da tradição oral popular, e não ao contrário. [...]
Pretendessem elas divertir os adultos ou assustar as crianças, como no caso de
contos de advertência, como 'Chapeuzinho Vermelho', as histórias pertenciam
sempre a um fundo de cultura popular, que os camponeses foram acumulando
através dos séculos, com perdas notavelmente pequenas (DARNTON, 1986, p.31-2)
[grifo do autor].
Nesse caminho também encontramos Eliade (1986) que afirma que para os
folcloristas o nascimento de um conto se confunde com o aparecimento de uma peça de
literatura oral.
Segundo Darnton (1986), autor que faz um percurso histórico referente ao conto e a
sua relação com os camponeses, "[...] os contos populares são documentos históricos.
Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes
tradições culturais" (p.26). O autor ressalta que uma das transformações ocorridas foi o
ocultamento da questão sexual, questão esta que os camponeses tratavam como algo comum
entre eles e, portanto, não precisavam de um código secreto para falar a respeito dela. "E por
aí vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem
com símbolos, os contadores de história do século XVIII, na França, retratavam um mundo de
brutalidade nua e crua" (1986, p.29).
Darnton (1986) situa o contexto histórico em que os camponeses se encontravam, o
que justifica alguns elementos dos contos que permaneceram até os dias atuais. Apesar da
23
guerra, das epidemias e da fome, a ordem social que existia ao nível das aldeias permaneceu
estável, durante o início do período moderno na França. Os camponeses eram relativamente
livres, mas não conseguiam escapar de um sistema senhorial que lhes negava terra suficiente
para alcançarem a independência econômica e que lhes sugava qualquer excedente produzido.
Os homens trabalhavam do amanhecer ao anoitecer, arranhando o solo em faixas pequenas de
terra, cortando seu cereal com pequenas foices, a fim de deixar o restolho para a pastagem
comunitária. As mulheres casavam-se tarde e tinham no máximo cinco filhos, sendo que
destes, apenas dois ou três sobreviviam até a idade adulta. Grandes massas humanas
sobreviviam num estado de subnutrição crônica, subsistindo sobretudo com uma papa de pão
e água, eventualmente, misturada a algumas verduras domésticas. Comiam carne apenas umas
poucas vezes ao ano. Muitas vezes não conseguiam os quilos diários de pão de que
necessitavam para se manterem com saúde e então facilmente contraiam doenças. Durante
quatro séculos permaneceram aprisionados em instituições rígidas e condições maltusianas3.
Atravessaram um período em que a história permaneceu imóvel.
Segundo Darnton, a história parecia imóvel ao nível da aldeia porque o
senhorialismo e a economia de subsistência mantinham os aldeões curvados sobre o solo e as
técnicas agrícolas primitivas não lhes davam qualquer oportunidade de se desencurvarem.
Com isso, os agricultores não conseguiam obter cereais em quantidade suficiente para
alimentar grande número de animais e não possuíam gado suficiente para produzir adubo
capaz de fertilizar os campos e aumentar a colheita. Não conseguiam progredir, pois os
métodos de cultivo coletivo os impediam. Dependiam de terras e florestas comuns, para além
dos campos cultivados, para pastagem, lenha e castanhas ou morangos. A única área onde
podiam tentar progredir através da iniciativa individual era o galinheiro ou o quintal unido aos
lotes de suas casas. Ali, esforçavam-se para levantar montes de adubo, cultivar o linho para
fiar e produzir verduras e frangos para o consumo doméstico e mercados locais. A horta do
quintal, muitas vezes, proporcionava a margem de sobrevivência para as famílias.
Tinham extrema necessidade de terra porque grande parte de sua colheita era
destinada a tributos senhoriais, dízimos, impostos... Alguns camponeses mais prósperos agiam
fraudulentamente explorando os mais pobres. Estes tomavam empréstimos dos mais ricos, o
3
Referente ao malthusianismo: doutrina de Thomas Robert Malthus, economista inglês (1766-1834). Essa
doutrina defendia a restrição da reprodução da espécie humana por motivos de ordem econômica e em defesa da
própria humanidade.
24
que acarretava no endividamento. A servidão por dívidas, ódio, inveja e conflitos era muito
presente entre eles.
Ainda de acordo com Darnton, para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era
uma luta pela sobrevivência. Isso significava estar acima da linha que separava os pobres dos
indigentes. Em tempos de escassez, as famílias pobres necessitavam comprar comida. No
entanto, sofriam como consumidores, pois enquanto os preços disparavam os camponeses
mais prósperos lucravam. Assim, várias más colheitas podiam levar as famílias pobres a sair
das aldeias e a procurar outra tarefa como lavradores, ou então sair pela estrada (aos
milhares), o que significava passar o tempo recolhendo restos de comidas. Outros invadiam
galinheiros, ordenhavam vacas soltas, roubavam roupas das cercas, dilaceravam seus corpos a
fim de passarem por inválidos em locais onde estavam distribuindo esmolas, tornavam-se
contrabandistas, prostitutas... E, no final, quando chegavam ao extremo, se entregavam à
imundas casas destinadas aos pobres - hôpitaux - ou rastejavam para debaixo de um arbusto
ou de um palheiro e morriam.
A morte vinha de maneira implacável também para as famílias que permaneciam nas
aldeias e se mantinham acima da linha da pobreza. A vida era uma constante luta inesgotável
contra a morte em todas as partes da França no início dos tempos modernos. Entre mil bebês,
duzentos e trinta e seis morriam antes de completar um ano de vida. Cerca de quarenta e cinco
por cento dos franceses nascidos no século XVIII morriam antes da idade de dez anos. Dos
que sobreviviam, poucos chegavam até a idade adulta e morriam antes da morte de um dos
pais pelo menos. Poucos pais alcançavam o fim de seus anos férteis; morriam antes. Os
casamentos duravam em média quinze anos, pois eram terminados não com o divórcio, mas
pela morte. Os homens que perdiam suas mulheres, geralmente tornavam a se casar. Com
isso, as madrastas proliferavam por toda a parte - muito mais do que os padrastos. "Os filhos
postiços podem não ter sido tratados como Cinderela, mas as relações entre irmãos,
provavelmente, eram difíceis" (DARNTON, 1986, p. 45). Dessa forma, um novo filho, muitas
vezes significava a diferença entre a pobreza e a indigência. Mesmo quando não se
sobrecarregava a despensa família, isso poderia significar a penúria para a próxima geração,
pois havia o aumento do número de herdeiros da terra. Sempre que a população aumentava, o
empobrecimento estabelecia-se.
Segundo Darnton, o homem do início da época moderna não entendia a vida como
sendo algo que ele poderia controlar. Portanto, a mulher dava à luz quando Deus queria.
Muitos filhos morriam ainda durante a amamentação ou durante os primeiros anos de vida.
25
Outros eram sufocados por seus pais na cama - um acidente muito comum. Famílias inteiras
empilhavam-se em uma ou duas camas e cercavam-se de animais domésticos, para manteremse aquecidos:
Assim, as crianças se tornavam observadoras participantes das atividades
sexuais de seus pais. Ninguém pensava nelas como criaturas inocentes, nem na
própria infância como uma fase diferente da vida, claramente distinta da
adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de vestir e de se
comportar. As crianças trabalhavam junto com os pais quase imediatamente após
começarem a caminhar, e ingressavam na força de trabalho adulta como lavradores,
criados e aprendizes, logo que chegavam à adolescência (DARNTON, 1986, p.47).
Dessa forma, "os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo
de madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais, tanto
aparentes como reprimidas" (DARNTON, 1986, p.47).
Após contextualizar como os camponeses viviam no final do Antigo Regime e
meados dos tempos modernos na França, o autor cita alguns contos na intenção de demonstrar
o quanto estes diziam do cotidiano, dos desejos, dos medos, das necessidades... enfim, do
mundo dos camponeses.
Um dos contos utilizados pelo autor é uma versão do "Pequeno Polegar". Este
proporciona, segundo Darnton (1986), uma visão do universo maltusiano:
'Era uma vez um lenhador e sua mulher, que tinham sete filhos, todos
meninos... Eram muito pobres e seus sete filhos se tornaram um pesado fardo,
porque nenhum tinha idade suficiente para se sustentar... Chegou um ano muito
difícil e a fome era tão grande que essa pobre gente decidiu livrar-se dos filhos'
(p.48).
Esta versão de Perrault, escrita em 1690 - auge da pior crise demográfica do século
XVII - mostra o quanto era comum a morte de crianças, no início da França moderna.
Segundo Darnton, este foi o
período em que a peste e a fome dizimavam a população do norte da França, quando
os pobres comiam carniça atiradas nas ruas por curtidores, quando eram encontrados
cadáveres com capim na boca e as mães 'expunham' os bebês que não podiam
alimentar, para eles adoecerem e morrerem. Abandonando seus filhos na floresta, os
pais do Pequeno Polegar tentavam enfrentar um problema que acabrunhou os
camponeses muitas vezes, nos séculos XVII e XVIII - o problema da sobrevivência
durante um período de desastre demográfico (1986, p.49).
De acordo com o autor, o mesmo tema existe em outras versões dos contos
camponeses, onde aparecem outras formas de infanticídio e maus tratos infligidos às crianças.
26
Algumas vezes, os pais lançavam seus filhos para as estradas, para se tornarem ladrões ou
mendigos. Outras vezes, quem fugia eram os pais deixando as crianças mendigando em casa.
Em alguns contos, as crianças eram entregues ao diabo em troca de uma despensa cheia de
comida que duraria por doze anos, como é o caso do conto do "Aprendiz de Feiticeiro".
"Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses se defrontavam, em seu
folclore, bem como em seu cotidiano" (DARNTON, 1986, p.50). Essa questão aparece em
inúmeros contos, e muitas vezes, associada à madrasta má, que era figura extremamente
presente nas aldeias:
Numa versão comum [...], a madrasta má dá à pobre Annette um pedaço
de pão por dia e faz com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e
indolentes irmãs postiças vagueiam pela casa e jantam carneiro, deixando os pratos
para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette está a ponto de morrer de
inanição, quando a Virgem Maria aparece e lhe dá uma varinha mágica, que produz
um magnífico banquete, todas as vezes que Annette toca com ela uma ovelha negra.
Não demora muito e a menina está mais gorducha que suas irmãs postiças. Mas sua
beleza recém-adquirida - e a gordura corresponde à beleza, no Antigo Regime, como
em muitas sociedades primitivas - desperta as suspeitas na madrasta. Através de um
artifício, a madrasta descobre a ovelha mágica, mata-a e serve seu fígado a Annette.
Annette consegue, secretamente, enterrar o fígado e ele se transforma numa árvore,
tão alta que ninguém consegue colher suas frutas, a não ser Annette; porque baixa
seus ramos para ela, sempre que se aproxima. Um príncipe de passagem (que é tão
guloso como todos os demais no país) deseja tanto as frutas que promete casar-se
com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando casar uma de suas
filhas, a madrasta constrói uma grande escada. Mas, quando vai experimentá-la, cai
e quebra o pescoço. Annette, então colhe as frutas, casa-se com o príncipe e vive
feliz para sempre (DARNTON, 1986, p.50-1).
A subnutrição e o abandono pelos pais estão juntos em vários contos. Segundo
Darnton, a procura pela comida está presente em quase todos os contos, sendo que o desejo
por ela é habitualmente encontrado e jamais ridículo entre os camponeses. Nos contos em que
aparece o aspecto da recompensa, o desejo é sempre uma refeição substancial - "'pão branco e
um frango', 'um coelho, uma salsicha e tanto vinho quanto puder beber', 'fumo e a comida que
ele viu na estalagem' ou 'ter sempre um pedaço de pão'" (p.52). Quando recebe uma varinha
mágica, anéis mágicos ou qualquer outro auxiliar sobrenatural, o pensamento e o pedido do
herói camponês é sempre a comida.
A extravagância também estava presente nos contos: a carne. Numa sociedade de
vegetarianos, o luxo era cravar os dentes numa costela de carneiro, boi ou porco. Comer até se
encher, comer até a exaustão era tudo o que os camponeses mais desejavam e menos
realizavam:
27
A versão francesa de uma história de fantasmas comum, [...], fala de uma
moça camponesa que insiste em comer carne todo o dia. Incapazes de satisfazer esse
extraordinário anseio, seus pais lhes servem uma perna que cortaram de um cadáver
recém-enterrado. No dia seguinte, o cadáver aparece diante da moça, na cozinha.
Ordena-lhe que lave sua perna direita, depois a esquerda. Quando ela vê que a perna
esquerda está faltando, ele grita: 'Você a comeu'. Depois, carrega-a consigo para o
túmulo e a devora (DARNTON, 1986, p.53).
No entanto, notamos que os desejos dos camponeses eram, usualmente, fixados em
objetos comuns do seu dia-a-dia: "um herói consegue 'uma vaca e algumas galinhas'; outro,
um armário cheio de panos de linho. Um terceiro contenta-se com trabalho leve, refeições
regulares e um cachimbo cheio de fumo. E, quando chove ouro na lareira de um quarto, usa-o
para comprar 'alimentos, roupas, um cavalo, terras'" (DARNTON, 1986, p.53). Contudo, na
maioria dos contos, a satisfação dos desejos torna-se um programa para a sobrevivência e não
uma fantasia ou uma fuga.
Apesar de alguns toques de fantasia, os contos permaneciam enraizados no mundo
real. Quase sempre aconteciam dentro de dois contextos do cenário vivenciado pelos
camponeses no Regime Antigo: por um lado, a casa e a aldeia, por outro, a estrada aberta. A
dualidade apresentada entre aldeia e estrada percorria os contos, tal como se sentiam os
camponeses nessa época. As famílias dos camponeses não podiam sobreviver no Antigo
Regime, a menos que trabalhassem juntos. "Todos enfrentavam um trabalho interminável,
sem limites, da mais tenra infância até o dia da morte" (DARNTON, 1986, p.55). Os contos
mostram constantemente pais trabalhando nos campos, enquanto os filhos recolhiam
madeiras, guardavam ovelhas, pegavam água, teciam lã... Longe de condenarem a exploração
infantil, ficavam indignados quando isso não ocorria. Muitas vezes, os pais livravam-se dos
filhos por meio do casamento. Darnton (1986) descreve um conto de versão francesa que
relata o seguinte:
uma mãe bate na filha, porque esta não trabalha. Quando um rei [...] que passava por
ali, pergunta o que aconteceu, a mãe imagina um artifício para se livrar do membro
improdutivo da família. Alega que a moça trabalha em excesso, tão obsessivamente,
na verdade, que seria capaz de fiar até a palha de seus colchões. Achando isso uma
boa coisa, o rei leva consigo a moça e lhe ordena fazer trabalhos sobre-humanos: ela
tem de fiar montes inteiros de feno, transformando-os em quartos cheios de linho; de
carregar e descarregar cinqüenta carroças de adubo por dia; de separar montanhas de
trigo da palha (p.55).
28
Portanto, o casamento não oferecia nenhuma fuga, ao contrário impunha uma carga
adicional, pois as mulheres eram submetidas ao trabalho de manufaturas a domicílio, além do
trabalho na família e na fazenda.
Avançando na leitura da obra de Darnton, descobrimos que os filhos possuíam uma
grande área de atuação nos contos. Eles exploravam a segunda dimensão da experiência
camponesa: a estrada. Os rapazes partiam em busca da fortuna e, por vezes, conseguiam,
graças à ajuda de velhas horrorosas que pediam um pedaço de pão e na verdade eram fadas
disfarçadas. Outros rapazes partiam porque onde viviam não havia terra, trabalho e nem
comida. Tornavam-se trabalhadores, criados domésticos ou, na melhor das hipóteses,
aprendizes de carpinteiro, ferreiro...:
O herói de 'Jean de l'Ours' [...] serve cinco anos a um ferreiro, depois vai
embora com um bastão de ferro, que recebeu como pagamento de seu trabalho. Na
estrada, é seguido por estranhos companheiros de viagem (Torce-Carvalho e CortaMontanha), enfrenta casas assombradas, derruba gigantes, mata monstros e se casa
com uma princesa espanhola (DARNTON, 1986, p.56-7).
Os camponeses enfrentavam o perigo em toda a parte, em suas viagens, porque,
conforme relata Darnton, a França não tinha força policial eficaz e os bandidos e lobos
vagueavam pelas terras que se dividiam em aldeias. Os homens, por sua vez, precisavam abrir
caminhos a pé através desse território traiçoeiro, dormindo à noite, sob montes de feno e
arbustos, quando não podiam implorar hospitalidade em fazendas ou pagar uma cama numa
estalagem, na qual ainda corriam o risco de terem suas bolsas roubadas ou as gargantas
cortadas. Por isso, "quando as versões francesas do Pequeno Polegar, e de João e Maria,
batem às portas de casas misteriosas, no meio da floresta, os lobos às suas costas dão um
toque de realismo, não de fantasia" (DARNTON, 1986, p.57).
Para a maioria da população que entulhava as estradas da França, a busca de fortuna
muitas vezes levava à mendicância. Ilustração disso é o conto que Darnton relata em poucas
linhas: "[...] dois soldados que haviam dado baixa jogam dados para ver qual deles deverá ter
os olhos arrancados. Desesperados por comida, não conseguem pensar em nenhuma maneira
de sobreviver, a não ser atuando como em equipe de mendigos, o cego e seu guia" (p.58).
Assim, sempre que procurarmos o que existe escondido nestes contos ou até mesmo
os contos que conhecemos hoje, descobriremos que eles guardam elementos de realismo.
Eliade também contribui nesse sentido quando afirma que o conto,
29
[...] apresenta a estrutura de uma aventura infinitamente séria e responsável, pois se
reduz, em suma, a um enredo iniciatório: nele reencontramos sempre as provas
iniciatórias (luta contra o monstro, obstáculos aparentemente insuportáveis, enigmas
a serem solucionados, tarefas impossíveis...), a descida ao Inferno ou a ascensão ao
Céu (ou - o que vem a dar no mesmo - a morte e a ressurreição) e o casamento com
a princesa. É verdade como justamente salientou Jan de Vries, que o conto sempre
se conclui com um happy end. Mas seu conteúdo propriamente dito refere-se a uma
realidade terrivelmente séria: a iniciação, ou seja, a passagem, através de uma morte
e ressurreição simbólicas, da ignorância e da imaturidade para a idade espiritual do
adulto (1986, p.174) [grifo do autor].
Também por esse motivo, podemos perceber que, "mostrando como se vivia, [...], na
aldeia e na estrada, os contos ajudavam a orientar os camponeses. Mapeavam os caminhos do
mundo e demonstravam a loucura de se esperar qualquer coisa, além de crueldade, de uma
ordem social cruel" (DARNTON, 1986, p.59). Transmitidas oralmente, a função dessas
narrativas era ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de
inverno. Sendo assim, a matéria das mesmas, de acordo com Corso e Corso (2006), era os
perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza.
Portanto, os contos mostravam aos camponeses como era o mundo, ao mesmo tempo em que
ofereciam uma estratégia para enfrentá-lo.
1.4 UM TESOURO PARA AS CRIANÇAS
Percebemos ao longo do percurso que,
à medida que as antigas histórias se espalharam, ultrapassando fronteiras sociais, e
ao longo dos séculos, desenvolveram um enorme poder de resistência. Mudaram
sem perder seu sabor. Mesmo depois de absorvidas pelas principais correntes da
cultura moderna, são testemunhos de uma antiga visão de mundo (DARNTON,
1986, p.93).
No entanto, segundo Darnton (ibidem, p.92), no curso do tempo, os contos
ultrapassaram os limites dos contos populares e as fronteiras da classe camponesa; tornaramse um tema predominante na cultura francesa em geral, fosse em seu nível mais sofisticado ou
no mais popular até chegar aos modernos contos de fadas, especialmente destinados às
crianças. Estes datam do século XIX, data esta que coincide com a criação da família nuclear
e da invenção da infância tal como a conhecemos nos dias atuais. Segundo Corso e Corso
(2006), houve a exclusão das crianças do mundo do trabalho e os novos códigos civis
reconheciam as crianças como sujeitos.
30
Esse foi um momento muito importante na história da cultura ocidental. A criança
deixa de ser considerada como um adulto incompleto, sem importância na sociedade, como
havia sido até então, e passa a ser vista com suas próprias características.
Segundo Ariès (1981), nos século XII e XIII, a arte medieval representava as
crianças como sendo adultos em miniaturas, sem diferenciar expressões ou traços, sendo o
tamanho da figura apenas o que as diferenciava. Historiadores da literatura dessa época
constataram que crianças lutavam com a mesma bravura e força dos guerreiros adultos. Não
havia na arte medieval uma representação própria à infância. Sendo assim, a infância não
tinha nenhum interesse especial, nesse momento histórico.
A autora ressalta ainda, que foi durante o século XIII e XIV que começaram a surgir
algumas imagens mais próximas do que consideramos a infância hoje. Trata-se de imagens de
anjos, seguidos da imagem do menino Jesus. É também nesse momento que aparecem
imagens de crianças em lendas e contos religiosos.
"Foi somente a partir do século XVII que começaram a se registrar escritos e práticas
que retratavam alguma preocupação moral e pedagógica com o cuidado e a educação das
crianças" (CORSO e CORSO, 2006, p.189).:
Só muito tardiamente a nossa sociedade passou a levar em conta quão
demorado é o processo chamado infância. Inclusive ele só foi se tornando mais
extenso na medida em que foi recebendo espaço para se expressar. Nas sociedades
pré-modernas, as crianças cresciam compartilhando o trabalho e a promiscuidade
doméstica, a puberdade era sinal de maturidade sexual, dali para frente, casar e
procriar já eram uma realidade. Aos poucos, foi se instalando a necessidade de
diferenciar a vida dos adultos e das crianças, assim como de lhes dar o tempo e os
estímulos que elas requeriam para sua evolução. Foi preciso admitir que, além de
lento, o crescimento das crianças implica muito investimento por parte dos adultos,
criar passou a eqüivaler a educar (CORSO e CORSO, 2006, p.189).
A partir do momento em que as pessoas passaram a se ocupar das crianças, foram
sendo descobertas suas necessidades especiais, bem como o fato de que seu pensamento
possuía uma lógica diferenciada do pensamento do adulto. Nesse sentido,
31
é a partir do momento em que a criança deixa de ser um adulto em miniatura, sendo
objeto de uma atenção especial, que passa a ser socialmente valorizada a tarefa de se
ocupar delas. Mais que isso, essa etapa da vida passou, cada vez mais, a ser
considerada como a formação de uma pessoa, fonte de todas as virtudes,
capacidades e traumas que ela terá na vida adulta. O processo que se segue e que
chega nos dias atuais, resulta numa hipervalorização da infância. A criança é
considerada como uma semente, na qual é necessário colocar dentro tudo o que vai
germinar depois. Foi aumentando a ocupação e a preocupação da sociedade com a
elaboração desse momento inicial, a começar que ela deverá ser mantida em um
lugar protegido, onde possam ser controladas as variáveis de sua formação (CORSO
e CORSO, 2006, p.189-0).
Podemos considerar, então, que a infantilização das narrativas transformadas em
contos de fadas é concomitante à criação de um mundo próprio da criança, na qual o criar
passou a equivaler ao educar. Foi então que iniciaram as publicações para crianças levando
em conta a necessidade de misturar magia ao pequeno mundo familiar e cotidiano que
constitui sua realidade.
Como melhor explicam Corso e Corso, com a construção do sentimento de infância,
tornaram-se necessárias fatias de imaginário que foram separadas e oferecidas aos recémvalorizados. A partir de então, determinados assuntos foram sendo impróprios para os
menores e desinteressantes para os maiores. Diante da consciência das peculiaridades da
subjetividade infantil, faz-se uma distinção muito clara do que é próprio e impróprio para o
consumo infantil. "Tão preocupados com a formação das crianças, os adultos sentiram
necessidade de abastecê-las com trechos do imaginário mágico da tradição da cultura popular,
de alguma forma intuíam que tais relatos seriam úteis" (CORSO e CORSO, 2006, p.171).
A partir daí, conforme Leyen (1998)4, os contos, que antes eram compartilhados por
adultos e crianças, foram, aos poucos, sendo infantilizados: retiraram-se os aspectos
abertamente sexuais e acrescentou-se a moral da história, de forma a satisfazer as exigências
da sociedade do século XVII, passando a ser um objeto para uso também da Corte. Portanto,
os contos têm sobrevivido, mas nem sempre os conhecemos na sua forma original. Para Diana
e Mário Corso (2006),
qualquer um que tenha passado pela experiência de narrar um trecho de sua vida
para outro é capaz de perceber que o relato se transforma numa peça de ficção:
certas partes do ocorrido são privilegiadas, outras convenientemente esquecidas ou
minimizadas, assim como todo o tom da narrativa será o que convier a quem conta o
conto (p.188).
4
Informação obtida na transcrição da palestra da autora proferida neste ano.
32
Nos contos, foram introduzidos caçadores bondosos, princesas e fadas. Além disso,
surgiram as punições aos representantes do mal: o lobo mau, a madrasta... Assim, adquirem a
forma literária que nos é familiar a partir dos contos de Perrault (século XVII) alguns
retomados mais tarde pelos irmãos Grimm (XIX) e outros. Já Andersen apresentou outra
postura e fabricou seus contos de fadas diretamente às crianças, assim como tantos outros
autores que vieram depois.
Estes breves comentários não têm a pretensão de chegar perto de esgotar a riqueza
deste tema, mas simplesmente situar o leitor no que concerne à origem dessa forma literária,
que passa de objeto de diversão para a Corte e alívio para os camponeses exaustos a produto
destinado às crianças. Certamente, com o passar do tempo não ocupam a mesma posição de
quando foram gestados e difundidos pela narrativa oral, pois seu uso e sentido foram se
modificando.
Na medida em que os contos foram sendo infantilizados, a modernidade encarregouse de distinguir produtos para adultos e produtos para crianças:
A partir da modernidade, começou a haver uma distinção entre produtos
culturais para adultos e produtos para crianças, nosso tempo levou isso ao extremo, e
cada idade passou a ter seus produtos bem delimitados. A cultura assimilou as leis
do mercado, incorporando suas prerrogativas de consumo e publicidade. Em função
das intenções pedagógicas e mercadológicas, passa então a ser importante a
definição de um público-alvo. Graças a isso, o grau de especialização da cultura
produzida para a infância tornou-se algo a ser estabelecido com precisão. Levando
em conta cada psicologia de cada época da vida, temos ofertas culturais
diferenciadas para bebês, crianças pequenas, escolares, pré-púberes, adolescentes,
adultos solteiros, famílias e assim por diante (CORSO e CORSO, 2006, p.26).
Esses produtos são bem aceitos pelo público-alvo, mas questionados pelo público
adulto, sob suspeita de serem prejudiciais ou deformadores. No entanto, isso não acontece
com os contos de fadas, que parecem estar isentos de desconfiança. "Hoje eles fazem parte da
educação desejável, assim como aprender a contar e se alfabetizar, e é impensável que uma
criança cresça em um ambiente considerado estimulador sem ter entrado em contato jamais
com Chapeuzinho Vermelho, João e Maria ou Bela Adormecida" (CORSO e CORSO, 2006,
p.26) [grifo dos autores].
1.5 O SEGREDO DA PERMANÊNCIA DOS CONTOS DE FADAS
Sendo os contos de fadas muito antigos e com a vasta oferta de produtos destinados
ao público infantil, é intrigante pensar o que existe nessas histórias que encantaram e
33
encantam as crianças, fazendo parte das recordações mais íntimas de muitos adultos e
aparecendo, por vezes, até em nossos sonhos. São histórias que sobreviveram à era do rádio,
do cinema, da televisão e do computador, sendo incorporadas a esses meios sem perder sua
forma original de transmissão: o contar histórias das avós.
Dentro do vasto cardápio imaginário oferecido pela mídia, a criança no momento em
que fixará suas preferências, seu gosto, não deixará de ser influenciados pelos pais, pelo seu
meio (amigos, pares, colegas). Mesmo assim, sabemos que a criança atuará mais na fixação
de novos produtos do que na manutenção de formas clássicas. São os pais, avós e professores
que introduzem os contos de fadas. É a geração dos responsáveis pelos cuidados e educação
das crianças, como dizem Corso e Corso (2006, p.169), que se incumbe dessa manutenção,
afinal essas histórias são uma linguagem comum entre as gerações e um meio de compartilhar
algo em termos de fantasias. Esse pode ser um dos segredos da sobrevivência dos contos de
fadas.
Nem sempre os contos chegam até a criança através do relato oral, em família ou ao
pé da cama. Eles chegam através da TV, filmes..., nem sempre havendo com um narrador
adulto. Mas mesmo que não possam contar com um adulto narrador, de um modo geral, os
contos de fadas mais populares são histórias que facilmente os adultos sabem (toda ou em
parte), sendo possível tecer uma linha de continuidade entre as gerações. "Uma avó, por
exemplo, pode não saber nada do desenho animado que o neto assiste na TV, mas conseguirá
manter uma conversa com ele sobre João e Maria" (CORSO e CORSO, 2006, p.169) [grifo
dos autores]. Provavelmente, esse seria outro esclarecimento do enigmático fato de os contos
permanecerem vivos.
Bruno Bettelheim tentou evidenciar que a permanência dos contos de fadas seria
explicável pelo que existe em seu interior: o potencial de evocação de questões humanas
complexas que eles possuem.
Quando se fala na falência das tradições, sempre sentimos uma certa dificuldade em
concordar com essa posição, já que há tantas tradições que são mantidas. Como melhor
definiu Calligaris,
nós, modernos, precisamos sempre de boas histórias, pois temos pouco em comum.
As aspirações que compartilhamos (e que compõem nossa cultura) não constituem
um código, nem valem um livro de normas. Elas vivem e se transmitem pelas
histórias das quais gostamos - especialmente por aquelas que são contadas para e por
todos nós (apud CORSO e CORSO, 2006, p.170).
34
A digressão acima serviu para que pudéssemos nos dar conta de que não deixa de ser
surpreendente a conservação dos contos de fadas no contexto da história humana onde tudo
sucateia.
Seguindo com Coelho, esta nos diz que:
sem dúvida, tão antigo como a humanidade é o ato de contar histórias. E também a
sedução que as narrativas maravilhosas exercem sobre os homens, da infância à
velhice. É curioso notar que, hoje, em pleno mundo do fantástico progresso
tecnológico, da velocidade dos multimeios da comunicação de massa e do império
da imagem, os contos de fadas estão de volta (2005, p.10).
"Essa atividade tão simples, mas tão fundamental, pode se tornar uma rotina banal ou
representar um momento de excepcional importância na educação das crianças" (VIEIRA,
2005, p.8). Os contos de fadas não se constituem como uma mera forma de entretenimento e
instrumento de informação por sua tradição popular. Tratam da essência da condição humana
já que nos falam, como diz Viera (2005, p.8), dos acontecimentos da realidade externa, dos
fatos que foram registrados e explicam como efetivaram-se as realizações culturais dos grupos
humanos, como definiram-se as nações e a realidade interior das culturas, bem como a
maneira como deu-se a constituição das estruturas psicológicas das pessoas e grupos. Nas
palavras de Corso e Corso (2006), os contos produzem um acervo comum de histórias através
do qual a humanidade reconhece a si mesma. Portanto, usando a expressão de Coelho (2005,
p.10), estas são a "matéria-prima" dos contos de fadas e o motivo pelo qual, mesmo no mundo
ultramoderno, ainda continuem a encantar tantos leitores.
Algo parecido também dizem os autores de Fadas no Divã, que "afirmam que a
capacidade de sobrevivência dos melhores contos de fadas, consiste em seu poder de
simbolizar e 'resolver' os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem respeito às
crianças de hoje" (CORSO e CORSO, 2006, p.16).
Segundo os mesmos autores,
[...] o compartilhamento de trechos do imaginário entre as crianças é o que
possibilita sua utilização como se fosse um brinquedo. Se uma menina diz para a
outra: 'seremos princesas, eu quero ser a Bela Adormecida'; a amiga pode responder:
'e eu a Cinderela'; e então a brincadeira pode começar sem maiores esclarecimentos
(2006, p.178).
Por ora, optamos por pensar que os contos são ecos de manifestações primordiais que
se mantiveram por auxiliar a elaborar os mesmos sentidos que possivelmente os fizeram
existir:
35
Embora os contos sejam em si estruturas sem um sentido próprio,
intrínseco, seguiram existindo, pois continuam possibilitando arranjos que têm algo
a nos dizer, não necessariamente a mesma que originalmente podiam significar, mas
fornecem elementos para uma nova significação (CORSO e CORSO, 2006, p.178).
Em outras palavras, podemos dizer que nos apropriamos dos contos que nos
interessam em determinado tempo de nossa vida e, por vezes, os desmontamos no todo e
reaproveitamos apenas os tijolos; por outras, utilizamos uma parede inteira que agora passa a
ganhar um novo lugar.
Caminhando com Diana e Mario Corso, a questão da longevidade dessas histórias
leva-nos à hipótese de que as ficções infantil e adulta teriam partes móveis e outras fixas, o
que corresponderia, por um lado, a um cardápio em permanente transformação de modo a
ajustar-se aos novos tempos e desafios de crescer num mundo que não pára de surpreendernos; e por outro, uma espécie de aliança que faz com que as gerações se referenciem umas nas
outras, de modo que os mais velhos possam auxiliar os mais novos a superar medos, impasses
e sofrimentos.
1.6 ERA UMA VEZ: O CONTO DE FADA E SUA EFICÁCIA PSICOLÓGICA
Por ora ficamos com a evidência da importância do conto de fadas para a criança,
pois "o imaginário infantil abastece-se de histórias, traços de personalidade de personagens e
cenários provenientes da ficção, que são utilizados conjuntamente como bonecas, carrinhos,
bichos de pelúcia ou super-heróis de plástico" (CORSO e CORSO, 2006, p.178). Estes são
elementos disponíveis para uma combinação que será o instrumento de elaboração da criança.
Nesse sentido, Bettelheim tem razão quando afirma que "a criança necessita muito
particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma como ela
pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade" (1980, p.14-5).
Mais adiante, Bettelheim escreve que:
36
para dominar os problemas psicológicos do crescimento - superar decepções
narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar
dependências infantis; obter um sentimento de individualidade e de autovalorização,
e um sentimento de obrigação moral - a criança necessita entender o que está se
passando dentro de seu eu inconsciente. Ela pode atingir essa compreensão, e com
isso a habilidade de lidar com as coisas, não através da compreensão racional da
natureza e conteúdo de seu inconsciente, mas familiarizando-se com ele através de
devaneios prolongados - ruminando, reorganizando e fantasiando sobre elementos
adequados da estória em resposta a pressões inconscientes. Com isso a criança
adequa o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a capacita a lidar
com este conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável,
conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia
descobrir verdadeiramente por si só. Ainda mais importante: a forma e estrutura dos
contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode estruturar seus
devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida (1980, p.16).
Ressaltando a importância psicológica do conto de fada, o autor faz uma ressalva no
sentido de que "o conto de fada é terapêutico porque o paciente encontra sua própria solução
através da contemplação do que a história parece implicar a cerca de seus conflitos internos
nesse momento da vida" (1980, p.33). Dessa forma, os contos de fadas traduzem o que se
passa com a criança e que ainda não encontrou uma forma de expressão, por isso servem para
apoiar as fantasias que se encontram sem "rosto". Diana e Mario Corso também corroboram
esse entendimento:
Muitas vezes o que sentimos é indefinido, é uma angústia, um sofrimento
difuso. Uma história pode nos emprestar um sentido que a princípio não é nosso,
mas dá um contorno ao nosso sofrimento. Nesse caso, não seria uma verdade do
sujeito que se elabora através da trama ficcional, mas por um tempo funcionaria
como se fosse. Ou seja, um conto de fada pode nos emprestar um sentido, sem que
haja uma correspondência com um problema real (2006, p.179).
Os contos de fadas, nas palavras de Leyen (1998), traduzem em suas páginas um
mundo mágico repleto de fantasias mais primitivas que povoam nossa infância: medo de ser
devorado, medo do abandono, punições severas, imagens de despedaçamento de corpos e
nossos desejos mais inconscientes.
De qualquer maneira, sempre encontramos nos contos de fadas elementos para a
representação de conteúdos inconscientes, não fazendo diferença para a criança se a história é
passada ou contemporânea. Os contos que aparentemente não correspondem a questões do
mundo atual interessam à criança, que está sempre aberta a todas as possibilidades da
existência e capaz de identificar-se com os personagens mais bizarros e as histórias mais
extravagantes. Nesse sentido, os contos de fadas "ajudam na construção da subjetividade: por
um lado, traduzindo o inconsciente em imagens acessíveis e com isso aumentando nosso
37
contato com as fantasias ocultas e, de certo modo, sugerindo pautas para nossas aflições e
ainda fornecendo peças de encaixe para nossa subjetividade em formação" (CORSO e
CORSO, 2006, p.179).
Quando falamos em infância e, conseqüentemente em contos de fadas, já que estes se
tornaram coisa de criança, é impossível não falarmos em fantasia. A criança inventa a
fantasia. Ela cria, como diz Freud (1908 [1907]) em seu texto Escritores Criativos e
Devaneio, um mundo de fantasia que leva a sério, no qual investe uma grande quantidade de
emoção, enquanto mantém uma separação entre o mesmo e a realidade. "Ela situa as coisas do
seu mundo em uma nova ordem de sentido. Ela inventa uma ficção" (MAGALHÃES, 1998,
p.42).
Para tanto, quando falamos em fantasia é difícil contermo-nos na não realização de
um elo entre fantasia e conto de fada. Bruno Bettelheim já nos falava de que esse tipo de
literatura alimenta não só a imaginação, mas para além disso, estimula as fantasias,
oferecendo materiais que sugerem à criança sob forma simbólica o significado de toda a
batalha em que se encontra. "A paixão pela fantasia começa muito cedo, não existe infância
sem ela, e a fantasia se alimenta da ficção, portanto não existe infância sem ficção" (CORSO
e CORSO, 2006, p.21). É fácil observar nas crianças o impacto da ficção, pois elas se apegam
a uma história e usam-na para elaborar seus dramas íntimos, para dar colorido e imagens ao
que estão vivendo:
Elas a usam como era usado o mito em sociedades antigas, entram na
trama oferecida e tentam encaixar suas questões nos esquemas interpretativos
previamente disponibilizados. Ou então se apropriam de fragmentos, como tijolos de
significação que combinam à sua moda para levantar a obra de determinado assunto
que lhes questiona (CORSO e CORSO, 2006, p. 28).
O próprio Freud, em 1909 [1908], quando publica Romances Familiares, escreve que
a criança, muito cedo, tentando articular uma verdade obscura e insondável, encontra o
recurso do mito para dar conta do que lhe é impossível apreender.
De qualquer forma, os contos de fadas traduzem a ficção, onde há elementos para a
cena. Se a criança vai utilizá-los para um fim regressivo ou como auxílio num momento de
crescimento, isso dependerá da vida que está levando. Talvez por isso, é possível tomar
emprestado pedaços de ficção para construir-se e, portanto, arrecadar elementos de algum
lugar. Tanto a criança quanto o adulto escolhem, coletam, despedaçam e corrompem em
benefício de seu prazer, as fantasias que são oferecidas, até o momento em que elas se
38
adaptem às suas necessidades. Além disso, o sujeito toma de fora o material para construir-se,
pois, seguindo as palavras de Corso e Corso (2006, p.180), é balizado pelo desejo dos pais,
valores e espírito da época em que nasceu, porque não existe um ego pré-desenvolvido como
se fosse uma semente do que será quando adulto. Ora, por esse motivo buscará emprestado na
ficção um meio de construção e desenvolvimento.
Compartilhamos com Tavares a compreensão de que:
propor figuras reais e histórias que somente correspondam à 'realidade' como
indicação para resolver os conflitos que as crianças vivenciam é colocá-las diante do
imperativo social a respondê-lo de maneira unívoca. Com isso estaremos lhes
demandando uma posição ecolálica. É simples: para cada situação uma resposta,
para cada imagem um sentido (1998, p.107).
"A ficção, infantil ou adulta, supre os indivíduos de algo que não se encontra
facilmente em outros lugares: todos precisamos de fantasia, não é possível viver sem escape.
Para suportar o fardo da vida comum, é preciso sonhar" (CORSO e CORSO, 2006, p.304).
Certamente, a fantasia, por meio da ficção, oferece tramas capazes de alimentar devaneios e
brincadeiras.
A título de esclarecimento, o que fica para a criança de um conto? Na esteira dos
mesmos autores, entendemos que o que fica para a criança é o que o conto fez reverberar na
sua subjetividade, aliado ao fato de como o mesmo chegou até ela. Caso o conto tenha
chegado pela mão de um adulto, a criança pode entender que ele teve a intenção de dizer algo
através de um trecho dramático específico. Por sua vez, a criança faz suas encomendas, quer
escutar determinada história, pede que lhe alcancem determinado livrinho, coloca-se na
brincadeira como determinado personagem. Nesse sentido, temos de concordar com
Bettelheim quando este nos afirma que não podemos decidir qual dos vários contos a criança
deveria escutar num determinado período ou o porquê. Isto só a criança pode determinar e
revelar pela força com que reage emocionalmente àquilo que um conto evoca para si, tanto no
nível consciente como inconsciente.
Portanto, usamos o que nos é útil. Porém, essa utilidade não depende de mensagens
diretas, mas de mensagens transmitidas por meio da ficção e, quanto mais mágica, onírica,
radical e absurda, melhor, pois é justamente nisso que as crianças endereçam seu desejo. Para
tanto, quando se trata de ficção, os propósitos racionais precisam ficar em segundo plano, pois
se fala desde outro lugar. "Enfim, é uma sorte que na mesma época em que estamos em
39
formação, arrumando as malas que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela
vida afora, sejamos consumidores vorazes de ficção" (CORSO e CORSO, 2006, p.304).
No entanto, por assim dizer, "[...] essas trocas entre o adulto e a criança, tendo os
contos como intermediários, podem operar como uma espécie de diálogo inconsciente"
(CORSO e CORSO, 2006, p.29).
É comum em análise, segundo Corso e Corso, pacientes adultos mencionarem um
conto de fada ou uma ficção infantil contemporânea que nunca esqueceram e que a partir do
momento em que a escutaram não foram mais os mesmos. Vejamos o que nos diz Jandyra
Mengarelli quanto a isso:
[...] Uma criança certamente não é a mesma depois do era uma vez...
Triunfo do prazer na transformação do mal-estar, os contos encantam porque têm
valor de retificação, de arranjo, de composição. Eles oferecem vozes, expressões que
falam à criança na sua urgência em costurar sua apetrechada de restos. Eles
oferecem a possibilidade de estar ali não estando, de algum personagem dar voz ao
que nela encontra-se impalavrável (1998, p.68) [grifo do autor].
Há ainda quem diga que as coisas mais duras que já escutaram estavam contidas num
conto de fada. Freud, em seu artigo de 1913, A Ocorrência, em Sonhos, de Material Oriundo
de Contos de Fadas, afirma que: "em algumas pessoas a rememoração de seus contos de fadas
favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformarão esses
contos em lembranças encobridoras5" (p.305). Essas lembranças abrirão boas associações no
processo de análise. Alguns elementos e situações derivados de contos de fadas podem
também ser encontrados em sonhos, afirma Freud.
Aproveitando um pouco mais as considerações de Freud, destacamos o que ele
escreveu em 1908 [1907] no seu texto Escritores Criativos e Devaneio, no qual afirma que os
contos de fadas colocam em jogo qual é a posição em que a criança deverá responder ao ideal
social.
5
Termo utilizado por Freud para designar uma lembrança infantil insignificante em determinado momento e que
passa a mascarar uma outra lembrança recalcada. Freud escreve mais especificamente sobre essas lembranças
encobridoras em seu texto Lembranças da Infância e Lembranças Encobridoras (1901). Neste texto, o autor
escreve que não possuímos o verdadeiro traço das lembranças infantis, mas uma elaboração ocorrida num
momento posterior. Dessa forma, as lembranças da infância dos indivíduos adquirem o significado de
lembranças encobridoras.
40
1.7 UMA BOA HISTÓRIA E SEU VALOR
Notemos o quanto a vida nos desafia e nos coloca frente a situações em que
precisamos criar soluções. Uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis
emocionalmente e capazes de reagir adequadamente e criar soluções perante determinados
impasses. Esta é a hora em que uma boa caixa de histórias é de grande valia:
Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam.
Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a
realidade e, quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações que elas
contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que
nos afligem. Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas,
na qual sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois
determinados consertos ou instalações só poderão ser realizadas se tivermos a broca,
o alicate ou a chave de fenda adequados. Além disso, com essas ferramentas
podemos também criar, construir e transformar os objetos e os lugares (CORSO e
CORSO, 2006, p.303).
Assim, histórias sempre servem como âncora metafórica da nossa andança pela vida.
Fanny Abramovich afirma que "é através duma história que se podem descobrir outros
lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica..." (apud
TAVARES, 1998 p.105). Ou seja, como melhor explica Tavares, "através de uma história
poder encontrar o caminho de sua própria história. Um saber de como realizar a caminhada da
vida, carregando nas costas o pesado fardo de seu presente insuficiente, pequeno e lerdo, até
esse ponto fascinante e maravilhoso no qual se espelha, mas que não sabe qual é" (p.105).
Dessa forma, o que encanta os pequeninos é o encontro com um outro lugar que não a
demanda imperativa do Outro. Portanto, é para isso que os personagens servem: como pontos
de identificação para que a criança possa encontrar uma via de acesso ao reconhecimento,
podendo falar de outro lugar que não aquele ao qual remete a demanda imperativa do Outro:
Afinal, para bem da biodiversidade humana, nenhum eu se constitui
exclusivamente com base nos traços identificatórios de nossos primeiros objetos de
amor, os papai-e-mamãe da primeira infância, da estruturação edípica e da formação
dos ideais. Professores, amigos, namorados(as), líderes de massa e, por que não? personagens de ficção, continuam a contribuir na tarefa incansável das
identificações, enriquecendo continuamente a ficção fundamental de um eu que nos
sirva de apoio para que possamos dizer: 'sou' - e partindo daí, criar uma narrativa
que dê sentido à nossa precária existência (KEHL,1998, p.139) [grifo do autor].
41
Considerando a importância que a criança atribui aos personagens, a partir do que
escreve Kehl, podemos perceber que a criança toma certos personagens que marcam o seu
imaginário e os leva a sério, pois
a criança lê a sério - como, aliás, tudo o mais que faz antes de virar adulto. Criança
não relativiza as coisas: acredita nos livros, nos filmes, na experiência sensível, até
mesmo na palavra ambígua dos adultos. As 'primeiras e verdadeiras relações de
objeto', como escreveu Freud em O Inconsciente, marcam o imaginário infantil.
Histórias fantásticas e personagens inverossímeis participam da vida de uma criança
com tanta intensidade e verdade quanto os da vida dita 'real' - às vezes até mais, já
que na vida real as coisas não fazem tanto sentido, pessoas e acontecimentos
costumam ser mais chatos, mais lentos que nos livros (1998, p.138) [grifo do autor].
Fica claro, então, que os contos colocam em cena, através do imaginário,
significantes que permitem à criança articular um saber sobre o que é a vida, a morte, o
amor... Um saber que rege a vida dos adultos. "Ou seja, ordenar com uma fórmula discursiva
o que não pode ser transmitido na definição da verdade" (TAVARES, 1998, p.105). Por ora,
isso explicaria o fascínio que certas historinhas causam nas crianças. Certamente, esse é um
dos motivos pelos quais as crianças, encantadas com determinada historinha, pedem para
ouvi-la várias e várias vezes, mas sempre da mesma maneira, afim de poder realizar o
enodamento de um significante com vistas a traçar uma borda necessária para que possam dar
um passo adiante na cadeia significante.
Podemos, neste momento, brincar um pouco com as palavras e então dizer que os
contos servem para ler o sujeito:
O eu, sendo o palco das tensões conflituosas, é também o que voa, o que
se deixa elevar nas aventuras da imaginação. O eu é imaginário. Entretanto algo
atravessa e é aquilo que entra em jogo na insistência das pulsões que fará do leitor
não um eu que lê, mas um sujeito. Ele pensa que lê, que ouve a história, mas em
Outra cena ele é que é lido, que é olhado e ouvido pelo conto. Ele é capturado, ele é
contado. Implicação que se dá de tal forma que, não raro vemo-lo ressurgir em seus
sonhos ou pesadelos, eventualmente nas brincadeiras, assumindo vozes, expressões
ações dos personagens que dele tomam conta. Podemos dizer que o leitor, ao ser
capturado é falado desde o conto. Ou seja, os contos o pescam na rede de
significantes na qual ele é o peixe de seu próprio lago e também o pescador das
águas da linguagem que, neste ato, o banham. Ao estilo de que um significante
representa um sujeito para outro significante, aqui podemos dizer que um
personagem representa um sujeito para outro personagem (MENGARELLI, 1998,
p.68) [grifo do autor].
Dentro de todo esse contexto, podemos notar que os contos de fadas suscitam
diferentes questões. Dentre estas, podemos ressaltar uma questão bem específica: o medo. É
sabido que as crianças se "deliciam" com a narração de histórias de temática assustadora e
42
personagens monstruosos como fantasmas, lobisomens, vampiros e o nosso tão conhecido
lobo mau. O seu nítido interesse, a insistência com que as solicitam aos adultos e a satisfação
que surge após escutá-las mostram-nos que o medo provocado por tais histórias está longe de
provocar aversão nas crianças, sendo um fator que lhes desperta o interesse. Resta-nos
procurar saber por que essas histórias são tão atrativas para os pequeninos.
43
CAPÍTULO II
NO CAMINHO DO LOBO MAU
"E por um bom tempo o lobo pode ser a mãe devoradora.
Depois poderá ser o pai rival com quem medir forças. Depois um
homem apresentado animalescamente numa erótica longe do olhar
da mãe. Depois um homem simplesmente. Homem de outra aldeia,
de outro clã, estranho à tribo. Aquele que, como em Terezinha de
Jesus, não é o primeiro, nem o segundo. É o terceiro... que dá a
mão na passagem da endogamia à exogamia"
(MENGARELLI, 1998, p.69).
Como a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o imaginoso,
entre o verdadeiro e o verossímil, que são estabelecidas pelo recalque das representações
inconscientes, todas as possibilidades de linguagem lhe interessam, afirmam Corso e Corso
(2006, p.17), para que possa compor o repertório imaginário de que ela necessita para abordar
os enigmas do mundo e do desejo. As crianças continuam interessadas em seu próprio
universo de mistérios que sobrevive à aparente transparência da era da comunicação, com o
imperativo de mostrar tudo, tudo dizer e tudo exibir:
[...] As crianças continuam interessadas no mistério; se ele se empobrece,
elas o reinventam. Da mesma forma, são fascinadas por tudo o que desperte nelas a
vasta gama de sentimentos de medo. O medo é uma das sementes privilegiadas da
fantasia e da invenção; [...] O medo pode ser provocado pela percepção de nossa
insignificância diante do Universo, da fugacidade da vida, das vastas zonas sombrias
do desconhecido. É um sentimento vital que nos protege dos riscos da morte. Em
função dele, desenvolvemos também o sentimento da curiosidade e a disposição à
coragem, que superam a mera função de defesa da sobrevivência, pois possibilitam a
expansão das pulsões de vida (CORSO e CORSO, 2006, p.17).
As crianças procuram o medo. Os contos infantis sempre incluem personagens e
elementos assustadores que ensinam os pequenos a conhecer e a enfrentar o medo. Temos
como exemplo a madrasta malvada da Branca de Neve, a bruxa comedora de crianças de
João e Maria, o lobo mau de O Lobo e os Sete Cabritinhos... Curiosos e excitados os
pequenos exigem que os adultos repitam as passagens mais amedrontadoras dos contos de
fadas. "Não interessa às crianças a fantasia de um paraíso pacificado, sem conflitos. Elas
44
desejam o medo, o prazer do mistério e do desafio, aos quais respondem com a máxima
potência de suas fantasias de onipotência" (Idem, ibidem, p.18) [grifo dos autores].
Com o propósito de demonstrar como e por que as crianças se interessam pela
literatura que transmite o medo, em vez de um empenho em uma abordagem exaustiva que
está para além do alcance deste trabalho, será realizado o exame de algumas histórias bem
conhecidas, pelo significado e prazer que se pode obter delas, histórias que carregam consigo
a dimensão do medo encarnada na figura do lobo mau. Para tanto, as historinhas às quais
serão feitas referências neste trabalho são: Os Três Porquinhos, O Lobo e os Sete Cabritinhos
e Chapeuzinho Vermelho.
2.1 LOBISOMEM: O DESCONHECIDO LADO DO LOBO MAU
2.1.1 A Origem Mitológica do Lobisomem
Como o que está em jogo neste momento é a questão do medo enfocado na figura do
lobo mau, é preciso, por meio de uma digressão, remontarmo-nos a algumas raízes históricas
referentes à função desse animal. Segundo Silva (2004), além de se postar como um símbolo
das ameaças da floresta - já que na Idade Média o conto de Chapeuzinho Vermelho sugere
uma história que advertia as pessoas para os perigos da floresta, incluindo aí os predadores, e
ressaltava a importância de manter a comunidade unida, especialmente no inverno, quando a
escassez de comida levava os lobos a atacarem com maior freqüência os camponeses - o
personagem do lobo adquire um significado que ultrapassa sua função no texto em si, se o
considerarmos como uma representação temida do período compreendido entre os séculos
XVI e XVIII: o lobisomem.
O lobisomem, como muitos outros, foi um dos seres que não respeitaram fronteiras.
A idéia de um homem transformar-se em lobo foi tão difundida que ganhou um nome:
licantropia. Porém, a união entre um homem e um animal é muito mais antiga do que a
licantropia. Ela remonta à mitologia. De acordo com Baring-Gould (2003, p.101), "a
transformação em animais é parte integrante de todos os sistemas mitológicos. Os deuses da
Grécia gostavam de se transformar em animais para realizar seus desígnios com mais rapidez,
segurança e segredo, do que em forma humana". Isso porque a crença em um mundo animal
dotado de alma era presente entre os antigos, e os conceitos de inteligência e instinto eram
mal formados, ou eram vistos como um enigma que nenhum homem era capaz de resolver.
45
Baring-Gould, na introdução do seu livro, ressalta que os animais eram considerados como
detentores de poderes, e então, a união entre o homem e o animal tinha um resultado mais
poderoso do que a simples soma das duas partes. Daí temos o surgimento dos deuses, muitos
deles nascidos da união entre um animal e um humano.
Segundo os estudos de Baring-Gould, acreditava-se que, depois da morte, a alma
deveria continuar em um animal. O animal era escolhido de acordo com a vivência do
indivíduo. Então, "um homem selvagem sedento de sangue era exilado, como no caso de
Lycaon6, no corpo de uma fera selvagem, a alma de um homem medroso entrava em uma
lebre e de beberrões e glutões, em um porco" (BARING-GOULD, 2003, p.102). A
inteligência que se manifestava nas feras era tão próxima da do homem, que não havia uma
linha demarcatória entre razão e instinto:
Não era simplesmente uma mera semelhança entre fera e homem, era a
percepção da habilidade, desejos, objetivos, sofrimentos e lamentações como a sua
própria, na criação animal, que levou o homem a detectar na fera algo semelhante à
sua própria alma. E isto, sem considerar os pontos contrastantes existentes entre si,
criou em sua mente tamanha simpatia que, sem forçar muito a imaginação, investiu
o animal com seus próprios atributos, e com os poderes de seu próprio
entendimento. Ele via o animal como se agindo pelos mesmos motivos, sujeito às
mesmas leis de honra, movido pelos mesmos preconceitos e, quanto mais alto o
animal estivesse na cadeia, mais era visto como um semelhante (BARING-GOULD,
2003, p.102).
Mas o que dizer da diferença na aparência, ou seja, no corpo. Em diversos povos, o
corpo era considerado apenas uma roupagem externa para a alma, porém, esta, interna, era
idêntica tanto no animal quanto no homem. Muitos povos acreditavam que a verdadeira
identidade existia apenas na alma e que o corpo não era capaz de demarca-la. O corpo era
considerado uma jaula que aprisionava a alma e portanto, um peso. Foi somente com a
religião cristã que o corpo foi elevado passando a ser digno de ressurreição, assim como a
alma. "Se o corpo nada mais é do que uma jaula [...], onde mora a alma aprisionada, é bem
possível que a alma troque de jaula. Se o corpo nada mais é do que a vestimenta da alma, [...],
é provável que, ocasionalmente, troque a vestimenta" (BARING-GOULD, 2003, p.106). Foi
diante disso que se originaram as diversas histórias de transformação que podem ser
encontradas no mundo inteiro. A mesma doutrina fica evidente nos casos de licantropia.
6
"Na mitologia há Lycaon rei da Arcádia, que foi condenado por Zeus a tornar-se um lobo. Possivelmente
Lycaon fosse um sacerdote rei de um culto em que ocorriam sacrifício humanos" (BARING-GOULD, 2003, p.
10).
46
2.1.2 O Possível Berço da Licantropia
Segundo Ramos (1954, p.181), a crença no licantropo não existia apenas entre os
povos primitivos. É uma velha superstição européia de longínquas origens. Baring-Gould
observa que,
[...] o berço da Licantropia foi a Arcádia, e [...] a causa pode ter sido a seguinte
circunstância: os nativos eram pastores e, conseqüentemente, sofriam muito com os
ataques e depredações de lobos. Naturalmente, instituíram um sacrifício para
libertarem-se da praga, garantindo a segurança de seus rebanhos. Esse sacrifício
consistia em oferecer uma criança, e foi instituído o Lycaon. Por ser um sacrifício
humano, e devido a peculiaridade do nome de seu criador, o mito surgiu (2003,
p.20).
Talvez a versão mais curiosa seja a de Giraudi de Cambrai, que conta sobre "[...] um
casal de crentes que foram metamorfoseados em lôbos (sic) por um abade7 [...]" (RAMOS,
1954, p.182). Outras lendas referem-se à transformação em lobo por meio de ervas venenosas,
evocando almas dos sepulcros e enfeitiçando as mesmas:
Uma narração clássica é a de Petrônio que nos fala da transformação de
um versipellis (que muda de forma): um lôbo (sic) foi ferido, e o homem que se
ocultava sob a sua forma, apareceu ferido também, traindo assim o seu segrêdo (sic).
Refere-nos ainda Tylor que, no tempo de Santo Agostinho, os mágicos persuadiam
às suas vítimas que, por meio de determinadas ervas, podiam metamorfosear-se em
lôbos (sic). Ainda as lendas escandinavas apresentam seus guerreiros loup-garous e
versipellis (hamrammr) que tinham acessos de loucura furiosa. Do mesmo modo, os
dinamarqueses, os eslavos, os gregos (RAMOS, 1954, p.182-3) [grifo do autor].
De acordo com o autor referido, a crença nos loup-garous tornou-se tão disseminada,
que, na Europa, em 1573, o parlamento francês expediu um mandato de expulsão contra eles.
Daí por diante, essa lenda difundiu-se na Oceania, na América, na África, onde, por vezes, a
metade animal do lobo é substituída por outro animal, como um tigre, uma hiena e até um cão
feroz. O negro africano acredita na existência de uma outra personalidade que habita a forma
aparente do indivíduo. Em algumas tribos, essa outra personalidade diz de um espírito que
atravessou uma longa cadeia de gerações.
No Brasil, segundo Ramos, o correspondente do licantropo é o lobisomem. No
nordeste, os "doentes de amarelão", "empambados", "come-longes", extenuados pela anemia,
transformar-se-iam em lobisomens, nas noites de quinta para sexta-feira. Dessa forma, o
7
Superior da ordem religiosa.
47
lobisomem brasileiro é uma concepção na qual intervêm velhas crenças européias acrescidas
de crenças totêmicas e míticas, de origens ameríndia e africana:
O riquíssimo folclore dos negros africanos reflete essas crenças nos
lobisomens, nas personagens míticas meio homens, meio animais, nos sêres (sic)
mistos que se transformam, num mundo de magia e fluidez. No decurso da narração
dêsses (sic) contos, onde o herói é um animal, o narrador a certa altura percebe que o
herói se transforma em homem e vice-versa (RAMOS, 1954, p.185).
2.1.3 Lobisomem: uma Condição ou uma Doença?
Segundo Corso (2004), em suas origens, o lobisomem era um ser que sofria um
castigo que podia durar alguns anos. Essa temporada como lobisomem servia como
pagamento da pena e, caso o infeliz cumprisse certas regras, voltava a ser homem. Porém,
segundo Baring-Gould (2003, p.17-20), em tempos remotos essa mutação era única; um
homem ora assumia a forma de um lobo, ora a alma possuía o corpo de um lobo, ou ainda
podia ser acometido por uma insanidade ou doença que o levava a apresentar uma fúria
animalesca. Nesses três casos, o lobisomem denunciava a sua condição sobrenatural. Nos dias
atuais, este ser também vive em constante transformação, porém ele tem forma híbrida: anda
em duas pernas como um homem, mas possui feições de um lobo. Dessa forma, parece
guardar muito de homem em sua condição de lobo, e na condição de humano tem
peculiaridades distintas.
No entanto, com a difusão desse ser, existem várias versões do mesmo. Segundo
Corso, no Brasil,
[...] o lobisomem é concebido como um lobo que conserva suas extremidades
humanas, é quase tão grande quanto um bezerro. Para alguns, é capaz de se
transformar em vários animais. A sua face homem acontece durante o dia, quando se
apresenta como um homem alto, olhos encovados, magro, pálido, com aspecto
doentio (2004, p.117).
Para que ocorra a transformação de homem em lobo, existem alguns rituais:
48
Os rituais de transformação típicos ocorrem, dadas as seguintes condições
e passos: deve ser noite, lua cheia, de preferência sexta-feira, numa encruzilhada; o
candidato a Lobisomem deve tirar a roupa, colocá-la do avesso e enchê-la de nós.
Isso feito, deve atirar-se ao solo em local em que algum cavalo, burro ou cachorro já
tenha se esfregado. Assim, transforma-se no lobisomem. Enquanto estiver
encantado, não reconhecerá ninguém, podendo atacar amigos e parentes. Terminada
a noite, depois de retornar ao lugar onde se espojou para a metamorfose, volta a ser
um homem. Com toda essa atividade noturna, o Lobisomem é, durante o dia, um
sujeito cansado e com aparência de doente, porque, como se viu, não dorme
(CORSO, 2004, p.117-8).
Nessa passagem, percebemos duas questões que foram ressaltadas por Tatar (2002) e
que Silva (2006) retomou. Uma delas é a encruzilhada, e a outra, não explícita, é a habilidade
da fala desse ser.
Tatar nos remete a um pequeno fragmento de uma versão anônima do ano de 18858
do conto de Chapeuzinho Vermelho, coletada pelo folclorista francês Paul Delarue, sendo
considerada uma das narrativas folclóricas mais próximas da tradição oral que precedeu
Perrault, e que o teria auxiliado na descrição do seu conto de fada. A citação é a seguinte: 'A
menina partiu. Na encruzilhada encontrou um lobo, que perguntou: 'Para onde está indo?' '
(apud Silva, 2004, p.2). A partir deste pequeno fragmento, Silva ressalta dois elementos
importantes que podem ser considerados indicadores de que o vilão de Chapeuzinho
Vermelho, na verdade, poderia ser um lobisomem: a encruzilhada e a habilidade da fala.
Referente à encruzilhada, esta era o local onde a pessoa, tanto se transformava em
lobo, quanto retornava para reassumir a forma humana. A encruzilhada, segundo Silva, é de
fato um dos elementos mais constantes relacionados ao folclore do lobisomem, sendo citada
desde a Roma Antiga até os dias atuais no interior do Brasil.
"Diferentemente de outros vilões dos contos de fadas que são ligados ao mágico
(bruxas, ogros, trolls, gigantes e duendes), o lobo que encontra Chapeuzinho no meio da
floresta é uma fera real" (SILVA, 2004, p.2) que possui a habilidade de fala. Dessa forma, o
autor entende essa habilidade como um indicativo de que o lobo, na verdade, era um
lobisomem. Conforme Baring-Gould (2003, p.17-20), o lobisomem folclórico não passava de
um ser humano que ora assumia a forma de um lobo, ora sua alma possuía o corpo de um lobo
ou era acometido por uma insanidade ou doença que o levava a apresentar uma fúria
animalesca. No entanto, em qualquer um dos casos, o lobisomem poderia manter a capacidade
de comunicação, que serviria como meio de denunciar sua condição sobrenatural.
8
Ver História da Avó, p.56.
49
Continuando, pois, no caso do lobisomem, não fica bem clara a sua origem. Ora era
creditada ao nascimento - ser o sétimo filho de uma prole ou só de meninos ou ainda só de
meninas. Em um relato coletado de um paisano, Juan B. Ambrosetti diz: 'O ser Lobisomem é
condição fatal do sétimo filho consecutivo, e se for a sétima filha mulher consecutiva, será,
por sua vez, bruxa' (MEYER, S.d., p.72) [tradução nossa].9 Ora essa metamorfose era
considerada como fruto de um castigo. Corso ressalta que "o Lobisomem era um homem
normal até que cometeu uma falha, geralmente ligada a tabus sexuais (andou namorando irmã,
ou comadre, fatos que no Brasil antigo não eram concebidos sem um destino trágico para os
envolvidos). Ou, ainda, seria o filho de relações proibidas" (2004, p.118). Segundo a versão
de Simões Lopes Neto (apud MEYER, S.d., p.72),
dizem que eram homens que havendo tido relações impuras com as suas comadres,
emagreciam; todas as sextas-feiras, alta noite, saíam de suas casas transformados em
cachorro ou em porco, e mordiam as pessoas que as tais desoras encontravam; estas,
por sua vez, ficavam sujeitas a transformarem-se em lobisomens...
Outra explicação, que se acresce a essas, relaciona o lobisomem a várias doenças
ligadas ao sangue, como por exemplo, o amarelão citado por Carvalho (1966, p.21). "Homens
de aspecto doentio, com as faces anêmicas, eram considerados como suspeitos, pois
necessitariam de um sangue melhor. Daí poder-se pensar que saíam à noite em busca do
líquido que traria a sua cura" (CORSO, 2004, p.118). O relato do paisano ainda sugere que "o
indivíduo que é lobisomem, em geral, é delgado, alto, magro, de má cor e doente do
estômago, pois, dizem que, devido a sua alimentação, contrai essa doença, e todos os sábados
tem que ficar na cama forçosamente, como resultado de suas aventuras da noite passada"
(MEYER, S.d., p.72) [tradução nossa].10 "São pessoas que jamais engordam ou conseguem
cores de saúde" (CASCUDO, 1984, p.441).
Para enfrentar o lobisomem, Corso assevera que, além da coragem, são necessários
vários procedimentos. As armas de fogo mostram-se inúteis, salvo a "bala que se unte com
cêra (sic) de vela que ardeu em três missas de domingo ou na missa do galo, na meia noite do
Natal" (CARVALHO, 1966, p.21). Arma branca tem mais sucesso, como nos mostra Corso,
afinal, como ocorre com tantos outros seres encantados, se conseguimos fazer sangrar ele
9
'El ser Lobisome es condición fatal del séptimo hijo varón seguido, y si es la séptima hija mujer seguida, será,
en vez, bruja' (MEYER, S.d., p.72).
10
"el indivíduo que es lobisome, por lo general, es delgado, alto, de mal color y enfermo del estómago, pues
dicen que, dada su alimentación, es consiguiente esta afección, y todos los sábados tiene que guardar cama
forzosamente, como resultado de las aventuras de la noche pasada" (MEYER, S.d., p.72).
50
desencanta na hora. "Para desencantá-lo, basta o menor ferimento que cause sangue"
(CARVALHO, 1966, p.21). Nesse caso, o problema é pará-lo, "[...] já que ele corre
desatinado, vara vários quilômetros numa noite, e nem os cães dão conta de acompanhá-lo"
(CORSO, 2004, 118). Como dizia Cascudo,
sai também ao escurecer, atravessando na carreira das aldeias onde os lavradores
recolhidos não adormeceram ainda. Apaga todas as luzes, passa como uma flecha, e
as matilhas de cães, ladrando, perseguem-no até longe das casas... Quem ferir o
lobisomem, quebra-lhe o fado; mas que se não suje (sic), de outro modo herdará a
triste sorte (1984, p.441).
"Sua correria não tem um rumo certo, mas tem um número, ele passa por sete
lugares, os quais, geralmente, são sete cemitérios, sete encruzilhadas, ou sete colinas, etc. Ou
seja, o que não lhe falta é fôlego" (CORSO, 2004, p.118).
2.1.3 Permanência do Lobisomem
Diante disso, podemos questionar: como foi que o lobisomem ganhou tamanho
destaque e permaneceu durante tanto tempo? Um dos fatores que liga a figura do lobisomem a
tal destaque é a
[...] queda do Império Romano, quando a Europa mediterrânea passou a ser assolada
pelas invasões nórdicas. Entre os antigos nórdicos, era costume que certos guerreiros
vestissem as peles das feras que haviam abatido, o que lhes dava um ar de
ferocidade, calculado para incutir o terror nos corações dos inimigos. Estes
guerreiros - chamados de berserkr - eram objetos de aversão e terror entre os
habitantes das terras invadidas, já que eles pilhavam, destruíam e matavam tudo em
seu caminho, não respeitando igrejas, governos ou a idade e sexo de suas vítimas.
Nesse sentido, é perfeitamente possível que a superstição tenha se difundido devido
ao medo popular destes nômades vestidos com pele de lobo e urso, acreditando-se
que estivessem imbuídos com a força das feras, cujas peles vestiam (BARINGGOULD apud SILVA, 2004, p.3) [grifo da autor].
De acordo com Baring-Gould, os berserkr eram objetos de aversão e terror entre os
habitantes das terras pacíficas, pois estes tinham a vocação de desafiar os fazendeiros do
campo para combates individuais, e de acordo com a lei vigente na Noruega, se um homem
não aceitasse o desafio, todas as suas posses lhe eram tomadas, até mesmo a esposa, pois era
considerado um covarde. Dessa forma, de qualquer maneira o berserkr tinha o indivíduo na
mão, pois se aceitasse e morresse, todas as suas posses seriam do desafiador; se não aceitasse
o combate, perderia as suas posses automaticamente.
51
Além disso, existia uma outra crença que dizia que a fúria incontrolável do berserkr
era uma espécie de possessão diabólica:
Dizia-se que o berserkr agia em um estado de frenesi, no qual era
possuído por uma força demoníaca impelindo-o a ter atitudes que em seu estado
normal não teria. Eles adquiriam poderes sobrenaturais e eram [...] invulneráveis e
insensíveis a dor [...]. Nenhuma espada era capaz de feri-los, nenhum fogo era capaz
de queimá-los, apenas um porrete era capaz de destruí-los, quebrando seus ossos e
esmagando seus crânios. Seus olhos brilhavam como se uma chama queimasse nas
órbitas, rangiam os dentes e espumavam pela boca. Roíam as bordas dos escudos e
diz-se que algumas vezes mordiam-nos inteiros e, enquanto lutavam, ganiam como
cães ou uivavam como lobos (BARING-GOULD, 2003, p.34) [grifo do autor].
Mais adiante, o mesmo autor afirma que, de acordo com os historiadores, a fúria do
berserkr só era exterminada através do batismo, e com o avanço do Cristianismo, o número de
berserkr diminui. Vemos, então, aspectos muito semelhantes aos destacados anteriormente
com base em Corso a respeito do lobisomem.
Segundo Silva, as sucessivas invasões bárbaras penetraram fundo na psique dos
europeus, gerando um estado de profundo temor do estrangeiro nômade, ou seja, daqueles que
não pertenciam a um lugar fixo e integrado em uma comunidade. Portanto, essa questão
também contribuiu para o desenvolvimento da imagem do lobisomem, pois o fato de o
estrangeiro, muitas vezes apenas por não ser cristão, recusar-se a inclinar-se diante da cruz,
era algo que para os olhos do camponês cristianizado era considerado sinal de pacto com o
diabo. Cirlot (1984, p.345), na sua definição de lobisomem, descreve uma relação entre este e
o diabo e diz que o primeiro, "segundo a lenda, [é um] homem ao qual o diabo cobre com pele
de lobo e obriga a vagar pelos campos, uivando errante".
2.1.4 Da Licantropia à Vovozinha
Retornando ao assunto da licantropia, Silva é um pouco mais ousado e descreve uma
proposta de licantropia para a avó de Chapeuzinho. Segundo ele, se nos atermos aos
elementos folclóricos contidos na versão de Perrault e dos irmãos Grimm, poderíamos fazer a
seguinte questão: "Por que uma senhora idosa e doente como a avó de Chapeuzinho Vermelho
estaria morando em uma casa distante, no meio de uma floresta, e cercada de lobos? A
resposta talvez seja: porque ela também é um lobo" (2004, p.3). Essa proposta de que a avó
seja um lobo evidencia-se, segundo o autor, devido à doença da avó mencionada em ambas as
versões.
52
Outro fator que sustenta a hipótese de licantropia da avó é o local de sua moradia, ou
seja, a floresta. Segundo o autor, durante a Idade Média e nos séculos seguintes, considerando
o preconceito social contra qualquer um que decidisse pela vida na floresta, pode-se propor
que o modo de vida da personagem é algo derivado de uma condição física que a
impossibilitaria de manter convívio com outras pessoas. Este era o mesmo destino reservado
aos leprosos, ao loucos e demais marginalizados que eram isolados da sociedade:
Talvez a principal situação que liga a vovozinha ao lobisomem transcorra
quando Chapeuzinho Vermelho chega ao seu destino e encontra o lobo na cama da
avó, fazendo-se passar por ela. [...]. Embora em todas as versões fique claro que o
lobo mata e devora a avó, a simulação que o lobo faz para se passar pela senhora
cria uma justaposição dos personagens que possivelmente estaria presente em
alguma narrativa oral de um tempo em que o lobo e a avó eram um único ser
(SILVA, 2004, p.4).
2.2 ENFIM, O LOBO MAU
Diante dessa difusão, o lobisomem não respeitou fronteiras e permaneceu até os dias
atuais, é claro que com menos força. É preciso considerar que os mitos atravessam os tempos,
mas trocam de roupa. Cada geração dá o seu colorido, recicla e introduz algo da ordem do
novo. Por isso, o mito do lobisomem foi dando espaço para um outro personagem muito
conhecido e muito temido que entra no universo infantil: o lobo mau. Este é proveniente da
Europa. No Brasil, os lobos são raros e não muito sanguinários. O lobo-guará é arisco, tímido,
possui uma aparência suave que não mete medo em ninguém.
Este monstro habita as mais diversas histórias infantis e cantigas de roda. Vive no
imaginário das crianças e é o herdeiro dos monstros que suscitam medo nas cantigas de ninar.
Costuma habitar nas florestas ou em locais afastados do olhar dos pais e ataca inclusive
durante o dia:
É um lobo bem peculiar, anda em duas patas, fala e tem porte humano.
Como é muito covarde, está sempre espreitando as crianças e, dos adultos, quer
distância. Não ataca diretamente, parece sempre querer usar de sua lábia para
enganar, chega de mansinho, finge-se de bom e depois dá o bote. Possui uma boca
enorme e cheia de dentes, mas, para a sorte das vítimas, engole-as por inteiro, razão
pela qual, com a chegada do socorro, a criança é resgatada intacta da barriga do
monstro (CORSO, 2004, p.119).
Mas por que o lobo foi eleito para evocar o medo? Corso (2004) aponta dois
aspectos. Um deles seria pelo seu aspecto gregário e sanguinário, de modo que este evoca o
53
lado ruim do homem. O outro aspecto é a sua condição de canídeo, afinal é parente de um
bicho muito presente na vida doméstica: o cão. "[...] ambos partilham a mesma carga
genética, conforme a raça, quase a mesma aparência, e podem cruzar entre si" (CORSO e
CORSO, 2006, p.59). Nesse sentido, Corso (2004, p.120) afirma que essa condição é boa para
suportar a metáfora daquilo que é tão familiar, mas pode se tornar tão estranho, a mesma
forma podendo ser protetora e ameaçadora. Dá-se o mesmo no sentimento das crianças com
relação aos adultos, ou seja, a criança deve aprender que existem os bons e os maus, os que
cuidam e os que devoram:
Assim, mesmo na ambiência da floresta, como no caso da história de
Chapeuzinho Vermelho, acabamos encontrando um medo bem doméstico, o Lobomau está mais perto do que pensamos. Pensá-lo como uma das faces do pai é certo,
mas incorre num problema: como entender este entrar e sair vivo da barriga do lobo?
Afinal, é propriedade materna a fantasia de poder nos engolir e tirar da barriga.
Frente a ameaças que a criança não dá conta, ela usa fantasias arcaicas. Confrontada
ao enigma do que o outro quer dela, pensa em ser devorada, engolfada neste ser
maior, e estas fantasias podem ser usadas para os dois sexos. Usa recursos de
fantasmas orais para dar conta de algo novo: o lobo geralmente é usado para dar
conta de fantasias de sedução de crianças por adultos (CORSO, 2004, p.120).
Como o cão se presta para encarnar a fera que por vezes necessitamos invocar, o
lobo é, em definitivo, essa versão selvagem do perigo doméstico, uma prova de que o papai
bonzinho que se encontra em casa pode tornar-se uma figura ameaçadora e temível.
O lobo pode ser identificado a um dos componentes do casal parental e vir a fazer
parte das fantasias da criança. Assim, "[...] por um bom tempo o lobo pode ser a mãe
devoradora. Depois poderá ser o pai rival com quem medir forças. Depois um homem
apresentado animalescamente numa erótica longe do olhar da mãe. Depois um homem
simplesmente [...]." (MENGARELLI, 1998, p.69). Por isso, o lobo uma vez que entrou na
história de cada um, tem a particularidade de ser o lobo de cada um. E é exatamente nesse
sentido, que os contos já especificados anteriormente podem nos ajudar nesse momento, pois
embora o lobo mau esteja presente nos três contos e seja sempre o mesmo, em cada um deles,
deixa transparecer aspectos diferentes e que dizem de momentos também diferenciados pelos
quais a criança passa no seu percurso de constituição psíquica.
54
2.3 NA TERRA DAS FADAS
2.3.1 O Medo de ser Devorado
O Lobo e os Sete Cabritinhos é uma história muito conhecida, compilada pelos
Irmãos Grimm. A história, de acordo com Corso e Corso, e de forma resumida, é a seguinte,
era uma vez uma velha cabra que tinha sete cabritinhos e os amava como as mães
amam os filhos. Certo dia, ela teve de ir à floresta em busca de alimento e
recomendou aos sete cabritinhos: 'Tenho de ir à floresta, meus queridinhos, e vocês
devem tomar muito cuidado com o lobo, que é muito mau e muito perigoso. Se ele
entrar aqui em casa, devorará vocês todos, inteirinhos, da cabeça aos pés. Ele muitas
vezes se disfarça, mas é fácil reconhecê-lo logo, por sua voz áspera e seus pés muito
pretos'.
Disfarçado, o lobo conseguiu devorar todos os cabritinhos, menos o
menorzinho que se escondeu bem e contou para a mãe o acontecido quando ela
voltou. Eles encontraram o monstro dormindo de barriga cheia e, de forma similar
ao final de Chapeuzinho Vermelho [...], abriram a barriga do lobo com uma tesoura,
salvaram os filhotes devorados e repuseram o volume com pedras. O lobo se
acordou com sede, caminhou até o poço, mas, como o peso das pedras o derrubou lá
dentro, acabou morrendo afogado (2006, p.46) [grifo dos autores].
Nesse sentido, o conto traz a dimensão do medo de ser comido, devorado, que está
atrelado à fantasia de incorporação. Graças ao lobo, a criança poderá simbolizar o medo de
desaparecer dentro do corpo da mãe, como os alimentos desaparecem dentro da boca, indo
morar em sua barriga.
Além disso, conforme Corso e Corso, o conto diz de algo referente à separação.
Depois que uma floresta separa mãe e filho através do lobo, restam dois tipos de evocações:
as idealizadas (saudade de um mundo comestível) e as aterrorizantes. A figura primordial
assustadora é a mãe e, embora pareça estranho, pode muito bem ser representada pelo lobo.
"O monstro não precisa ser uma figura feminina, porque ele não é a mãe, ele apenas deve ter
um apetite insaciável e feroz [...]" (CORSO e CORSO, 2006, p.46). Portanto, a bocarra
escancarada do lobo representa a ameaça de ser visto apenas como algo que precisa ser
incorporado o mais rápido possível.
Entretanto, é interessante notar o que os autores ressaltam: "esses contos tão
assustadores, em verdade, têm um aspecto extremamente tranqüilizador" (2006, p.46). Isso
porque como as historinhas são contadas desde a perspectiva das crianças que já tiveram suas
rudimentares, mas bem sucedidas, experiências de separação, não há mais perda da
integridade e ninguém se dissolve nas entranhas do lobo.
55
Uma palavra sobre as pedras na barriga do lobo faz-se necessária. Segundo Corso e
Corso, preencher o lobo é como ter a certeza de que sua fome será aplacada e nada mais
caberá ali. No entanto, os autores apontam para outra idéia que aparece: uma "gravidez
masculina". No final, a mãe e os cabritinhos e, no caso de Chapeuzinho Vermelho, o caçador,
recosturam a barriga do lobo com pedras dentro, e ele morre disso. Porém, essa gravidez não
funciona, pedra é algo inanimado e morto:
Quando o lobo sofre uma 'cesariana', o que sai é algo que já foi nascido
antes, ele mesmo é estéril. A barriga de pedras já é uma tentativa da criança de
diferenciar os sexos, entre as mulheres que carregam os bebês em seu ventre e os
homens que não o fazem. Inicialmente, ela parte da premissa de que todos são iguais
e podem fazer as mesmas coisas, logo gestar e parir seriam atributos comuns a
ambos os sexos. A realidade liquida essa hipótese e talvez a gestação pétrea seja
uma boa ilustração dessa infertilidade (2006, p.47).
2.3.2 O que quer Chapeuzinho?
Em se tratando de Chapeuzinho Vermelho, também há um encontro com o lobo,
sendo que nesse conto o tema central é a curiosidade sexual. Ao longo dos últimos séculos,
desde Perrault, que a compilou do folclore no século XVII, essa história foi sendo cada vez
mais suavizada. Segundo Corso e Corso (2006, p51), sua primeira versão francesa em papel
(1697) não contém um final feliz para a menina: depois do clássico diálogo, ela é
definitivamente engolida. Ao final da história são descritos alguns versinhos que ensinam que
quem transgride as regras se expõe ao perigo, é punido e fim de história.
Mais tarde, cento e sessenta anos depois, em 1857, os irmãos Grimm escreveram
uma continuação da história, na qual, após Chapeuzinho ter sido devorada, um lenhador que
passava em frente à casa da avó da menina escutou o ronco do lobo que dormia de barriga
cheia. Ele entrou e cortou a barriga do lobo tirando a menina e a avó vivas. Depois, assim
como em O Lobo e os Sete Cabritinhos, a barriga do lobo é preenchida de pedra e costurada.
O lobo acorda com sede, vai tomar água e devido ao peso da barriga cai dentro do poço e
morre.
Apesar de os finais das histórias serem bem diferentes, os inícios são muito similares.
Há uma menina adorável, conhecida de todos pelo capuz vermelho que nunca tirava e que
fora feito pela avó. Um dia, sua mãe lhe pede que leve uns bolinhos e vinho (ou manteiga)
para sua avó que vivia na floresta e que estava muito doente. Na versão dos Grimm, essa
ordem é acompanhada de um pequeno sermão que dizia para Chapeuzinho não olhar para trás
56
enquanto estivesse na floresta e não desviar-se do caminho. Além disso, a mãe alertava a
menina para ter cuidado com a garrafa de vinho para que esta não fosse quebrada.
Chapeuzinho sai disposta a obedecer e pegar o caminho que a mãe lhe indicou. No entanto, no
meio do caminho encontra-se com o lobo. As várias versões frisam que ela não teve medo do
lobo, pois não sabia do perigo que corria com ele. Na primeira conversa com o lobo, este,
cheio de gentilezas, toma a iniciativa e pergunta para onde Chapeuzinho está indo. A menina
prontamente conta ao lobo sua missão, seu trajeto e a localização da casa da vovozinha.
O animal elabora, então, um plano para devorar as duas criaturas. Mas para isso
precisa de tempo. Então faz Chapeuzinho ver como o sol estava bonito e quantas flores havia
para ser colhidas pelo caminho. A menina entusiasmada com a proposta, se distrai com as
flores e borboletas, enquanto o lobo consegue chegar antes dela na casa da avó. Na versão de
Perrault, o lobo indica o caminho mais longo para a menina e ele vai pelo mais curto. Seja
como for, em todas as versões, Chapeuzinho não cumpre seu trajeto de uma forma direta,
transgredindo as regras. O lobo, por sua vez, chega antes da menina na casa da avó, apresentase como sendo Chapeuzinho e, sem maiores delongas, devora a velha, veste suas roupas de
dormir e deita na cama à espera de Chapeuzinho.
Chapeuzinho chega depois e aí ocorre o clássico segundo diálogo:
- Para que esses olhos tão grandes?
- Para te ver melhor, minha netinha.
- Para que estas orelhas tão grandes?
- Para te escutar melhor, minha netinha.
- E para que esta boca tão grande?
- Para te comer melhor, minha netinha!
Esse diálogo é sempre o "clímax", como dizem Corso e Corso (2006, p.52), da
narrativa. Por mais variações que a história possa produzir, essas falas são como um núcleo
permanente.
Corso e Corso citam uma história chamada A História da Avó, disponibilizada em
uma edição sobre os contos de fadas de Tatar. Essa história foi compilada pelas narrativas
orais, na França, em 1885 e tem as características das narrativas folclóricas, não originalmente
destinadas às crianças. Por isso, não há nenhuma mensagem pedagógica e nem a preocupação
de suprimir os elementos grotescos. Essa história, segundo a leitura de Corso e Corso, está
fora de um padrão habitual. O começo é igual, porém um pouco mais sucinto, não possui o
sermão materno. O diálogo com o lobo é breve, este também chega primeiro na casa da avó, a
57
devora, mas não por inteiro - deixa um pedaço de carne e uma garrafa de sangue para depois.
Quando Chapeuzinho chega, ele pede para deixar a cesta na despensa e a convida para que
coma a carne e beba o vinho (sangue). No fundo da cena, um gato falante comenta que é
preciso ser uma porca para comer da carne da avó e beber o seu sangue. Então, o lobo a
convida para irem para a cama. Diante disso, a menina ia tirando sua roupa e pedindo ao lobo
o que fazer com cada peça tirada. Este respondia que era para joga-las ao fogo, pois não mais
iria utiliza-las.
Depois de tirada toda a roupa, e acontecer o diálogo sobre as partes grandes e
peludas do corpo do Lobo, a menina tem uma súbita vontade de urinar e pede para aliviar-se
lá fora, ao que o lobo responde que faça na cama mesmo. A menina insiste, e ele a deixa ir,
mas com um cordão amarrado no pé. A menina amarra o cordão numa árvore e dispara tão
rápido que o lobo não a alcança.
Desde essa narrativa da tradição oral, que é considerada a mais antiga, passando
pelas histórias de Perrault e dos irmãos Grimm - versões contadas até hoje - os aspectos
eróticos (em que Chapeuzinho se despe e deita na cama com o lobo) e canibalísticos (quando,
antes de comer a menina, o lobo lhe serve a carne e o sangue da avó) foram sendo suprimidos,
suavizados ou até mesmo substituídos.
Apesar de tantas modificações ocorridas, ficou preservada a existência de um
diálogo, em que uma vítima faz perguntas, parecendo desconfiada, mas se entrega
ingenuamente à bocarra do lobo. No entanto, existem várias maneiras de contar essa história;
em algumas, a menina é devorada pelo lobo; noutras, ela é salva; por vezes precisa de ajuda;
por outras foge sozinha. Sendo assim, como entender que reconheçamos todas como
Chapeuzinho Vermelho? Na verdade, como em outros contos, todas as versões são válidas,
pois todas elas mantêm o essencial e no caso das versões de Chapeuzinho Vermelho, todas
elas preservam a perda da inocência:
Chapeuzinho é uma criança com a ingenuidade de quem não sabe - e
ainda não suporta saber - sobre o sexo, mas sua intuição lhe diz que há algo a mais
que anima os seres humanos. Embora ela leve doces para vovozinha, parecendo que
na vida comer é a maior satisfação e a solução para todos os males (vovó ficará boa
da doença), ela encontra no caminho outros encantos: a lábia lupina, as borboletas e
o prazer de brincar. Ela representa a transição da aparente inocência infantil para o
conhecimento da existência das práticas sexuais adultas, que surgem na vida da
criança às vezes através de uma sedução imaginada ou, em casos graves e
traumáticos, vivida (CORSO e CORSO, 2006, p.53).
58
O apelo dessa história é muito forte, pois todos nós um dia também fomos
Chapeuzinho Vermelho, ou seja, "[...] descobrimos que as demandas sexuais existem e
passamos a investigar no que nos dizem respeito. Curiosos, mas desesperados, corremos o
risco de ser convocados ao papel de objeto de um desejo erótico antes de estarmos sequer
prontos para tal" (CORSO e CORSO, 2006, p.53).
Mas o que podemos pensar em relação a esse estranho - o lobo - que atrai
Chapeuzinho? Ora, não podemos ser ingênuos e acreditarmos que a menina foi atraída por
pura ingenuidade. Chapeuzinho foi atraída pelo lobo, ou melhor, pelo estranho, pelo mesmo
motivo que a criança fica atraída pelo sexo, que, por sua vez, também lhe é estranho e muito
tentador. Chapeuzinho vem, então, advertir
quanto aos riscos que as crianças correm graças à sua inocência e à maldade de
alguns lobos perversos, mas também ilustra o quanto elas podem vir a se expor em
função da curiosidade e dos desejos eróticos confusos, mas imperiosos, que guardam
em seu interior (CORSO e CORSO, 2006, p.54).
Assim, fica difícil interpretarmos a atitude de Chapeuzinho de atribuir confiança para
um estranho como pura inocência. Não nos esqueçamos de que até mesmo nas mais
comportadas versões que chegaram até os dias de hoje, percebemos sutilmente um colorido
erótico no diálogo entre o lobo e sua presa de forma que não se restringe apenas ao aspecto
devorador.
Chapeuzinho Vermelho é uma história que até pode se incumbir das seqüelas
psíquicas deixadas pelo desmame e ajudar a organizar as fobias necessárias, mas tem como
ponto central a evocação de uma corrente erótica que perpassa a relação da criança com os
adultos. Na verdade, diante desse contexto sensual do amor familiar, a criança é tão ingênua
quanto Chapeuzinho, mas também tão ousada quanto ela; assim pensam Corso e Corso. A
criança até pode não saber qual jogo está jogando, mas o seu interesse em participar é
inevitável. É o que acontece com Chapeuzinho. Ela percebe que a avó está estranha mas entra
no jogo de palavras do lobo e por ele é devorada. Corso e Corso falam brilhantemente sobre
isso e dizem que, sem destacar o jogo de palavras de uma conversa sedutora e plena de
preliminares tendo um caráter erótico, seria incompreensível pensar por que o lobo não comeu
Chapeuzinho com a mesma objetividade que devorou a vovozinha. Ora, se Chapeuzinho
representasse apenas um bocado de carne tenra, não haveria motivos para que ele e a menina
travassem um duelo verbal de caráter sedutor e erótico.
59
Em A História da Avó, é indiscutível o caráter erótico e sedutor que aparece de
forma explícita no conto. Dessa forma, é claro que Chapeuzinho ficou excitada com a
conversa sedutora e com o strip-tease (momento em que o lobo pede que Chapeuzinho tire
sua roupa e a jogue no fogo) e que a repentina vontade de fazer xixi está associada a esse
prazer causado pelos fatos já mencionados. Embora as versões modernas não tenham essas
partes picantes, restaram o diálogo sedutor e o fato de que o lobo recebe a menina na cama.
E esse lobo que está presente em todo o momento na trama, o que mais podemos
pensar sobre ele? Nas palavras de Corso e Corso, "seria pouco pensar que do pai só se espera
o papel do lobo no sentido de colocar as coisas no seu lugar e impor as leis. Sabemos que ele
também tem seus atrativos, principalmente para as Chapeuzinhos Vermelhos que tem em
casa" (2006, p.54). Ao pai, cabe ser temível como o lobo, mas para a menina é importante
fantasiar que ele também a deseja e, para isso, ela usará de suas armas femininas de sedução
para obter a atenção do pai.
Corso e Corso pensam que o lobo pode ser considerado uma forma de simbolizar
aspectos do desejo paterno. Nesse momento, a criança está tentando decodificar a organização
sexual da vida adulta. Quer saber quem pode casar com quem e por que velhos e crianças
estão fora desse tema. Neste conto, existem três gerações de mulheres: a filha, a mãe e a avó e
o lobo interessa-se justamente por aquelas que não pode seduzir na vida real. O lobo-pai deve,
então, restringir-se às mulheres da sua geração, não tendo assuntos a tratar com crianças e
nem com quem tem idade para ser sua mãe. Então, nada mais natural, pelo fato de
Chapeuzinho e a avó estarem de fora do comércio sexual, que o lobo as devore, pois, senão,
todas as mulheres da família seriam suas.
Embora o conto apresente aspectos eróticos insistentes e latentes durante todo o seu
percurso, não deixa de lado os velhos conhecidos: a boca e o prazer oral. Ao mesmo tempo
em que o conto coloca em jogo o registro oral, tão cômodo para a criança, como se daí
proviesse a única forma de prazer possível, também coloca em jogo certas percepções novas
que no meio do caminho são reveladas e que não cabem na cesta junto com as guloseimas.
Ora, não é difícil percebermos que Chapeuzinho está cativada por algo que não compreende,
mas sente:
Chapeuzinho está interessada em saber no que ele [o lobo] está
interessado, poderíamos dizer que é o desejo dele que a intriga. Mas gostaríamos de
dizer que, para a menina, isso é mais uma curiosidade, digamos teórica, que a
pretensão de chegar a algum tipo de envolvimento erótico com seu sedutor (CORSO
e CORSO, 2006, p.55).
60
O conto de Chapeuzinho Vermelho tem e trabalha com o tema central da sexualidade
infantil dentro de um território possível às crianças, pois nesse momento de estruturação, a
criança sente que tem, está curiosa com o seu significado, mas ainda não está pronta para
explicar esse conhecimento. Nesse sentido é que o conto pode servir como um instrumento
utilizado pela criança para dar um significado para aquilo que lhe é estranho, mas que ao
mesmo tempo lhe é familiar.
2.3.3 Quem Pensou em Devorar, Acabou Sendo Devorado
Em Os Três Porquinhos, conto de tradição inglesa, há também um encontro dos
personagens com o lobo. No entanto, o tema central aqui é o risco de ser devorado. Neste
conto,
chega o dia em que os três irmãos porquinhos estão na idade de sair de casa, pois sua
mãe já não tem meios de sustentá-los. Partem então separados, seguindo caminhos
diferentes. A primeira providência de cada um é construir uma casa para morar, o
primeiro faz a sua rapidamente com um pouco de palha que recebe de um homem no
caminho. O segundo pede e ganha, também de um homem que encontra, um pouco
de gravetos e com isso faz a sua casa, levemente mais robusta que a do irmão
anterior. Por fim, o terceiro porquinho dispensa mais tempo para fazer sua casa, pois
ela é feita da maneira mais sólida possível, é construída de tijolos que também
ganhou de um desconhecido no caminho. Todos recebem, portanto, alguma ajuda
(um homem que lhes fornece o material necessário), o que varia entre eles é a
disponibilidade para o trabalho (CORSO e CORSO, 2006, p.56).
Eis o momento em que o lobo entra em cena:
O primeiro entra em sua casa e se esconde, mas o lobo com facilidade
sopra a casa pelos ares e devora o porquinho. O segundo dos irmãos tem o mesmo
destino, o lobo simplesmente tem de soprar um pouco mais. É apenas no terceiro
porquinho que a história toma outro rumo. O lobo sopra mas não derruba a casa. Já
que suas ameaças de nada valem - 'vou assoprar, bufar, e sua casa vou derrubar' -,
procura então outra maneira.
Usando a mesma lábia que surtiu tão bom efeito com Chapeuzinho
Vermelho, ele tenta seduzir o porquinho com indicações de onde existem apetitosas
iguarias para ele. O porquinho escuta e vai buscar a comida, mas sempre se
antecipando ao lobo, que não consegue nada com suas armadilhas, a não ser perder
maças e nabos para o espertinho. Por fim, o lobo apela para uma medida extrema,
tenta entrar pela chaminé da casa do porquinho; dessa vez, este também estava
preparado, e o lobo tem o seu fim dentro de uma panela de água fervente. Nessa
história inglesa, o porquinho come ensopado de lobo no jantar, ou seja, quem veio
para comer acabou devorado (CORSO e CORSO, 2006, p.56)11.
11
Nas versões mais antigas, os dois primeiros porquinhos são devorados, mas nas versões contemporâneas todos
se salvam e, a cada investida do lobo, a casa é derrubada e eles correm para se abrigar na casa do irmão.
61
Os Três Porquinhos possuem a simplicidade que as crianças bem pequenas
apreciam, sem muitos personagens, os bons de um lado e os ruins do outro. Porém, embora
simples, a trama toca fundo as crianças, pois mexe com algo, que num dado momento, toda
criança depara, ou seja, um dia terá de sair de casa e proteger-se sozinha.
Podemos perceber que, tanto o conto de Chapeuzinho Vermelho, como Os Três
Porquinhos, trazem uma decodificação oral - dividida entre os que comem e os que são
comidos - situação esta que ainda persiste por um bom tempo depois do desmame. Diante
disso, Corso e Corso fazem uma relação muito interessante entre o porquinho e a criança,
sendo o bichinho pensado como três em um. O trio daria espaço para a evolução do
personagem, representando sucessivos momentos. Inicialmente desprotegidos, tanto o
porquinho quanto a criança aprendem a criar empecilhos que os separam da mãe, podendo
diferenciar a sua vontade e a dela. A partir daí, sucessivas paredes, e cada vez mais bem
construídas, demarcarão os territórios entre criança e adultos. A separação da criança e do
adulto é um processo progressivo e trabalhoso e, por isso, será marcada por diferentes
estratégias de defesas como recusar-se a comer e negar-se a fazer aquilo que lhe é solicitado.
Mas o que o lobo tem a ver com isso tudo? Ou melhor seria pedir o que a boca do
lobo tem a ver com isso tudo? Então vamos lá: "A arma do lobo é sempre a boca, afinal, o
sopro é uma força que provém dali e, de certa maneira, também a lábia em querer enganar
vem do mesmo lugar" (CORSO e CORSO, 2006, p.57). É importante percebermos que para a
criança, a boca é algo extremamente importante,
a boca cumpre múltiplas funções quando se é muito pequeno, além de fonte de
saciedade, prazer e conhecimento, ela é uma espécie de portal. Os trânsitos que
ainda restam entre o bebê e sua mãe, uma vez que a comunicação umbilical foi
cortada, terão passagem prioritária pela boca. O olhar é uma fonte muito importante
de vínculo. Em função do que vê, o bebê pode se tranqüilizar - 'que bom, mamãe
chegou' - ou inquietar-se - 'Perigo! Perigo! Ela pegou a bolsa, ela vai sair!'. Mas só
aquilo que se engole é factualmente passível de ser possuído e controlado (CORSO e
CORSO, 2006, p.57).
Embora a criança ainda não compreenda conscientemente que sua primeira morada
foi o ventre materno, ela procede como se soubesse, afirmam os autores Corso e Corso. Por
sua vez, não parece nada estranho que ela pense que possa entrar e sair do outro, já que até
pouco tempo se alimentava diretamente do corpo da mãe. Mas eis que o lobo vem para
lembrar que essa história não é tão simples assim.
62
Portanto, o conto Os Três Porquinhos dá conta da "[...] necessidade de proteção da
criança diante de perigos que ela ainda não decodifica bem, mas desconfia que deve aprender
a evitar" (CORSO e CORSO, 2006, p.57). Então, vence o porquinho que melhor soube prever
e se proteger construindo a casinha de tijolos.
Nas palavras de Corso e Corso, esse é um tempo de uma subjetividade menos
complexa, uma época em que é conveniente a invocação de um intermediário entre mãe e
criança, e este é precisamente quem? O lobo, é claro. É nesse tempo também que sentir medo
dá prazer à criança. Todos sabemos o quanto é divertido, nessa fase da vida, brincar de se
esconder atrás de uma cortina ou embaixo de uma coberta e, quando descobertas, as crianças
saem nervosas e ofegantes como porquinhos gritões. Esse momento de espera equivale à
expectativa que acompanha o diálogo com o lobo, e o objetivo da criança com essa
brincadeira é sentir medo, assim como o porquinho que não se contenta em fugir do lobo e
provoca o seu perseguidor como um toureiro: "Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo
mau?", procedendo como uma criança que pede a repetição do conto, no incansável prazer de
ter medo, um recurso, aliás, que o próprio Freud (1905, p.125) mencionou como característico
das crianças na busca do prazer.
2.4 O SENHOR LOBO ENQUANTO OBJETO FÓBICO
Diante disso, é visto que sobre o Senhor Lobo ainda temos muito o que pensar. O
que amedronta e, ao mesmo tempo, fascina as crianças na figura do lobo é a capacidade que
este personagem tem de dar suporte para a criança elaborar os seus medos sem ter de
estruturar uma fobia (no sentido de patologia). Nesse sentido, podemos entender o lobo como
um objeto fóbico. Não há criança sem um objeto fóbico, ainda que este seja transitório,
[...] a maior parte das crianças elegerá alguma figura apavorante para seu uso
pessoal, conhecida pelos psicanalistas como objeto fóbico. Sua forma varia bastante,
mas a certeza é que o mundo ficará geograficamente mapeado conforme sua
presença ou ausência. Os objetos fóbicos mais comuns são aqueles fáceis de ser
encontrados no dia-a-dia e nos lugares freqüentados pelas crianças. Nenhuma delas
terá terror a pingüins... A não ser que more no Pólo Sul (CORSO e CORSO, 2006,
p. 58).
Assim, ao eleger um objeto fóbico, a criança estabelece um sistema de defesa e de
estruturação. Um exemplo bem claro disso seria o personagem Cascão da Turma da Mônica
que "[...] tem medo de algo muito específico e vive pendente de sua aparição. Mapeia o
63
mundo conforme a presença ou ausência do objeto de seu pavor, no caso, a água" (CORSO e
CORSO, 2006, p.205).
Quando a criança o estabelece, ela se prepara para circular num espaço fora do lar,
pois é preciso sair de casa para encontrar aquilo que lhe causa medo. "Se a criança não
soubesse que há um lobo adulto rondando lá fora, não teria tranqüilidade para ficar oculta sob
o tecido, teria medo de nunca sair de lá. É o lobo que a fará sair de seu esconderijo" (CORSO
e CORSO, 2006, p.58).
Temos claro, então, que para a criança o lobo se estrutura como um objeto fóbico que
possui diferentes significados e, por isso, é metafórico. Nesse sentido, Corso e Corso (2006,
p.180) nos auxiliam à medida que tomamos deles a seguinte idéia: ao fornecermos um objeto
fóbico, alguém a quem temer, fazemos com que a criança dê um passo extremamente útil na
direção da diminuição do sofrimento. Transformamos a angústia em fobia, e desse modo, a
criança sabe que algo a ameaça e que, portanto, pode se proteger contra isso que lhe é
ameaçador, sem precisar desenvolver qualquer patologia. "Em resumo, a relação dual ganha
um terceiro elemento, que permite pôr limites na perigosa onipotência da mãe. O
fornecimento de um objeto fóbico é um encaixe numa subjetividade simples que precisa de
ajuda" (p.180).
Devemos ressaltar aqui uma contribuição muito importante de Freud. Em seu texto
Totem e Tabu (1913 [1912-1913], p.132-3), ele observa que a fobia de animais é uma forma
muito comum, e talvez a mais antiga, das manifestações neuróticas entre as crianças, as quais
elegem como objetos fóbicos tanto animais de seu meio (cães, gatos, cavalos, pássaros,
borboletas, besouros...) quanto animais selvagens, com os quais só têm contato através de
livros de figuras e contos de fadas. Através do estudo de seus casos clínicos, Freud conclui
que o animal eleito como objeto fóbico, assim como o animal totêmico para as sociedades que
cultuam o totem, é substituto da função paterna. O medo da figura paterna apareceria, então,
deslocado na figura do animal, seja este presente na realidade, no mito ou na literatura. É
importante ressaltar que esse pai ameaçador não surge por nada, mas para trazer a ameaça da
castração, a qual é necessária para que a criança abra mão do seu desejo sexual incestuoso.
Lacan considerava a fobia como uma "plataforma giratória" entre as diferentes
estruturas. Sua ocorrência, considerada bastante comum num determinado período da
infância, poderia ser compreendida como um momento anterior à definição da estrutura do
pequeno sujeito. Para Lacan (1901-1981), o objeto fóbico possui um estatuto um tanto mais
complicado que aquele atribuído por Freud. Para ele, tratar-se-ia menos de uma metáfora do
64
pai, de um temor do pai castrador deslocado para um animal, na tentativa de tornar esse pai
mais ameaçador do que ele é de fato, um apelo ao pai simbólico no momento em que este
começa a dar sinal de sua exaustão. Portanto,
sua teoria da fobia como posto avançado contra a angústia nos ajuda a compreender
os medos infantis como a defesa erigida contra algo muito mais ameaçador para o
sujeito, essa angústia avassaladora na qual ele teme mergulhar. É compreensível
então que as crianças se entretenham com histórias que dão medo, ou que façam
suas fobias, nas quais elas criam o medo, como diz Lacan, de um tigre de papel, para
defender-se da angústia (TEIXEIRA, 1998, p.25).
A partir dessa premissa de Lacan, podemos entender que o objeto fóbico serviria
como suporte a essa angústia - angústia de castração - a qual a criança enfrenta, dando assim
um encaminhamento para essa angústia.
Até aqui, podemos entender que as considerações feitas acerca da fobia e do objeto
fóbico são entendidas enquanto estruturantes para a criança e não enquanto patologias. Nesse
mesmo sentido caminha a questão do medo que está presente nos momentos em que a criança
desenvolve uma fobia de algum objeto. Mas, segundo Garroni (S.d., p.1), "existe um limite
entre o que é o medo e os objetos e personagens que vão adquirindo o estatuto da fobia"12. No
entanto, a pergunta que todos nós fazemos é: onde está esse limite entre um e outro? No
convívio com crianças, presenciamos momentos em que ela apresenta sintomas ou
manifestações que, no decorrer do desenvolvimento, desaparecem. Porém, em algumas
crianças esses sintomas e/ou manifestações com o passar do tempo se tornam mais potentes e
constantes ao invés de desaparecerem. Isso é o que podemos chamar de um sintoma que
desencadeará uma patologia.
Gurfinkel (2003), introduzindo o tema da fobia, diz não ter outro caminho senão falar
sobre o medo e a angústia - já que estes são elementos principais dessa estrutura. Mas o que
gostaríamos de ressaltar aqui é que a autora também se refere - mesmo que nas entrelinhas - a
esse limite. Acerca disso, a autora afirma que, ao mesmo tempo em que essas emoções estão
presentes na fobia, também são encontradas na vida cotidiana. Pensando nesse sentido, a
autora aborda a questão do medo (que, como já ressaltamos, está presente tanto na fobia
quanto na vida cotidiana).
"O medo, em si mesmo, não é patológico: ele faz parte da vida emocional de
qualquer pessoa, e a acompanha em seu desenvolvimento [...]" (GURFINKEL, 2003, p.9).
12
"Existe un límite entre lo que es el miedo y los objetos y personajes que van adquiriendo el estatuto de fobia
(GARRONI, S.d., 1).
65
Como vimos, o medo, ao mesmo tempo em que pode ser evitado, também pode ser buscado.
É o que acontece na literatura, por exemplo:
O medo fez parte da vida de todos nós na infância. Quem não se lembra
de ter ficado paralisado, freqüentemente vítima de fantasias da própria imaginação?
Isso nos remete também à literatura infantil, na qual encontramos histórias que
contam como o protagonista enfrentou o medo, por meio de provações que lhe
foram propostas; belas metáforas das provações do dia-a-dia, tanto relativas a
aspectos da realidade quanto às questões da vida emocional (GURFINKEL, 2003,
p.10).
A literatura está repleta de bons exemplos, como já observamos ao longo deste texto
com os contos referidos, que trabalham e dão suporte tanto para o medo quanto para a
angústia. Mas a autora a pouco referida traz um recorte muito interessante e que condensa as
principais questões relativas à fobia. O recorte se refere a um conto de Maupassant, intitulado
"Medo". Nele, um personagem descreve suas aventuras:
'Um homem enérgico jamais sente medo diante de um perigo eminente.
Fica emocionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa. (...) O medo (e os
homens mais valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma sensação atroz, uma
espécie de dilaceramento da alma, tão-só, provoca em nós arrepios de angústia. Mas
isso não se dá quando alguém é corajoso, nem diante de um ataque, nem diante de
uma morte inevitável, nem diante de aspectos mais comuns do perigo: isso só se dá
em determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências misteriosas,
em face de perigos imprecisos. O verdadeiro medo é algo como uma reminiscência
dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em fantasmas e que
imagina ver espectros, à noite, deve sentir o medo, em todo o seu tremendo horror'
(MAUPASSANT apud GURFINKEL, 2003, p.10-1).
Esse recorte ilustra a relação do medo com as fantasias e a realidade, colocando o
verdadeiro medo ao lado do enfrentamento das fantasias ligadas ao terror de outrora, ou seja,
produtos de nossa imaginação. Além disso, descreve a emoção do medo e nos remete às
estranhas características dos objetos: escuro, insetos, animais...
A partir dessas considerações gerais, recorreremos à psicanálise para sustentarmos a
questão da fobia. Nesse sentido, nos encontramos com o Complexo de Édipo e a angústia da
castração. A passagem pelo Complexo de Édipo é um momento crucial em todo o sujeito,
sendo uma experiência que deixa marcas. Este é um conceito muito complexo, trabalhado
tanto por Freud quanto por Lacan, e aqui abordaremos aquilo que nos interessa para
pensarmos a fobia: a Metáfora Paterna. Segundo Garroni,
66
a Metáfora paterna é uma operação onde o desejo da mãe vem a ser substituído pelo
Nome do Pai, é o significante que opera a castração, é o significante da proibição
edípica, e do tabu do incesto. [...]. É um significante que posiciona o sujeito no
mundo simbólico. Esta operação acontece e o significante fálico se inscreve no
sujeito, a conseqüência dessa inscrição é que a criança deixa de ser o falo imaginário
da mãe - isso que a completa - e aceita sua castração (S.d., p.1) 13 [tradução nossa].
Em outras palavras, poderíamos dizer que a mãe precisa endereçar o seu desejo ao
pai - Metáfora Paterna - para que este seja sustentado no discurso da mãe. A partir disso, o pai
poderá se fazer valer e realizar uma interdição na relação tão perigosa e potente entre mãe e
filho. Por vezes, acontece que esse pai não é sustentado pelo discurso da mãe, e portanto,
fracassado. É em decorrência disso, que se dá a aparição da fobia.
Para Freud, segundo o que aponta Garroni, o Édipo é um momento em que o
questionamento acerca da diferenciação sexual é básica. Frente a isso, a criança realizará
investigações e elaborará respostas ao que Freud chamou de teorias sexuais infantis. Essas
teorias centradas em explicações sobre como se vem ao mundo, a diferenciação dos sexos
etc., de alguma maneira colaboram para acalmar a criança frente a angústia causada pela idéia
de castração. Essa é então, uma forma de responder ao enigma do sexo e uma forma
estruturante para o sujeito, a partir da qual ele se desliga do desejo materno e encontra de
alguma maneira a resposta que será ressignificada mais tarde na puberdade. Porém, algumas
crianças não conseguem se desprender do desejo da mãe e não obtém resposta alguma - já que
por trás do desejo da mãe se dá, de alguma forma, a resposta - pois nesse momento há uma
falha da função paterna. Então, a criança é invadida pela angústia, não encontra resposta e não
estrutura nenhum saber sobre as suas perguntas. É nesse momento que aparecem as
manifestações mais severas, e a fobia é uma delas.
Portanto, para a psicanálise, a fobia é uma solução que o sujeito implementa frente a
angústia. É uma solução significante que a criança encontra para dar conta daquilo em que a
função falhou. Portanto, a criança é invadida pela angústia, que é sempre remetida à angústia
da castração, e a uma falta de limite e organização do mundo simbólico. Dessa forma, entrará
em cena o objeto fóbico que elevará uma muralha significante traçando um limite à criança.
Assim, o objeto fóbico ocupará o lugar da função paterna:
13
La Metáfora paterna es una operación en la que este deseo de la madre viene a ser sustituido por el Nombre del
Padre, es el significante que opera la castración, es el significante de la prohibición edípica, el del tabú del
incesto. [...] Es un significante que posiciona al sujeto en el mundo simbólico. Esta operación se sucede y el
significante fálico se inscribe en el sujeto, la consecuencia de esta inscripción es que el niño deja de ser el falo
imaginario de la madre - eso que la completa- y acepta su castración (GARRONI, S.d., p.1).
67
Se deve recordar que a castração se faz efetiva no momento que a criança
percebe que o desejo materno se orienta à outra parte e ali é onde o Nome-do-Pai é
chamado a responder para situar o mistério do falo. Se este enigma não encontra
resposta, se ao redor da pergunta: Que quer a mãe de mim? ou Que deseja ela? não
se elabora nenhum tipo de saber, algo tem que vir a ocupar este lugar. Diante da
falha da função paterna, o sintoma fóbico vem tramitar por meio do significante, a
angústia da devoração materna. [...]. A fobia vem no lugar do pai que falha na
interposição simbólica entre mãe e criança (GARRONI, S.d., p.3-4)14 [tradução
nossa].
Mas afinal, qual é o papel do lobo mau dentro de todo esse contexto? Ora, o seu
papel é de castrador, privador do desejo incestuoso da criança. Porém, para que possamos
dizer algumas palavras sobre esse caráter do lobo, será necessário tangenciar o espinhoso
tema do Complexo de Castração.
Para finalizar, a autora supracitada marca que quando uma criança diz que está
sentindo medo é preciso escutá-la, determinar o porquê desse medo. Percebemos que, em
repetidas ocasiões, quando uma criança diz "tenho medo daquilo", "tenho medo do lobo", a
resposta é "não seja boba, se comporte como uma criança grande...". A resposta poderia ser:
"mas como ser uma criança grande?" Ademais: quem não tem medo do lobo?
2.5 A FACE OCULTA DO LOBO MAU
2.5.1 A Castração sob o Olhar de Freud
Freud, ao longo de sua teoria, trabalha em inúmeras ocasiões sobre o efeito
impressionante, as vezes traumático, da descoberta da castração da mãe pelas crianças
pequenas. A forte impressão provém de que elas partem da premissa de que todos possuem
um pênis, apenas o das meninas ainda não teria crescido. Somente num tempo posterior, a
criança dá-se conta da castração, idéia esta de difícil aceitação para ambos os sexos, pois a
menina culpará a mãe por não ter-lhe dado um pênis, ao passo que o menino, ao ver os
genitais da mãe, fica impressionado, pois pensa que pode perder seu pênis. No entanto, até
14
Se debe recordar que la castración se hace efectiva en el momento en el que el niño percibe que el deseo
materno se orienta a otra parte y allí es donde el Nombre-del-Padre es llamado a responder para situar el misterio
del falo. Si este enigma no encuentra respuesta, si alrededor de la pregunta: ¿Qué quiere mi madre de mí? o ¿Qué
desea ella? no se elabora ningún tipo de saber, algo tiene que venir a ocupar este lugar. Ante lo fallido de la
función paterna, el síntoma fóbico viene a tramitar por medio del significante, la angustia de la devoración
materna. [...]. La fobia viene en el lugar del padre que falla en la interposición simbólica entre la madre y el niño
(GARRONI, S.d., p.3-4).
68
esse momento, a criança encontra-se numa relação de completude com a mãe, ou seja, a
criança é o objeto de desejo da mãe. Porém, a criança precisa sair dessa posição, precisa
afastar-se dessa perigosa relação com a mãe e é nesse momento que se faz necessária a
interdição de um elemento terceiro que coloque limites nessa relação, ou seja, a interdição
realizada pela função paterna.
Essa interdição realizada, por aquele que cumpre a função paterna, também pode ser
considerada uma castração, pois este irá realizar um "corte" nessa relação dualista, privando a
criança de se colocar no lugar de objeto de desejo materno, e ao mesmo tempo, privando a
mãe de ter a criança nessa posição constantemente. É nesse momento que a criança se dá
conta de que o pai bonzinho que se encontra ao seu lado, por vezes não é tão bonzinho assim,
podendo se tornar uma figura temível e ameaçadora. Embora, devido a essa situação, a
criança tenha sentimentos ambivalentes, ou seja, ora ama esse pai ora o odeia, esse ódio
precisa ser recalcado. Por mais estranho que pareça, "odiar faz parte do conjunto confuso de
emoções que dedicamos a nosso pai, afinal ele é o rival pelo amor da mãe e por isso não vem
nada mal a idéia de eliminá-lo" (CORSO e CORSO, 2006, p.262). É nesse momento que um
objeto fóbico pode se fazer valer, pois através dele a criança pode materializar e endereçar o
seu ódio a esse objeto e encontrar no mesmo um suporte para a elaboração de suas travessias.
Ou então, para que serviria o nosso lobo mau?:
O importante é que o ser ameaçador, no caso o Lobo Mau, pode ser
materializado no estilo de um objeto fobígeno, corporificado, visível - imaginário,
portanto - e também descritível e sexualizável, ou seja, passível de inscrição na
ordem da linguagem como um significante e na divisão dos seres sexuados simbólico, portanto. Ele pode, dessa forma, ser identificado a um dos componentes
do casal parental e vir a fazer parte das fantasias ligadas à trama edípica
(TEIXEIRA, 1998, p.26).
Ou, ainda, uma outra visão de como entender o lobo, que entra como acréscimo a
esta, é a de que "parece contraditório, mas a figura do lobo abre espaço, ao mesmo tempo,
para representar o risco da incorporação ao corpo materno, assim como seu oposto, a
personificação de um objeto fóbico que lhe ajude a circular no mundo externo" (CORSO e
CORSO, 2006, p.58).
69
2.5.2 A Castração sob o Olhar de Dolto
Retornando à castração, podemos nos referir a Dolto, que também trabalhou esse
conceito, porém um pouco diferenciado de Freud. A noção de castração em Dolto não se
refere a uma ameaça ou uma fantasia de mutilação peniana como em Freud, mas de uma
privação, de um desmame real e simbólico, concernente a um objeto até então eroticamente
investido e que, um dia, tem de ser proibido. Assim, vão ocorrendo substituições de um objeto
para outro, de um modo de atividade e relações para um outro modo, mais elaborado.
Para Dolto, "[...] a palavra castração, em psicanálise, dá conta do processo, que se
realiza em um ser humano, quando outro ser humano lhe significa que a realização de seu
desejo, sob a forma que gostaria de lhe conceder, é proibida pela Lei15" (1992, p.62). Ou
ainda: "as castrações - no sentido psicanalítico - são experiências de participação simbólica.
Elas são um dizer ou um agir significante, irreversível e que faz Lei, que tem portanto, um
efeito operacional na realidade [...]" (1992, p.66).
Nessa perspectiva, a castração foi concebida por Dolto "como uma proibição que se
opõe a uma satisfação antes conhecida, mas que deve ser ultrapassada, deslocada" (NASIO,
1995, p.216). De acordo com Dolto, essa proibição provoca um efeito de choque, uma revolta
e uma inibição que podem ser suportadas pela criança, mediante a verbalização e a
constatação de que os adultos também estão submetidos a proibições. Dessa forma, há uma
proibição das pulsões que precisam ser recalcadas e deslocadas para outra via (fenômeno
chamado sublimação). Ou seja, a satisfação não mais está ligada diretamente com o corpo-acorpo ou com objetos incestuosos, de forma que o sujeito é obrigado e liberado para um modo
mais elaborado na busca da satisfação. Portanto, a Lei que se instaura não é uma Lei somente
repressiva, como afirma Dolto. "Trata-se de uma Lei que, mesmo que pareça
momentaneamente repressiva para o agir, é de fato, uma Lei promovedora do sujeito para seu
agir [...]" (DOLTO, 1992, p.63).
Nesse contexto, Dolto fala em castrações, ou seja, a criança passa por diferentes
proibições ao longo de seu desenvolvimento, que a levarão à condição de acesso a uma
autonomia do sujeito, ou seja, os frutos das castrações terão um "efeito humanizante"
(DOLTO, 1992, p.57) para o sujeito. Contudo, existem algumas maneiras de a castração
atualizar-se na historicidade da vivência da criança.
15
Em psicanálise utiliza-se letra maiúscula na palavra Lei, para diferenciá-la do termo utilizado na área jurídica.
70
2.5.2.1 Castração Umbilical: Olá Mundo Cruel
Comecemos por uma castração denominada por Dolto de castração umbilical.
Segundo a autora, o corte do cordão umbilical funciona como uma verdadeira castração. A
partir do momento em que o umbigo é castrado, o alimento passa a vir pela boca. Há, nesse
momento, uma partição física do corpo, com a perda de uma parte que até então era
extremamente essencial à sobrevivência. "Essa mudança fundamental (passagem de um meio
líquido para um meio aéreo), essa separação realizada pela secção do cordão no nível real, é
chamada de castração umbilical por Françoise Dolto" (NASIO, 1995, p.217) [grifo do autor].
Ela é, por assim dizer, concomitante ao nascimento e fundadora do ser humano:
A cesura umbilical origina o esquema corporal nos limites do invólucro
que é a pele, cortada da placenta e dos invólucros inclusos no útero e nele deixados.
A imagem do corpo, oriunda parcialmente nos ritmos, calor, sonoridade, percepções
fetais, se vê modificada pela variação brusca destas percepções; em particular, a
perda, para as pulsões passivas auditivas, da dupla batida do coração que a criança
ouvia in utero. Essa modificação é acompanhada do aparecimento da respiração
pulmonar e da ativação do peristaltismo do tubo digestivo pelos quais a criança
nascida emite o mecônio acumulado na vida fetal. A cicatriz umbilical e a perda da
placenta podem, dada a seqüência do destino humano, ser consideradas como uma
pré-figuração de todas as provas que denominaremos mais tarde de castrações [...]
(DOLTO, 1992, p.72) [grifo do autor].
De acordo com Dolto, no ventre materno, o que alimentava a criança era o sangue
placentário. Doravante, é no ar que sua vida encontra uma maneira de "enxerto". O corpo da
mãe já não mais é o filtro da luz, dos odores e das sensações. O bebê necessita de um objeto
parcial que não seja via umbilical, pois esta foi castrada. Portanto, a relação com o alimento
passa a ser pela boca e não mais pelo umbigo. A partir disso, dar-se-ão as aberturas, os
orifício do rosto - orelhas, nariz associadas às percepções óticas - abertos às comunicações
sutis centradas e convergentes para encontros possíveis e simbólicos do seu ser no mundo.
Com isso, dar-se-á também a nomeação da criança, estando esta preparada para entrar no
período oral. Dessa forma, essa primeira castração mutante servirá de matriz às modalidades
de castração posteriores.
2.5.2.2 Castração Oral: O Paraíso Perdido
A segunda das grandes renúncias impostas à criança é
71
[...] a privação imposta ao bebê daquilo que é para ele o canibalismo frente à sua
mãe: ou seja, o desmame, e também, o impedimento de consumir aquilo que seria
venenoso, mortífero para seu corpo, ou seja, a proibição de comer o que não é
alimentar, o que seria perigoso para a saúde ou a vida (DOLTO, 1992, p.79).
A castração oral pode ser entendida, conforme Dolto, como o desmame. O desejo do
seio é proibido, sendo a criança privada da mama. Para a criança, essa castração é a separação
de uma parte dela mesma, encontrada no corpo da mãe: o leite. De acordo com Dolto, o leite
está ao mesmo tempo na mãe e no lactente, pois é este que o faz subir até os seios maternos.
Diante disso, a autora afirma que há uma separação entre a criança e o objeto parcial - o seio,
assim como o primeiro alimento - o leite, separação esta que abre caminho para uma
alimentação variada e sólida:
Sua boca é privada do mamilo que ela julgava seu. Ela preenche esse
buraco [...], criado pela ausência do seio, colocando o polegar na boca. A castração
oral instaura uma proibição do corpo-a-corpo e dinamiza o desejo de falar (é preciso
castrar a língua do mamilo para que a criança comece a falar) e a descoberta de
novos meios de comunicação (NASIO, 1995, p.219).
Segundo Dolto, quando a criança é desmamada, ela é privada do alimento que
acreditava ser seu, ao mesmo tempo em que sua boca fica privada da relação táctil com o
mamilo e com o seio. Dessa forma, a mão recobre esse buraco aberto pela ausência do seio, o
que lhe proporciona o prazer que tinha com o alimento e com o seio num momento anterior e
também garante o prazer de assegurar que sua boca não foi embora.
Mas o desmame também implica que a mãe aceite o rompimento corpo-a-corpo e
possa se comunicar com a criança de outra maneira que não pelos cuidados corporais, mas
pelos gestos e palavras, que são linguagem. Nesse sentido, esse movimento é, também para a
mãe, uma castração:
Estamos acostumados a acompanhar o sofrimento com o qual as mães
prescindem da condição de fonte de alimento para seus filhos. Serão lágrimas de
tristeza, pela perda de um tipo de vínculo onde elas são insubstituíveis junto a seus
bebês, assim como palavras de culpa, pelo notório ganho em liberdade que o fim da
tarefa lhes proporcione. Todo esse discurso habitua-nos a compreender o desmame
como uma atitude basicamente materna, o que ofusca a enorme participação do bebê
nessa decisão (CORSO e CORSO, 2006, p.43).
É a partir dessa outra forma de comunicação que a mãe apresenta os objetos e o
estranho mundo à criança, guiando seus fonemas até que estes se apresentem perfeitos
segundo a linguagem materna. A partir do momento em que a mãe vai demonstrando a sua
72
satisfação em ver que o filho é capaz de comunicar-se com outros que não ela mesma, a
criança vai se dando conta do prazer que a mãe experimenta ao assistir a sua alegria de se
identificar com ela em suas trocas linguageiras com os outros. Portanto,
quando, [...], a separação do desmame é progressiva e o prazer parcial que liga a
boca ao seio é conduzido pela mãe a se distribuir o conhecimento sucessivo do tato
de outros objetos que a criança põe na boca, estes objetos nomeados por ela a
introduzem na linguagem, e assistimos, então, ao fato de que a criança se exercita,
quando está sozinha e acorda em seu berço, em se 'falar' para si mesma, inicialmente
em balbucios, mais tarde em modulações de sonoridade, como ouviu sua mãe fazer
com ela e com os outros (DOLTO, 1992, p.81).
Em suma, "o fruto da castração oral (desmame do corpo a corpo alimentador) é a
possibilidade, para a criança, de chegar a uma linguagem que não seja apenas compreensível
pela mãe: é o que vai lhe permitir não mais ser exclusivamente dependente dela" (DOLTO,
1992, p.57) [grifo do autor]. A partir daí a criança passa a comunicar-se com outras pessoas
também.
Como já vimos anteriormente, é a mãe que, a partir desse momento, atribui
significações aos objetos e, portanto, os nomeia. A mãe é, por assim dizer, um interlocutor
para a criança. E o mesmo acontece com o livro. Rassial (1998), em um artigo muito
interessante intitulado O Livro Antes da Leitura com Françoise Dolto, estabelece uma relação
entre a mãe, o livro e as castrações. Nesse sentido, observa que o livro, no campo simbólico,
sinaliza que entre díade mãe-filho, existe um terceiro, ou seja, existe o pai. E aí podemos
lembrar do conto de fada de Chapeuzinho Vermelho.
É a partir do desmame que a criança descobre a qualidade tátil de outros objetos que
coloca na boca. É interessante notar, segundo Rassial, que é nesse momento que a criança
entra em contato com o livro, percebe-o chupando, mordendo, colocando-o na boca,
descobrindo-o sob esse ângulo e por vezes comendo um pedaço do mesmo - experiência
necessária para que ela descubra que nem todos os objetos podem ser comidos e nem a
qualquer hora. Nesse momento, o adulto assume importância, pois é ele quem nomeará esse
livro à criança, estabelecendo um laço linguageiro, de forma que a criança entenda que este
objeto é um livro e que nele podem ser encontradas muitas coisas além das sensações táteis.
Na relação estabelecida entre a mãe e a criança no contar uma história, há uma
ligação privilegiada que não deixa de lembrar a época em que aconteceu a primeira separação
- castração umbilical. "Ela não só lhe dá de comer. Poder-se-ia dizer, por outro lado, que a
73
boca é a fonte das duas pulsões, oral e invocadora. A mãe satisfaz ao mesmo tempo a pulsão
oral e a voz, o que divide a pulsão e introduz a temporalidade" (RASSIAL, 1998, p.102).
Voltemos agora ao conceito de castração. Resumidamente, a castração, no olhar de
Dolto, é uma experiência de separação simbólica, onde há uma privação, um desmame real e
simbólico referente a um objeto até então eroticamente investido que causava satisfação e que
precisa ser proibido via Lei. Assim sendo, podemos pensar que os contos referidos
anteriormente, especialmente Os Três Porquinhos e O Lobo e os Sete Cabritinhos, se prestam
como sinalizadores e representantes de uma determinada "modalidade" de castração - a
castração oral.
Percebemos nesses contos que os pais se empenham em livrar-se dos filhos e da
tarefa de alimentá-los - "Certo dia, ela [a cabra] teve de ir à floresta em busca de alimento"
(CORSO e CORSO, 2006, p.46); "Chega o dia em que os três porquinhos estão na idade de
sair de casa, pois sua mãe já não tem meios de sustentá-los" (CORSO e CORSO, 2006, p.56).
Nesse sentido, vemos dois aspectos da castração: a separação e a oralidade.
O desmame - que nos contos referidos equivale ao sair de casa - é o primeiro
movimento de independência do bebê. Muitas vezes, é a própria criança que se desmama,
acusando inconscientemente a mãe de lhe ter negado o seio. Isso faz com que a independência
conquistada pelo filho seja vivida como abandono por parte dos pais, já que é muito difícil,
nesse momento, reconhecer-se enquanto autor da própria história. Isso porque, crescer implica
não somente ganhos, mas também perdas.
No entanto, essa independência da criança causa, não somente na mãe, mas também
nela, a sensação de ser "[...] incompleta com o que pode conseguir em termos de satisfação e
motivação através da boca e critica a provedora, como se a falha fosse dela. Quem sabe se o
produto fosse mais ao seu contento, o consumidor não ficaria tão insatisfeito..." (CORSO e
CORSO, 2006, p.44).
A primeira decodificação do mundo é realizada pela criança através da via oral:
chupar, lamber e sugar são formas privilegiadas de conhecimento e satisfação. "Os olhos
fazem um mapeamento geral, situam o objeto, mas, para investigações mais profundas, são
requeridos os lábios, a língua e um revestimento de saliva que atesta o conhecimento
adquirido" (CORSO e CORSO, 2006, p.44). Notamos, portanto, que no conto Os Três
Porquinhos também há uma decodificação oral do mundo que se divide entre os que comem e
os que são comidos, situação esta que persiste por um longo tempo depois do desmame. Além
disso, os porquinhos simbolizam a separação que deve haver entre a mãe e a criança. Assim,
74
num primeiro momento, tanto a criança quanto os porquinhos encontram-se desprotegidos, e a
mercê de serem devorados e, por isso, precisam a todo custo criar empecilhos que os separem
da mãe - já que esta é extremamente perigosa (devoradora) se a criança não se posicionar.
Logo, tanto os porquinhos quanto a criança vão levantando paredes cada vez mais bem
construídas, que acabam por demarcar o território que pertence à criança e aquele que
pertence ao adulto.
É a partir do desmame, da castração oral, que a criança dá mais um passo em busca
da sua subjetividade:
A cena do bebê alimentando-se ao seio reproduz por fora a situação que o
cordão umbilical estabelecia por dentro, de um fluido que liga o corpo de mãe e
filho como se fosse um só. A partir dela, a criança iniciará um segundo parto, dessa
vez psíquico. O desmame é um nascimento subjetivo, no qual o mais importante é a
garantia para a criança de que seu corpo e sua pessoa são uma unidade indivisível e
separada do corpo materno (CORSO e CORSO, 2006, p.58)16.
De acordo com os autores, a colher transformada em aviãozinho pelas mães na hora
da alimentação, marcando rigorosamente a viagem do alimento do prato à boca, também é
denotativa dessa separação. Seja no seio ou na mamadeira, o ato de se alimentar era de
aconchego, mas com a chegada do prato e da colher há um mundo cheio de instrumentos
duros e frios, que se colocam entre a mãe e a criança. É mesmo somente de aviãozinho para
encobrir esta assustadora distância. "Por isso, o desmame, no sentido subjetivo que lhe
atribuímos, é um processo longo, almejado e temido pela criança, do qual o medo do lobo é
um recurso defensivo auxiliar" (CORSO e CORSO, 2006, p.58).
Com o desmame, a criança assume duas formas de representação importantes para o
crescimento: a troca da passividade pela atividade e a separação entre o desejo da mãe que
quer alimentar o filho e a vontade de comer deste. Segundo Corso e Corso, o complemento
seio-boca rompe-se definitivamente quando a criança passa a escolher e recusar alimentos. Na
verdade, fechar a boca diante do alimento oferecido é a primeira rebeldia assumida pela
criança, quando ela percebe que é possível discordar do adulto, e que este não é tão poderoso
e onipresente como ela acreditava. Logo, a tarefa é dar-se conta do quanto se é independente
do desejo da mãe. É comum encontrarmos crianças que em casa são seletivas e exigentes com
seu próprio cardápio discordando do cardápio da mãe, chegando ao ponto de recusar
determinados tipos de alimentos, enquanto que na casa dos outros comem de tudo. Segundo
16
É importante ressaltar que esse processo também ocorrerá em crianças que se alimentaram em mamadeira e
precisam transitar para outras formas de alimentação mais ativas e fora do colo.
75
os autores já mencionados, a explicação é simples: "[...] na casa dos outros [...] ninguém está
pendente do que eles comem ou não. Nesses casos, a criança realiza uma apropriação do ato
alimentar destinado agora apenas à própria satisfação, orientado pelos seus critérios (2006,
p.44).
Até determinado momento, o seio simbolizava o alimento perfeito, e portanto,
raramente era recusado. De qualquer forma, o seio sempre era bem vindo, se não para mamar,
para usá-lo de bico ou para ficar olhando para a mãe. Corso e Corso ressaltam que o paraíso
representado pelo seio - esse modo de vida onde nada falta e se consegue sem fazer nenhum
esforço - não existe concretamente. Desde o primeiro encontro, quando se dá a primeira
mamada, mãe e filho estabelecem uma sensação de reconhecimento mútuo, estabelecendo-se
uma relação que já supõe dois seres distintos. Eles passarão um bom tempo numa ilusão
compartilhada de união visceral. É no desmame que essa fantasia se rompe. A necessidade da
presença do olhar da mãe durante a mamada comprova que o que ele quer é a mãe e não o
leite. Portanto, o seio é parte de um contexto e não serve isolado.
Para deixarmos mais claro que o importante é a separação em si, podemos lançar
mão do conto O Lobo e os Sete Cabritinhos, em cujo começo há uma inversão em relação ao
conto Os Três Porquinhos, já que é a mãe quem sai para a floresta. Quando um olhar enlaça a
mulher e o seu filho, que mama em seus braços, já estamos falando, segundo Corso e Corso,
de um momento em que ela e o bebê já são seres separados. O primeiro tempo, que seria o da
simbiose absoluta, não existe como vimos a pouco. Na vida real, o seio representa a mãe, mas
é ela quem é amada, por isso é representada como uma mulher, no caso a velha cabra. É
somente após a primeira separação, da qual a criança se sente autora, ou seja, quando ela se
desmama, que aparecerá a figura monstruosa. Não é por acaso que tanto a bruxa quanto o
lobo só aparecem no segundo momento, após a saída de casa dos filhos ou da mãe.
Portanto,
a versão pavorosa do primeiro enlace amoroso é uma espécie de alerta para ambos.
Para a mãe, que certamente conhece as personagens de sua própria infância, este é o
aviso: não reincorporarás teu produto, sob pena de te assemelhares a monstros do
pior tipo; para o filho: estás numa viagem sem volta (CORSO e CORSO, 2006,
p.46).
A partir do desmame, novos horizontes descortinam-se. No primeiro momento,
temos uma mãe que possui um paraíso de onde jorra leite. Mas essa fantasia tem o seu lado
negro: é a bruxa devoradora, ou o lobo devorador. Não poderíamos deixar de ressaltar que
76
uma fantasia desse cunho fosse isenta de ameaça. "Ser um só com a mãe significa perder-se
nela, ser readmitido em suas entranhas, em suma, ser assado, cozido e comido. Observa-se
que é uma fantasia possível apenas para quem já tem bem claro que está do lado de fora, por
isso tem medo de ser incorporado. Só pode voltar a entrar quem já saiu" (CORSO e CORSO,
2006, p.46).
2.5.2.3 Castração Anal: A Entrada de um Lobo
Com o passar do tempo, a criança percebe que o sistema e o mundo que ela pode
abranger parecem pequenos e por isso outros horizontes são requeridos por ela. Com o seu
desenvolvimento, ela passa a explorar todos os lugares os quais suas pernas e seus olhos
podem levá-la. "A locomoção é fascinante, tanto a própria quanto a dos objetos, que são
arremessados ou têm providenciais rodinhas. Tudo se move" (CORSO e CORSO, 2006,
p.44).
Logo, a criança passará por aquilo que Dolto designou de castração anal, tendo
integrado as duas precedentes, castração umbilical e castração oral. A castração anal "[...]
priva a criança do poder manipulatório partilhado com a mãe. Ainda que ela tenha mais
necessidade do adulto para lavar-se, vestir-se, comer, limpar-se, deambular, seu desejo sofre
por ser privado do retorno a intimidades compartilhadas em contatos corporais de prazer"
(DOLTO, 1992, p.57). Essa castração compreende o desenvolvimento da motricidade, a
aquisição da autonomia e a chegada das proibições. Proibição de prejudicar, proibição de
matar e de praticar o vandalismo, ou seja, "[...] proibição de fazer o que quer que seja para
seu prazer erótico" (1992, p.115) [grifo do autor]. Proibições limitadas que devem ser
impostas à criança a partir do momento em que o fazer provocaria desprazer ou perigo ao
outro. Nesse sentido,
o fruto da castração anal, pondo fim à dependência parasitária para com a mãe, é
também a descoberta de uma relação vivente com o pai, com as outras mulheres,
com os amigos preferidos; é encontrar no agir e no fazer de menino ou menina em
sociedade, saber dominar seus atos, discriminar o dizer do fazer, o possível do
impossível. Não ceder ao prazer de um agir que poderia prejudicar e (sic) si mesmo
e àqueles que se ama (DOLTO, 1992, p.57-8).
Ela se torna um ser inteiro, que se move por si mesma dentro de um grupo social,
podendo estabelecer uma comunicação com todas as crianças da sua idade, com os
familiares.... Essa autonomia conquistada pela criança dará a ela uma condição
77
"humanizante", a partir da qual a criança pode "colocar-se no lugar do outro" e não fazer ao
outro aquilo que ela não gostaria que fizessem com ela.
Dolto (1992, p.86-7) define duas acepções do termo castração anal. A primeira é
sinônimo de separação entre a mãe e a criança. Poderia ser designada como um segundo
desmame. É a partir dessa separação que a criança adquire a motricidade e a autonomia. A
segunda acepção relaciona-se com a proibição à criança de qualquer agir, fazer, que seja
prejudicial ao outro. Evidentemente, não se trata de adestramento, mutilação nem desejo de
controle. Portanto, Dolto ressalta que só podemos falar de castração anal se a criança for
reconhecida como sujeito pelos pais e se estes "[...] realmente respeitam a criança e seus
bens, se eles a educam confiando na inteligência e na vida a devir neste homenzinho ou
mulherzinha, deixam uma margem larga para sua iniciativa [...]" (1992, p.98) [grifo do
autor], reduzindo dia-a-dia o número de proibições impostas a ela conforme o seu
desenvolvimento.
Portanto, a castração anal está para além do domínio esfincteriano. Dolto acrescenta
que uma castração anal sadiamente imposta, ou seja, não centralizada apenas no xixi-cocô,
mas na valorização da motricidade manual e corporal, deve permitir à criança substituir os
prazeres excrementícios pela alegria de fazer, de manipular os objetos de seu mundo. Ela é o
meio pelo qual a criança adquire a autonomia e a motricidade possíveis devido à separação
com a mãe. Ela é a proibição de prejudicar seu próprio corpo, assim como o mundo animado e
inanimado que rodeia o triângulo pai-mãe-filho, através de atos motores, repulsivos ou nãocontrolados. Todas essas aquisições permitem ao sujeito advir à sua manutenção,
conservação, deambulação no espaço e a criatividade no trabalho ou em atividades lúdicas.
Segundo Rassial (1998), é nessa fase que aparece a primeira história, agora tomada
como a introdução a um terceiro, há um outro na história e não somente como mais um
ilustrador, um catálogo de objetos ou uma cena cotidiana. Pode haver aí um herói, um outro
personagem diferente da criança. Esta pode, agora, falar sobre o livro e não mais toma-lo
como um simples objeto. Ela pode ter um discurso ou ao menos uma palavra sobre o livro.
Ela pode destacar um livro e identificar-se com ele, pois o mesmo pode conter desenhos,
palavras que sejam significantes para o momento que está vivenciando. O livro possui marcas
que são percebidas pela criança; ele é um objeto da mãe. Como disse Dolto, "a castração deve
ensinar à criança a diferença entre o que é sua posse, da qual ela é totalmente livre, e o que é
a posse do outro, cujo uso, para ela, deve passar pela palavra [...]" (1992, p.115) [grifo do
autor]. De acordo com Rassial, poder-se-ia dizer que é nesse momento que surge o respeito
78
pelo livro. A criança toma consciência de que não se acaba com ele, destruindo-o por meio de
mordidas, por exemplo, pois o mesmo contém outra coisa, um laço social e um modo de
expressar-se a dois com um elemento comum, havendo assim uma troca verbal.
Tomando a idéia, tanto de Dolto quanto de Rassial, de que esta é a fase em que há a
entrada de um terceiro, ou seja, daquele que cumpre a função paterna e que, como Freud
designou, interdita a relação incestuosa entre mãe e filho, podemos pensar que os contos de
fadas de Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos e O Lobo e os Sete Cabritinhos vêm a
cumprir exatamente essa função - de castradores, de interditores por intermédio no lobo mau.
Além disso, podemos pensar que esses contos são apreciados pelas criança nesse momento
porque possuem a simplicidade que as atrai, com poucos personagens, os bons de um lado e
os ruins de outro. Certamente, essa característica de marcar a divisão entre o bom e o mau diz
de um tempo subjetivo muito importante à criança e, por acaso ou não, é tratado nesses contos
de fadas - especialmente em Os Três Porquinhos.
2.5.2.4 Castração Primária e Castração Edípica: Pai Incestuoso x Pai Castrador
Depois de termos passado pela castração umbilical, momento da separação entre
criança e mãe, chegamos na castração oral, em que a criança sofre outra separação,
percebendo que existem outros objetos além do seio. Logo, chegamos na castração anal,
quando a criança passa a ter autonomia, adquire a motricidade e a capacidade de estabelecer
trocas linguageiras com os outros. Após essas castrações, chegamos à castração primária, e a
seguir, à castração edípica.
Para Dolto, na castração primária, "trata-se da descoberta da diferença sexual entre
meninos e meninas" (1992, p.134) relativa àquilo que ela observa das aparências e dos
procedimentos, das meninas, dos meninos, das mulheres e homens encontrados. Ela faz a
ponte entre a castração anal, à qual está ligada, e a castração genital edípica (que veremos
mais adiante), isto é, o Édipo, que a sucede diretamente. Esse é o momento em que a criança
verbaliza todas as suas dúvidas concernentes às diferenças do corpo. "É através das perguntas
referentes ao corpo diferente dos pais que a criança descobre a diferença [...]" (DOLTO, 1992,
p.136). Nesse momento, é muito importante que as palavras dos pais sejam verdadeiras e que
levem a criança à conformidade do seu sexo a um futuro homem ou mulher - já que o menino
se sente ameaçado por ver que a menina não tem o pênis, e a menina frustrada, por não tê-lo dando assim valor à linguagem e ao social. Cabe ressaltar, aqui, que "[...] para qualquer
79
criança, são os pais que detém todo o saber, e seus dizeres são autoridade, após o desmame,
referente a tudo do pegar, do agir, do fazer, da criança sob sua tutela" (DOLTO, 1992, p.139).
Assim, a criança sai dessa fase sabendo que as meninas não possuem pênis e os meninos não
podem ter filhos.
Nesse mesmo contexto, temos a contribuição de Rassial referente ao livro e à
castração primária. Para ela, após o desmame, momento em que a mãe descreve o medo e dá
o primeiro esboço da história, vem a castração oral, que mostra à criança que o seio não é o
único objeto que existe, e quando a temporalidade é introduzida, possibilitando à mãe falar do
livro. Depois disso, chega a castração anal, momento em que mãe e filho podem dialogar
sobre o livro. Falar a dois sobre uma única coisa. Chegamos, então, à castração primária, que,
como já situamos, é o momento em que a criança passa pelo efeito da descoberta da diferença
sexual. Segundo a autora, essa fase ilustra-se facilmente no livro, "[...] não é mais o bom ou
mau, mas o forte, o herói e o vencido. Há o herói masculino ou feminino ao qual a criança
pode se ligar, identificar-se, brincar de sê-lo, e todos os atributos dessa pertença sexual"
(1998, p.104).
Passamos agora para o período posterior à castração primária. De acordo com Dolto,
vem, então, a castração edípica, o Complexo de Édipo, a interdição do incesto e o período que
segue o momento em que as crianças descobriram sua pertença a um sexo, a fase em que eles
entram no Complexo de Édipo. A partir desse momento, a imagem que a criança tinha do
corpo modifica-se. Ela já não mais é inconsciente, ela é conscientemente aquela que deve se
conciliar na realidade a um corpo que mais tarde será um corpo de mulher ou de homem:
A castração edípica é a interdição, para os filhos de esposar ou de ter
relações sexuais com sua mãe ou irmã. Ela é verbalizada, dada pelo pai [ou melhor
dizendo, pela função paterna]. Isso vai introduzir a criança na humanização genital.
O enunciado dessa proibição vai fazer o menino sair do Édipo, enquanto este será,
justamente, o momento de entrada no Édipo para a menina (RASSIAL, 1998,
p.105).
É aqui que o pai pode e deve introduzir ao filho aquilo que em psicanálise chamamos
de castração: "[...] lhe declara: 'é impossível para sempre que um filho ame sua mãe como um
outro homem a ama. Não é porque você é pequeno e eu grande, é porque você é seu filho e
que nunca um filho e sua mãe podem viver a união sexual e engendrar crianças' " (DOLTO,
1992, p.155).
Essa interdição, segundo Rassial (1998), fará com que o menino ao menos se
interesse em compreender o mundo, saber como se tornar líder, conhecer as leis que regem os
80
direitos humanos...ao passo que a menina tentará agradar, ganhar o que pode e fazer valer
seus direitos frente as instâncias dominadoras.
No nível do livro, passamos à pura história. "Para os meninos são sempre histórias de
cavaleiros, de guerreiros, de super-homens, em que há sempre uma possibilidade de vir a ser o
mais forte, o mestre. Há combate em jogo, enquanto a menina está nas histórias em que há
sedução, em que será preciso agradar ao mais forte" (RASSIAL, 1998, p.105).
Resumidamente, a castração primária diz do primeiro momento da descoberta da
diferença sexual. A castração edípica também se refere a essa diferenciação e, ainda, à
interdição do incesto. Unindo essa idéia a idéia de Rassial de que a castração primária e a
edípica "se encadeiam uma à outra, pois ambas consumam a sexuação" (1998, p.104),
podemos pensar que o conto de Chapeuzinho Vermelho interessará muito às crianças nesse
momento.
Numa esquemática leitura freudiana acerca do que se conveniou chamar de
Complexo de Édipo (primeiros amores vividos em família pela criança), sabemos que tanto a
menina quanto o menino principiam sua vida amorosa em um correspondido amor com a mãe.
No início dessa fase, meninos e meninas acreditam que todos os seres humanos possuem um
pênis. A diferença entre os sexos é atribuída por aquele que possui o pênis e aquele que não o
possui e é portanto, castrado.
A partir daí os caminhos bifurcam-se. O menino vai em busca de atributos viris,
identificando-se com o pai, para assim obter o amor de outra mulher, já que teve de desistir do
amor da mãe porque esta já tem dono. É aqui que o pai cumpre sua função enquanto
castrador, interditor da relação incestuosa indicando ao filho que não pode amar sua mãe. A
menina, por sua vez, não encontrará o caminho traçado e terá de trocar de amor e amar
alguém de outro sexo. É nessa passagem da mãe para o pai que a menina depara a falta do
pênis e sente-se decepcionada, tendo então um sentimento de inveja: inveja do pênis, que se
transformará no desejo de ter um filho do pai e mais tarde um filho do homem eleito. Já no
menino, quando percebe essa falta na menina, ele se angustia: é a angústia de castração. A
menina terá de mudar de objeto, trocando a mãe pelo pai. Se quiser amar e ser amada como a
mãe, a filha terá de abrir mão desse primeiro vínculo e disputar no mesmo território que sua
mãe:
81
É somente aqui que o pai entra em jogo: será aquele cujo amor pela filha
reconhecerá a semelhança desta com a mãe, ou seja, perceberá na filha
potencialmente uma mulher. Porém, esse amor também terá de ser interditado, como
foi aquele primeiro idílio com a mãe, ele terá que mostrar que seu desejo já tem
endereço, para que a filha vá buscar seu príncipe em outras paragens (CORSO e
CORSO, 2006, p.98).
Dessa forma, o menino fará o possível para identificar-se com a mãe e conquistar o
amor de uma mulher. Já para a menina, não basta identificar-se com a mãe; ela precisa perder
a primeira modalidade de amor para poder ser amada.
Considerando que, nas fases referidas anteriormente - castração primária e edípica há a questão da sedução, podemos retornar ao conto de Chapeuzinho Vermelho e pensar agora
o que é que existe de sedutor que atrai principalmente as meninas. Embora esse amor do pai
pela filha seja interditado, para a menina é importante fantasiar que ele também a deseja e, por
isso, ela utilizará de suas artimanhas femininas de sedução. Então, é preciso que o pai também
enderece um olhar para essa filha, pois
[...] um pai que não dedique um olhar para sua filha a deixa sem armas para o futuro
jogo amoroso fora de casa. Não adianta espelhar-se na mãe, mesmo que esta seja
coquete, se a filha não tiver uma chance de ser vista pelo pai. Se ela não puder
disputar o pai (na fantasia), não há razão para a identificação com as armas da
sedução que a mãe venha a lhe oferecer (CORSO e CORSO, 2006, p.96).
As artes de sedução de uma mulher, embora não possam ser utilizadas com o pai,
podem muito bem ser ensaiadas com ele. Isso tudo nos remete ao lobo e a sua lábia com a
qual seduz a menina e depois a devora. Se deixarmos de lado esse caráter erótico do lobo, se é
que é possível, perceberemos que ele também aparece no sentido de impor a Lei e as coisas
no lugar.
As castrações primária e edipiana referem-se à curiosidade sexual e à diferenciação
dos sexos. Nesse sentido, o conto de Chapeuzinho Vermelho vai ao encontro delas, pois o seu
tema central é a curiosidade sexual. Chapeuzinho, assim como a criança, está interessada em
saber sobre aquilo que ainda não suporta mas que a atrai - o sexo. Ou seja, o conto se refere a
uma relação erótica que perpassa a relação da criança com o adulto, pois encontramos a
criança num momento de decodificação e organização sexual da vida do adulto.
Retomando de outra forma, vimos que tanto a castração umbilical quanto a anal
levam a criança e seu ser a adquirir autonomia frente a separação da relação com a mãe.
Nesse sentido, quando a mãe apresenta o mundo à criança, por intermédio do livro, satisfaz ao
mesmo tempo a pulsão oral e a voz introduzindo a temporalidade. Nesse momento, a criança é
82
personagem indiferenciado da história. É somente a partir da castração anal que a criança se
orienta no agir. Aqui aparecem os contos com personagens bons e maus, gentis e malvados.
Posteriormente, com as castrações primária e edípica, a criança completa sua sexuação,
quando no conto o herói passa a ser masculino ou feminino.
2.5.2.4 O Espelho e o Édipo
Para terminar, discorreremos sobre dois momentos que são pontos de ordenação na
constituição psíquica do sujeito: o estágio do espelho e o Complexo de Édipo. Segundo
Rassial, o primeiro "é a fase em que se articula a castração anal e a castração primária genital,
não edípica" (1998, p.107). Juntamente com as outras castrações que já trabalhamos, a criança
constrói aquilo que Dolto chamou de imagem do corpo, a qual se estrutura na relação
intersubjetiva, sob o efeito das pulsões, da comunicação sensorial (experiências olfativas,
visuais, táteis) e da linguagem. É somente no decorrer das castrações que a criança poderá
individualizar-se, ou seja, distinguir-se da mãe, e associar o seu esquema corporal a sua
imagem inconsciente do corpo17. Esse, segundo Rassial, é o momento em que a criança se
reconhece enquanto tal no espelho e não mais pode se confundir com a mãe, com o pai... e
nem confundir-se com fantasias narcísicas que a levam imaginar-se como um avião... Agora
ela não acredita ser um avião, mas brinca de ser um avião.
Rassial (1998, p.107) mostra que o mesmo acontece com o livro. A criança não mais
é o herói, ela brinca de ser um herói, por exemplo, reafirmando, assim, uma distância entre ela
e o outro. A criança passa a contar a história. Ela "é capaz de entender a história de outro
jeito, de compreender que esta deriva de outro mundo. Instante de síntese, ordenação
imaginária do efeito simbolígeno das castrações" (1998, p.108).
Mas qual é, afinal, o momento em que a criança pode ler um conto sozinha? Esse
momento é após a castração edípica que tem efeitos de empurrar a criança para a saída do
círculo familiar, entendendo que o mundo é regido por leis que devem ser cumpridas por
todos e ao longo da vida.
Esses são momentos que retornam, englobam e resumem as castrações. Eis então
como cada uma das castrações abre acesso para a criança no campo dos contos de fadas,
contribuindo para o desenvolvimento sadio desta criança.
17
O conceito de esquema corporal e de imagem inconsciente do corpo são trabalhados por Dolto ao longo do seu
livro já referido: A Imagem Inconsciente do Corpo.
83
2.6 OS RESTOS DO FINAL DA HISTÓRIA
Em meio a todo esse caminho, árduo, espinhoso, traumático... mas, sobretudo,
necessário da castração, seja ela tomada por Freud ou por Dolto, emergem substituições e
sobram restos. Mas esses restos, onde ficam? Ficam eles enterrados e quietinhos no fundo de
algum lugar? Não, não ficam. Eventualmente, há piratas ou até mesmo lobos que lá irão
remexer, fazendo com que retornem. "Estes restos, eles estão por aí. [...]. Estes restos ao
retornarem, se transformam, surgem deformados, surgem da floresta, em forma de lobo e,
porque trazem o mal-estar, o lobo é chamado de lobo mau..." (MENGARELLI, 1998, p.66). O
lobo mau é um desses estranhos retornos - Unheimlich como chamou Freud (1919). Conforme
Mengarelli (1998), que cita uma passagem descrita no apêndice em Os Contos de Perrault, o
lobo
surge da floresta, não habita nenhuma cidade, não pertence a uma língua ou aldeia,
entabula conversa com homens e animais, tem passagem junto a magos e,
principalmente é um andarilho, vaga pelas aldeias, é sempre um estrangeiro, um
estranho. É dele que tem-se medo. É dele que a mãe de Chapeuzinho vermelho quer
proteger, mas Chapeuzinho transgride... Ora, ora, senhor lobo, a que interesses o
senhor visa com esta boca tão grande, estes olhos tão grandes, esta voz tão rouca? A
que pulsões o senhor invoca e tão estranhamente familiar vem tocar? (p.66).
Isso que surge como sendo estranho é justamente o familiar da estrutura. Assim,
se a sedução por um adulto passa pela voz, pelo olhar, pela boca tão doce, bem
podemos formular que lá onde era a mãe, um lobo advirá. E surgirá fazendo temer.
Mas, alerta para a diferença, não é mais a mãe, não é mais o pai, embora tivesse
sido. Por isso é estranho, por isso é familiar. Porque vem simbolizá-los na ausência,
vêm trazê-los e por isso mesmo é capaz de oferecer agora outros sentidos. Revestido
de animal feroz e assustadoramente estranho, o que ele encobre é o retorno do
familiar pela via do imaginário (MENGARELLI, 1998, p.66-7).
E agora, o que dizer? O que dizer disso tudo? Assim como nos contos de fadas, o
nosso caminho termina com um final feliz. É, com um final feliz, pois percebemos que,
mesmo fora do tempo, sempre há tempo se pegarmos uma carona com os contos. Estamos
simplesmente fascinados com a riqueza que os contos carregam consigo. São por, excelência,
verdadeiros tesouros da humanidade. Os contos trazem em suas páginas tantas questões que
seria impossível falar sobre todas elas. Por isso, a escolha de uma questão: o medo. No
entanto, embora tenhamos optado por uma questão foi, impossível não carregar outras.
84
Vimos que o medo, tão presente ao longo das páginas dos livros, coloca-se como
suporte para que a criança possa elaborar as suas travessias e dar um significado àquilo que
lhe é estranho, mas que ao mesmo tempo lhe é familiar. Portanto, ter medo é coisa séria para
os pequenos e talvez por isso tão convocado pelas crianças. E o que poderíamos encontrar de
melhor do que um lobo mau para dar conta dos nossos medos, das nossas angústias, da nossa
questão com a Lei e, por conseqüência, com a função paterna? Mas, no final, a pergunta ainda
persiste: por que o lobo é o objeto por excelência da angústia das crianças e tão utilizado para
dar conta do medo? Talvez possamos responder por meio de uma expressão latina traduzida
por Plauto: "O homem é para outro homem um lobo e não um homem" (PLAUTO apud
MAGALHÃES, 1998, p.50).
85
CONCLUSÃO
Quem já teve a experiência de escrever uma tese, um livro ou até mesmo uma
monografia, sabe que uma pesquisa não tem fim, mas que em determinado momento as
circunstâncias fazem com que seja necessário parar. E este é exatamente o momento de parar,
de concluir.
Vimos que, pelo simples fato de vivermos, a vida nos coloca frente a situações em
que necessitamos criar soluções certas para certos problemas e isso ficará mais fácil se
tivermos uma boa bagagem, ou seja, uma boa caixa de histórias. É claro que as histórias não
garantem a felicidade e muito menos o sucesso, mas elas ajudam enquanto âncoras
metafóricas que nos auxiliam a nos encontrarmos e a contarmos a nossa própria história. Elas
são formas de identificação nas quais podemos nos apoiar diante de determinados impasses e
situações. Carregam consigo um saber sobre a vida, a morte, o amor... e, por serem um saber,
sabem exatamente qual é a hora de aparecer.
Por acreditarmos no poder da fantasia, lançamo-nos na tarefa de refletir sobre o que
existe nas histórias antigas que as fazem perdurar até hoje, sendo narradas às crianças e o que
elas têm a dizer às pessoas. Supusemos que há uma relação com a ficção, usamos o que nos é
útil. Isso justifica todo o caminho que os contos percorreram, desde sua origem, quando ainda
eram mitos, mais tarde contos narrados pelos camponeses e, depois, toda a sua relação com a
literatura, caminho pelo qual invadiram o universo infantil.
Graças às crianças, que são mais espertas que os adultos, foi possível constatar que
ainda há lugar para novas e velhas histórias, cada uma com uma missão a cumprir, pois as
crianças, ao contrário dos adultos, são grandes adeptas da ficção deixando de lado mensagens
diretas e, por isso, quanto mais mágicas, melhor. Os contos de fadas não envelheceram, um
bom número deles seguem sendo úteis às crianças, apenas tiveram de se adaptar um pouco às
exigências dos novos tempos.
Podemos considerar-nos satisfeitos com as produções dos séculos XIX e XX para as
crianças, até porque foi em torno dessa época que se inventou a ficção propriamente infantil,
86
na qual a criança passa a ter seu lugar estabelecido na sociedade - momento em que surge o
conceito de infância. Constatamos que as histórias para as crianças desse período e também de
tempos anteriores, quando os contos eram narrados aos camponeses, não parecem ser
estruturalmente muito diferentes dos contos de fadas atuais, no que tange à capacidade de
fornecer elementos que as ajudem a elaborar suas questões. Diferenciam-se, sim em
elementos da história, como, por exemplo, os aspectos abertamente sexuais, canibalescos...,
no entanto, a operação é a mesma. Os contos de fadas trazem elementos para a cena; se a
criança vai utiliza-los para um fim regressivo ou como auxílio no momento do crescimento,
isso dependerá da vida que ela está levando.
Os assuntos complicados, costumeiramente evocados pelos contos de fadas e até
mesmo tramas que trazem em suas páginas o medo, provam que as crianças não se esquivam
de assuntos que os adultos consideram impertinentes para elas. É bem por isso que os contos
de fadas permanecem conosco pelo resto da vida, graças à riqueza que emprestam e seguem
oferecendo como auxílio diante de encruzilhadas e dificuldades que continuam se interpondo
no caminho. Se antes era o lobisomem quem tinha essa tarefa, agora é o lobo mau quem se
responsabiliza por esse trabalho.
Foi por acreditar que o lobo mau tinha muito o que nos dizer, que nos lançamos a
procura dele através de três contos de fadas: O Lobo e os Sete Cabritinhos, Chapeuzinho
Vermelho e Os Três Porquinhos. E constatamos que esse lobo mau trabalha, e muito, para dar
conta da fantasia das crianças, pois ora ele se presta como um objeto fóbico que fornece
suporte para a criança elaborar os seus medos sem ter de estruturar uma patologia, mais
especificamente uma fobia, ora se presta como um terceiro que realiza o tão traumático e
necessário corte na relação da criança com a mãe, sendo por isso o castrador. Por tudo isso, a
criança percebe que o lobo mau é para ela um tanto estranho, mas também um tanto familiar.
O medo em si não é patológico: ele faz parte da vida emocional de qualquer pessoa e a
acompanha durante o seu desenvolvimento. É bem por isso que o lobo mau é tão convocado:
para dar conta do medo, da angústia, da questão da criança com a Lei e com a função paterna.
Pois bem, a ficção infantil ou adulta supre os indivíduos de algo que não se encontra
facilmente em outros lugares: todos precisamos de fantasia, não é possível viver sem uma
válvula de escape. Foi por isso que nos propomos a realizar o percurso apresentado neste
sentido. Esperamos ter contribuído um pouco para o reconhecimento e a legitimação da
importância da fantasia como parte imprescindível na vida das crianças.
87
E assim, era uma vez histórias que entraram por uma porta e saíram por outra... e
quem quiser que conte outra.
88
REFERÊNCIAS
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PARECER DO ORIENTADOR
A pesquisa monográfica de Taís Cervi aborda um importante aspecto que acompanha
o processo de constituição psíquica na criança: os medos infantis. Sabe-se que geralmente
estes não assumem um caráter patológico, tendo, a partir das descobertas da psicanálise, uma
função estruturante.
Para discutir esta temática a autora escolhe a via da literatura infantil, mais
precisamente, dos contos de fadas, selecionando algumas histórias nas quais o medo é
evocado pelo personagem “lobo-mau”.
Questionando-se sobre as razões que levam as crianças a apreciarem tanto a estas
histórias, sua pesquisa inicia investigando as relações entre literatura, mitos e mudanças
sócio-culturais, para neste contexto localizar a origem e as transformações dos contos de fadas
e do personagem lobo-mau.
Num segundo momento as reflexões da pesquisadora direcionam-se à análise de três
contos de fadas que incluem o lobo-mau na sua narrativa, discutindo sua função durante a
travessia edípica e no complexo de castração. Entende que as pequenas fobias da infância, se
constituem em um recurso psíquico do qual a criança pode dispor para assegurar a posição de
sujeito desejante, e portanto, de diferenciação em relação ao Outro. De modo análogo, situa o
papel dos contos de fadas que evocam o medo, como é o caso daqueles em que encontramos o
“lobo-mau”.
Consideramos que esta monografia, requisito parcial para a graduação em psicologia
na UNIJUÍ, cuja temática se situa na interface entre a psicanálise e a literatura, oferece
interessantes contribuições para psicólogos e demais profissionais que se ocupam com as
crianças.
Angela Maria Schneider Drügg
Professora Orientadora
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