PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC-SP
Mailiz Garibotti Lusa
Do chão do cotidiano, o protagonismo do
Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas
- Uma trajetória de lutas, construindo identidade e conquistando autonomia -
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
SÃO PAULO
2009
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Mailiz Garibotti Lusa
Do chão do cotidiano, o protagonismo do
Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas
- Uma trajetória de lutas, construindo identidade e conquistando autonomia -
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Serviço Social
sob a orientação da Profa. Doutora
Maria Carmelita Yazbek.
SÃO PAULO
2009
ERRATA
Na página 22, no último item dos objetivos específicos, suprima-se “em cada país”.
Na página 49, no primeiro parágrafo do item ‘1.2.1’, onde se lê “segundo os estudos de
Henri Lefevbre”, leia-se “segundo os estudos de Henri Lefebvre”.
Na página 84, no final do primeiro parágrafo, acrescente-se em ‘nota de rodapé’ a
seguinte consideração: “Ao fazer esta afirmação, não se exclui o reconhecimento de
que na América Latina produziram-se significativas teorizações sobre os Movimentos
Sociais.
Entretanto,
considera-se
que
tal
produção
teórica
não
recebeu
o
reconhecimento devido no campo das ciências sociais, a ponto de significá-la como
‘paradigma teórico’ sobre os Movimentos Sociais. Ao expressar isto, também se deve
ressaltar que esta é a reflexão elaborada pelos autores que fundamentaram os estudos
referentes a este capítulo, muito embora existam outras e diferentes reflexões sobre a
produção teórica latino-americana neste campo do conhecimento. Além disto, apontase para o fato de que na América Latina há significativas expressões dos Movimentos
Sociais, cuja dinâmica por si mesma produz reflexões próprias ao contexto e conjuntura
latino-americana. Enfim, estas considerações da autora, devem ser relevadas em sua
discussão sobre os paradigmas teóricos sobre os Movimentos Sociais”.
Na página 87, no último parágrafo, onde se lê “extratos”, leia-se “estratos”.
Na página 103, no segundo parágrafo, suprima-se do período “[...] se ‘pelas bandas de
cá’ pouco ou nada se discutia e se produzia neste período em termos teóricos, [...]”, o
termo “ou nada”.
Na página 115, acrescente-se ao terceiro parágrafo do item ‘2.2.1.5’ a seguinte nota de
rodapé: “Ao reportar-se a esta leitura sobre mundialização, alerta-se para o fato de que
a compreensão desta autora não perpassa pela polarização do mundo, embora localize
que há uma expressiva desigualdade entre as nações, originada pelas históricas
relações de exploração e dominação econômica reforçadas no capitalismo”.
Na página 159, no segundo parágrafo, onde se lê “Em segundo lugar, a perspectiva
teórica dos estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais é preponderantemente
vinculada ao paradigma europeu”, leia-se “Em segundo lugar, a perspectiva teórica dos
estudiosos brasileiros sobre movimentos sociais é preponderantemente vinculada ao
paradigma europeu, associado às discussões latino-americanas”.
Banca Examinadora
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Na distância,
A presença mais uma vez se fez no coração e nas lembranças!
Aos meus amores,
Simplesmente pelo bem-querer e pelo pertencimento!
Em reconhecimento pelos diversos compartilhamentos,
Resta-me dizer... ‘muito agradecida’!
Ao Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, que através da ternura,
segurança e lucidez crítica expressas nas palavras de Justina, Luci e Noeli,
possibilitou re-significar as lutas e conquistas de sua trajetória histórica e também
compreender melhor as possibilidades de atuação de minha profissão no contexto
rural.
À professora e orientadora ‘Carmelita’, pelo desafio e, principalmente, prazer de tê-la
como companheira nesse percurso investigativo. Amabilidade, compromisso,
responsabilidade e paciência marcaram sempre as suas lições. Entretanto, seu
grande ensinamento foi de que trabalhar com a autonomia do orientando é o melhor
caminho para incitá-lo à luta contra as subalternidades!
Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social por acreditar que
àquela jovem candidata ao mestrado, recém saída da graduação, um dia pudesse
se tornar mestre. Às professoras e professores, às coordenadoras e secretárias do
Programa e aos colegas: efetivamente o aprendizado se deu no saber
compartilhado!
À Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional de Ensino Superior – CAPES pelo
financiamento da Bolsa de Estudos que possibilitou a realização do Mestrado.
À Iria e Sofia, cujas relações foram re-significadas na amizade. Obrigada pela
presença e pelas valiosas contribuições da etapa final da redação.
Enfim, de modo especial, as minhas famílias! Àquela que outra vez aceitou a
distância, relevando as profundas saudades, na certeza de que a história se faz e
nela ‘nossa identidade’ é reafirmada, plena de afeto e cumplicidade. Àquela que aqui
foi construída, não porque dividíamos um pequeno espaço na grande capital, mas
porque aprendemos a compartilhar vidas e nisso, nos fizemos mulheres ainda
melhores do que já éramos.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas
...continuarei a escrever
Clarice Lispector
RESUMO
LUSA, Mailiz Garibotti. Do chão do cotidiano, o protagonismo do Movimento de
Mulheres Camponesas em Terras Catarinas – Uma trajetória de lutas, construindo
identidade e conquistando autonomia. 2009. 250 f. Dissertação (Mestrado em
Serviço Social). Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
Esta dissertação de mestrado trata do Movimento de Mulheres Camponesas em sua
organização e atuação no Estado de Santa Catarina (MMC/SC). Tem por finalidade
analisar o processo de lutas desse movimento social campesino e feminista,
observando a dinâmica de sua organização social, articulação política, bem como as
estratégias criadas para efetivação de seus objetivos. Nela debate-se a concepção
de mundo rural; os movimentos sociais no Brasil, com destaque para aqueles
ligados ao campo; os processos de construção da identidade, autonomia e
protagonismo das mulheres camponesas e do Movimento de Mulheres
Camponesas, a partir de seus cotidianos de vida e de trabalho; a trajetória sóciohistórica do MMC/SC e nele as lutas e conquistas; bem como a relação entre
Serviço Social e espaço rural. Para sua elaboração utilizou-se como marco de
fundamentação teórico-metodológica a perspectiva crítico-dialética, adotando-se a
abordagem qualitativa de investigação associada à pesquisa de tipo exploratório,
muito embora em seu desenvolvimento já se avance para o nível de descrição e
explicação da realidade encontrada. Enquanto técnicas procedimentais foram
empregadas a pesquisa bibliográfica e documental, além da realização de
entrevistas orientadas por roteiro semi-estruturado. Estas últimas foram realizadas
com três mulheres camponesas, militantes e dirigentes do Movimento de Mulheres
Camponesas em Terras Catarinenses. Em seu desenvolvimento são discutidas
categorias teórico-analíticas como, meio rural, agricultura camponesa, movimentos
sociais, relações de gênero, identidade, cotidiano, consciência crítica, luta social,
protagonismo, autonomia, políticas públicas e Serviço Social. Nas considerações
finais aponta-se para o fato de que o espaço rural é constituído por uma diversidade
de elementos, os quais exigem atenção no seu reconhecimento, bem como
competência profissional para trabalhá-los. Também se assinala a importância dos
movimentos sociais no jogo dialético da sociedade, os quais atuam como forças
sociais geradoras de transformações sociais, políticas, culturais e, em algumas
vezes, econômicas. Colabora-se ainda para o reconhecimento da atuação do
Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, na esfera da conquista e
garantia dos direitos, bem como no âmbito da efetivação das Políticas Públicas para
o campo. E, por fim, pretende indicar o espaço rural como campo urgente de
investigações e de atuação profissional do Serviço Social.
Palavras-chave: Rural. Movimentos Sociais do Campo. Lutas Sociais. Gênero.
Classe. Identidade. Cotidiano. Políticas Públicas para o Campo. Serviço Social.
ABSTRACT
LUSA, Mailiz Garibotti. From day-by-day ground routine, the leadership of the
Countryside Women Movement in the lands of Catarinas - A trajectory of
struggle, constructing identity and conquering autonomy. 2009. 250 p. Dissertacion
(Major in Social Work). Program of Post-Graduates in Social Work Studies, Pontificial
Catholic University of Sao Paulo, Sao Paulo, 2009.
This dissertacion deals with the Countryside Women Movement in its organization
and performance in the State of Santa Catarina (CWM/SC). Its objective is to
analyze the process of struggles of this rural and femenist social movement
examining the dynamics of its social organization and political articulation, as well as
the strategies created to attain its target. It is debated, in this essay, the conception
of the rural world, the social movements in Brazil, highlighting the ones linked to the
countryside; the processes of construction of the identity, autonomy and leadership of
the countryside women and of the Countryside Women Movement, starting from their
day-by-day routine life and work; the social-historical trajectory of the CWM/SC and
its struggles and conquests; and the relationship between the Social Work and rural
space as well. For the elaboration of this work it has been taken as a landmark of
therotical-methodological ground a critical-dialectic perspective. It has also been
adopted the qualitative approach of investigation, associated with the search of
exploitation type, notwithstanding, in its development an advance has already been
made in the level of description and explanation of the existent reality. As far as the
technical procedures are concerned, it has been applied the documental and
bibliographical searches,
besides
interviews
oriented
by
a
semistructured itinerary. The three last interviews were conducted with three countryside
women, militants and leaders of the Contryside Women Movement in the Catarinas
Lands. Along the development of these interviews it were dicussed theoriticalanalytical categories such as, rural environment, country agriculture, social
movements, relations with gender, identity, day-by-day routine, critical conscience,
leadership, autonomy, public politics and Social Work. In the final considerations it
has been focused on the fact that the rural space being composed by a diversity of
elements demands attention to its reward, as well as, professional competence to
deal with the rural space. Furthermore, it has also been highlighted the importance
of the social movements in the dialectic match of the society that play as a social
power, generators of cultural, political and social transformations and, sometimes,
economical ones. Yet, it cooperates to the recognition of the performance of the
Countryside Women Movement of Santa Catarina in the field of conquest and
guarantee of rights and, in the area of attainment of public politics for the countryside
as well. Finally this work indicates thus, the rural space as an imperative and urgent
field of investigation and professional performance of the Social Work.
Key words: Rural. Countryside Social Movements. Gender. Class. Identity. Day-byDay Routine. Public Politics for the Countryside. Social Work.
LISTA DE ABREVIATURAS
ABEPSS - Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
AMC - Associação de Mulheres Catarinenses
ANMTR - Articulação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Brasil
AP - Ação Popular
BM - Banco Mundial
CEB’s - Movimento das Comunidades Eclesiais de Base
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores
CLOC - Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo
CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social
CONAM - Confederação Nacional de Associações de Moradores
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CRAS/Rural - Centro de Referência em Assistência Social / Rural
CRESS – Conselho Regional de Serviço Social
CUT - Central Única dos Trabalhadores
FMI - Fundo Monetário Internacional
MAB - Movimento de Atingidos por Barragens
MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra
MMA - Movimento de Mulheres Agricultoras
MMC - Movimento das Mulheres Camponesas
MMC do Brasil - Movimento das Mulheres Camponesas
MMC/SC - Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina
MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ONG’s - Organizações Não-Governamentais
OP - Orçamento participativo
PCB - Partido Comunista do Brasil
PJ - Pastoral da Juventude
PNAS - Política Nacional de Assistência Social
PRONAF - Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PSD – Partido Social Democrata
PT - Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
TL - Teologia da Libertação
UDN – União Democrática Nacional
ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
SUMÁRIO
PARA INÍCIO DE CONVERSA..................................................................................14
CAPÍTULO I
O ESPAÇO RURAL E O SERVIÇO SOCIAL: DESVENDADNO A MATRIZ TEÓRICA
A PARTIR DA SOCIOLOGIA RURAL
Preparando a reflexão – À guisa de introdução do capítulo......................................29
PRIMEIRA SEÇÃO
Desvendando os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’..........................................32
1.1.1 O Pensamento Conservador e o Serviço Social ..............................................32
1.1.2 As discussões sociológicas sobre o ‘rural’ – O dualismo e a crítica.................34
1.1.3 O Pensamento em Nisbet e Mannheim............................................................38
SEGUNDA SEÇÃO
Modificando o olhar para o ‘rural’ ..............................................................................49
1.2.1 A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do
conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre.............................49
1.2.2 O levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre o que é o
rural ...........................................................................................................................54
1.2.3 Apontamentos sobre o ‘rural’ e sobre o ‘sujeito rural’ no pensamento social
contemporâneo ........................................................................................................58
Costurando as principais reflexões – À guisa de encerramento do capítulo .............66
CAPÍTULO II
MOVIMENTOS SOCIAIS
DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL À CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA
Ao iniciar um longo e profícuo debate, faz-se o convite ............................................70
PRIMEIRA SEÇÃO
Movimentos Sociais – Trajetória histórica, paradigmas teóricos e conceituação ......72
2.1.1 Os Movimentos Sociais – Desde a entrada no cenário público ao seu
surgimento no campo teórico ...................................................................................72
2.1.2 Conhecendo os paradigmas teóricos para compreender os atuais estudos
sobre Movimentos Sociais ........................................................................................75
2.1.3 Dos paradigmas teóricos europeu e norte americano, aos estudos
brasileiros .................................................................................................................86
2.1.4 colocando em cena os ‘conceitos’ sobre Movimentos Sociais .........................91
SEGUNDA SEÇÃO
Movimentos Sociais em caminhada – Um retrato brasileiro, catarinense e
campesino .................................................................................................................97
2.2.1 A trajetória dos Movimentos Sociais no Brasil .................................................97
2.2.2 Nas terras catarinenses, os movimentos sociais construíram história ...........119
2.2.3 A caminhada dos Movimentos Sociais no Brasil ...........................................128
TERCEIRA SEÇÃO
Para além das discussões conceituais: a abordagem dos Movimentos Sociais sob o
ponto de vista de sua interação dialética na sociedade ..........................................143
2.3.1 Sobre a criação de novas relações sociais: participação e democratização
como estratégias dos Movimentos Sociais .............................................................144
2.3.2 Sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das mulheres’ nos
movimentos sociais – Iniciativa, autonomia e participação – construindo as relações
sociais de gênero ...................................................................................................148
2.3.3 Sobre os Movimentos Sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura
política como desafio atual ......................................................................................152
2.3.4 Sobre os Movimentos Sociais enquanto formuladores de políticas e
construtores de cultura............................................................................................156
Alinhavando as seções deste capítulo – Algumas palavras sobre os Movimentos
Sociais: dos estudos aos desafios encontrados hoje no cenário brasileiro.............158
CAPÍTULO III
O MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL
DA COTIDIANIDADE À CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
Para início de conversa... algumas coisas precisam ser ditas! ..............................163
SEÇÃO ÚNICA
Movimento de Mulheres Camponesas e a matriz identitária...................................166
3.1.1 Os Movimentos Sociais camponeses no Brasil e o Movimento de Mulheres
Camponesas ...........................................................................................................166
3.1.2 As inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e na construção da
identidade das mulheres camponesas ...................................................................168
3.1.3 Avançando o olhar para ‘as identidades’ presentes no Movimento de Mulheres
Camponesas do Brasil – Os aportes teóricos para a reflexão.................................174
Dos fios ‘das identidades’, tecendo as tramas finais – Amarrando as reflexões
apresentadas à guisa de encerramento do capítulo ...............................................196
CAPÍTULO IV
OS MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES E O MMC
NA VOZ DAS MULHERES CAMPONESAS
Sobre o caminho e os caminhantes da última parte dessa empreitada! .................201
PRIMEIRA SEÇÃO
A expressão do campo na atual sociedade capitalista............................................206
4.1.1 “Não dá para tratar o campo como uma coisa única” ....................................206
4.1.2 “O dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados como
cidadãos de primeira classe” ..................................................................................209
SEGUNDA SEÇÃO
Os Movimentos Sociais camponeses na construção sócio-histórica do Brasil........214
4.2.1 “Olha, se não fossem os movimentos camponeses de resistência histórica
nesse país, nada estaria como hoje” ......................................................................214
4.2.2 “Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses tiveram
junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição Federal de
1988” .......................................................................................................................216
4.2.3 “Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram
resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações”........220
4.2.4 “Não há mudança, não há processo de transformação, caso os ‘de baixo não
tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e [...] não fizerem ‘o
movimento da sociedade’” ......................................................................................223
TERCEIRA SEÇÃO
O Movimento de Mulheres Camponesas num olhar que parte das Terras
Catarinas! ................................................................................................................224
4.3.1 “O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência,
através da participação em todo esse processo de reabertura democrática” .........227
4.3.2 “Os políticos que estavam no Congresso Nacional não entendiam nada,
não sabiam da vida na roça, muito menos sobre a vida das mulheres”..................231
4.3.3 “E assim começamos um novo tempo no processo político” – Os anos de
1980 para o MMA....................................................................................................233
4.3.4 “Se os outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de mulheres
se colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização” – Os anos 1990:
conquistas e avanços..............................................................................................235
4.3.5 “Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do
Brasil” ......................................................................................................................238
4.3.6 “Nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não negar a
sua história”.............................................................................................................243
4.3.7 “O protagonismo também se dá na participação política na sociedade, na
participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos”...........247
4.3.8 “[...] Tem um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no processo
de autonomia das mulheres” ...................................................................................251
QUARTA SEÇÃO
Os direitos sociais e as políticas públicas para o campo – Conquistas, demandas e
reivindicações atuais ...............................................................................................256
4.4.1 “Continuam as históricas bandeiras de luta [...]”.............................................257
4.4.2 “[...] Nós sabemos que precisamos avançar constantemente”.......................262
QUINTA SEÇÃO
Serviço Social e espaço rural – Um olhar para essa relação, segundo as falas de
quem vive no campo ...............................................................................................265
4.5.1 “[...] Aquilo que a gente vem sentindo, acredito, não corresponde ao papel do
Assistente Social”....................................................................................................267
4.5.2 “As experiências que eu conheço são de profissionais que [...]”....................276
4.5.3 “[...] Para os Assistentes Sociais tem uma sugestão central que é essa questão
da participação e da articulação com os atores organizados da sociedade”...........278
Algo a considerar olhando para a última parte dessa empreitada – O quarto
capítulo!...................................................................................................................283
APONTANDO PARA UM NOVO HORIZONTE – Definitivamente, à guisa de
conclusão ................................................................................................................285
REFERÊNCIAS.......................................................................................................297
APÊNDICES............................................................................................................302
Apêndice I ..............................................................................................................303
Apêndice II .............................................................................................................306
PARA INÍCIO DE CONVERSA...
O contexto inicial da caminhada!
Há diversos olhares sobre o rural. Olhares sociológicos, olhares
históricos, olhares econômicos e economicistas, olhares políticos e politiqueiros,
olhares de Estado e olhares de governos e de governantes, olhares do povo da
cidade e olhares também do próprio povo do campo!
Há olhares e olhares! Cada qual procurando e encontrando aquilo que o
coração reclama, o raciocínio insiste e o olhar, a escuta, o olfato e o paladar
possibilitam perceber. Alguns são olhares críticos, pois vêem em profundidade,
captam o escondido e, nisto, enxergam o inquietante novo. Outros são olhares
conservadores, vêem os contornos mais fortes do retrato pintado por outros artistas,
sentem nisto uma espécie de saudosismo aconchegante e acabam se afastando da
realidade que motivou tal pintura, preferindo apenas guardar a lembrança daquilo
que não mais voltará.
E assim, existem e transitam os olhares sobre o rural. Alguns singelos,
outros audazes. No entanto, sempre a criar e a recriar, a produzir ou reproduzir um
mundo particular, mundo cujo território, sujeitos e relações compõem, com a cidade,
o mesmo cenário da sociedade capitalista do novo milênio. Portanto, perguntar-seia: qual é o olhar profissional do Serviço Social para o rural? Qual é o olhar que a
realidade e a população camponesa demandam do Serviço Social?
É na busca de respostas a estas e a outras perguntas que se coloca o
caminhar nesta dissertação, assumindo os desafios, os percalços e as alegrias do
caminho, mas antes de tudo, propondo-se a construir este percurso - um tanto
quanto vazio de outros caminhantes -, a fim de colaborar para o desvendamento de
um espaço ao mesmo tempo tímido e ansioso por conhecer efetivamente o Serviço
Social.
Sim, este é o horizonte último que move o processo de investigação: o
espaço rural, o Serviço Social enquanto profissão e a relação que existe ou que
14
poderá existir entre eles. Mas, o que mobiliza esse horizonte último na investigação?
E ainda: como adentrar neste campo investigativo, ou seja, como se aproximar deste
horizonte mais amplo que orienta a investigação?
Para responder a indagação inicial, deve-se dizer que o primeiro e, talvez,
mais importante nexo que mobiliza essa pesquisadora em sua investigação é sua
íntima relação com o contexto rural. Lá nasceu, cresceu, aprendeu grande parte das
questões necessárias para viver em sociedade. Lá também lhe foram ensinados
diversos trabalhos que compõem a vida social, política, econômica e cultural no
campo e, com eles, foi lhe sendo ensinado o valor deste mesmo trabalho, bem como
do próprio modo de vida no campo. Foram aprendizados desafiadores, os quais
foram confrontados com os aprendizados urbanos, uma vez que esta investigadora
também viveu parte de sua vida no meio urbano.
E, entre as idas e vindas da cidade para o campo, aprendeu também a
ser mulher. Descobriu que existiam papéis determinados para homens e mulheres
na sociedade e que eles não lhe conferiam toda realização possível enquanto
mulher, filha, irmã, amiga, companheira de lutas sociais e políticas. Sentiu, então,
dificuldades de compreender e seguir tais determinações e, assim, foi se inserindo
socialmente em outros espaços da sociedade, tais como: grupos de jovens,
movimentos sociais, manifestações políticas e sociais coletivas, entre outros. Desta
forma, viveu significativas experiências de coletividade, organização e mobilização
social. Pôde adentrar no universo da participação social e política desde a sua
adolescência e - a partir dela - foi descobrindo uma significativa relação com um
fazer profissional que, mais tarde, se tornaria a sua própria profissão: o Serviço
Social.
Foi na continuidade deste caminho que, ao se inserir neste universo
profissional, começou a buscar as aproximações entre sua profissão e o contexto e
modo de vida que a identificavam como mulher e camponesa. Aos poucos, foi
percebendo que o caminho para encontrar os nexos entre o ‘meio rural’ e o ‘Serviço
Social’ era bastante árduo, já que não fora percorrido, até o momento, por
praticamente ninguém. Por isso, pôs-se ela mesma a investigar esta que é questão
mais ampla que a mobiliza enquanto profissional e investigadora: ‘o meio rural e o
Serviço Social’.
15
Portanto, decorre disto tudo o horizonte investigativo mais amplo que a
mobiliza. Ele emerge de suas identidades enquanto mulher, camponesa, Assistente
Social e investigadora. Esta é ela e ela inteira se mobiliza. E, agora, mesmo na
função de investigadora acadêmica, é também ela quem se convida a adentrar no
caminho que maquinou para conseguir se aproximar deste horizonte investigativo
último, que a move e a orienta em sua principal tarefa neste momento.
Continuando, ela certamente diria: “não pense que foi fácil encontrar as
pistas para começar a traçar os primeiros planos”! Muitos esboços foram feitos e
tantas mais discussões foram estabelecidas com seus colegas, professoras,
companheiras e companheiros de mobilização e luta social. Entretanto, por fim,
encontrou-se em suas reflexões com um sujeito coletivo, o qual agregava em sua
identidade as características de ‘ser mulher, ser camponesa, ser mobilizadora social
e agente político’. Eis, então, que aparece em seu percurso como investigadora a
figura do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil.
Ora, num primeiro momento parecia ter descoberto o mapa do tesouro;
entretanto, ainda tinha algo que a incomodava, que era a ausência de uma ligação
deste sujeito com o seu campo profissional. Aos poucos foi se reportando ao âmbito
das lutas travadas por esse movimento na perspectiva da conquista de direitos e de
efetivação de políticas públicas. Percebeu, então, que esse mesmo movimento
social campesino, e feminino, também trabalhava com a perspectiva assumida pela
sua profissão.
Foi assim que pensou em estudar, reconhecer e dar visibilidade histórica
para esse sujeito coletivo – o Movimento de Mulheres Camponesas, em sua atuação
específica no Estado de Santa Catarina -, demonstrando, a partir das suas
experiências de organização e lutas, como há muitos nexos não visíveis entre a
cotidianidade, o modo de vida rural e as esferas da conquista de direitos e da
efetivação de políticas públicas, os quais se configuram também como campo de
atuação de sua profissão, o Serviço Social.
Portanto, assumiu a presente investigação como estratégia para se
aproximar do horizonte último em seu percurso enquanto pesquisadora do Serviço
Social. E, mesmo considerando-a como estratégia investigativa para alcançar um
objetivo investigativo mais amplo, cuidou de traçar um plano de viagem detalhado,
16
evidenciando sua justificativa, seu objetivo, seus fundamentos teóricos e
metodológicos, os procedimentos e a metodologia que adotaria em sua
investigação, entre outros procedimentos.
Destarte, são essas reflexões que se passa a apresentar, para que depois
se possa efetivamente levar aos possíveis leitores o convite para que sejam
companheiros deste campo investigativo.
A leitura sobre o ‘rural’, o ‘Movimento de Mulheres Camponesas’ e o ‘Serviço
Social’: relação que fundamentou o início da investigação
Por vários séculos, o modo de vida rural era a forma preponderante de se
viver em sociedade, pois desde a origem da humanidade, a agricultura foi uma das
primeiras atividades de produção do homem em torno da qual se constituiu um
modo de organização social. Sim, é verdade que a vida urbana também tinha seu
destaque, tendo marcado muitos cenários nos primórdios da história da
humanidade, tais como da Grécia e da Roma Antiga. Entretanto, a organização
política e econômica da sociedade, já na era cristã, foi baseada no feudalismo, cuja
dinâmica da formação social era o mundo ‘rural’, já que os feudos ocupavam lugar
de destaque na produção e organização da vida cotidiana.
Passados séculos, depois de pequenas e lentas – porém significativas-,
transformações, experimentou-se a crise do modo de vida e produção feudal, o qual
aqui é contextualizado como ‘a primeira grande crise do modo de vida rural’. A
desestruturação do mundo feudal inicia com o desenvolvimento industrial das
manufaturas, o que significa a passagem do feudalismo para o capitalismo. A vida
nas vilas e cidades intensifica-se ganhando centralidade. Aos poucos, além das
atenções, também os sujeitos rurais começam a se deslocar para um espaço já,
timidamente, urbano.
Nesta dinâmica, deslocam-se inclusive os olhares, escutas e atenções da
sociedade e o rural fica entregue ao idílico, ao bucólico, ao saudosismo. Como
conseqüência, passa-se a aferir uma ambivalência desigual de sentidos entre os
dois espaços. Àquele urbano e capitalista, associado ao desenvolvimento, à
17
modernidade, à racionalidade e ao cientificismo que possibilita a acumulação
financeira em níveis impossíveis para o outro. Àquele rural pré-capitalista, associado
à estagnação no tempo medieval, ao retorno e apego ao passado, ao atraso em
relação ao mundo desenvolvido, à irracionalidade técnica e científica, ao atraso
tecnológico e, portanto, à pobreza de espírito presente em seu modo de vida.
Vários séculos se passaram e o rural adquiriu diversas roupagens,
acompanhando no seu ritmo as transformações do capitalismo. Tomou novas
dimensões, construiu outras identidades e, então, nas últimas décadas percebeu-se
nas sociedades capitalistas ocidentais a emergência de um ‘novo mundo rural’, fruto
entre outros fatores, da reestruturação produtiva da sociedade capitalista, que
atingiu o campo e a cidade.
Esta ‘nova ruralidade’ ou ‘ruralidades’, também decorrente da experiência
conflitiva entre os valores do campo e àqueles produzidos pela cultura urbana de
massa, adentra no imaginário e nas experiências de homens e mulheres que
trabalham na agricultura de base familiar. Nesse contexto, embora transformados,
continuam os padrões desiguais de gênero, os quais datam de longa existência. São
eles que ocasionam, no exercício da vida cotidiana. dificuldades bem maiores para
as mulheres do que para os homens.
É neste contexto rural, que data do final do século XX, que na região do
oeste catarinense - especificamente no município de Chapecó - se observou o
surgimento de diversas organizações sociais, formadas por trabalhadores rurais, as
quais participavam não somente do cenário sindical e político, mas também de
grupos religiosos como as CEB’s e os Movimentos Sociais.
Neste período, que foi de emergência de grupos com privilegiada
consciência crítica da realidade, e questionadores da ordem capitalista burguesa
vigente na sociedade e no Estado, também se verifica o surgimento de movimentos
sociais com forte identidade e, por conseguinte, marcados por lutas camponesas.
Especificamente em meados de 1983, nota-se o aparecimento de um movimento
social campesino - feminista e autônomo -, constituído apenas por mulheres
trabalhadoras da agricultura, o qual foi denominado inicialmente como Movimento de
Mulheres Agricultoras – MMA.
18
No horizonte maior deste movimento, assim como em outros movimentos
sociais do campo, surgidos no mesmo período1, encontra-se a luta pela
transformação societária, a qual perpassa pela mudança do modo de produção
capitalista para o socialista, a partir da perspectiva marxista. Este ideal gera um tipo
de ‘mística’ própria2, e passa a se configurar como o horizonte utópico que motivará
todas as lutas e conquistas diárias, necessárias para que se alcance uma situação
que possibilite uma transformação revolucionária.
Ainda durante os anos 80’, mesmo diante das dificuldades – as quais
pareciam impulsionar as participantes – o MMA foi crescendo e tomando vulto
regional, estadual e, logo, nacional, difundindo reflexões e propostas acerca do
cotidiano das mulheres no campo, seus direitos e demandas. Foi esta experiência
construída pelas mulheres agricultoras do oeste catarinense que contribuiu para o
surgimento de inúmeros grupos de mulheres do campo em todo Brasil, que aos
poucos foram se vinculando ao Movimento e, nele, fortalecendo discussões, lutas e
pautas de reivindicações.
Desde o princípio do Movimento, suas atividades direcionavam-se para
dar visibilidade à realidade camponesa, à situação das mulheres no campo e, por
conseguinte, visibilidade às lutas contra as desigualdades de gênero e a favor de
políticas públicas voltadas para o atendimento de suas necessidades. Suas pautas
reivindicatórias sempre tiveram como princípio orientador lutar contra o capitalismo
financeiro neoliberal, contra o latifúndio rural, contra os crimes ambientais e a favor
da reforma agrária e das políticas sociais para o campo, observado o enfoque de
gênero.
A partir do ano de 2005, baseado nas discussões de suas Assembléias
Regionais, Estaduais e Nacional, o MMA delibera a mudança de seu nome e passa
1
Aqui se faz referência ao Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST - que tem seu
embrião no sul do Brasil, ainda no final da década de 70’ e início de 80’.
2
Faz-se novamente menção ao MST e à configuração de sua ‘mística’. Esta se refere a um tipo de
espiritualidade, não necessariamente ligada à Igreja Católica, mas com fortes traços da ‘Teologia da
Libertação’. A partir dela se celebra a luta dos camponeses e camponesas no horizonte da conquista
da terra, valorizando a vida cotidiana em todas as suas dimensões: de produção, política, socialcoletiva, cultural. Nela tem lugar especial a relação com a natureza, especialmente com a terra: falase em terra para produzir alimentos e relações, terra para educar e para socializar riquezas, terra
para as gerações presentes e também para as futuras. É através desta mística própria, que se
procura fortalecer o movimento em suas lutas atuais, ao reviver a história do movimento e, nela a
memória de companheiros mortos em lutas passadas.
19
a se definir como ‘Movimento de Mulheres Camponesas’ – MMC. Esta mudança,
aparentemente só na nomenclatura, na verdade foi uma mudança de cunho político,
que trouxe significativas transformações na identidade desse movimento social,
ressaltando seu perfil de movimento camponês feminino, com uma ligação bastante
forte com a terra e com o trabalho nela desenvolvido, cuja finalidade é produzir a
subsistência familiar, o que significa afastar-se do modo de produção capitalista e
aproximar-se do horizonte de transformação socialista.
A abrangência dessas mudanças expressa a necessidade de um olhar
voltado para a realidade atual do campo. Esse olhar deve permitir reconhecer as
demandas postas na cotidianidade dos sujeitos homens e mulheres ali vivendo, e, a
partir dessas demandas, as possibilidades de respostas efetivas e eficazes na vida
desses sujeitos camponeses – homens e mulheres -, bem como de suas famílias e
comunidades rurais.
É neste campo, também, que se entende configurar um dos lugares de
atuação do Assistente Social. Entretanto, o Serviço Social, enquanto uma profissão
que surgiu a partir do desenvolvimento do capitalismo, bem como da expansão
industrial e urbana, parece que ainda não se sentiu inquirida a dedicar olhares,
saberes e fazeres para o meio rural.
Desde sua gênese, até os dias atuais, sua ação foi minimamente voltada
ao campo, embora existam experiências significativas, estabelecidas principalmente
durante o período que a profissão trabalhou a partir da perspectiva do
‘desenvolvimento de comunidade’, atuando com grupos de agricultoras e
agricultores nas comunidades rurais. Não obstante tenham existido, estas
experiências se configuram enquanto práticas que – possivelmente – marcaram
apenas um dentre os diversos períodos profissionais da categoria.
De modo semelhante, verifica-se uma tímida atuação no que diz respeito
ao acompanhamento dos diversos movimentos de mulheres, ligados ao campo, e ao
levantamento da dinâmica das necessidades e demandas que podem culminar na
efetivação de políticas públicas voltadas para a classe trabalhadora do campo. Por
conseguinte, olhando para a luta por direitos, travada pelo Movimento de Mulheres
Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC - nestes últimos anos no Brasil, levantase a hipótese de que as principais conquistas sociais, civis e políticas voltadas para
20
a classe trabalhadora camponesa e, mais especificamente para as mulheres,
tiveram forte interferência da mobilização e atuação deste movimento social
feminino, camponês e autônomo.
Diante
do
quadro
levantado,
torna-se
imprescindível
verificar
a
contribuição do MMC, organizado e atuante em Terras Catarinas, no que tange às
conquistas camponesas frente às políticas de governo e de Estado nas últimas
décadas, de forma a valorizá-las. A partir disto, será possível pensar no modo pelo
qual a profissão pode atuar no espaço rural, de forma a colaborar para a alteração
das relações de dominação/subalternidade no contexto das novas ruralidades e dos
novos padrões de trabalho e de produção agrícola, sejam elas na dimensão
capital/trabalho ou na dimensão das relações sociais de gênero.
O percurso da investigação
Logo de início, tinha-se nitidez em relação ao horizonte mais amplo do
processo investigativo - desvendar o rural para a profissão e a profissão para os
sujeitos rurais -, pois foi almejando se aproximar dele que se propôs uma
investigação sobre o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina –
MMC/SC.
Assim, a presente investigação foi entendida como um passo significativo
na direção da concretude do horizonte mais amplo, a qual poderia ser efetivada
ainda na etapa de estudos e pesquisas que envolvem os estudos de pós-graduação
em nível de mestrado acadêmico, os quais foram realizados junto ao Programa de
Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC-SP, no período de agosto de 2008 a dezembro de 2009.
Para tanto, assumiu-se analisar o processo de luta do Movimento de
Mulheres Camponesas no Estado de Santa Catarina, observando a dinâmica de sua
organização social, sua articulação política e suas estratégias para efetivação de
seus objetivos, logrando dar visibilidade a sua atuação na esfera da conquista e
garantia dos direitos, bem como no âmbito da efetivação das Políticas Públicas –
principalmente as sociais - para o campo.
21
Para cumprir tal propósito, foram definidos alguns objetivos específicos,
que passaram a balizar o processo investigativo. São eles:

Compreender como os estudos sobre o contexto rural adentram e
perpassam pelas investigações e elaborações teóricas do Serviço
Social, dedicando - para tanto - atenção especial para o campo da
sociologia rural;

Aprofundar a percepção sobre os Movimentos Sociais no contexto
brasileiro, priorizando o olhar para os Movimentos Campesinos e
neles para o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil –
MMC do Brasil;

Apontar
a
trajetória
histórica
do
Movimento
de
Mulheres
Camponesas no Estado de Santa Catarina, dando especial
atenção aos processos de construção de identidade, autonomia e
protagonismo individual e coletivo das mulheres militantes;

Levantar as pautas de lutas e as conquistas dos Movimentos de
Mulheres Camponesas, especialmente no contexto catarinense,
desde o período de seu surgimento até aquele que demarca sua
atuação na atualidade;

Identificar possíveis ações que o Serviço Social efetiva junto ao
meio rural em cada país.
É imprescindível apontar que para efetivar tais objetivos as orientações
metodológicas que balizaram o desenvolvimento da investigação tiveram como
marco teórico-metodológico a perspectiva crítica dialética, tendo sido adotada a
abordagem de pesquisa qualitativa, através da qual se buscou fazer uma
aproximação com o objeto – o Movimento de Mulheres Camponesas de Santa
Catarina - procurando compreender, de forma mais abrangente possível, as
multideterminações da realidade camponesa, no contexto capitalista, na era do
capital financeiro e numa conjuntura social, econômica, política e cultural resultante
das orientações dos organismos internacionais que impõem aos Estados Nacionais
as políticas neoliberais, sob o pretexto da globalização.
Além disso, trabalhou-se com a pesquisa de tipo exploratório, por
compreender que, primeiramente, era necessário explorar o tema, através do
22
acesso bibliográfico às várias áreas de conhecimento, às fontes documentais
institucionais, bem como através da observação de campo com coleta de dados.
Mesmo assim, procurou-se avançar – sutilmente – na descrição e explicação do
objeto, embora se tenha considerado, desde o início até o final do processo de
pesquisa, que muito mais deve ser feito nesses dois âmbitos da investigação.
Já em relação aos principais aportes teóricos utilizados, há que se dizer
que foram encontrados, entre outros, em Alvarez, Dagnino e Escobar (2000), Gohn
(1995, 1997 e 2004), Heller (1989), Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008), Kroth
(1999), Lukács (1997), Martinelli (2008), Martins (1985, 1986, 1988, 1989 e 2003),
Marx e Engels (1984), Ribeiro (2005) e Scherer-Warren (1987, 1993), bem como nos
próprios documentos, materiais institucionais e cartilhas formativas elaborados pelo
Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil e de Santa Catarina.
No que diz respeito à coleta de dados de campo, trabalhou-se com a
realização de entrevistas orientadas por um roteiro pré-estabelecido3 - ou seja, semiestruturado - por entender que este procedimento permite conduzir a coleta dos
dados e, ao mesmo tempo, não arriscar a dispersão de seus objetivos, possibilitando
inclusive a participação direta dos sujeitos da investigação, priorizando a interação e
o diálogo com os mesmos.
Neste sentido, salienta-se ainda que a coleta de dados foi realizada tendo
como público informante4 três mulheres camponesas militantes do Movimento de
Mulheres Camponesas em Santa Catarina, as quais ocupam no Movimento funções
de dirigentes, tanto em nível local quanto regional, estadual, nacional e até mesmo
internacional. Aqui se registra que em momento oportuno, no quarto capítulo, elas
serão devidamente apresentadas, sugerindo-se que se guarde para conhecê-las.
Dito isto, é importante salientar que depois de elaborada a base de
conhecimento teórico-metodológico indispensável para os estudos em nível de
mestrado – passo que se efetivou através dos cursos oferecidos pelo Programa de
Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP -, tornava-se imperioso
refletir sobre as necessidades e demandas camponesas; as lutas e conquistas das
mulheres camponesas organizadas no MMC/SC; e os direitos e as políticas públicas
3
Apêndice I: Roteiro de entrevista.
4
Apêndice II: Termo de livre consentimento de entrevista.
23
voltadas para o campo - sejam as últimas já efetivadas, em fase de implementação
ou somente levantadas como demandas pelos sujeitos rurais. Isso se fez tendo
como base fundamental para as análises ‘o olhar para as mulheres camponesas que
participam do MMC/SC’, atentando para sua cotidianidade de vida, para a dinâmica
de organização e articulação das lutas e para os processos de construção de
identidade, autonomia e protagonismo social que acontecem na esfera individual de
vida das militantes e na esfera coletiva da dinâmica própria desse movimento social
camponês feminino.
Como plano para o percurso de reflexão, apontaram-se alguns itens que
necessitavam maior aprofundamento, os quais passaram a compor o quadro
investigativo. Primeiro, notou-se que era necessário adentrar no universo que
compõe o ‘espaço rural’. Esta tarefa foi abraçada tomando-se, como referências
básicas, as produções clássicas e contemporâneas da sociologia rural. Na
seqüência, tornava-se imperioso adentrar no campo dos Movimentos Sociais,
especialmente naqueles que se desenvolveram no contexto brasileiro, tendo um
olhar ainda mais especial para os Movimentos Sociais Camponeses.
Avançados estes dois itens, a demanda agora se direcionava no sentido
de aprofundar questões que se identificava enquanto componentes da dinâmica,
tanto do modo de vida camponês - de forma geral -, como da vida das mulheres
camponesas militantes do MMC/SC e da dinâmica do próprio Movimento. Para
tanto, se aprofundaram os estudos sobre a cotidianidade rural, o processo de
construção da consciência crítica, da identidade, da autonomia e do protagonismo
social.
Superadas as três primeiras etapas, passou-se para o âmbito da
investigação reservado para o aprendizado com os próprios sujeitos da pesquisa: as
mulheres camponesas militantes do Movimento de Mulheres Camponesas no
Estado de Santa Catarina. A partir desta etapa investigativa foi possível estabelecer
um debate significativo, que, embora desafiante, foi muito profícuo, permitindo um
novo saber acerca da dinâmica social, política, econômica e cultural que compõem o
contexto e o modo de vida rural.
As elaborações resultantes dessa quarta etapa investigativa passam a
fazer parte de uma nova base de conhecimento sobre o ‘universo campesino’ e
24
especialmente sobre os cenários das mulheres camponesas e de suas lutas sociais
e políticas. Estima-se que essa nova base de conhecimento possa oferecer alguns
dos subsídios necessários para futuras discussões, as quais continuarão a ter como
horizonte investigativo mais amplo a relação entre o contexto rural e o Serviço
Social!
Sobre os quatro capítulos que se seguem
No primeiro capítulo deste trabalho, que leva como título “O espaço rural
e o Serviço Social: desvendando a matriz teórica a partir da Sociologia Rural”,
apresenta-se o estudo dos aportes teóricos, já entremeados por análises da
investigadora os quais possibilitam adentrar no universo camponês, principalmente
através de seu modo de vida. O capítulo é subdividido em duas partes: na primeira,
abordam-se os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’, o ‘pensamento conservador’
e as relações com o Serviço Social, as discussões sociológicas sobre o ‘rural’,
aportadas principalmente no dualismo e na crítica sociológica e, por fim, o
pensamento conservador em Nisbet e Mannheim. Na segunda, procura-se
acompanhar o processo através do qual, sutilmente, se vai modificando o olhar para
o rural, discutindo-se sobre a comunidade rural e sua identificação segundo as
incidências do conservadorismo e do tradicionalismo - numa leitura de Lefebvre.
Logo em seguida, apresenta-se o levantamento de uma (outra) caracterização
interessante sobre que é o rural, para, enfim, debater sobre os apontamentos acerca
do ‘rural’ e do ‘sujeito rural’ no pensamento social contemporâneo.
No segundo capítulo, cujo título apresenta de forma objetiva o tema de
que trata “Os Movimentos Sociais”, organiza-se uma longa e profunda discussão
subdividida em três blocos de estudo. O primeiro, trata da trajetória histórica, dos
paradigmas teóricos e
da
conceituação acerca
dos Movimentos Sociais,
desenvolvendo um olhar desde a entrada no cenário público, o seu surgimento no
campo teórico, até os principais conceitos debatidos na atualidade. O segundo bloco
trabalha na perspectiva da elaboração de um retrato brasileiro, catarinense e
campesino sobre os movimentos sociais, conferindo especial atenção à trajetória no
25
âmbito brasileiro, bem como a colaboração que tiveram os movimentos camponeses
na construção da história em terras catarinenses. Já no terceiro bloco, para além
das discussões conceituais, debate-se a abordagem dos movimentos sociais sob o
ponto de vista de sua interação dialética na sociedade, abordando a questão da
criação de novas relações sociais, dentre as quais se configuram a participação e
democratização como estratégias políticas adotadas pelos movimentos sociais.
Também debate-se sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das
mulheres’ nos movimentos sociais, como possibilidade de construção de novas
relações sociais de gênero, sobre os movimentos sociais na cotidianidade e o
surgimento da cultura de participação política e, finalmente sobre os movimentos
sociais enquanto formuladores de política e construtores de cultura.
No terceiro capítulo, aprofunda-se a questão dos processos de
identificação, considerando que eles partem especialmente da cotidianidade de vida
dos indivíduos sociais. Logo, nesse capítulo que tem por título “O Movimento de
Mulheres Camponesas do Brasil – Da cotidianidade à construção de identidades”,
aborda-se teoricamente as inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e
na construção da identidade das mulheres camponesas, a matriz identitária do
Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, para, enfim, avançar o olhar para
‘as identidades’ presentes no referido Movimento.
Por fim, no quarto e último capítulo, apresenta-se a discussão de cinco
blocos temáticos. Ressalta-se que, fundamentalmente nesse quarto capítulo, as
bases principais para a análise foram emprestadas do diálogo estabelecido com as
três mulheres trabalhadoras, camponesas e militantes do MMC/SC, que se
configuraram como sujeitos desta investigação e, gentilmente, disponibilizaram-se a
compartilhar seus saberes com esta pesquisadora. Neles são realizadas análises, as
quais fazem, num primeiro momento, uma reflexão sobre ‘a expressão do campo na
atual fase da sociedade capitalista’, para em seguida discutir ‘os movimentos sociais
camponeses no Brasil’. Posteriormente, adentra-se no debate sobre ‘o Movimento
de Mulheres Camponesas em Santa Catarina’, apontando e re-significando sua
trajetória histórica, sua identidade e suas lutas sociais. No quarto bloco, se faz uma
reflexão sobre ‘os direitos sociais e as políticas públicas para o campo’, destacados
a partir das conquistas do Movimento, além de apontar as atuais demandas e
26
reivindicações desse Movimento. É essa análise que conduz para o quinto bloco,
fornecendo as bases necessárias para debater sobre ‘a relação entre Serviço Social
e meio rural’, o que permite avançar na caminhada de aproximação ao horizonte
investigativo mais amplo tomado por essa investigadora.
Depois desta longa trajetória investigativa, ainda cabem algumas
considerações, que ao mesmo tempo apontam para a finalização da etapa de
pesquisa que pode ser desenvolvida no âmbito dos estudos de mestrado, mas
também acenam para novas demandas de investigação no campo dos estudos e da
atuação do Serviço Social no espaço rural.
Portanto, sem mais delongas, eis que se parte para a investigação.
27
CAPÍTULO I
O ESPAÇO RURAL E O SERVIÇO SOCIAL: DESVENDANDO A MATRIZ
TEÓRICA A PARTIR DA SOCIOLOGIA RURAL
O fato de que as grandes lutas sociais deste século,
em diferentes regiões do mundo,
tenham sido e continuem sendo lutas camponesas
não é fruto do acaso.
Nem é fruto de uma resistência camponesa arcaica,
em nome de um idílico passado pré-capitalista.
É fruto de obstinada e demorada contestação da
forma assumida pela presença do capital
na vida das populações rurais,
combinada com uma intensificação, sem limites,
da extração de excedentes econômicos,
que nega e denuncia
a igualdade formal e aparente
na troca mercantil.
José de Souza Martins
Do livro ‘Caminhando no chão da noite’, 1989. p.156.
28
Preparando a reflexão – À guisa de introdução do capítulo
Neste primeiro capítulo propõe-se fazer algumas reflexões sobre o estilo
do pensamento conservador, o qual por longos anos auxiliou a decifrar o mundo
rural, campo em que se insere o objeto de pesquisa desta dissertação de mestrado.
O objetivo, a partir desta abordagem, é perceber como o mundo rural adentra nos
estudos e reflexões das ciências sociais, haja vista que muitas concepções ainda
permanecem como referência na atualidade. Isto feito, durante o próprio estudo será
possível perceber se tais aportes incidem nas reflexões acerca das relações entre o
Serviço Social e o contexto rural, tendo como mediação fundamental as políticas
sociais para o campo.
Os fundamentos para cumprir essa tarefa foram encontrados nos estudos
de sociologia rural, tendo como principal referência os realizados por José de Souza
Martins (1973, 1978, 1983, 1986 e 2003). Além destes, figuram os estudos de
Robert Nisbet (1970), Karl Mannheim (1963), Henri Lefebvre (1970), Aldo Solari
(1971), Valmir Luiz Stropasolas (2006), José Graziano da Silva (2003), Milton Santos
(2008), Mailiz Garibotti Lusa (2008), Marilda Iamamoto (2000) e Gustavo Parra
(1999). Parte dessa bibliografia foi estudada e discutida nas aulas do curso de
Fundamentos Teóricos Metodológicos do Serviço Social I e II, oferecido pelo
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP e ministrado pela
Professora Dra. Maria Carmelita Yazbek.
A importância do estudo proposto nesse capítulo reside no fato de que o
Serviço Social, enquanto campo de produção de conhecimento, abarca timidamente
as reflexões sobre o mundo rural e, de forma semelhante, também volta timidamente
sua ação profissional para este meio. Neste sentido, indicam-se dois pressupostos:
o primeiro, sugere que a inexistência de reflexões teóricas colaboraria para a baixa
incidência da atuação profissional neste campo. O outro faz exatamente o percurso
contrário: o fato da profissão dificilmente dedicar seu olhar e prática para este meio
faria com que não houvesse necessidade de produzir reflexões teóricas acerca
deste campo.
Os dois pressupostos estão diretamente imbricados, permitindo indagar
sobre os motivos pelos quais o Serviço Social discute infimamente as políticas
29
públicas – especialmente as sociais - voltadas para a área rural. Por que não são
colocadas, no centro das discussões profissionais, as demandas dos cidadãos que
vivem no meio rural? Por que, ao voltar o olhar para os movimentos sociais do
campo, dedica-se atenção apenas para o movimento de maior repercussão nos
meios de comunicação, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST,
deixando-se de lado outros movimentos como o Movimento das Mulheres
Camponesas - MMC? Por que discutir o objeto da intervenção profissional, a
Questão Social em suas múltiplas expressões, somente a partir do contexto urbano?
Poder-se-ia desconectar a ocorrência das múltiplas expressões da Questão Social
no contexto urbano, da idéia de que o meio rural foi e ainda continua a ser o espaço
original dos sujeitos ora urbanizados, além de ser o espaço onde, também, incidem
os reflexos perversos do capitalismo e da urbanização, uma vez que o rural faz parte
desta mesma sociedade, a de um capitalismo financeiro à beira de um colapso?
Diante disso e também do fato de que o propósito desta investigação é
debater sobre o Movimento de Mulheres Camponesas e a incidência de suas lutas
no campo dos direitos sociais e das políticas públicas voltadas para as mulheres e
para as famílias camponesas, visualiza-se como necessidade para o percurso
teórico da pesquisa, refletir sobre os estudos que, embora não sejam próprios do
Serviço Social, adentram sutilmente no modo pelo qual este discute questões
correlatas ao meio rural. Estudos que se encontram no campo da sociologia rural e
que perpassam necessariamente pelo estilo de pensamento conservador, que
introduziu ‘o rural’ no campo das ciências sociais.
Ao dizer isto, é necessário reafirmar que o ‘olhar sobre o pensamento
conservador’, objetivado neste capítulo, terá como perspectiva de análise o
referencial crítico fundamentado no método marxista, ou seja, no materialismo
histórico dialético.
Além disto, é importante destacar que, para tratar do ‘pensamento
conservador’, discutir-se-á dois estilos de pensamento abordados pelos autores já
mencionados:
o
tradicionalismo
-
mais
enfocado
por
Nisbet
-
e
o
romantismo/racionalismo - por Mannheim. Neste sentido, embora se faça um
percurso de passagem por estas duas abordagens, que são consideradas por
Martins (1983) como estilos de pensamento, privilegia-se o olhar para o
30
conservadorismo enquanto corrente de pensamento em si mesmo e a partir dele
para a compreensão sobre o rural, o qual se configura como objeto deste capítulo.
Enfim, as reflexões serão apresentadas em duas seções. A primeira trará
a discussão sobre ‘o rural e o conservadorismo’, a qual será desenvolvida nos itens
em que se apresenta uma breve consideração sobre ‘O Pensamento Conservador e
o Serviço Social’; na seqüência esboça-se a reflexão sobre ‘As discussões
sociológicas sobre o rural - O dualismo e a crítica’, para então discutir acerca de ‘O
pensamento conservador em Nisbet e Mannheim’.
Na segunda seção deste capítulo, discutir-se-á ‘o rural’ a partir de
matrizes que se distanciam do tradicional conservadorismo e se aproximam,
sutilmente, dos atuais estudos da sociologia rural. Tal discussão está presente nos
itens: ‘A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do
conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre’; ‘O levantamento
de uma (outra) caracterização interessante sobre que é o rural’; e já com significativo
embasamento teórico, passa-se a fazer ‘Apontamentos sobre o rural e sobre o
sujeito rural no pensamento social contemporâneo’.
Eis o desafio!
31
PRIMEIRA SEÇÃO
Desvendando os fundamentos teóricos acerca do ‘rural’
1.1.1. O Pensamento Conservador e o Serviço Social
Não há novidades em discutir o conservadorismo enquanto perspectiva,
estilo, ideologia ou pensamento social - dentre outras designações que lhe são
atribuídas - dado que isto já foi feito por muitos pensadores e estudiosos, tanto das
ciências sociais quanto de outras áreas, tais como o Serviço Social. E por falar deste
último, as várias discussões acontecidas perpassaram pela história da profissão e
muito contribuíram para sua configuração nos vários momentos e contextos
históricos, oferecendo-lhe hoje muitos traços quase imperceptíveis, mas que
deixaram marcas que fazem parte da sua identidade profissional.
Embora os primeiros grupos, escolas e pensadoras do Serviço Social não
considerassem ‘conservador’ o Pensamento Social da Igreja, e nem mesmo o
pensamento Funcionalista e o Positivista, no decorrer da trajetória histórica,
reconheceu-se que durante os primeiros tempos da profissão, ensinou-se sutilmente
o conservadorismo como matriz de pensamento e ação.
O que ocorre é que, para aquele cenário, tanto da sociedade capitalista
brasileira quanto das ciências sociais e humanas, o pensamento social da Igreja e o
Positivismo e Funcionalismo se configuravam como vanguardas teóricas, as quais
propiciavam um fazer social e político ‘progressista’ para o contexto histórico que
ainda se apresentava, mesmo nas primeiras escolas de Serviço Social, quando a
profissão ainda estava sendo gestada e o assunto era quais bases teóricas dariam
sua fundamentação. Vivia-se um período de buscas incessantes pelas melhores
matrizes para alicerçar a profissão: belga, norte-americana e outras tantas. Já nelas,
mesmo que indiretamente, discutia-se o conservadorismo. Ensinava-se, aprendiase, debatia-se e, por fim, agia-se segundo esta mesma orientação.
Discutia-se o conservadorismo quando se começou a indagar sobre
outras concepções que possibilitassem outros olhares para a realidade, para os
32
sujeitos e para a própria profissão e até no próprio momento de ruptura com esta
corrente! E mesmo depois disto, continuou-se discutindo o conservadorismo como
forma de balizar as discussões, contrapondo constantemente à nova base de
fundamentação teórica, sendo este um dos modos de descobrir, através destes
mesmos contrapontos, em que a nova corrente transformava o olhar e o agir, que
naquele momento mostravam-se muito mais politizados. E, mesmo hoje, continua-se
discutindo o conservadorismo, ora para apreender o processo histórico de
fundamentação teórico-metodológica da profissão, ora para desvendar os porquês
das várias percepções de mundo e formas de agir que, mesmo fazendo parte de um
passado recente, ainda deixam algumas marcas no agir profissional contemporâneo.
Entretanto, não é exatamente sobre o ‘conservadorismo no Serviço
Social’ que se procurará tratar. O objetivo deste capítulo é discutir o
‘conservadorismo’
enquanto
matriz
de
pensamento
social
vinculada
ao
tradicionalismo e, a partir desta, desvendar os ‘respingos teóricos’ que permanecem
na compreensão sobre o rural para o exercício da profissão de assistente social.
Talvez resida aí a colaboração deste momento da investigação: a partir da
discussão sobre conservadorismo e tradicionalismo, dar pistas para desvendar
sobre como a profissão percebe o rural, ou seja, como se relaciona com o campo e
o camponês, para posteriormente compreender como podem ser as relações da
profissão com os movimentos sociais camponeses.
Poder-se-ia perguntar: por que discutir o conservadorismo para chegar
até o ‘rural’? E por que discutir o rural? Qual a importância de desvendar a
percepção de rural presente no Serviço Social?
Feitas as indagações, entende-se que as respostas viriam de imediato ao
dizer que o caminho que a maioria dos estudiosos desta questão fez, especialmente
aqueles que se dedicaram à sociologia rural, passou pelas discussões sobre as
interferências da corrente teórica conservadora. Poderia se dizer, ainda que discutir
o rural significa dispor-se a compreender um espaço da sociedade capitalista, que,
mesmo fazendo parte do todo que a constitui, geralmente é colocado como um
espaço periférico a ela. Logo, como um espaço que não demanda olhares, escutas,
debates e, portanto, atendimento.
33
Enfim, para pensar a relação entre Serviço Social, contexto rural e
pensamento conservador, tão importante quanto os pressupostos já levantados para
a abordagem desta temática, é reafirmar aquilo que alguns estudiosos já disseram: a
questão social5 não se manifesta somente nos centros e periferias urbanas, ela está
presente e deixa marcas também no rural e; muitas vezes, origina-se neste rural, um
espaço da sociedade capitalista, lugar de morada e de trabalho de muitos cidadãos.
Portanto, lugar que também demanda o olhar do Serviço Social.
1.1.2 As discussões sociológicas sobre o ‘rural’ - O dualismo e a crítica
José de Souza Martins, ao introduzir a crítica à sociologia rural, fala sobre
a existência de um dualismo ou ambigüidade nos esquemas teóricos subjacentes à
análise do mundo rural, afirmando que o que alguns consideram como ambigüidade,
ele apenas vê como esquema dualista ou como ambigüidades de origem da
sociologia. Segundo o autor (1986, p.11)“[...] a crítica à razão dualista vem de longe,
num ritmo constante, e foi desde sempre vinculada à necessidade de produzir uma
explicação totalizadora e histórica para os descompassos entre a cidade e o campo,
na cidade e no campo”.
5
Tomada como objeto do Serviço Social, é trabalhada por vários autores sob perspectivas que ora se
aproximam e ora se afastam. Neste momento não se adentrará neste âmbito da questão; no entanto,
cumpre explicitar que a perspectiva adotada nesta investigação segue a direção de Iamamoto (2008),
para quem a ‘Questão Social’ “ [...] é mais do que as expressões de pobreza, miséria e ‘exclusão’.
Condensa a banalização do humano, que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do
trabalho social - e dos sujeitos que o realizam - na era do capital fetiche. [...] Neste cenário, a ‘velha
questão social’ metamorfoseia-se, assumindo novas roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura
entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o
impulsionam. Fratura esta que vem se traduzindo na banalização da vida humana, na violência
escondida no fetiche do dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esferas
da vida social. Violência que tem no aparato repressivo do Estado, capturado pelas fianças e
colocado a serviço da propriedade e do poder dos que dominam o seu escudo de proteção e de
disseminação. O alvo principal são aqueles que dispõem apenas de sua força de trabalho para
sobreviver: além do segmento masculino adulto de trabalhadores urbanos e rurais, penalizam-se os
velhos trabalhadores, as mulheres e as novas gerações de filhos da classe trabalhadora, jovens e
crianças, em especial negros e mestiços. [...] A questão social expressa, portanto, desigualdades
econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de
gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos
da sociedade civil no acesso aos bens da civilização ” (IAMAMOTO, 2008, p.125;144;160. Grifos no
original).
34
No que se refere ao dualismo, Martins (1986, p.13) o entende como
sinônimo das ambiguidades presentes na sociologia. Afirma: “[...] as ambigüidades
de origem da sociologia se expressam simultaneamente no conservadorismo e no
cientificismo, ‘comportando-se’ na particularização da realidade e na particularização
do conhecimento - como rural de um lado e sociologia rural de outro”. Esta idéia é
desenvolvida, aos poucos, pelo autor, que demonstra a partir das reflexões de três
sociólogos, Mannheim, Nisbet e Lefebvre, como tal ambigüidade vai se fazendo
presente também nos estudos sociológicos voltados para o rural, ora enfatizando
um, ora enfatizando outro aspecto do pensamento.
Sinteticamente, para Mannheim, a ‘ambigüidade sociológica’ consiste na
relação entre as condições sociais e históricas e a definição da produção do
conhecimento num dado momento. Ou seja, “[...] as intenções básicas configuram
não só o modo de ser, mas também o modo de pensar [...]” (MANNHEIM, 1963,
apud Martins, 1986, p.14), o que faz com que as teorias do pensamento se
configurem como reflexos do modo de vida prevalecente na sociedade, no
determinado período em que tal pensamento surge e se torna vigente. Este
receberia também interferências do período anterior - considerado como tradicional que seriam como que ‘heranças’ deixadas pelo pensamento vigente até então.
Segundo Martins
[...] Mannheim consegue mostrar como uma ciência apoiada em
pressupostos conservadores, como a sociologia de Tönnies, só se torna
possível com base num estilo de pensamento que é, necessariamente,
racionalista. A reflexão que dá corpo e estrutura ao conservadorismo é, na
época do racionalismo, científica e, portanto, racional (MANNHEIM, 1963,
apud Martins, 1986, p.15).
Para Nisbet, haveria um “compromisso entre determinadas necessidades
socialmente fundamentadas de produção do conhecimento e determinadas idéias já
conceptualizadas (sic) e estruturadas num sistema de conhecimento politicamente
fundado” (NISBET, 1970, apud Martins, 1986, p.13). Portanto, a ‘ambigüidade
sociológica’ estaria na inter-relação entre o pensamento tradicional de uma época
específica, fundado politicamente, segundo o modo de vida e os interesses
dominantes na sociedade naquela época e o pensamento que começa a se
desenvolver e firmar a partir de então.
35
Já para Lefebvre, “[...] a sociedade capitalista define e redefine categorias
através das quais procura auto-interpretar-se e nas quais busca fundamentos para
um programa político de ordenação social e de neutralização de tensões sociais”
(LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.13). Assim, o pensamento vigente na
sociedade teria sempre algo novo, mas também algo herdado do pensamento
anterior (um misto entre novidade e reforma), o qual seria produzido pela própria
sociedade a fim de suprir suas necessidades de auto-compreensão e organização
social e política, naquele determinado período.
Este dualismo expresso por Martins (1986) com base no pensamento dos
três autores, que é também considerado por vários sociólogos como uma espécie de
ambigüidade
teórica,
exerce
uma
interferência
imediata
na
compreensão
fragmentada entre o mundo e a realidade rural e a urbana, fazendo com que não
somente exista uma separação entre eles, mas que eles se situem em pólos
totalmente opostos de uma mesma sociedade, não possibilitando relacionar tais
esferas como partes interligadas de uma mesma realidade e em um mesmo tempo
histórico.
Considerando a interferência das teorias sociológicas no modo pelo qual
o Serviço Social apreende e interpreta o “rural”, especificamente das teorias
sociológicas sobre o rural, sejam conservadoras ou tradicionais, percebe-se a
relevância de que, neste capítulo, se trate primeiramente de tais teorias para depois
discutir a forma pela qual o Serviço Social reflete e trabalha acerca do meio rural.
Esta percepção possibilitaria não somente localizar o campo teórico da
investigação proposta, mas também avançar para além dos desafios de tal reflexão,
ampliando o espaço de debate e, com ele, as possibilidades de produções próprias
do Serviço Social nesta área. Para isto, considerando novamente Martins (1986),
afirma-se que é de fundamental importância conhecer a razão deste dualismo
sociológico, para então poder avançar sobre os seus limites, o que para ele significa
desenvolver o pensamento crítico.
Segundo o autor
A crítica nem é produto da suposta genialidade de alguns, nem se confunde
com a recusa do conhecimento, com a simples objeção aos modelos de
explicação definidos como insatisfatórios para a análise de certos aspectos
da realidade. O procedimento crítico é aquele que incorpora, ultrapassando,
determinado conhecimento (MARTINS, 1986, p.12).
36
É com base nesta mesma proposta que se pretende desenvolver aqui a
reflexão. Ou melhor, será a partir da crítica à visão fragmentada da sociedade em
seus vários espaços, e da tentativa de reconhecer os nexos entre rural e urbano,
que se procurará aproximar os debates feitos no campo do Serviço Social acerca do
‘mundo rural’.
Assim, partir-se-á da reflexão de Martins (1986) refletindo sobre a
necessidade de um olhar crítico que avance na direção da superação de
determinadas concepções e estilos de pensamento, o que implica um olhar político,
isto é, um olhar que possibilite visualizar as razões e determinações históricas que
levaram ao desenvolvimento de alguns pensamentos, que se tornaram hegemônicos
na sociedade capitalista.
Partindo deste pressuposto, é possível compreender que “a própria noção
de rural seria elaborada a partir de determinadas condições e circunstâncias sociais,
[...] sendo que a premissa [para a reflexão] é a de que o rural é parte de uma forma
de construção social da realidade, ainda que no âmbito do chamado conhecimento
sociológico” (MARTINS, 1986, p.12-13).
Portanto, Martins (1986), ao ter elegido como seu objeto de reflexão a
sociologia rural, a partir de um pensamento crítico e de um olhar político, oferece os
fundamentos necessários para que se possam discutir os elementos do pensamento
conservador que deixaram marcas na compreensão do ‘rural’, não somente por
parte do Serviço Social, mas de várias outras áreas do conhecimento.
Porém, antes de finalizar esta reflexão, deseja-se introduzir uma pergunta
que tem sido colocada de forma recorrente no campo dos estudos sobre o meio rural
e que, portanto, toca também essa investigação. ‘Estar-se-ia vivendo um momento
em que está acontecendo o ‘fim do rural e dos camponeses’?
Esta pergunta tem espreitado a sociologia rural há vários anos, indagando
inclusive sobre suas bases de estudo. No entanto, por mais que se desenvolvam
debates e investigações acerca desta indagação, ela parece sempre recente. Vejase o que já dizia Jacques Guigou:
Há praticamente dez anos se proclamou “o fim dos camponeses”; devemos
constar, hoje, “o fim dos rurais”? E se se (sic) tratasse, mais precisamente,
do fim da ideologia que tende a identificar “os rurais” como uma categoria
social particular, arbitrariamente separada do resto da sociedade? O campo
não seria afetado pelas leis da transformação sócio-política e institucional
37
que atingem o conjunto de uma formação social? (GUIGOU, 1971, apud
Martins, 1986, p.136)
Nas indagações do autor, fica explícito o questionamento à própria
sociologia rural, às suas intenções e, nisto, por conseqüência, torna-se objetiva a
pergunta sobre quais são as suas demandas e quem são os reais autores delas.
Mesmo
na
sociologia
rural
tais
indagações
ainda
permanecem
na
contemporaneidade. Reconhecendo-se as transformações pelas quais passou e
continua passando o meio rural, neste período de acirramento do capitalismo
financeiro, parece ser oportuno se colocar a questão: como deve ser a ação
profissional desenvolvida no meio rural, seja ela de qualquer área profissional e o
saber voltado para este campo?
Por outro lado, há que se registrar que a sociologia rural em sua
perspectiva crítica avançou nesta questão, apresentando hoje significativas
reflexões, as quais oferecem indicativos interessantes também para o Serviço Social
sobre o que é o rural e quais suas demandas. Acima de tudo, o que se coloca
atualmente é o reconhecimento da identidade rural sem, no entanto, fragmentá-la
como se fosse uma realidade à parte da sociedade, tal como se fazia ao pensar
‘numa integração social do campo à cidade’.
Destarte, serão apresentadas, a seguir, as reflexões mais recentes sobre
o espaço rural. Entretanto, antes de se fazer tais reflexões, é necessário buscar, no
pensamento conservador, as origens de como este rural era percebido e tratado
pela sociologia rural, em seus primórdios.
1.1.3 O pensamento conservador em Nisbet e Mannheim
Primeiramente, é interessante registrar que a reflexão que se propõe
apresentar aqui não é nem tão simples e nem tão objetiva como se esperaria. Pelo
contrário, tanto o pensamento de Nisbet quanto de Mannheim, acerca do
conservadorismo e, por conseqüência, do tradicionalismo, do racionalismo burguês
e do pensamento progressista, foram elaborados segundo uma lógica sociológica
que perpassa vários outros contornos não apropriados pelo Serviço Social e que,
38
portanto, não se tornam tão objetivos nos estudos desta última área do
conhecimento.
Mesmo reconhecendo que tal dificuldade está posta, arrisca-se em
desenvolver esta reflexão, com a intenção de colaborar para desvendar um pouco
mais os traços do pensamento conservador com base, essencialmente, nestes dois
pensadores e, a partir deles, a incidência no modo pelo qual se compreende o
espaço rural.
Antes disso, opta-se, enquanto percurso metodológico, por apresentar
três considerações acerca dos principais conceitos que serão abordados neste item,
a partir do que indica o Dicionário Básico de Filosofia.
Conforme Japiassú e Marcondes, “conservadorismo é a doutrina ou
atitude justificando a manutenção de um regime político ou social existente, de uma
civilização ou cultura e opondo-se a toda mudança nas instituições, na moral, na
religião, nos usos e costumes” (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p.55). Já , por
tradicionalismo, compreende-se a atitude conservadora de apego à tradição, à
doutrina ou aos costumes e idéias que são aceitas pela sociedade, grupo social, ou
escola de pensamento, resistindo às críticas e inovações (JAPIASSÚ e
MARCONDES, 2006, p.270).
E, finalmente, por racionalismo entende-se
A doutrina que privilegia a razão dentre todas as faculdades humanas,
considerando-a como fundamento de todo conhecimento possível. O
racionalismo considera que o real é em última análise racional e que a
razão é, portanto, capaz de conhecer o real e de chegar à verdade sobre a
natureza das coisas. O racionalismo designa doutrinas bastante variadas
suscetíveis de submeter à razão todas as formas de conhecimento
(JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p.233).
Definidos estes conceitos, parte-se para a discussão acerca dos estudos
de Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.43), o qual inicia refletindo sobre o que ele
denomina como ‘idéias-unidade’, as quais constituem a chave de um sistema ou
escola de pensamento, e não apenas a biografia deste ou daquele pensador. Para
ele, estas idéias seriam os elementos dos sistemas, que permitiriam identificar “[...]
sistemas tão complexos e diferentes entre si, como o idealismo platônico, a
escolástica medieval, o racionalismo secular e o romantismo”. Além disto, ele parte
do pressuposto de que “vemos não só os elementos constitutivos, as idéias-
39
unidades, mas também os novos agrupamentos de homens e idéias, percebendo
afinidades e oposições que poderíamos não imaginar que existissem“.
Desta forma, Nisbet prepara seu campo de reflexão para apresentar, em
seguida, as idéias e temas do pensamento do século XIX, juntamente com seus
pares antinômicos, dentre os quais se encontram aquelas que ele identifica como as
idéias-unidades essenciais da sociologia daquele período: a “[...] comunidadesociedade, autoridade-poder, status-classe, sagrado-secular e alienação-progresso
.(NISBET, 1973, apud Martins, 1986, p.43).
A partir delas, o autor passa a debater sobre as idéias do racionalismo
individualista dos séculos XVII e XVIII e sobre a reação do tradicionalismo contra a
razão analítica, que pôde ser notada nos vários campos do saber, desde a literatura,
a filosofia, a teologia, a jurisprudência, a historiografia, até a sociologia.
Mas, para que esse movimento das escolas ou sistemas de pensamento
possa ser compreendido e apreendido por quem dele se interessar, Nisbet (1973,
apud Martins, 1983, p.48) alerta para um cuidado que se deve ter. Segundo ele,
A falácia sobre a origem das idéias transformou freqüentemente a história
do pensamento em seqüências abstratas de idéias geradas uma após outra.
No pensamento político e social, em particular, é preciso ver
constantemente as idéias de cada época como respostas às crises e aos
desafios conseqüentes das grandes mudanças de ordem social.
Dito isto, e antes de tratar diretamente sobre o conservadorismo, este
pensador vai identificar três ideologias, que para ele estão em questão, dado que se
configuram como sistemas de pensamento praticamente contemporâneos: o
liberalismo, o radicalismo e o conservadorismo.
A primeira das três grandes ideologias do século XIX é o liberalismo.
Conforme Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.49), “o que distingue o liberalismo é a
devoção ao indivíduo, em especial aos seus direitos políticos, civis, crescentemente,
sociais”. Ele ainda complementa ao dizer que “aquilo que a tradição representa para
o conservador e o uso do poder para o radical, a autonomia individual representa
para o liberal”.
Em relação à segunda das três ideologias, Nisbet (1973, apud Martins,
1986, p.50) afirma que
Encontra-se no radicalismo - que freqüentemente deriva do liberalismo e
alia-se a ele - uma mentalidade muito diferente. [...] O elemento que o
distingue, ao meu ver, é o senso das possibilidades redentoras contidas no
40
poder político. [...] o que tivemos no radicalismo do século XIX, uma linha
absolutamente secular, foi um milenarismo revolucionário nascido da fé no
poder absoluto; não o poder em si mesmo, mas em nome da libertação
racionalista e humanitária do homem das tiranias e desigualdades.
Ao se referir ao conservadorismo - principal objeto de estudo deste item Nisbet já inicia sua reflexão dizendo que esta é a corrente, que dentre as três, é a
menos analisada, mas que, no entanto, deveria acontecer o contrário, pois
justamente nela o autor encontra estreita singularidade com as idéias-unidade da
sociologia.
Para Nisbet (1973, apud Martins, 1986, p.51), “o conservadorismo
moderno é, pelo menos em sua forma filosófica, produto da Revolução Industrial e
da Revolução Francesa. Produto não-intencional, involuntário, e odiado pelos
protagonistas de ambas as revoluções, mas, não obstante, seu produto”. E ele
continua, afirmando:
[...] O ethos do conservadorismo é a tradição, essencialmente a tradição
medieval. De sua defesa da tradição social surgiu a ênfase em valores tais
como comunidade, parentesco, hierarquia, autoridade e religião, e também
a sua premonição de um caos social, coroado pelo poder absoluto, se os
indivíduos fossem arrancados dos contextos desses valores, pelas forças
do liberalismo e do radicalismo.
Como demonstra Nisbet (1973, apud Martins, 1986), há um claro retorno
das idéias difundidas e defendidas na Idade Média, porém isto ocorre sem que os
pensadores, ditos modernistas, percebam o fato. Segundo ele, “[...] cada vez mais, a
sociedade medieval fornecia um modelo comparativo ao modernismo, para a crítica
deste último” (p.55).
Neste sentido, percebe-se que a clara intenção de Nisbet é demonstrar
que haveria em cada indivíduo uma espécie de conservadorismo intrínseco as suas
concepções, que não deixa rastros visíveis, mas que os liga ao passado e às idéias
deste passado, agora, em colisão com a modernidade. De acordo com Nisbet, “há
um conservadorismo de conceitos e símbolos e um conservadorismo de atitudes”.
Isto fica expresso na afirmação a seguir, quando, ao analisar três expoentes do
modernismo, dentre os quais Weber e Durkheim, diz que “[...] a partir da visão atual,
é possível perceber nos escritos destes três homens, correntes profundas de
conservadorismo, que se moviam em direção contrária a sua filiação política
manifesta” (NISBET, 1973, apud Martins, 1986, p.43).
41
Já partindo para finalizar a discussão sobre a relação de aproximação
sociologia e conservadorismo, Nisbet destaca dois pontos que devem ser
enfatizados nesta relação, quais sejam: “a base moral da sociologia moderna” e “a
estrutura intuitiva e artística de pensamento” (1973, apud Martins, 1986, p.58).
Observa-se que o sentido da primeira já é bastante explícito, dispensando maior
debate; porém, em relação à segunda, é importante refletir que Nisbet, ao perceber
a existência deste elemento na relação sociologia/conservadorismo, acaba por
colocar em questão uma das características mais afeitas desta ciência, que é a sua
própria cientificidade, defendida, até então, como princípio da racionalidade.
Além desses aspectos, importantes na consideração de Nisbet acerca do
conservadorismo e sua relação com a sociologia, deseja-se apresentar aquilo que o
autor denomina de “certas proposições gerais dos pensadores conservadores, a
respeito da natureza e do homem, as quais divergem radicalmente daquelas visões
que os racionalistas e individualistas haviam enfatizado” (NISBET, 1970, apud
Martins, 1986, p.65). Somente então é que se partirá para discutir a influência de
seu pensamento na sociologia rural.
Fazendo um resumo das onze proposições defendidas pelo autor
(NISBET, 1970, apud Martins, 1986, p.65-72), verifica-se que:

A primeira, e mais abrangente proposição, diz respeito à natureza
da sociedade, enquanto uma entidade orgânica, com leis internas
de desenvolvimento e com relações pessoais e institucionais
infinitamente sutis.

Em segundo lugar, está a primazia da sociedade sobre o indivíduo:
o homem existe apenas dentro da sociedade e para ela.

A terceira é que a sociedade não pode ser desmembrada, mesmo
para fins conceituais, em indivíduos; a unidade irredutível da
sociedade é e deve ser em si mesma uma manifestação da
sociedade, uma relação, alguma coisa que seja social.

A quarta proposição refere-se ao princípio da interdependência do
fenômeno social, havendo uma delicada inter-relação entre crença,
hábito, associação e instituição.
42

A quinta, diz respeito ao princípio das necessidades, em que são
primordiais, não os direitos naturais fictícios, mas as necessidades
inalteráveis do homem, ou seja, suas vontades.

A sexta é o princípio da função, em que toda pessoa, todo
costume, toda instituição, serve a alguma necessidade básica da
vida humana, ou contribui com alguns serviços indispensáveis para
a existência de outras instituições e costumes.

Em sétimo lugar, os conservadores deram ênfase aos pequenos
grupos sociais como unidades irredutíveis da sociedade.

Em oitavo lugar, os conservadores foram levados a reconhecer a
realidade da desorganização social, causada pelas mudanças
revolucionárias sobre as instituições tradicionais.

Em nono lugar, os conservadores foram levados a insistir sobre o
valor indispensável dos elementos sagrados, irracionais e nãoutilitários da existência humana.

Em décimo lugar, estava o princípio da hierarquia e do status, sem
os quais não pode haver estabilidade.

E, finalmente, os conservadores enfatizaram o princípio da
legitimidade da autoridade, aquela que provém dos costumes e das
tradições de um povo, quando é formada por inúmeros elos numa
corrente que começa com a família, prossegue através da
comunidade e da classe e culmina na sociedade mais ampla.
Não é necessário discutir cada um destes princípios para chegar à
conclusão de que realmente houve uma explícita inter-relação entre o pensamento
conservador e os princípios da sociologia moderna. Entretanto, o que se deseja
chamar a atenção é para a incidência do conservadorismo na sociologia rural e,
principalmente, sua interferência em muitas das concepções acerca do que é o
‘rural’.
Neste sentido, observa-se que de forma bastante intensa vários dos
princípios propostos pelos conservadores, como modelo para a sociedade orgânica
e funcional, foram transplantados para o reconhecimento das comunidades rurais.
Levantam-se aqui duas hipóteses para a ocorrência de tal fato.
43
A primeira diz respeito ao fato de que as comunidades rurais sofreram, de
forma pouco significativa, as transformações causadas pelas Revoluções Francesa
e Industrial; logo, elas permaneceram por muito tempo como lugares onde todos os
princípios defendidos pelos conservadores continuavam inalteráveis e, portanto,
palpáveis na realidade, mesmo após as transformações revolucionárias.
Já a segunda hipótese parece percorrer o caminho oposto da primeira.
Refere-se ao fato de que o próprio espaço rural continha elementos de um
tradicionalismo e moralismo fortes, coesos e impregnados na vida e na organização
cotidianas. Impediam, ainda, que as transformações ocorressem, fazendo com que
se permanecesse num estágio, considerado por muitos como que ‘parado no
tempo’, fora da ordem capitalista e da modernidade, ou seja, um estágio précapitalista.
Por
conseguinte,
não
havia
necessidade
de
teorizações
que
combatessem uma realidade desorganizada; pelo contrário, a partir da realidade
rural era possível idealizar as novas transformações voltadas para o retorno do
tradicional.
No caso de Mannheim (1959, apud Martins, 1986), quer-se destacar que
o percurso metodológico deste autor foi o de situar o conservadorismo alemão da
primeira metade do século XIX, e a partir dele focalizar o ‘romantismo’, para então
levantar a contra-argumentação em relação ao iluminismo.
É importante perceber que, para Mannheim (1959, apud Martins, 1986,
p.84), “[...] o romantismo é um fenômeno europeu que surgiu aproximadamente ao
mesmo tempo em todos os países, como parte de uma reação às circunstâncias e
problemas comuns característicos de um mundo capitalista racionalizado“.
Conforme a reflexão de Mannheim, a Alemanha gestou as bases
européias que fortaleceram o conservadorismo como contracorrente de pensamento
ao iluminismo, processo este que só foi possível a partir do desenvolvimento
silencioso, mas bastante enraizado, do romantismo alemão, que esteve presente
nas mais diversas áreas do conhecimento, da literatura ao historicismo.
Para Mannheim (1959, apud Martins, 1986, p. 95),
O significado sociológico do romantismo está na sua função de oponente
histórico das tendências intelectuais do Iluminismo. Em outras palavras,
contra os representantes filosóficos do capitalismo burguês. [...] se apossou
das esquecidas formas de pensamento, [...] trabalhou-as e desenvolveu-as
conscientemente e, finalmente, as colocou contra o modo de pensamento
44
racionalista. [...] Assim, a “comunidade” é colocada contra a “sociedade”, [...]
a família contra o contrato, a certeza intuitiva contra a razão, a experiência
intelectual contra a experiência material.
O romantismo, para Mannheim (1959, apud Martins, 1986), pode ser
considerado como uma contracorrente do Iluminismo e do Capitalismo Racionalista,
que foi muito forte pelo próprio enraizamento de suas idéias, que fizeram com que
se reconstruísse ou revivesse a Idade Média em seus aspectos religiosos,
irracionais e bucólicos; porém, permanecendo no plano da reflexão, ficando
invisíveis por toda uma época, mas que uma vez trazidos à tona da vida social,
tenderam a unir certas tendências anticapitalistas. Neste sentido, estavam
interessados no romantismo “[...] a monarquia ilustrada e o empresariado
objetivando os poderes feudais; e, os pequenos proprietários camponeses e o
estrato da pequena burguesia que surgiu das antigas corporações de ofício”
(MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.96).
Percebe-se aí, a forte ligação do romantismo com alguns dos segmentos
rurais, o que oferece novamente os indicativos de que o conservadorismo, também
na perspectiva de Mannheim, teve influências na sociologia rural desde o seu
surgimento até o seu desenvolvimento.
Outro fator bastante significativo do estudo de Mannheim (1959, apud
Martins, 1986) para esta investigação, é a diferenciação que ele faz entre
conservadorismo e tradicionalismo. Sinteticamente, para o autor,
Existem dois tipos de conservadorismo [...], há o tipo que é mais ou menos
universal e há o tipo moderno. [...] O primeiro poderíamos chamar de
“conservadorismo natural” e o segundo de “conservadorismo moderno”, [...]
sendo que quando falamos de conservadorismo, queremos dizer
conservadorismo
moderno,
algo
essencialmente
diferente
do
tradicionalismo (MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.102).
Já em relação ao tradicionalismo, Mannheim afirma que,
Tradicionalismo significa uma tendência a se apegar a padrões vegetativos,
a velhas formas de vida que podemos considerar como razoavelmente
onipresentes e universais. Esse tradicionalismo “instintivo” pode ser
considerado como a reação original a tendências deliberadas de reforma.
[...] Já a palavra “tradicionalista” designa, em grau maior ou menor, a
característica psicológica formal de toda mente individual. A ação
“conservadora”, no entanto, depende sempre de um conjunto concreto de
circunstâncias (MANNHEIM, 1959, apud Martins, 1986, p.102).
Dada esta diferenciação, poder-se-ia fazer diretamente a relação com a
‘máxima’ que diz que ‘todo tradicionalismo é conservador, mas nem todo
45
conservadorismo é tradicional’. A partir dela, cabe outra indagação, que agora está
diretamente ligada a um dos conceitos da sociologia ‘comunidades rurais’, muito
utilizado no Serviço Social.
Alguns pensadores da sociologia rural identificam as comunidades rurais,
assim como outros tipos de comunidades - quilombolas, indígenas etc - como
comunidades tradicionais. Seria possível situá-las, realmente, nesta categoria
distinguida por Mannheim? Elas seriam naturalmente conservadoras de hábitos,
costumes, valores morais e, portanto, de tradições?
É neste ponto que se nota a incidência da perspectiva sociológica de
Mannheim (1959, apud Martins, 1986) na sociologia rural: a caracterização do
tradicionalismo e a influência da tendência tradicionalista saudosista no próprio
conservadorismo (não obstante, compreenda-se a diferenciação entre eles). Além
disto, detecta-se a grande contribuição deste pensador, ao relacionar o
conservadorismo alemão com o romantismo europeu, o que torna bem mais objetiva
a interação entre conservadorismo e sociologia rural, visto que o romantismo
enquanto estilo de pensamento remete diretamente ao bucolismo rural e às
tendências tradicionalistas de retorno à vida comunitária e familiar, entre as várias
outras características já apresentadas pelo autor, as quais encontram nexo direto
com a identificação do campo feita pela sociologia rural.
Para oferecer um contraponto aos dois pensadores tomados como base
de referência para expressar o pensamento conservador, apresenta-se também
alguns indicativos de Lefebvre, para quem o conservadorismo fica expresso numa
das tendências da sociologia de direita, que
“[...] tende a justificar pelas descrições empiristas, certas teses morais,
metafísicas e políticas, [as quais] opõem-se trabalhos históricos, tomando a
realidade em seu movimento e tendências, e, portanto, objetivos, trabalhos
influenciados pelo marxismo ou expressamente marxistas” (LEFEBVRE,
1970, apud Martins, 1986, p.148).
Para este autor, mesmo considerando a raridade dos documentos e
textos que tratam da vida camponesa, quando ela ainda era o modo de vida
predominante na sociedade, são passíveis de identificação com a tradição
conservadora - com incidências do romantismo - os escritos dos séculos XVII a XIX.
Eles falam sobre a nova agricultura de tipo capitalista (mencionada pelos
fisiocratas); sobre a nova revolução agrícola que acompanharia a revolução
46
industrial, sem, no entanto, acabar com o modo de vida tradicional do camponês;
falam da vida patriarcal, cuja possibilidade de desaparecimento já causava uma
espécie de nostalgia; e, por fim, sobre a importância política da burguesia rural e dos
proprietários fundiários, cuja honra era expressa pelas “[...] virtudes e valores morais
da estabilidade, da obediência e da resignação” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins,
1986, p.147).
São expressões desta forma de pensamento, pensadores como os
franceses Bonnemière, Balzac e George Sand da primeira metade do século XIX e
os expoentes da segunda metade do século XIX, que segundo Lefebvre (1970),
ainda hoje possuem grande valor teórico, Léopold Delisle, Charles Ribe, Brutails,
Bladé, Curie Leimbres e Celnac-Moucaut.
Ainda ligado ao pensamento conservador, mais especificamente à
corrente positivista - funcionalista, encontra-se com grande destaque a figura de Le
Play, cujo principal livro intitula-se A organização da família, segundo o modelo
eterno, provado pela observação das raças, o qual se contrapõe, nos estudos
relativos ao problema camponês, com a obra de Engels A origem da família, da
propriedade privada e do Estado (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986).
Destarte, parece evidente que a sociologia rural e os estudos
direcionados para a compreensão e intervenção do espaço rural, têm na sua origem
a intercorrência do pensamento conservador. Um dos motivos desta forte
aproximação ao pensamento conservador, diz respeito às próprias características do
modo de vida camponês ainda predominante na sociedade ocidental, as quais
colocam este espaço como um lugar próprio de relações voltadas para a
conservação da organização e da ordem, consideradas tradicionais da vida no
campo.
É neste ponto que se encontra nexo direto com aquilo que Lefebvre
(1970, apud Martins, 1986, p.146) tratou como ‘nostalgia’, ou como, “[...] saudade
melancólica frente ao desaparecimento da vida patriarcal, que teve sua beleza e sua
grandeza, apesar de suas limitações”.
Buscando outro aporte para refletir o conservadorismo, encontrou-se em
Parra (1999) a reflexão de que
Las ideas conservadoras defendían uma concepción de sociedade
entendida como uma entidade orgânica com leyes internas propias de
47
desarrolho [...]. Las instituiciones habían sido creadas por Dios y por lo tanto
antecedían al hombre; se recupera el concepto de comunidade, família y
pequeno grupo, como mínima expresión de la sociedade; existe um rescate
de elementos irracionales (religiosidade, costumbre, tradición, etc) como
constitutivo de la sociedade, em claro rechazo a la “racionalizassóm total del
mundo” y de la vida “moderna” (PARRA, 1999, p.60).
Ora, são confirmados pelo autor, os principais pressupostos que
fundamentam o conservadorismo, destacando-se os aspectos da vivência
comunitária e familiar e a irracionalidade como elemento constituinte da sociedade.
Estes aspectos não são novidade, mas confirmações daquilo que outros autores já
manifestaram.
E, antes de finalizar este item, reporta-se a Iamamoto (2000),
considerando que a mesma oferece reflexões importantes sobre o tema proposto,
sendo uma delas a afirmação de que é Mannheim (1963) quem considera o
conservadorismo moderno como um tradicionalismo tornado consciente.
Segundo ela, a fonte de inspiração do pensamento conservador provém
de um modo de vida do passado, que é resgatado e proposto como uma maneira de
interpretar o presente e como conteúdo de um programa viável para a sociedade
capitalista. Os conservadores seriam assim, “profetas do passado”6. Recorrendo a
categorias típicas do racionalismo capitalista elabora-se a exaltação deliberada de
formas de vida que já foram historicamente dominantes e que passam a ser
consideradas válidas para a organização da sociedade atual (IAMAMOTO, 2000).
E, relembrando Martins, Iamamoto diz que,
Analisando a ambigüidade presente no pensamento conservador, sustentase que racionalismo e conservadorismo são duas maneiras de viver e de
ver a sociedade, portanto dois pensamentos, integrados a um único estilo
de pensamento, que exprime um modo de vida: o da sociedade capitalista
(1978, apud Iamamoto, 2000, p.23).
Neste sentido, a própria autora ressalta que “[...] o conservadorismo não é
apenas a continuidade e persistência no tempo de um conjunto de idéias fruto da
herança intelectual européia, mas de idéias que, reinterpretadas, transmutam-se em
uma ótica de explicação e em projetos favoráveis à manutenção da ordem
capitalista”,
as
quais,
portanto,
funcionaram e,
freqüentemente
continuam
funcionando, como combustível do motor do capitalismo contra as transformações
societárias e deste mesmo modo de produção (IAMAMOTO, 2000, p.23).
6
Expressão citada por Iamamoto (2000, p.22) em anuência a Robert Nisbet (1969; 1980).
48
Finalizando este item, reforça-se a idéia de que os estudos voltados para
o rural, na sua origem e, em algumas situações, ainda hoje, tomaram e tomam
emprestadas do pensamento conservador as bases para fundamentação de seu
olhar sobre o modo de vida no campo, as relações sociais, políticas e culturais lá
desenvolvidas e sobre os processos produtivos. Esta apreensão é importante para
se compreender os direcionamentos oferecidos pela sociologia rural e por vários
outros pesquisadores da área, para os desafios, necessidades e demandas
apresentadas pelos sujeitos que ali atuam.
SEGUNDA SEÇÃO
Modificando o olhar para o rural
1.2.1 A comunidade rural: sua identificação segundo as incidências do
conservadorismo e do tradicionalismo, numa leitura de Lefebvre
Neste item da investigação, procurou-se indicar como era identificada a
comunidade rural na primeira metade do século XX, na perspectiva do pensamento
conservador, segundo os estudos de Henri Lefevbre, analisados no artigo
‘Problemas da Sociologia Rural’, o qual integra o quinto capítulo do livro organizado
por José de Souza Martins, Introdução Crítica à Sociologia Rural,. Foi neste artigo
que se encontrou a caracterização de comunidade rural e, por conseguinte, do modo
de vida no campo, de forma mais objetiva dentre os vários textos de sociologia rural
daquele período. As observações que configuram esta identidade permitem, ao
mesmo tempo, caracterizar ‘o rural’ de meados do século XX, conhecer alguns
traços da sociologia rural de cunho conservador e, inclusive, delinear um paralelo
sobre as transformações que ocorreram nesta configuração identitária daquele
momento até hoje.
49
Dito isto, passa-se a dar voz às palavras de Lefebvre, para quem uma
primeira identificação é a de que:
A comunidade rural ou comunidade de aldeia não é uma força produtiva,
nem um modo de produção. Não é uma força produtiva, ainda que,
evidentemente, esteja relacionada com o desenvolvimento das forças
produtivas: com a organização do trabalho da terra nas condições técnicas
(conjunto de instrumentos de trabalho) e sociais (divisão de trabalho e
modalidades de cooperação) determinadas (LEFEBVRE, 1970, apud
Martins, 1986, p.151).
No texto acima, Lefebvre aponta para um dos pontos mais polêmicos na
discussão sobre o rural, mesmo na atualidade: qual modo de produção está vigente
no mundo rural numa forma de organização social em que predomina o capitalismo
(seja nos seus primórdios, seja no estágio atual de desenvolvimento)? Poderia no
meio rural existir outro modo de produção, que não o mesmo modo vigente na
sociedade dita urbana?
Este é um dos pontos de divergência entre os estudiosos do rural,
havendo inclusive aqueles que dizem que no mundo rural, em algumas formas
existentes de organização da vida e do trabalho cotidiano, ainda estaria vigente uma
espécie de pré-capitalismo, ou seja, um estágio que se situaria no intervalo entre o
modo anterior de produção, o feudalismo, e o atual, o capitalismo. Lefebvre deixa
alguns indicativos em sua argumentação de que ele é um dos sociólogos que pensa
desta forma. As argumentações dos autores que defendem esta teoria tangenciam
não somente a forma de produção de riquezas, mas principalmente a
intencionalidade desta produção, que também diz respeito à diversidade e
quantidade de produtos.
Lefebvre retrata esta polêmica ao afirmar que
Todos os historiadores da comunidade rural insistiram no fato de que, numa
certa época (século XVIII, na França; século XIX e até os primeiros anos do
nosso século, na Rússia), ela entravou o desenvolvimento das forças
produtivas, impedindo a liberdade das culturas, paralisando as iniciativas e
o individualismo agrário então progressivo, submetendo o indivíduo a
obrigações tradicionais, obstruindo a introdução de novas culturas e de
novos instrumentos etc (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.151).
Na compreensão de Lefebvre (1970, apud Martins, 1986), seria
justamente a existência conflituosa com o modo de produção existente em
determinado período, que impediria ‘o rural’ de identificar-se como uma força
produtiva. Assim, a comunidade rural manter-se-ia, desapareceria, ou reconstituir50
se-ia em todos os modos de produção, seja escravista, feudal, capitalista ou
socialista.
A segunda característica diz respeito ao fato que
A comunidade rural é uma forma de comunidade orgânica, e não se reduz a
uma solidariedade mecânica de elementos individuais. Ali onde predominam
a troca de mercadorias, o dinheiro, a economia monetária, o individualismo,
a comunidade se dissolve, sendo substituída pela exterioridade recíproca
dos indivíduos e pelo “livre” contrato de trabalho. Ela reúne, organicamente,
não indivíduos, mas comunidades parciais e subordinadas, famílias (elas
próprias de tipos diferentes, mas inseparáveis da organização geral da
comunidade) (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.152, grifo no
original).
Nesta caracterização do autor, percebem-se duas questões fundamentais
na identificação da perspectiva conservadora de pensamento: a relevância para a
solidariedade e para a família. Mesmo fazendo esta relação proximal com o
conservadorismo, há de se alertar para a afirmação de Lefebvre que segue esta
caracterização, dizendo que embora fale de solidariedade, e nela, de solidariedade
mecânica e orgânica, não está se reportando ao sentido durkheimiano, mas sim
oferecendo um novo sentido a esta categorização.
Destarte, destaca-se que a idéia de ‘organicidade da comunidade’
aparece aqui como um contraponto a sua dissolução e a existência da ‘troca de
mercadorias’, do dinheiro, do individualismo e da liberdade de trabalho, seriam
fatores contribuintes para a dissolução da solidariedade - diga-se da própria família.
Já em relação à ‘família’, ela aparece como elemento fundante da
organicidade existente na comunidade. É a partir da família, que as demais
agregações comunitárias vão se constituindo. Neste sentido, parece ser ilógica a
existência nas comunidades rurais de indivíduos isolados, ou então aquilo que hoje
se identifica, para fins censitários, como ‘família unipessoal’, ou ‘família de um
indivíduo só’.
A terceira característica estaria relacionada à propriedade e ao seu
regime. Conforme o autor
Na noção de comunidade rural, não se pode, evidentemente, fazer
abstração do regime de propriedade. [...] De fato, todas as sociedades
situaram-se e situam-se entre estes limites abstratos: propriedade coletiva e
propriedade privada, mais ou menos próximas de um limite ou de outro
(LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.153).
51
Embora neste item o autor discuta as várias formas de propriedade, seja
coletiva; indivisa; individual; em concessão por partes iguais; ou em concessão por
cotas-parte desiguais, o que se deseja destacar nesta terceira característica
levantada por Lefebvre, é o fato de que a principal propriedade na comunidade rural
é a propriedade da terra, já que ela é o principal meio de produção no campo.
É a partir do regime de propriedade da terra que as relações no meio rural
se estabelecem. Destas relações surgem grupos de indivíduos, os quais passam a
se caracterizar por deterem ou não a propriedade e por terem ou não acesso à terra
para nela trabalhar. No regime de propriedade e nas relações resultantes dele é que
se originaram e originam muitos dos conflitos rurais, tanto em tempos remotos,
quanto atuais. Logo, esta característica discutida pelo autor, adquire relevância
também para esta investigação e, assim, passa a se configurar como um dos pontos
interessantes para elaboração de uma reflexão sobre as atuais características do
meio rural.
Já a quarta característica diz respeito às relações e às funções sociais
necessárias à vida numa comunidade rural. Assim, Lefebvre (1970, apud Martins,
1986) registra desde a existência de pastores de animais, até a de autoridades de
Igreja. Além disso, o autor enfatiza as relações de vizinhança, afirmando que
Em todas as comunidades rurais, mesmo em plena dissolução, mesmo
individualizadas ao máximo, as relações de vizinhança têm uma extrema
importância. [...] Quase sempre elas tiveram ou guardam um fundamento
prático: a ajuda mútua nos trabalhos pesados; os papéis oficiais nas
cerimônias familiares, nos casamentos e enterros; as visitas recíprocas e a
mentalidade coletiva que contribuíam para evitar disputas e litígios quando
da demarcação de terras (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.155).
Como quinta e última característica das comunidades rurais, Lefebvre fala
da organização das mesmas e, em decorrência disto, da existência de ‘funções
políticas’. Nas suas palavras fica expresso que “estas, tiveram vários aspectos:
defesa das comunidades contra pressões e perigos externos [...], enfim, poder
exercido sobre a comunidade, por um de seus membros ou por um elemento
externo, em nome de um Estado superior a ela...” (LEFEBVRE, 1970, apud Martins,
1986, p.156).
A partir da reflexão sobre os vários elementos que, segundo o autor,
configurariam a identidade das comunidades camponesas, pode-se perceber que
muitos dos indicativos levantados há 60 anos, segundo a perspectiva do
52
pensamento conservador, podem ser encontrados, percebidos e visualizados ainda
hoje por todos aqueles que dedicarem um olhar especial para o meio rural.
Isto não quer dizer que aqueles que atualmente percebem que existem
tais características, de forma mais ou menos presente, mas sempre no espaço rural,
sejam eles mesmos conservadores, tradicionalistas ou reacionários. Pelo contrário,
olhar criticamente para o meio rural e notar que as características levantadas por
estudiosos
conservadores,
há
décadas
atrás,
ainda
persistem
na
contemporaneidade, significa tão somente dispor-se a refletir, discutir e polemizar a
identidade rural e, através de suas características, propor-se um olhar que levante
as necessidades e demandas de um espaço como este, distinto em algumas coisas
e semelhante em outras, do espaço urbano.
Antes de finalizar este item do capítulo, objetiva-se apresentar duas
considerações importantes feitas por Lefebvre. A primeira trata de uma síntese
sobre as características das comunidades rurais; e, a segunda, de um contraponto
das características aqui apresentadas, com algumas outras que compõem a
identidade das comunidades rurais hoje. Conforme o autor
Chegamos assim a uma definição: a comunidade rural (camponesa) é uma
forma de agrupamento social, que organiza, segundo as modalidades
historicamente determinadas, um conjunto de famílias fixadas ao solo. Estes
grupos elementares possuem, por um lado, bens coletivos e indivisos, e por
outro lado, bens “privados”, conforme relações variáveis, mas, sempre,
historicamente determinadas. Encontram-se ligados por disciplinas coletivas
e designam - tanto tempo quanto a comunidade guarda uma vida própria mandatários responsáveis para dirigir a realização dessas tarefas de
interesse geral (LEFEBVRE, 1970, apud Martins, 1986, p.156).
Para aqueles que conhecem, na prática, a vida rural em alguns recantos
do Brasil, note-se que o autor, ao sintetizar todos os elementos que conformam a
identidade rural, possibilita visualizar um espaço que hoje já não se encontra
especificamente com tais características. Ou seja, ao juntar os elementos, embora
se encontre relação deles com a caracterização do rural atual, tal caracterização
parece distanciar-se, um pouco em alguns casos e muito em outros, daquilo que se
identifica como modo de vida no campo. Com isto, cabe se perguntar: a reflexão até
aqui realizada, tendo como referência Lefebvre, ofereceria resultados efetivos na
identificação do rural na contemporaneidade?
De imediato, é possível responder tanto sim quanto não. Não para todos
aqueles que esperavam uma resposta pronta e acabada sobre esta identificação do
53
campo hoje. Sim, para aqueles que entenderem que todos estes elementos nada
mais são do que ferramentas que podem auxiliar um olhar crítico-político que
desvende as características do modo de vida camponês, reconhecendo que não se
encontrará apenas um ‘modo de vida’, mas vários, dependendo da territorialidade;
dos traços culturais geralmente regionalizados; do nível de inter-relação com o meio
urbano; do oferecimento ou não de serviços nestes lugares ou em lugares próximos
- a referência aqui é quanto às possibilidades de acesso aos serviços públicos -; da
relação que se estabelece com a terra; das possibilidades de prover sustento
financeiro e de gerar riquezas ou da própria dependência econômica de outros - seja
do Estado, vizinhança, ou familiares urbanos, entre muitas outras possibilidades.
Dito isto e, para concluir este item, afirma-se a importância de levantar os
diversos elementos que possibilitem a cada estudioso ou interessado pelo espaço
rural arrolar os indicativos para a identidade ‘rural’, levando-se em conta um território
específico.
1.2.2 O levantamento de uma (outra) caracterização interessante sobre que é o
rural
No percurso de aproximação entre Serviço Social e discussões sobre o
rural, foi imprescindível passar pelo debate da sociologia rural, o que, se imagina,
ficou expresso até este momento.
Ao percorrer tal caminho, deparou-se com uma das indagações iniciais da
própria sociologia rural, a qual remete à pergunta que também está por trás do
objeto de análise desta investigação: o que é o rural?
Algumas perspectivas que respondem a esta pergunta já foram
apresentadas noutros itens deste estudo. Outras o serão daqui para frente. Neste
sentido, permanecendo ainda na reflexão proposta por Martins (1986) ao debater os
estudos voltados para ‘uma introdução crítica à sociologia rural’, é nos estudos de
Solari (1971) que se encontra a resposta a esta pergunta. Conforme o autor,
O traço fundamental que, no entender dele, permeia todos os outros traços
caracterizadores do rural, está na ocupação da população rural. Como diz
54
ele, “a sociedade rural é essencialmente aquela na qual os indivíduos
ativamente ocupados o estão na atividade agrícola, em sentido amplo,
como a exploração e o cultivo das plantas e dos animais”. O segundo traço
diferenciador está nas características ambientais. Isso porque, no campo, o
trabalhador deve contar com forças que em grande parte escapam do seu
controle. Ou seja, há uma preponderância da natureza sobre o trabalho
humano. [...] Em terceiro lugar, há uma diferença no que ele chama de
volume das comunidades. Isto é, a proporção homem/terra é menor no
campo e muito maior na cidade. Em quarto lugar, a homogeneidade e a
heterogeneidade dos integrantes, respectivamente, da sociedade rural e da
sociedade urbana. [...] A quinta característica diz respeito à mobilidade. [...]
Diz ele: “apesar da grande quantidade de pessoas que emigra do campo à
cidade, não há nenhuma profissão, segundo os estudos comparados, nas
quais a porcentagem de filhos siga a profissão dos pais do que entre os
agricultores. E finalmente [...] o princípio da herança: pois, na sociedade
rural o lugar que uma pessoa ocupa é determinado essencialmente pelo
lugar que seus pais ocupavam”, como decorrência de um baixo índice de
mobilidade (SOLARI, 1971, apud Martins, 1986, p.26-27).
Neste recorte da definição de Solari (1971, apud Martins, 1986) sobre ‘o
rural’, percebe-se, numa outra leitura, que não a conservadora, vários elementos
presentes ainda hoje na caracterização do espaço rural.
Mesmo com as muitas transformações no modo de vida no campo,
ocorridas a partir do desenvolvimento/aprofundamento do capitalismo e, com ele, a
mudança nas relações sociais, a explosão de crises financeiras e crises ambientais,
o inchaço das cidades-centro e, por fim, o agravamento da Questão Social no
espaço rural, o que se percebe é que os elementos levantados por Solari, os quais
conformam a identidade rural, continuam presentes.
Embora já se observe o desenvolvimento de outras formas de ocupação
no campo, além da produção agrícola, ela ainda continua a ser predominante
enquanto atividade, principalmente na pequena produção familiar voltada para a
produção de alimentos. Neste sentido, há vários estudos de sociólogos rurais
contemporâneos, levantando reflexões acerca do desenvolvimento da pluriatividade
no campo, da criação de fontes não-agrícolas de geração de renda no interior dos
estabelecimentos rurais e, portanto, do aparecimento de ocupações rurais nãoagrícolas7.
No que tange às características ambientais, é inerente à vida rural a
aproximação com a natureza de modo mais direto do que ocorre no espaço urbano.
7
Esta reflexão é melhor desenvolvida por STROPASOLAS, Valmir Luiz, em seu livro O mundo rural
no horizonte dos jovens, publicado em 2006 pela Editora da UFSC. Indica-se especificamente a
discussão desenvolvida no item ‘A proposição da Pluriatividade’, p.71-81.
55
O trabalho e o próprio cotidiano das relações sociais se dão diretamente através do
contato com a terra, plantas, animais, água, clima etc. Não que estas sejam por si só
determinantes; pelo contrário, sem a mediação humana não seria possível o
desenvolvimento da vida no campo, tal como se conhece. Entende-se que, apesar
dos condicionamentos dados pela natureza, para o desenvolvimento do modo de
vida rural é o sujeito do campo que provê sua produção e reprodução através da
mediação com a natureza, o que também ocorre com os sujeitos urbanos. No
entanto, os últimos fazem esta mediação numa configuração de relações bem
menos diretas com a natureza.
O outro elemento levantado por Solari (1971, apud Martins, 1986), que se
refere ao volume das comunidades rurais, é a diferença entre estes dois espaços ao
se traçar um paralelo entre a quantidade e a concentração de habitantes em zonas
urbanas e zonas rurais. Aqui, poder-se-ia discutir tanto a partir do conceito de
ruralidade como sendo apenas as áreas consideradas no plano político das cidades,
como zonas periféricas ao centro administrativo e político do município (a cidade
propriamente dita), seja este último independente do número total de habitantes do
mesmo, quanto a partir do conceito de ruralidade como sendo todo e qualquer
agrupamento populacional abaixo de um determinado número de habitantes, o que
incluiria como ‘comunidade rural’ grande parcela de municípios brasileiros cujo total
de habitantes encontra-se abaixo de 10 mil habitantes. Nos dois casos reconhece-se
que o volume de pessoas por metro quadrado na área rural é bem inferior ao das
zonas consideradas urbanas.
Como conseqüência, as relações sociais desenvolvidas em espaços com
menor volume de indivíduos - situação verificada no meio rural - apresentam um
perfil bem mais homogêneo entre os sujeitos e seus grupos, tanto no que se refere
ao modo de pensar, aos valores, aos hábitos culturais etc., em contraponto ao meio
urbano, onde o perfil é, muitas vezes, bastante heterogêneo.
No que se refere à ‘mobilidade’, discussão feita por Solari (1971, apud
Martins, 1986), embora se note atualmente uma maior possibilidade de mobilidade
geográfica, social e de ocupação no campo, ela ainda pode ser considerada
bastante baixa, comparando-se com o meio urbano. Por exemplo: apesar do
aumento do êxodo rural e da existência da pluriatividade no campo, é ainda
56
significativa a quantidade de jovens que seguem a mesma profissão e atividades
sociais desenvolvidas cotidianamente por seus pais. A baixa mobilidade, pode ser
percebida ainda na questão da permanência, frequentemente por toda a vida, no
mesmo território rural e, porque não, na mesma propriedade familiar, fato este que
reforça os vínculos de tradição em relação ao modo de vida rural.
E, finalmente, no que se refere ao princípio da herança como elemento
característico das relações do meio rural, é importante observar que a tentativa de
perpetuação do domínio familiar sobre determinado território é feito, ainda hoje,
através do mecanismo da definição da ‘herança familiar’. Este processo não se
restringe somente ao momento final da vida dos genitores, quando é realizada a
transferência oficial do poder familiar a um ou mais filhos, mas acontece, inclusive,
durante todo processo de educação familiar e de transmissão de valores, vividos
entre pais e filhos. Ele ocorre como se fosse parte de certa sacralidade tradicional,
em que os pais repassam a seus filhos, geralmente para os filhos homens, o
comando da propriedade familiar e das próprias relações familiares e comunitárias,
incluindo-se nelas, o desenvolvimento de funções na organização da comunidade
local, tais como a participação nos Conselhos Comunitários.
Ora, é indispensável registrar que é bastante forte no cotidiano rural a
incidência da cultura patriarcal, a qual é transmitida às gerações, através do
ensinamento dos valores, princípios e costumes, o que acontece desde a
socialização primária– realizada pela família -, até o reforço que é dado na e pela
sociedade através da socialização secundária, transmitida através da igreja, da
escola, do clube, do partido político, dos meios de comunicação e de todas as
demais instituições da sociedade.
Diante das colocações acima, fica explícita a existência de elementos que
confirmam a identidade rural apontada por Solari (1971, apud Martins, 1986) há
quase quarenta anos atrás, os quais, apesar das transformações ocorridas no meio
rural e no modo de vida no campo, ainda permanecem como traços significativos
deste modo de vida.
Não há como negar que outras características têm se agregado a esta
identidade, muitas das quais resultantes de uma maior interação entre os espaços
rural e urbano, atualmente inseridos nas mesmas condicionalidades emergentes do
57
modelo de produção capitalista financeiro, num contexto de mundialização,
globalização. Poderia se acrescentar ainda, com respingos daquilo que Milton
Santos (2008) identifica como ‘outra globalização possível’, cujo enfoque está no
aprofundamento das relações locais em contraposição àquelas globais.
Entretanto, cabe ressaltar que, embora tenham ocorrido e continuem a
ocorrer intensas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais no campo
e na cidade, vários elementos que conformam a identidade ‘rural’ ainda
permanecem de forma mais o menos significativa no que tange à vida em
sociedade.
1.2.3 Apontamentos sobre ‘o rural’ e sobre o ‘sujeito rural’ no pensamento
social contemporâneo
Neste item, são discutidos alguns apontamentos que ilustram como o
rural está sendo percebido e trabalhado por estudiosos do pensamento social
contemporâneo. Como caminho para realizar este intento, fez-se uma reflexão a
partir de algumas concepções acerca de que é o ‘sujeito rural’, aquele que vive no
ou do campo.
Para tanto, foram utilizados os estudos de Stropasolas (2006), como
referências teóricas principais, reportando-se também a Martins (1975, 1983, 2003),
a Silva (2003), a Santos (2008) e aos estudos realizados por esta acadêmica em
2008. No decorrer deste item, será possível perceber que estes últimos referem-se
não diretamente à pergunta sobre o que é o rural, mas sim sobre a identidade do
camponês hoje, o que também colabora para o desvendamento da questão da
ruralidade.
1.2.3.1 Sobre o rural
Iniciando
o
debate,
percebe-se
a
importância
de
contextualizar
historicamente como o tema da ruralidade retorna para a pauta das discussões das
58
ciências sociais e humanas. Para tanto, inicia-se a discussão da questão, com o
agrônomo e cientista social Valmir Luiz Stropasolas, a partir da afirmação: [...] “no
momento atual da sociedade, em que o modelo urbano-industrial está sendo
questionado, o rural adquire importância enquanto maneira de se pensar o
desenvolvimento, de refletir sobre a sociedade” (Stropasolas, 2006, p.29).
Paulilo, ao prefaciar o livro de Stropasolas (2006, p.14) afirma que
Do mesmo modo que a agricultura familiar sobreviveu e sobrevive, a
despeito de todos que previam seu desaparecimento, e não foram poucos,
a idéia de rural persiste polissêmica: saudosista, romântica, pessimista,
crítica, da sociedade atual e principalmente mutante em função de ser
resultado de jogo de forças e representações conflitantes.
Fica evidente nas análises desses autores que os estudos sobre o ‘rural’
tornaram a aparecer recentemente, depois de um período de latência, provocados
pelo direcionamento do modo de produção capitalista ao desenvolvimento urbano,
industrial e financeiro. Além disso, durante este período, os estudos da sociologia
rural que persistiam pareciam estar bem mais interessados “[...] numa ciência da
ocupação agrícola e da produtividade, do que propriamente rural”, conforme ressalta
Stropasolas (2006, p.30).
É somente quando este sistema de produção começa a entrar em crise e
a apresentar sinais de colapso, que o ‘rural’ torna à baila das discussões nas
ciências sociais como sendo um espaço ‘a ser apropriado’ para a continuidade do
desenvolvimento capitalista, pois o produtor capitalizado visualiza nele um ambiente
atrativo para novos investimentos. É um lugar onde ainda resta um pouco de
recursos naturais para serem explorados; com certa necessidade de introdução de
tecnologias, ou seja, com um mercado tecnológico em franco desenvolvimento,
demandando equipamentos, com mão de obra disponível e sem muitas exigências,
com um mercado consumidor em plena expansão e com incentivos fiscais já não
encontrados em várias regiões urbanizadas.
Além destes elementos, outro fator fez com que o ‘rural’ ressurgisse na
pauta das reflexões. Justamente porque as poucas discussões e proposições que
havia neste campo, direcionavam-se para a as questões da produtividade e
ocupação agrícolas, começou-se a perceber o surgimento de sérios problemas de
exclusão social de indivíduos e de grupos sociais, pauperizados e marginalizados
neste processo (STROPASOLAS, 2006). Ou seja, o enfoque produtivo das políticas
59
direcionadas para o campo, associado à ausência de um olhar político-social,
acabou gerando um processo de exclusão social – que, inclusive, muito contribuiu
para a alta incidência do êxodo rural, dentre vários outros problemas, que também
tinham efeitos culturais, políticos e econômicos para a sociedade em geral.
É neste sentido que as ciências sociais, principalmente a sociologia rural,
recolocam a questão do ‘rural’ como elemento significativamente re-valorizado no
debate sociológico. Assim, na contemporaneidade, nota-se a importância de um
olhar específico para o campo, já que “a modernização em seu sentido amplo,
redefine, sem anular, as questões referentes à relação campo/cidade, ao lugar do
agricultor na sociedade, à importância social, cultural e política do espaço local”
(STROPASOLAS, 2006, p.32).
Encontrou-se também uma leitura interessante sobre o rural e a
modernização do campo, nos estudos do geógrafo Milton Santos (2008), o qual
oferece uma caracterização da vida no campo que poderia ser considerada por
muitos como pessimista, mas que aqui será apresentada como um indicativo da
realidade vivida no campo, já contendo um alerta, o qual confirma a justificativa
apresentada no início deste capítulo, sobre a necessidade de que o Serviço Social
dedique mais esforços de reflexão e ação para este meio.
A premissa do olhar de Santos (2008) volta-se para o processo de
globalização, visualizado de forma crítica enquanto possibilidade de outra
globalização que não a globalização como fábula ou como perversidade. A partir
desta premissa, Santos (2008, p.88) resgata primeiramente que
Desde o princípio dos tempos, a agricultura comparece como uma atividade
reveladora das relações profundas entre as sociedades humanas e o seu
entorno. No começo da história tais relações eram, a bem dizer, entre os
grupos humanos e a natureza. O avanço da civilização atribui ao homem,
por meio do aprofundamento das técnicas e de sua difusão, uma
capacidade cada vez mais crescente de alterar os dados naturais quando
possível, reduzir a importância do seu impacto e, também, por meio da
organização social, modificar a importância de seus resultados. Os últimos
séculos marcam, para a atividade agrícola, com a humanização e a
mecanização do espaço geográfico, [...] chegando-se, recentemente, à
constituição de um meio geográfico a que podemos chamar de meio
técnico-científico-informacional, característico não apenas do mundo
urbano, mas do mundo rural.
Neste fragmento, fica explícito que o centro da análise de Santos (2008)
situa-se nas relações entre homem e natureza e nas formas de mediação do
primeiro para com o segundo. Entende-se que é importante sua reflexão, pois ela
60
expressa um tipo de ‘vulnerabilidade’ que nem sempre é reconhecida como tal, que
é a vulnerabilidade decorrente do processo de alienação do homem de seu processo
de trabalho, de suas relações sociais, políticas e econômicas e, por que não, do seu
próprio cotidiano.
Assim, encontra-se também nesta afirmação, a caracterização do espaço
rural, que alerta para uma preocupante realidade posta pelo processo de
modernização agrária, a qual não é homogênea em todos os espaços rurais. No
caso do Brasil, mostra-se também como uma das realidades possíveis de serem
encontradas por aqueles que optarem por dedicar esforços de reflexão e ação
voltados para ‘o rural’.
Segundo o mesmo autor (2008), esta modernização agrária brasileira é
fruto tanto de um modelo de globalização como fábula, isto é, que indica “o mundo
tal como nos fazem crer”, quanto de uma globalização como perversidade, ou seja,
“do mundo, de fato, como é”.
Santos confirma sua percepção, referindo-se à existência de um tipo de
vulnerabilidade - não muito usual conceitualmente para o Serviço Social - no campo,
que pode melindrar não somente o cotidiano rural, mas também a soberania local e
nacional, e nela todos os desencadeamentos decorrentes nos campos político,
econômico, cultural e social. Segundo afirma este autor,
O exame do caso brasileiro quanto à modernização agrícola revela a grande
vulnerabilidade das regiões agrícolas modernas face à “modernização
globalizadora”. [...] Verifica-se que o campo modernizado se tornou
praticamente mais aberto à expansão das formas atuais do capitalismo que
as cidades [...]. De tais áreas pode-se dizer que atualmente funcionam sob
um regime obediente a preocupações subordinadas a lógicas distantes,
externas em relação à área de ação. Daí se criarem situações de alienação
que escapam a regulações locais ou nacionais (SANTOS, 2008, p.92).
Já para Martins (1975), a ótica da modernização não é tão emblemática,
embora seja bastante real. Conforme este autor, a modernização do campo, já
naquela época – década de 1970-, e de um ponto de vista do dilema entre
capitalismo e tradicionalismo, configurava-se como um problema e não como uma
ficção. No entanto, a modernização passa a ser, desde aquele momento, um
problema que desafia esforços de reflexão daqueles que quiserem dedicar um olhar
para o ‘rural’, a fim de desvendar sua extensão e profundidade. Nas suas palavras
A situação agrária, não constitui uma aberração ante o desenvolvimento
atingido pela sociedade urbana, [...] que só foi e tem sido possível graças à
61
existência de uma economia agrária estruturada para absorver os custos da
acumulação do capital e da industrialização (MARTINS, 1975, p.39).
Este último autor, num outro enfoque sobre o campo, já no ano de 2002,
ao tratar da questão agrária no Brasil e, conseqüentemente, de uma das questões
prementes no mundo rural contemporâneo, afirma que “a compreensão da questão
agrária no Brasil, em nossos dias, depende de considerá-la um fato histórico que se
constitui num momento determinado da história social e política do país e persiste,
renovado e modificado, ao longo do tempo”. Na sua afirmação, nota-se que a
questão agrária no Brasil - entendida nesta investigação como um dos elementos
que compõem a realidade rural -, deve ser tomada necessariamente como
constituinte de um processo histórico-político do país, onde ocorrem transformações
que muito mais a renovam, enquanto questão social, do que a extinguem.
A inserção, mesmo que rápida, da questão agrária neste estudo justificase pelo fato de se entender que o mundo rural contemporâneo constitui-se como um
espaço bastante amplo e diverso, do ponto de vista político, econômico e sócioambiental. Nele encontra-se desde o latifúndio, até os Trabalhadores Rurais SemTerra e ‘os bóias-frias’, passando também pelos agricultores familiares e pequenos
camponeses, todos atendidos segundo uma mesma política agrária, sem um olhar
específico para cada realidade e, nela, para as reais necessidades e demandas.
Neste sentido, coloca-se mais esta questão como um dos elementos que
caracterizam o espaço ‘rural’ brasileiro hoje. Um espaço permeado por diversidades
de realidades, que configuram de certa forma uma heterogeneidade rural, mas
também por singularidades nos modos de vida locais e entre os vários grupos
ligados à terra, configurando por outro lado, certa homogeneidade.
Dadas as reflexões acima, é possível arriscar até mesmo a indicação
sobre a existência de um novo ’dualismo rural’ - fazendo um jogo de palavras com
as reflexões de Martins, já discutidas neste capítulo - o qual se situaria na questão
homogeneidade e heterogeneidade do campo, mas também na discussão da
inclusão e exclusão rural.
62
1.2.3.2 Sobre os sujeitos rurais
Dado que já se fez referência à diversidade da realidade rural brasileira, é
importante marcar neste capítulo a existência de uma diversidade de sujeitos (ou
grupos de sujeitos) neste espaço, os quais são caracterizados por vários autores
também de diversas maneiras.
José de Souza Martins (1983), ao tratar dos indivíduos que vivem no
campo e que se encontram mais próximos do limiar entre exclusão e inclusão social,
levanta a questão da abordagem da categoria ‘camponês’ e/ou ‘campesinato’.
Segundo ele, estas palavras “são das mais recentes no vocabulário brasileiro, aí
chegadas pelo caminho da importação política. [...] Antes disto, tinha-se aqui
denominações próprias, específicas até em cada região” (MARTINS, 1983, p.22). No
próprio autor, é possível encontrar algumas designações, outras ainda são trazidas
da memória de quem viveu parte de sua vida no meio rural do sul do país. São elas:
caipira, caiçara, tabaréu, agregado rural, arrendatário, meeiro, colono, todas
relacionadas à identificação de camponês. Por outro lado, encontra-se: estancieiro,
fazendeiro,
senhor
de
engenho,
seringalista,
produtor
rural,
entre
outras
relacionadas à identificação de latifundiário ou, pelo menos, de grande ou médio
produtor rural.
Cada um destes termos, agora agregados aos conceitos de camponês e
latifundiário, vai sinteticamente identificar um modo de vida no campo, levando em
consideração, essencialmente, sua relação com a terra e com o trabalho nela
desenvolvido. Seria importante a identificação de cada um destes grupos de
sujeitos; no entanto, somente isto já demandaria uma grande pesquisa no campo
das ciências sociais, humanas, políticas e econômicas e este não é o objetivo desta
pesquisa. Por outro lado, há que se reconhecer a existência de uma intenção posta
aqui, neste momento da investigação, de apenas se levantar a questão da
identificação do ‘rural’ e, nele, do sujeito que vive no campo.
Na linha de análise percorrida até aqui, passa-se a apresentar algumas
reflexões de um pesquisador do mundo rural contemporâneo, a fim de identificar
quem são os indivíduos que vivem no campo.
63
O economista José Graziano da Silva (2003), a partir de uma pesquisa
acerca do processo de diferenciação camponesa na região sul do país, na década
de 70, elaborou uma tipologia que identifica os sujeitos em: a) Capitalistas: são os
produtores que não utilizam em suas unidades rurais o trabalho familiar; usam o
trabalho assalariado ou permanente ou temporário; b) Empresas familiares: utilizam
trabalho familiar e assalariado permanente, podendo ter o complemento do trabalho
assalariado temporário; c) Camponeses: em cujas unidades rurais é utilizado o
trabalho familiar, complementado ou não por assalariados temporários, mas sem
uso de assalariados permanentes. Neste grupo, ainda, foi utilizada uma tipologia
interna, conforme o valor da produção anual, a qual resultou em: camponeses
pobres; médios; e ricos; d) Semi-assalariados: grupo caracterizado por utilizar mão
de obra familiar, não utilizar mão de obra permanente, mas apresentarem-se eles
próprios em situação de assalariamento em outras propriedades rurais, em
atividades urbanas, ou cuja renda depende da aposentadoria rural ou outro
benefício.
Para finalizar, apresenta-se nos dois parágrafos seguintes, alguns traços
da identificação dos rurais, levantados por esta investigadora, a partir de um estudo
realizado em 2008, sobre a ‘divisão sexual do trabalho’ na agricultura familiar, na
região oeste do Estado de Santa Catarina (LUSA, 2008)8. Naquele momento,
notava-se a necessidade de identificar o sujeito do campo, que para tal realidade foi
considerado como ‘camponês’9. Hoje, o levantamento desses traços colabora para
construir uma aproximação sobre quem é o indivíduo rural no âmbito da agricultura
familiar.
Destarte, indicava-se que o camponês - subentendendo camponesas e
camponeses - é aquele indivíduo que, vivendo no mundo rural, possui uma forte
relação com a terra. Portanto, sua identidade está intimamente vinculada ao trabalho
na terra, de onde tira seu sustento e o da família. A terra simboliza para ele o
trabalho presente e também futuro; logo, é na terra que ele deposita as
possibilidades de mudanças em sua vida.
8
A referência bibliográfica completa deste estudo poderá ser encontrada nesta dissertação, junto ao
item ‘Referências’.
9
Para aquele estudo, a reflexão de Martins (2003) foi utilizada como fundamentação teórica.
64
Outro elemento que faz parte de sua identidade, é o fato dele ser um
trabalhador independente no que se refere ao processo produtivo, já que o que ele
vende é seu produto final e não sua força de trabalho. Assim, o camponês
freqüentemente não pensa separadamente no custo de sua produção e muito
menos no valor de sua força de trabalho. Além disto, o que também identifica o
camponês são seus fortes laços sociais que mantém com sua família e comunidade.
Esta ligação pode ser observada no fato de que ele não trabalha sozinho, mas
trabalha com sua família, vendendo tudo aquilo que excede as suas necessidades
de sobrevivência e de sua família. É imprescindível ressaltar que dentro deste
mesmo grupo de camponeses são construídas e difundidas visões de mundo,
interesses, necessidades e demandas diferentes, segundo valores próprios
adquiridos e cultivados a partir do modo de vida de cada um (LUSA, 2008).
1.2.3.3
Alinhavando
os
vários
tecidos
que
tratam
do
rural
na
contemporaneidade
Diversos são os pontos de vista sobre ‘o que é o rural’ na
contemporaneidade e sobre quem são os sujeitos rurais inseridos nesta realidade.
Ora, isto não poderia ser diferente, dada a própria diversidade encontrada no espaço
rural. As reflexões apresentadas nestes dois subitens demonstram a multiplicidade
de realidades encontradas no campo e a necessidade de pesquisar, discutir,
direcionar esforços e ações para elas e para os sujeitos nelas inseridos.
No entanto, a título de alinhavar a discussão, deseja-se apresentar a
concepção de Stropasolas (2006) que finaliza o breve debate aqui proposto sobre ‘o
rural’ na contemporaneidade. Em relação ao mundo rural o autor assim se expressa:
[...] Concebo um universo que interage, nas mais diversas dimensões, como
o conjunto da sociedade brasileira e mantém estas relações que se
estabelecem no cenário global. Não visualizo, assim, um espaço rural
autônomo em relação ao conjunto da sociedade, que se caracterizaria por
uma lógica própria e independente de reprodução social. Importa salientar,
entretanto, que este mundo rural mantém particularidades históricas,
sociais, culturais e ecológicas, que o recortam como uma realidade própria,
da qual fazem parte, inclusive, as próprias formas de inserção na sociedade
que o engloba.
65
Com estas palavras o autor sintetiza a idéia sobre o rural que, de certa
forma, orienta - mesmo que preliminarmente - a visão de que se parte em direção ao
longo percurso de pesquisa almejado. É na diversidade do rural, nas suas
especificidades de realidade e formas de se relacionar social, cultural e
politicamente, bem como no modo de se inserir no mundo e na sociedade, que se
encontra o maior desafio: ao desvendar o rural com as lentes do Serviço Social,
revelar também sua possível ação profissional junto aos sujeitos rurais.
Costurando as principais reflexões – À guisa de encerramento do capítulo
A partir do percurso metodológico traçado, evidenciou-se a relação entre
o pensamento conservador e a origem da sociologia e especificamente neste caso,
da sociologia rural.
Os autores visitados permitiram, cada qual com seu enfoque específico,
perceber que houve, até certo momento do desenvolvimento do pensamento
sociológico, uma tentativa de separação entre o mundo urbano e o rural, que tinha
por conseqüência, inclusive, a suposta separação entre dois espaços distintos, em
cujo modo de produção também havia uma distinção: um capitalista e outro précapitalista, ambos coexistindo na mesma sociedade.
Como conseqüência, aferia-se uma ambivalência desigual de sentidos
entre os dois espaços. Ao capitalista, associava-se o desenvolvimento, a
modernidade, a racionalidade e o cientificismo, os avanços da vida urbana e o
desenvolvimento de tecnologias que permitiam a acumulação financeira em níveis
impossíveis para o outro. Ao pré-capitalista, associava-se a estagnação no tempo
medieval, o retorno e apego ao passado, o atraso em relação ao mundo
desenvolvido, a irracionalidade técnica e científica, o atraso tecnológico e, portanto,
a pobreza de espírito presente no modo de vida rural.
Nesta ambivalência de sentidos, também tratada pelos autores estudados
como dualismo de origem ou como ambigüidade sociológica, insere-se diretamente
a disputa entre aqueles que defendiam de um lado o mundo rural atrasado e aqueles
que defendiam o mundo urbano desenvolvido.
66
Ora, se foi esta a origem dos estudos sociológicos e neles a sociologia
rural, e se foram estes estudos que embasaram as tímidas reflexões do Serviço
Social sobre a questão do mundo rural - na ausência do desenvolvimento de
reflexões próprias -, avança-se por mais um obstáculo na direção de afirmar que é
justamente a relação de origem entre meio rural e conservadorismo que fez com que
o Serviço Social, a partir do momento de ruptura com a matriz teórica conservadora,
desvinculasse seu olhar histórico-político-social do campo, do modo de vida rural,
dos sujeitos rurais, de suas necessidades e demandas e da Questão Social, latente
ou manifesta naquele território.
Observar a relação entre Serviço Social e meio rural, nesta ótica, oferece
possibilidades de chamar atenção para o fato de que não foi o segundo que parou
no tempo frente ao desenvolvimento e à modernidade, tal como contextualizava a
sociologia rural até a década de 70. Foi o próprio Serviço Social que não avançou
com seu olhar crítico para esta realidade, imobilizando suas reflexões e,
conseqüentemente, suas ações, na época em que se trabalhava a partir da
metodologia de Desenvolvimento de Comunidade. Desta forma, negou a si mesmo
enquanto área de conhecimento e instrumento de ação na realidade. A finalização
daquele período, a existência de uma realidade rural heterogênea, bem como uma
realidade urbana altamente complexa, exigia um novo aporte conceitual e de ações.
Considera-se a realização deste estudo como parte significativa da
investigação, no sentido de se pensar vários passos na direção da discussão de
políticas sociais para o meio rural, bem como do debate sobre a própria atuação do
Serviço Social neste espaço, seja no campo da reflexão teórica, seja no campo da
ação profissional.
Contudo, reconhece-se que ela ainda se configura como uma singela
contribuição frente à amplitude de estudos, reflexões, pesquisas e debates,
necessários para que o Serviço Social possa conhecer, de fato, o que é o‘rural’, sua
ruralidade e os sujeitos que lá vivem. E, a partir disto, o assistente social
reconhecer-se como profissional também voltado para este espaço.
Enfim, mesmo sabendo, a partir da própria experiência, que o percurso
desta caminhada não é tão fácil ou simples como se desejava, reafirma-se a
intenção da caminhada, renovando esforços a fim de superar os obstáculos que por
67
ventura se apresentarem. Através destas palavras fica expresso, então, o convite
para avançar no percurso do próximo capítulo.
68
CAPITULO II
MOVIMENTOS SOCIAIS:
DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL À CONTRUÇÃO DA HISTÓRIA
Não precisa ser herói
Para lutar pela terra
Por que quando a fome dói
Qualquer homem entra em guerra
É preciso ter cuidado
Para evitar essa luta
Pois cada pai é um soldado
Quando é o pão que se disputa
Se somos todos irmãos
Se todos somos amigos
Basta um pedaço de chão
Para a vitória do trigo
Basta um pedaço de terra
Para a semente ser pão
Enquanto a fome faz guerra
A paz espera no chão
Há planicies que se somem
Dentre o horizonte e o rio
E a vida morre de fome
Com tanto campo vazio
A Vitória do Trigo
Dante Ramon Ledesma
69
Ao iniciar um longo e profícuo debate, faz-se o convite!
Como primeiro passo da caminhada ora proposta, deseja-se fazer um
convite para juntos adentrar no universo dos ‘movimentos sociais’. Entendemos que
é possível afirmar que a caminhada promete ser prazerosa, embora já se saiba que
longo será o seu percurso. Também é importante esclarecer que o trajeto é pleno de
desafios, pois o terreno é ainda bastante inexplorado, mesmo porque sua
constituição é significativamente recente. Esse terreno se parece muito com um
‘tecido a ser tecido’ numa lida artesanal, pouco a pouco, linha por linha, com enlaces
consecutivos, os quais constituirão a trama sobre ‘os movimentos sociais’.
Sabe-se que haverá muitos momentos dessa lida em que a linha teimará
em se enovelar. Sabe-se inclusive que em alguns destes pontos será mais fácil
desmanchar tais nós, porém em outros não. Mesmo assim não se desanima, pois a
lida fica interessante quando existem desafios. Ao final dela, espera-se que as linhas
das reflexões se entrecruzem e o resultado do capítulo acalente e aqueça as
discussões seguintes.
Agora, para oferecer um ‘olhar mais compenetrado’ para o estudo que se
inicia, há que se apresentar o capítulo com palavras menos figuradas. Assim,
adianta-se que nele são abordadas três dimensões importantes dos estudos sobre
os movimentos sociais no âmbito brasileiro. São ainda organizadas em três seções,
as quais estão subdivididas em partes e itens, conforme demanda seu conteúdo.
Na primeira seção, aborda-se o tema dos movimentos sociais na
perspectiva do reconhecimento de sua trajetória histórica, dos paradigmas teóricos e
da conceituação que orienta os estudos no contexto brasileiro, na atualidade.
Na segunda seção,são discutidos os ‘movimentos sociais em caminhada’.
Através desta discussão visualiza-se a possibilidade de construir um retrato
brasileiro, catarinense e camponês dos movimentos sociais, numa perspectiva
sócio-histórica.
Já na terceira e última seção, traz-se à mesa de debates, para além das
discussões conceituais, a abordagem dos movimentos sociais sob o ponto de vista
de sua interação dialética na sociedade. Neste debate, trata-se da criação de novas
relações sociais; ‘dos movimentos de mulheres’ e da ‘participação das mulheres’ nos
70
movimentos sociais; dos movimentos sociais na cotidianidade e o surgimento da
cultura política como desafio atual; e, finalmente, dos movimentos sociais enquanto
formuladores de política e construtores de cultura.
Enfim, a partir das reflexões, indagações e discussões desenvolvidas com
outros autores, imagina-se alcançar um amadurecimento teórico sobre os
movimentos sociais no contexto brasileiro, que contenha as especificidades relativas
ao Estado de Santa Catarina e ao contexto rural. Supõe-se que este
amadurecimento possibilitará avançar para o próximo capítulo, onde será abordado
o processo de construção de identidades – individuais e coletivas – das mulheres
camponesas, a partir da cotidianidade.
Quer fazer companhia nesta caminhada, ou ainda, nesta lida?
71
PRIMEIRA SEÇÃO
Movimentos Sociais - Trajetória histórica, paradigmas teóricos e
conceituação
2.1.1 Os movimentos sociais – Desde a entrada no cenário público ao seu
surgimento no campo teórico
Sinalizando o início de sua discussão sobre ‘a gênese e os principais
enfoques conceituais sobre movimentos sociais, Silva (2001, p.15) oferece como
ponto de partida a concepção de que “os movimentos sociais referem-se à práxis
dos homens na história. Ou seja, compreende um agir através de um conjunto de
procedimentos e um pensar através de um conjunto de idéias que motivam ou
fundamentam a ação individual e coletiva”.
Ora, é visível já neste apontamento introdutório que há ‘um agir’ e ‘um
pensar’ que, ao mesmo tempo em que balizam, orientam e levam à ação coletiva mas também individual -, tornam-se eles próprios os elementos de uma identidade
social que, ao ser partilhada, vai se construindo com e através dos indivíduos,
sempre na perspectiva da coletividade.
Outra estudiosa do tema aponta que, ao se refletir sobre os movimentos
sociais, toma-se por base a idéia de que não existe um movimento social pensado
como sujeito único, homogêneo e estruturado. O que existe são movimentos sociais;
cada qual com práticas diferenciadas, com dinâmica e identidade próprias, com
ciclos distintos e também com distintas formas de se relacionar com o Estado, com a
sociedade e com o mercado. Possuem pluralidade e heterogeneidade de caráter,
sendo diversos seus conflitos e interesses. Enfim, transformam-se ao longo de seu
próprio fazer e acontecer histórico, sempre envoltos e participantes na conjuntura da
sociedade (RIBEIRO, 2005).
A mesma autora ainda colabora ao dizer que
Mesmo considerando as determinações estruturais, temos visto na história
dos movimentos sociais lugar para processos determinados por interesses
sociais e expressos por intermédio de ações coletivas de sujeitos históricos.
72
Isto nos leva a outra premissa: que a contestação de certas relações sociais
no âmbito das relações de produção e reprodução da vida social é outro
elemento constitutivo dos movimentos sociais (RIBEIRO, 2005, p.67).
Nota-se que para a estudiosa, os movimentos sociais, em grande parte,
têm contestado a ordem vigente, e trazido, para discussão, outras perspectivas de
organização social, política e cultural. Esta idéia é confirmada ao dizer que “os
movimentos sociais se expressam através de um conjunto de práticas sócio-políticoculturais, nas quais os conflitos, as contradições, os antagonismos existentes são o
substrato básico para as ações desenvolvidas” (RIBEIRO, 2005, p.67).
A partir de Silva (2001, p. 15), toma-se ciência de que “o termo
‘movimento social’ foi criado por Lorenz Von Stein, no século XIX, por volta de 1840,
na Alemanha, ao evidenciar a necessidade de um ramo da ciência social que se
voltasse para o estudo dos movimentos sociais da época, como o movimento
operário e o socialismo emergente”.
Nota-se assim que, embora o momento mais intenso de criação,
mobilização e atuação dos diversos movimentos sociais em nível mundial tenha
ocorrido no século XX, principalmente, na segunda metade deste, o aparecimento
dessa forma de expressão datava de mais de um século.
Destarte, os ‘movimentos sociais’, enquanto expressões sociais e
políticas da sociedade, são resultantes do modo de produção capitalista, tendo
surgido ainda no período pós-revoluções – industrial e francesa -, sendo seu
aparecimento e existência intrínsecos a essa sociedade e às novas formas de
exploração por ela engendrada. Essa compreensão aproxima-se daquela de
Hobsbawm (1995, apud Silva, 2001) quando aponta os ‘movimentos sociais’ como
fenômenos históricos concretos, resultantes de lutas sociais, fluxos e refluxos de
ação.
Historicamente, os ‘movimentos sociais’ conquistaram espaço não
somente no cenário público da sociedade capitalista, mas também no campo
científico, tornando-se objeto de investigação, de discussões e teorizações10. Isto
acontece primeiramente no âmbito das ciências sociais, quando se identificou que
10
Concordando com a compreensão de Silva (2001, p.18) de que foi em meados da segunda metade
do século XX que “os ‘movimentos sociais’ ganharam status de objeto científico na academia”, cabe
destacar que já havia uma primeira aproximação com o campo investigativo, no século XIX, através
das ciências sociais e com cientistas tais como o já citado Lorenz Von Stein.
73
os ‘movimentos sociais’ configuravam-se como elemento significativo para a
mudança social e o desenvolvimento político que vinha acontecendo desde o
período pós-revolucionário. Mais tarde, já em decorrência destes primeiros estudos,
outras áreas do conhecimento passam a incorporá-los como campo de produção do
conhecimento e de práticas profissionais, tais como a Antropologia, a Psicologia, a
Educação, o Serviço Social, entre outras.
Os estudos que tratam parcial ou integralmente da história dos
movimentos sociais, como os de Sader (1988), Gohn (1995 e 1997), Silva (2001),
Ribeiro (2005), entre outros, apontam que eram os movimentos ligados à classe
trabalhadora – especialmente o movimento operário e o sindical – que se
configuravam como principais sujeitos que alimentavam os estudos iniciais, bem
como conferiam identidade às primeiras expressões publicamente notadas e
reconhecidas enquanto ‘movimentos sociais’.
Deste modo, como já mencionado, foi na Europa que surgiram as
primeiras referências ao termo movimentos sociais. No início destes estudos, a
perspectiva que embasava os debates partia de abordagens marxistas, que até a
primeira metade do século XX eram ligadas ao conceito de lutas sociais, cuja
centralidade direcionava-se para a classe operária e para a correlação de forças
entre capital e trabalho (SILVA, 2001).
Não obstante a temática dos movimentos sociais ter começado a
aparecer no cenário das ciências sociais através dos europeus, a partir do século
XIX, ela figurava nas investigações apenas como estudos empíricos relacionados
aos movimentos da classe operária, ou seja, não comportava a possibilidade de que
pudesse ocorrer no restante da sociedade e nem se configurava como campo de
investigação teórica. Foi somente a partir da segunda metade do século XX, que o
conceito de movimento social, já com sentido mais próximo daquele usado
atualmente – não restrito à classe, ao operariado e ao sindicalismo – tornou-se
objeto de análise para as ciências sociais, ou seja, surgiu como conceito sociológico.
Esse aparecimento no âmbito científico é atribuído aos estudos norteamericanos, conforme atesta Gohn (1997), Silva (2001) e Ribeiro (2005) e outros
investigadores. Embora não se distancie muito do reconhecimento feito pelos
74
europeus de que, para além da empiria, os movimentos sociais tinham
características que requeriam cientificidade no seu tratamento.
Numa compreensão mais ampla do que aquela que remete à simples
cronologia histórica de seu surgimento, é imprescindível para os atuais estudos
envolvendo os movimentos sociais – como é o caso deste -, reconhecer o percurso
investigativo de desenvolvimento do conceito, o que permite identificar as principais
linhas teóricas que fundamentam os estudos e debates, inclusive na atualidade.
Alguns autores já se dedicaram especificamente a essa tarefa, dentre os
quais se destaca Paoli, (1995), Miranda (1997) e, notadamente, Gohn (1997). Dada
a circunstância e a finalidade dessa investigação, serão utilizados tais aportes –
principalmente os de Gohn - para sinalizar algumas considerações importantes para
a continuidade do estudo em pauta.
Portanto, parte-se para a próxima tarefa: tecer alguns apontamentos em
relação aos paradigmas teóricos sobre movimentos sociais, desde o surgimento, até
as discussões atuais.
2.1.2 Conhecendo os paradigmas teóricos para compreender os atuais estudos
sobre movimentos sociais
Para início de conversa, denota-se que desde o início dos debates tanto
empíricos, quanto científicos, reconheciam-se as divergências que marcavam os
estudos e as discussões dos europeus e dos norte-americanos, além daquelas mais
tarde desenvolvidas por pensadores latino-americanos - mesmo que estas últimas
tenham se caracterizado como sendo um ‘hibridismo’ entre as duas primeiras. Tais
divergências e/ou contrapontos teóricos, levaram a identificar três linhas como sendo
paradigmas independentes sobre movimentos sociais, cada qual com suas
especificidades11.
11
Serão apresentadas no decorrer deste item algumas das principais idéias sobre cada um dos
paradigmas teóricos sobre movimentos sociais. Porém, para maior aprofundamento da questão,
indica-se recorrer ao estudo de Maria da Glória Gohn, cujo título é ‘Teorias dos Movimentos Sociais:
paradigmas clássicos e contemporâneos’, onde a autora desenvolve com reconhecida propriedade
este tema. Ver referência completa ao final da dissertação. Ainda é importante registrar que na
75
Para tratar desses três paradigmas, a partir deste momento do estudo,
passou-se a adotar principalmente as considerações de Gonh (1997), por considerar
que elas permitirão expressar – sem muitas elucubrações – questões consideradas
fundamentais para compreender o que se planeja apresentar nos próximos itens de
reflexão12.
Antes disso, é importante chamar a atenção para a concepção de Gohn
(1997, p.13) sobre paradigma, quando esta afirma que “é um conjunto explicativo em
que encontramos teorias, conceitos e categorias, de forma que podemos dizer que o
paradigma X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou
processo da realidade social”. A mesma autora ainda pondera que, dadas as
diferenciações geográficas, territoriais, culturais, políticas, sociais, entre outras, é
normal a existência de perspectivas diferenciadas de concepção, interpretação,
reflexão e debate sobre os movimentos sociais, pois estas necessariamente se
fundamentam em realidades específicas, as quais se diferenciam de lugar para
lugar, segundo o contexto, a conjuntura e a estrutura, mesmo considerada a
interação resultante da globalização.
Dito isto, passa-se à apresentação dos paradigmas norte-americano,
europeu e latino-americano, sequencialmente.
2.1.2.1 O paradigma norte-americano: quando os movimentos sociais
adentram no cenário teórico
Para que seja possível compreender como o tema dos movimentos
sociais adentra no campo das teorias sociológicas, é significativo reconhecer os
antecedentes que levaram a este reconhecimento inaugural pelos teóricos norteamericanos. Para tanto, resgata-se na história das ciências sociais o fato de que
Sociologia, o autor clássico que discute o conceito de “paradigmas” é Thomas Kuhn, no livro "A
estrutura das revoluções científicas". Embora isto seja reconhecido, adverte-se que o conceito será
abordado, nesta dissertação, a partir dos estudos de Gohn.
12
Salienta-se, entretanto, que outros autores consultados durante esta investigação, divergem de
Gohn (1997) em relação à identificação de alguns autores com as correntes teóricas aqui indicadas.
Apesar da dificuldade que isto representa, considerou-se mais adequado fundamentar o debate que
segue, principalmente com esta autora, apontando em notas de rodapé os pontos significativos
destas divergências.
76
Nas décadas de 20, 30, 40 e 50, a partir da Escola de Chicago, de
orientação reformista e matriz da sociologia norte-americana, foram
elaboradas as teorias do interacionismo simbólico, entre as quais se
destaca a de Hebert Blumer, tido por muitos como pioneiro das análises dos
movimentos sociais. Sua teoria, denominada carências sociais, [...] via os
‘movimentos sociais’ como problemas sociais, um fator de desequilíbrio e
quebra da ordem vigente, que se deseja construir (SILVA, 2001, p.17).
Há que se considerar a existência de controvérsias em relação a este
aparecimento do conceito sociológico de movimentos sociais. Ribeiro (2005), por
exemplo, atribui o fato ao sociólogo Antony Oberschall e ao historiador Charles Tilly,
ambos também norte-americanos. O conceito teria surgido na década de 1960,
diretamente relacionado à ‘teoria da mobilização de recursos’.
Sem entrar nas vias desta divergência e não retirando o reconhecimento
e a devida autoria aos estudiosos norte-americanos, que primeiramente se
dedicaram à construção do conceito (termo, estudos e observações) de movimentos
sociais, bem como à corrente teórica que lhe deu origem, importa registrar que,
enquanto fato social da sociedade capitalista, os movimentos sociais já ocorriam no
século XIX: movimento sindical e classe operária, embora o conceito sociológico só
tenha surgido, na sociologia norte-americana, por volta da metade do século XX.
Em relação ao desenvolvimento do paradigma norte-americano sobre
movimentos sociais, percebe-se a forte ligação existente este e o desenvolvimento
inicial das ciências sociais naquele contexto. Neste sentido, identifica-se um primeiro
período desta abordagem, considerada como ‘clássica’, que predominou até meados
dos anos 1960.
Esta abordagem subdividiu-se em cinco linhas gerais, que, embora
heterogêneas, condensavam características comuns. Segundo Gohn (1997, p.23),
[...] o núcleo articulador das análises é a teoria da ação social, e a busca da
compreensão dos comportamentos coletivos é nela a meta principal. Estes
comportamentos, por sua vez, eram analisados segundo um enfoque sóciopsicológico. A ênfase na ação institucional, contraposta a não-institucional,
também era uma preocupação prioritária e um denominador que dividia os
dois tipos básicos de ação: a do comportamento coletivo institucional e a do
não-institucional. A ação não-institucional [...] não era guiada por normas
sociais existentes e era formada por situações desestruturadas, entendidas
como quebras da ordem vigente. Estes processos ocorreriam antes que os
órgãos de controle social [...] atuassem, restaurando a ordem antiga ou
criando uma nova, que absorveria os reclamos contidos nas agitações
coletivas.
Antes de
tratar
das cinco linhas teóricas deste
paradigma,
é
imprescindível falar sobre outro elemento significativo para compreender o espaço e
77
o lugar dos movimentos sociais na sociedade, a partir destas teorias. Trata-se da
concepção de ‘sistema político’ utilizada pelos teóricos norte-americanos.
Conforme Gohn (1997, p.24), o sistema político “era visto como uma
sociedade aberta para todos, plural e permeável. Mas os movimentos sociais não
teriam a capacidade de influenciar aquele sistema devido a suas características
espontâneas e explosivas”.
Ora, fica evidente que neste paradigma teórico os movimentos sociais
contracenavam como atores coadjuvantes na sociedade, não tendo a mesma
importância que outras instituições sociais, nem no aspecto propositivo, nem
naquele de tensionamento das estruturas da sociedade.
Segundo Gohn, as principais características das cinco linhas gerais deste
paradigma são:
a. A primeira teoria tem origem com a Escola de Chicago e com os
interacionistas simbólicos do início do século: estes delineavam os
movimentos sociais como reações psicológicas às estruturas de
privações socioeconômicas. É atribuída a esta corrente a primeira
teoria dos movimentos sociais, atribuída a Hebert Blumer (1949).
b. Segunda teoria clássica: esta corrente desenvolveu-se entre os
anos de 1940 e 1950 e tinha como seu foco central a sociedade
das massas. Foram representantes deste pensamento Fromm
(1941), Hoffer (1951) e Kornhauser (1959).
c. Terceira teoria clássica: marcou as discussões até os anos 1950,
seguindo uma abordagem sociopolítica, que punha destaque nas
variáveis políticas. Figurou principalmente nas teorizações de
Lipset (1950) e Rudolf Heberle (1951).
d. Quarta teoria clássica: esta corrente resultou de uma associação
entre a teoria da Escola de Chicago e a teoria da Ação Social de
Parsons. Versava sobre o comportamento coletivo sob a ótica do
funcionalismo, tendo sido guiada pelas reflexões de Turner e Killian
(1957), Aberle (1966) e Smelser (1962).
e. Quinta teoria: esta corrente aborda as teorias organizacionaiscomportamentalistas,
tendo
sido
denominada
de‘corrente
78
organizacional-institucional’. No início foi marcada pelas idéias de
Selzinick (1952), Gusfield (1955) e Messinger, tendo sido retomada
recentemente, nos anos 1990, por pensadores dos movimentos
sociais.
Já no segundo momento do paradigma norte-americano sobre os
movimentos sociais, nota-se a presença do que se denominou como ‘teorias
contemporâneas norte-americanas da ação coletiva e dos movimentos sociais’.
Conforme Gohn (1997, p.49), “as transformações políticas ocorridas na sociedade
norte-americana nos anos de 1960, levaram ao surgimento de uma nova corrente
interpretativa sobre movimentos sociais, a chamada Teoria da Mobilização de
Recursos (MR)”.
Esta teoria teve bastante relevância para os estudos norte-americanos
sobre movimentos sociais, tendo predominado como referência teórica, na maioria
dos estudos, por aproximadamente duas décadas. Destacaram-se dentro dela os
trabalhos de Olson (1965), Gusfield (1970), Oberschall (1973), McCarthy e Zald
(1973) e do historiador Tilly (1978).
De forma geral, as ações coletivas eram analisadas através de
explicações comportamentalistas organizacionais, contrapondo com a lógica dos
sentimentos, das insatisfações e dos desajustes atribuídos e observados até então,
apenas no âmbito individual, e retirando estas manifestações sociais do patamar de
patologia social.
As ações coletivas são analisadas segundo o nexo entre ‘custo e
benefício’ dos recursos existentes, desconsiderando como componentes para esta
análise os valores, normas, ideologias, culturas dos movimentos sociais (SILVA,
2001).
Para Gohn (1997, p.50),
Sua base explicativa principal era que os movimentos sociais são
abordados como grupos de interesses. Enquanto tais são vistos sob a ótica
da burocracia de uma instituição. As ferramentas básicas utilizadas na
abordagem advêm de categorias econômicas, [...] sendo que a variável
mais importante, como o próprio nome indica, é a de recursos: humanos,
financeiros e de infra-estrutura variada. Os movimentos surgiriam quando os
recursos se tornassem viáveis.
Conforme Silva (2001, p.20), “a teoria de MR predominou nos estudos
norte-americanos sobre movimentos sociais nos anos 70 e 80, embora fosse se
79
alterando ao incluir novos temas, bem como incorporar muitas das críticas que lhe
foram feitas”.
O terceiro momento do paradigma norte-americano, sobre os movimentos
sociais, identificado por Gohn (1997), aconteceu já no contexto de globalização e de
internacionalização dos mercados mundiais, tendo se iniciado ainda na década de
1970, a partir das críticas em relação ao individualismo e utilitarismo metodológicos
da ‘MR’. Tanto foi marcado por aquele contexto e momento histórico, que passou a
ser denominado como ‘teorias sobre movimentos sociais na era da globalização: a
mobilização política’.
Sua principal atenção, nas palavras da autora (GOHN, 1997, p.69),
voltava-se ao “desenvolvimento do processo político, ao campo da cultura e à
interpretação processual das ações coletivas. A ênfase passou para a estrutura das
oportunidades políticas, o grau organizativo dos grupos e a aplicação da análise
cultural na interpretação dos discursos”.
Ela
ressalta
ainda
que
“[...]
argumentou-se
que
outros fatores
macroestruturais facilitam a geração de protestos sociais [...]. Em síntese, os
protestos, os descontentamentos, ressentimentos e outras formas de carências
existentes no grupo foram também reconhecidos como fontes de recursos” (GOHN,
1997, p.71).
É importante deixar claro que os movimentos sociais analisados sofreram
mudanças e/ou releituras - ‘movimento dos direitos humanos’ e o ‘movimento
feminista’, por exemplo –‘e que essas mudanças fizeram com que surgissem novas
organizações, tais como o ‘movimento ecológico’, ‘dos negros’, ‘de gays e lésbicas’,
entre outros.
Os representantes desta teoria foram desde novos investigadores que
adentraram e/ou começaram a se destacar naquele momento no campo dos
movimentos sociais, mas também aqueles que já figuravam na teoria da MR e que
reformularam ou ampliaram suas idéias. No primeiro grupo encontram-se
Klandermas (1988), Friedman (1992), Tarrow (1988), Morris (1992), entre outros; e
no segundo, Tilly (1994), Gusfield (1996), Oberschall (1993) e McCarthy (1996)
(GOHN, 1997).
80
2.1.2.2 O paradigma Europeu: quando a própria teoria está em movimento
Visto o paradigma norte-americano sobre os movimentos sociais, cumpre
agora fazer alguns apontamentos acerca do paradigma europeu. Sua origem, como
já assinalado, remonta às mobilizações operárias e sindicais iniciadas logo após o
período revolucionário – Industrial e Francês. Naquele contexto, as mobilizações e
ações sociais que estavam acontecendo já chamavam a atenção de alguns
estudiosos.
Essas observações e os estudos delas decorrentes, ao serem
incorporadas pelas ciências sociais, tornaram-se objeto de investigação de um grupo
de cientistas, que logo foi identificado como ‘vertente européia’ nos estudos dos
‘movimentos sociais’. Tal vertente foi posteriormente considerada por autores como
Gohn (1997), como ‘paradigma europeu clássico’. Esta corrente teórica fundava
suas discussões a partir do olhar para a luta de classe, especificamente para a
classe trabalhadora e notadamente com forte influência da perspectiva marxista
clássica.
É interessante considerar que
Marx não se preocupou em criar uma teoria específica sobre os movimentos
sociais, sobre a classe operária, o Estado ou qualquer outro ponto
específico. Ele desenvolveu um estudo da sociedade capitalista, a partir de
sua gênese histórica, e localizou no estudo da mercadoria o ponto de
partida para a compreensão de todo o processo de acumulação e
desenvolvimento das relações sociais capitalistas. [...] O desenrolar das
relações capitalistas no interior das unidades produtivas levou à reflexão
sobre uma categoria que se tornará central no estudo do movimento social
da classe operária e da própria burguesia: a práxis social (GOHN, 1997,
p.176).
A partir da afirmação de Gohn, pode se perceber que a forma pela qual a
vertente européia clássica, de perspectiva marxista, trouxe alguns elementos para
os debates sobre ‘movimentos sociais’, perdurou naqueles realizados na atualidade.
Embora tais debates tenham sofrido transformações próprias do movimento histórico
das sociedades, esses elementos oferecem pistas sobre os movimentos sociais no
momento presente, provocando indagações que permitem desvendar a identidade, a
organização, as demandas e o fazer político dos movimentos sociais na
contemporaneidade.
81
Marcadamente neste paradigma – donde decorrem duas correntes
teóricas - e na escola européia, é notória a presença do marxismo enquanto
principal aporte teórico. Gohn (1997, p.171) indica algumas características gerais
deste paradigma:
A análise dos movimentos sociais sob este prisma, refere-se a processos de
lutas sociais voltadas para a transformação das condições existentes na
realidade social, de carências econômicas e/ou opressão sociopolítica e
cultural. Não se trata do estudo das revoluções em si, também tratado por
Marx e alguns marxistas, mas do processo de luta histórica das classes e
camadas sociais em situação de subordinação.
Para a autora, o paradigma clássico se desdobra em duas correntes: uma
ligada ao jovem Marx e outra ao Marx maduro. Sobre elas, Gohn (1997, p.172)
afirma:
A primeira corrente clássica liga-se aos estudos sobre a consciência, a
alienação e a ideologia etc., e que criou uma tradição histórica humanista
que teve continuidade nos trabalhos de Rosa de Luxemburgo, Gramsci,
Luckács e da Escola de Frankfurt após a Segunda Guerra Mundial. Será
esta leitura do marxismo que alimentará as análises contemporâneas sobre
os movimentos sociais. A outra corrente [...] versa seus estudos sobre o
desenvolvimento do capital, em que os conceitos básicos serão formação
social, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologia,
determinação em última instância, mais-valia etc. Esta última corrente
privilegia os fatores econômicos, macroestruturais da sociedade.
Na perspectiva desta última corrente teórica, o conflito entre capital e
trabalho, que gera a luta de classes, é o principal motor da história. Para os
pensadores desta corrente, a classe operária industrial tem primazia no processo de
luta social e o movimento operário – tão somente este - desempenha o papel de
vanguarda nas transformações sociais.
Apesar de ter conseguido menos teóricos adeptos, esta corrente teórica
foi bastante significativa no contexto do paradigma europeu sobre os movimentos
sociais, pois foi a partir dos seus pressupostos que surgiram as indagações que
levaram à elaboração de uma nova corrente teórica sobre os movimentos sociais.
Tais contestações no campo teórico ocorreram tanto por parte de pensadores
marxistas, quanto dos não-marxistas, dado que os pressupostos desta segunda
corrente se inserem num plano mecanicista e determinista da realidade, a partir de
automatismos advindos da esfera macro-econômica.
Dentre os próprios marxistas, que contestam esta corrente ao abordarem
o tema dos movimentos sociais, encontram-se: Manuel Castells, Jean Lojkine, Claus
82
Offe, Laclau, Eric Hobsbawm, E. P. Thompson e G. Rudé, os quais são identificados
como teóricos integrantes do paradigma europeu neomarxista sobre movimentos
sociais (GOHN, 1997).
É fundamental delimitar que para a corrente neomarxista, “a abordagem
dos fatores políticos tem centralidade”, dado que é nesta esfera da vida dos
indivíduos e da própria sociedade que aparecem e se desenvolvem os processos
sociais de mobilização gerados pelos movimentos sociais. Além disto, para esta
corrente de pensadores, “[...] a política passou a ser enfocada do ponto de vista de
uma cultura política, resultante das inovações democráticas, relacionadas com as
experiências dos movimentos sociais, e tem papel tão importante quanto à economia
no desenvolvimento dos processos sociais históricos” (GOHN, 1997, p.173).
2.1.2.3 O paradigma latino-americano: a confluência de teorias expressando a
diversidade no campo dos movimentos sociais e a necessidade de um
paradigma próprio
Nesta exposição sobre os paradigmas teóricos acerca dos movimentos
sociais, cabe discutir como foi seu desenvolvimento em termos de América Latina.
Já em princípio, ressalta-se que ele surge e se desenvolve com tendências e
perspectivas de análise que dão seguimento, principalmente, à corrente européia –
em seus dois paradigmas -, com predomínio de estudos de natureza empíricodescritiva, acerca, principalmente, da identidade e dinâmica dos movimentos sociais
específicos. Isto é, os estudos que predominam no campo investigativo brasileiro
tratam de movimentos sociais específicos, muito contribuindo para revelar aspectos
que vão dando os contornos característicos de vários outros movimentos sociais.
Entretanto, não se propõem desenvolver uma teoria própria sobre os movimentos
sociais, considerando a realidade brasileira.
Esta visão é também de Silva (2001), que afirma que na América Latina,
mais do que teorizações sobre movimentos sociais, o que ocorreu foram as
‘mobilizações de massa’, principalmente na década de 1980, mas também nas
seguintes.
83
Segundo Gohn (1997), existem alguns elementos que poderiam explicar
os motivos de uma ausência teórica, num contexto com intensas experiências de
movimentos sociais. Assim, o contexto de desenvolvimento da nação, bem como a
conjuntura sócio-econômica e política teriam fortes reflexos nesta ausência. Note-se
que no período em que os paradigmas teóricos europeus e norte-americanos se
desenvolveram, na América Latina vivia-se um período de desenvolvimento
econômico, de controle social exercido pelos regimes militares, de arrocho salarial,
supressão de liberdades, repressão política via uso de força/violência policial,
aumento do consumo das classes médias, expansão do ensino superior e da
tecnocracia estatal, entre outras características que contribuíram para que no Brasil
ocorresse uma confluência das diversas teorias, quando não, de diversos
paradigmas sobre movimentos sociais e não a elaboração de um paradigma próprio.
Nesta realidade apenas acenada, emergem mobilizações coletivas com
forte expressão, que protestam contra a precariedade da força de trabalho e contra o
regime autoritário e de cerceamento, exigindo a reabertura política e a
redemocratização do país13, tais como a grande ‘Greve do ABC Paulista de 1978’ e
o ‘Movimento Diretas Já’ do início dos anos 1980. Salienta-se, entretanto, que estas
mobilizações se caracterizavam mais como ‘movimentos populares’, do que
‘movimentos sociais’, não obstante sua contestação da ordem e o forte apelo político
– direto – e social – mesmo que de forma subliminar. Logo, foi este tipo de
movimento (popular) que ganhou expressão e se disseminou pelo Brasil e também
pela América Latina.
Outro elemento importante apontado por Gohn (1997) como fator
explicativo em relação à ausência teórica, é a expansão dos cursos de pósgraduação em ciências sociais pelo país, justamente num momento político da
década de 1980, de reabertura democrática, efervescência das manifestações
contestatórias e reivindicativas da sociedade, através de grupos sociais e também
da população em geral, bem como de surgimento de um número significativo de
partidos políticos. A década de 1980 também foi marcada pela transformação das
estruturas sindicais, num processo que já havia se iniciado na década de 1970.
13
Embora a referência adotada seja o cenário brasileiro, pode-se estender ao restante dos países
latino-americanos estas mesmas características, ressalvadas algumas particularidades nacionais.
84
Nas
palavras
de
Gohn
(1997,
p.215),
nesse
cenário,
“novos
pesquisadores estavam ávidos por entender os processos sociais que estavam
ocorrendo e desejosos de participar de algum modo da luta contra o regime militar
[...]. A onda de estudos sobre movimentos populares surgiu neste contexto, com
bases teóricas européias”. Enfim, o quadro investigativo e acadêmico que figurava,
retrata que
A produção de conhecimento e a elaboração de estratégias políticas se
cruzaram. Os estudos ficaram mais no plano descritivo porque a visibilidade
aparente dos dados que se coletavam e se registravam era o que mais se
destacava, num processo muito vivo, em que os discursos dos novos atores
eram supervalorizados. Havia uma base teórica que consistia mais num
guia de orientação político-estratégica para as ações futuras do que num
referencial explicativo sobre o passado imediato (GOHN, 1997, p.215).
Em relação aos paradigmas europeus, importa registrar que até meados
da década de 1970, predominou a influência da corrente teórica marxista clássica
ligada ao jovem Marx, a qual teve bastante repercussão principalmente a partir dos
estudos de Gramsci, mas tendo também alguma incidência da corrente neomarxista,
através de Castells14, na abordagem dos movimentos sociais urbanos.
Já na década de 1980 começou a adentrar nas investigações a corrente
teórica dos ‘novos movimentos sociais’, sendo Touraine e novamente Castells – que
progressivamente tinha abandonado o referencial marxista – as principais
referências nas quais os pesquisadores brasileiros foram buscar aportes para seus
trabalhos.
Na década de 1990 os referenciais teóricos continuaram se modificando,
ao mesmo passo em que também se transformavam os movimentos sociais e o
próprio cenário político, social, econômico e cultural brasileiro. Além de Touraine e
Castells, começaram a figurar nas investigações dos cientistas sociais brasileiros os
trabalhos de Hobsbawm – um marxista contemporâneo – e de Thompson – que
retoma a categoria da experiência histórica nos marcos do materialismo histórico.
Conforme Gohn (1997, p. 284), o cenário das correntes teóricas que
fundamentaram os estudos brasileiros sobre os movimentos sociais na década de
1980 foram
14
Indicado por autores como Silva (2001) e Ribeiro (2005), como estudioso da corrente ‘marxista
estruturalista’.
85
[...] as análises de cunho marxista para os movimentos populares,
influenciadas pela corrente franco-espanhola de Castells (1973), Borja
(1972), Lojkine (1981), Preteceille (1985) etc. ou as análises acionalistas de
Touraine (1978) [...]. Nos anos 1980, as análises sobre os novos
movimentos sociais serão influenciadas por Foucault (1981), Guattari
(1985), Castoriadis e Cohn-Bendict (1981), Melucci (1989), Offe (1988) etc.
[...] O denominador comum nas análises dos novos movimentos sociais no
Brasil foi a abordagem culturalista, em contraposição à marxista presente
com mais força na análise dos movimentos populares.
É importante registrar que a autora que conferiu os principais
fundamentos para o debate aqui envidado, Maria da Glória Gohn (1997), em seu
trabalho faz uma contundente crítica aos estudiosos brasileiros e latino-americanos,
dizendo que estes se afastaram desde o princípio de seus estudos, das teorias
norte-americanas sobre os movimentos sociais, por as identificarem diretamente
com a vertente funcionalista. Segundo ela, ainda durante a década de 1970 os
norte-americanos estabeleceram uma espécie de interlocução com a corrente
européia dos ‘novos movimentos sociais’, o que também não foi incorporado pelos
cientistas sociais brasileiros.
Acontece que a corrente européia marxista entra em estagnação e
declínio na década de 1980 e aquela dos novos movimentos sociais, embora tenha
se fortalecido e firmado neste período, também passa pela estagnação na década
de 1990, o que faz com que, mais recentemente, ocorra com os estudos brasileiros
sobre movimentos sociais, aquilo que Gohn (1997) denomina de ‘orfandade teórica’.
2.1.3 Dos paradigmas teóricos europeu e norte americano, aos estudos
brasileiros
Dado que foi apresentado um panorama geral sobre os paradigmas
teóricos desenvolvidos mundialmente, os quais fundamentaram suas discussões
sobre ações coletivas – fazendo referência a Gohn (1997 e 2004) -, lutas sociais,
movimentos populares e movimentos sociais, entre outros conceitos e terminologias,
reconhece-se também a importância de apontar alguns dos estudiosos brasileiros
sobre o tema, a partir da corrente teórica em que buscaram fundamentação para
seus estudos e análises.
86
Para esta empreitada buscar-se-á os aportes em Ribeiro (2005), que ao
apresentar esta questão para seus leitores, consegue sintetizar através de três
outros pesquisadores - Baierle (1992), Doimo (1995) e Paoli (1995) - a elaboração
de ‘um balanço da literatura, vinculando filiação teórica e interpretação analítica’.
Dado que o objetivo deste item é fornecer um panorama sobre os
pensadores brasileiros, será enfocado apenas um dos três balanços, que é aquele
realizado por Paoli. Eis o que segue, mesmo que de forma sintética.15
Para Paoli (1995, apud Ribeiro, 2005), há três linhas teóricas que podem
ser reconhecidas na produção sobre movimentos sociais principalmente entre as
décadas de 1970 e 1980 e avançando sutilmente nos anos 1990.
Um dos enfoques, denominado de ‘estrutural marxista’, esteve presente
entre 1975-1982. Suas discussões versavam sobre “[...] o potencial político dos
chamados novos atores sociais; a transformação da sociedade; as análises
centradas nas determinações estruturais e os movimentos sociais com natureza
anti-institucional, assimilando a luta de classes (burguesia X proletariado)” (PAOLI,
1995, apud Ribeiro, 2005, p.59). Identificados como representantes deste enfoque
estão Lojkine (1981), Castells (1974)16 e Borja (1975)17, sendo que dentre os autores
brasileiros que seguiram tal enfoque se destacam Jacobi (1980), Nunes (1987),
Kowarick (1984), Moisés (1978) e Gohn (1985).
O segundo enfoque encontra centralidade no conceito de ‘ação coletiva’ e
se fez presente a partir dos anos de 1982-1983. Suas análises se concentravam “[...]
nos modos de agir dos grupos e extratos da população envolvida nos movimentos
sociais; a questão da classe não é ressaltada, a argumentação é dirigida aos
aspectos políticos e institucionais e, principalmente, à relação dos movimentos
sociais ao conjunto da sociedade” (PAOLI, 1995, apud Ribeiro, 2005, p.59). Os
15
Embora ciente do perigo de uma nova leitura realizada sobre outra feita por outrem, enfrentou-se
este desafio de acessar parcialmente a produção de Maria Célia Paoli (1995), através da obra
‘Movimentos Sociais em Tempos de Democracia e Globalização em Santa Catarina’, de Edaléa Maria
Ribeiro (2005), por reconhecer a importância de oferecer também o panorama dos estudiosos
brasileiros sobre movimentos sociais e, acima de tudo, considerando a situação de que não foi
possível acessar a bibliografia da própria autora.
16
Este autor é identificado por Gohn (1997) como sendo um dos críticos à corrente clássica do
marxismo (a do Marx maduro) que estudou os Movimentos Sociais, compondo o que ela denominou
por ‘neomarxismo’.
17
Note-se que esta identificação encontra relação com aquela feita por Gohn (1995), citada no item
em que são discutidos os ‘paradigmas teóricos dos movimentos sociais’.
87
estudiosos brasileiros que se destacaram a partir deste enfoque foram Cardoso
(1983), Boschi (1983), Durhan (1984), Santos (1981), Doimo (1995) e Jacobi (1989).
O terceiro enfoque fundamenta-se principalmente no conceito de ‘cultura
política’ e começa a ser utilizado também a partir dos anos de 1982-1983. Embora
este enfoque centre suas análises no marxismo, contesta pressupostos como
Sujeito único (classes populares, classe operária homogeneizada como
classe única portadora do projeto revolucionário); a idéia de que as
condições materiais objetivas que determinam a ação das classes sociais;
idéia de que os movimentos sociais seriam formas combativas e
autônomas; pressupostos da eficácia da ideologia dominante para explicar o
porquê da exclusão das classes dominadas da cena política (PAOLI, 1995,
apud Ribeiro, 2005, p.60).
Os autores de referência deste terceiro enfoque são Gramsci, Touraine,
Thompson, Castoriadis, Evers, entre outros; e os investigadores brasileiros que
encontraram balizamento para seus estudos nesta perspectiva de análise são: Paoli,
Telles, Sader, Scherer-Warren, Caccia Bava, Irlys, Barreira, Edison Nunes e
Kowarick.
Ora, note-se que a construção teórica brasileira, assim como aquela
norte-americana ou européia, é bastante dinâmica, pois acompanha não somente o
desenvolvimento e os avanços intelectuais, mas também as transformações do
cenário cotidiano e as mudanças dos próprios objetos de investigação,
predominantemente os movimentos sociais. Isto fica evidente quando se detecta que
autores como, por exemplo, Kowarick, que transita do enfoque estrutural marxista
para o da cultura política; ou como Jacobi, que vai do enfoque estrutural marxista
para aquele da ação coletiva. Lembra-se também de Castells, que transitou nas
teorias européias sobre movimentos sociais, indo do marxismo estruturalista ao neomarxismo – no período de críticas ao primeiro, em sua vertente clássica
fundamentada no ‘Marx maduro’ – e, finalmente, para a teoria dos novos
movimentos sociais.
Gohn (1997, p.19) já alertava sobre isto ao dizer que
Em alguns casos, acompanhar a trajetória de produção de determinado
autor foi uma forma de acompanhar as mudanças da problemática, na
prática e no debate teórico. Assim como os movimentos que se apresentam
em ciclos e dão ênfases particulares a cada momento histórico, as
categorias criadas para análise e os conceitos produzidos também são
datados historicamente.
88
Além da dinamicidade histórica que interfere nas transformações do
cenário dos movimentos sociais, existem as mudanças ocasionadas pela
diversidade de contextos históricos onde estes processos sociais ocorrem. Ao
ponderar isto não se apresenta nenhuma novidade; outrossim, corrobora-se com
afirmações de outros autores, como Silva (2001, p.19), quando esta diz que
Todo estudo que se realiza do ponto de vista teórico sobre movimentos
sociais varia segundo o contexto histórico e a realidade de cada país, região
ou cultura que expressam. Fatores, assim, como a origem, o
desenvolvimento, as mudanças produzidas, o êxito ou não dos movimentos
sociais devem ser levados em conta em sua observação e estudo.
O que se quer ressaltar é o fato de que, embora os primeiros embriões
das mobilizações sociais – sejam estas identificadas com qualquer uma das diversas
terminologias e/ou categorias analíticas -, que ganharam visibilidade pública através
da generalização de ‘movimentos sociais’, tenham surgido ainda no período pósrevoluções (industrial e francesa), este tipo de processo social tem uma história
recente, tanto em sua existência concreta na sociedade, quanto em relação ao seu
aparecimento no campo conceitual-teórico das ciências sociais e humanas. Além
disto, o período desde o seu surgimento até os dias atuais foi marcado por intensas
transformações, resultantes da dinâmica capitalista, as quais aceleraram mudanças
também no cenário das trajetórias dos movimentos sociais.
Tal fato apresenta um grande desafio, tanto aos atores dos movimentos
quanto aos seus estudiosos; e, ao mesmo tempo, uma indeterminação em relação
ao futuro. Para os estudiosos da questão, o desafio diz respeito à elaboração de
novos estudos e investigações, assim como a construção de novos paradigmas
teóricos que acompanhem o desenvolvimento destes processos. Indeterminada, é a
continuidade destes processos, que embora dinâmicos e dialéticos – no ponto de
vista da autora do presente estudo – coexistem com outros processos sociais, num
contexto marcado pela celeridade das transformações, cuja origem remonta ao
modo de produção capitalista em colapso. Torna-se, então, necessário acompanhar
estas transformações, observando, discutindo, analisando, teorizando sobre tais
indeterminações, que sem muita demora tornam-se fatos concretos marcando a
história da sociedade.
Portanto, o que permanece da reflexão até aqui feita, é o desafio no
campo da produção teórica sobre movimentos sociais, própria dos investigadores
89
brasileiros, segundo o contexto brasileiro e latino-americano. Muito já se produziu
desde as décadas de 1970 e 1980, quando do surgimento desses estudos no Brasil
e na América Latina, o que é visível pelos vários autores nacionais que foram
lembrados nos parágrafos acima. Entretanto, há ainda uma ampla reflexão teórica a
se construir no que se refere à problemática dos movimentos sociais, o que implica
um olhar curioso dos investigadores para muitos aspectos da realidade concreta
destes movimentos.
Marlene Ribeiro (1998), ao analisar os movimentos sociais faz uma crítica
contundente à forma de apropriação das teorias externas à realidade latinoamericana e brasileira. Neste sentido, aponta também para a necessidade de
elaboração de paradigmas próprios, que possam contribuir não somente para a
academia, mas que - ao alcançarem uma reflexão sobre os movimentos sociais
erigida nas contradições e possibilidades de avanços que marcam a realidade
brasileira – evidenciem o movimento dialético entre esta e os movimentos sociais.
A autora reafirma o que Paoli (1991) já questionava sobre as dificuldades
que algumas abordagens traziam para os estudos, reflexões e análises, ao
utilizarem categorias fechadas que procuravam interpretar os movimentos sociais a
partir de uma única leitura das ‘novas formas de ação coletiva’, perdendo de vista a
especificidade e o contexto em que as relações sociais daqueles grupos se
manifestam, tornando-se práticas de um coletivo.
Ribeiro enfatiza esta forma de tratar a questão quando afirma a
necessidade de:
Conferir aos conceitos [...] sua real dimensão que é dialética e histórica,
porquanto foram construídos sobre determinadas práticas, em épocas,
sociedades, classes e culturas também determinadas por outras realidades,
não podendo ser impingidos como camisas de força ou categorias a priori a
novas realidade em que o tempo e o dinamismo dos conflitos sociais se
encarregou de alterar (RIBEIRO, 1998, p. 67).
E, para encerrar este item, reafirma-se o que Silva (2001) destacou em
seu artigo ‘Movimentos sociais: gênese e principais enfoques conceituais’, publicado
pela Revista Kairós: uma análise teórica séria e comprometida sobre os movimentos
sociais na atualidade deve perpassar pelos nexos que circunscrevem as
transformações sociais, o campo da globalização e os de interação social, o campo
da política, os processos democráticos e, enfim, aqueles de tomada de decisão,
90
para os quais se deve considerar como pano de fundo os influxos entre o bem
comum e os interesses particulares.
2.1.4 Colocando em cena os ‘conceitos’ sobre Movimentos Sociais
Neste item deseja-se apresentar um panorama conceitual em relação aos
movimentos sociais, segundo os principais autores tomados como referência nos
estudos brasileiros das últimas décadas. Como principal fonte, recorre-se à Maria
Lúcia Carvalho Silva (2001)18, embora o debate esteja permeado pelas falas de
outros investigadores.
Alain Touraine (apud SILVA, 2001), cuja abordagem muito contribuiu para
a teoria dos novos movimentos sociais, diz que os movimentos sociais devem ser
vistos como um ‘ator coletivo’, que dispõe de vontade coletiva, bem como de
comportamento coletivo. Eles seriam o motor da história e da própria sociedade, ou
seja, seriam ‘agentes históricos’, uma vez que ocorrem no entorno das
institucionalidades, contribuindo para mudanças e ao mesmo tempo expressando o
momento histórico e apontando para o ‘devir’.
Alberto Melucci (apud SILVA, 2001), estudioso italiano desta mesma
corrente, cria o conceito de identidade coletiva, trabalhando na perspectiva das
ações coletivas e dos sistemas sociais. Para ele, os movimentos sociais atuam na
transformação da cultura e dos costumes sociais. Ele ainda afirma que esta ação
requer dos atores o processamento de mecanismos, tais como, a rede de atores
sociais que interagem entre si.
Claus Offe é outro autor cujo pensamento foi bastante referendado no
Brasil. Conforme Silva (2001, p. 24), “sua abordagem situa-se na matriz neomarxista ou pós-marxista, a partir da teoria crítica iniciada pela Escola de Frankfurt e
que prossegue atualmente na produção de Habermas”. Para ele, uma das
18
Para maior aprofundamento recorrer ao artigo ‘Movimentos sociais: gênese e principais enfoques
conceituais’. Referência completa no final da dissertação. Nele Silva (2001) apresenta os aportes de
Gohn (1997), Touraine (1994), Melucci (1989), Offe (1988), Scherer-Warren (1987) e Castells (1983).
91
importâncias desta abordagem é que ela combina os níveis micro e macro na
análise do social.
Offe estabelece articulações entre os campos político e sócio-cultural.
Para o autor, os movimentos sociais são novas formas de ‘expressão da vontade
coletiva’. Suas reflexões tomam como pano de fundo os problemas da vida
cotidiana, inseridos num contexto de aumento de ideologias e de direitos
democráticos
existentes
legalmente.
Esses
movimentos
reivindicam
o
reconhecimento como interlocutores e atuam na esfera pública e privada, já com
intencionalidade de interferir nas Políticas do Estado e nos hábitos e valores da
própria sociedade.
Para Guattari (apud SILVA, 2001), da corrente dos novos movimentos
sociais, estas expressões são colocadas no patamar de ‘revoluções moleculares
permanentes’, ou seja, elas aconteceriam em todos os níveis da vida social, nos
fatos cotidianos, estando articuladas às lutas de interesse político e social dos
grupos sociais e, por fim, da sociedade ampla.
Castoriadis (apud SILVA, 2001), filósofo grego naturalizado francês,
afirma que a transformação da sociedade compreende a conquista de autonomia, a
qual tem relação direta com a história construída pelos próprios homens, sendo esta
a expressão do que desejam e procuram fazer os ‘novos movimentos sociais’.
Manuel Castells (apud SILVA, 2001) - que transitou da crítica da corrente
clássica marxista à teoria dos novos movimentos sociais, conforme já apresentado
neste estudo - dedicou seu olhar investigativo para o meio urbano, trazendo para as
ciências sociais a abordagem dos movimentos sociais direcionada para os
movimentos urbanos, por compreender que eram tais expressões que tinham as
principais implicações com as questões da cidadania.
Para ele, os movimentos sociais em sua constituição e configuração
encontram-se imbricados por processos sociais de mudanças, de consumo coletivo
e de contradições sociais, econômicas e políticas. Castells os vê como formas de
resistência e como práticas coletivas, que surgem de problemas urbanos,
provocando mudanças qualitativas e contrapondo-se aos interesses sociais
dominantes. São estas expressões sociais que apontam para as reais necessidades
coletivas.
92
Passando para a reflexão dos autores brasileiros sobre movimentos
19
sociais , encontra-se já nas considerações iniciais de Gohn (1997, p.20) em seu
livro ‘Teorias dos movimentos sociais – paradigmas clássicos e contemporâneos’, a
idéia de que
Os movimentos sociais são fenômenos históricos decorrentes de lutas
sociais. Colocam atores específicos sob as luzes da ribalta em períodos
determinados. Com as mudanças estruturais e conjunturais da sociedade
civil e política, eles se transformam. Como numa galáxia espacial, são
estrelas que se acendem quando outras estão se apagando, depois de
brilhar por muito tempo. São objetos de estudo permanente. Enquanto a
humanidade não resolver seus problemas básicos de desigualdades
sociais, opressão e exclusão, haverá lutas, haverá movimentos. E deverá
haver teorias para explicá-los [...].
Já Kärner (1987, p.33), define os movimentos sociais como “processos
coletivos e de comunicação realizados por indivíduos, em protesto contra as
situações sociais existentes”. Enquanto a socióloga e estudiosa dos movimentos
sociais na América latina e Brasil, Ilse Scherer-Warren (1987, p.37, nota de rodapé),
conceitua os movimentos sociais como uma ação grupal de transformação (a
práxis), voltada para a realização de objetivos comuns (o projeto), sob orientação
mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma
organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção).
Outra investigadora brasileira que, ao tratar sobre os movimentos sociais,
toma como eixo de análise o caráter educativo que os mesmos têm agregado às
suas mobilizações, organizações e lutas é Marlene Ribeiro. Para ela os movimentos
sociais “reformulam papéis, estratégias, e táticas de luta, identificando aqueles que
sofrem situações de exploração, discriminação, opressão e exclusão, enquanto
sujeitos das transformações, sejam eles/elas operários, negros, índios, camponeses,
mulheres” (RIBEIRO, 1998, p.43).
19
Serão apresentados neste item, apenas alguns dentre os estudiosos brasileiros que trabalham com
o tema dos Movimentos Sociais. Isto se faz por compreender que seria necessário um estudo voltado
exclusivamente para a abordagem das teorias desenvolvidas pelos investigadores brasileiros sobre
‘Movimentos Sociais’, a fim de que se pudesse discutir, senão todas, mas grande parte das
conceituações produzidas. Dado que o objeto desta dissertação é ‘o Movimento de Mulheres
Camponesas de Santa Catarina’ – o que exige o estudo de diversas outras categorias, tais como
‘espaço rural’; Gênero; identidade; cotidiano -, optou-se por estabelecer o debate sobre os
‘Movimentos Sociais’ em apenas um dos capítulos da dissertação, reservando os demais para a
discussão de outros temas que da mesma forma tangenciam o estudo do objeto em questão. Embora
tal opção leve a sintetizar parte da abordagem, assume-se conscientemente o fato de trabalhar com
apenas alguns autores brasileiros, ao passo que se indica para o leitor recorrer a outros, tais como
Ruth Cardoso (1983) e Eunice Durahn (1984).
93
Tendo fundamentado suas reflexões na concepção de Claus Offe (1992),
gramsciano representante da teoria dos novos movimentos sociais, Ribeiro ressalta
que
Considera como novos movimentos sociais politicamente relevantes,
aqueles que pretendem estar legitimados por representações e aspirações
da comunidade mais ampla; ser reconhecidos como atores políticos, ainda
que suas práticas não se encontrem respaldadas pelos organismos
legalmente instituídos; e realizar seus projetos para atingir não apenas o
grupo, mas o conjunto da sociedade (RIBEIRO, 1998, p.47).
Refletindo a partir do materialismo histórico dialético, Ribeiro (1998, p.68)
afirma que, ao contrário do que alguns estudiosos apontam, o marxismo não se
distancia da análise dos movimentos sociais. Ele próprio não foi tecido originalmente
no seio da academia, mas sim no espaço das contradições da sociedade civil, “foi
alimentado pelo expatriamento, pela perseguição, pelo cárcere, pelas revoluções,
pelos organismos operários que veio a sustentar teoricamente”.
Outrossim, é esta matriz de pensamento que permite ver que, a partir de
uma relação dialética, os movimentos sociais transformam-se segundo o contexto da
própria sociedade e transformam a ela mesma nos seus vários âmbitos, político,
social, cultural e, de certo modo, também econômico.
Ora, note-se que “os movimentos sociais, até por serem movimentos, não
têm sempre a mesma intensidade, suas identidades são fluídas e relacionadas ao
contexto em que se expressam”, ou melhor, na cotidianidade em que estão
envolvidos. Por conseguinte, são geradores de uma nova cultura, contribuindo para
a produção de idéias que alimentam a práxis política”. (RIBEIRO, 1998, p.63).
Portanto, sob a perspectiva marxista é possível compreender que o que
ocorreu a partir da década de 1990 não foi a ‘crise do desaparecimento dos
movimentos sociais’, mas um período de intensas transformações e também de
confluências que estes passaram, num processo dialético com a sociedade
capitalista, a partir do acirramento das contradições próprias desta.
Distinta perspectiva sobre os movimentos sociais é dada por Camacho
(1987, p.216) que considera os movimentos sociais como uma dinâmica gerada pela
sociedade civil, que se orienta para a defesa de interesses específicos. Sua ação se
dirige para o questionamento, seja de modo fragmentário ou absoluto, das estruturas
94
de dominação prevalecentes, e sua vontade implícita é transformar parcial ou
totalmente as condições de crescimento social.
Já, Grzybowski (1991, p.18), compreende a constituição e configuração
dos movimentos sociais a partir da junção de um conjunto de elementos, que
segundo ele são indispensáveis para que possa existir a dinâmica intrínseca às
relações sociais. Segundo ele,
A percepção de interesses comuns, no cotidiano, nas condições mais
imediatas de trabalho e vida, percepção produzida a partir de e na oposição
com outros interesses, de outros agentes sociais, a identidade em torno dos
interesses comuns, as ações coletivas de resistência etc. são um conjunto
de condições necessárias dos movimentos. Só assim a tensão intrínseca às
relações vira movimento.
A socióloga Scherer-Warren (1993, p.69) contribui com a reflexão ao
apontar para aquilo que ela considera como dois ‘pré-requisitos’ para a formação de
um movimento social, os quais seriam: o reconhecimento coletivo de um direito e a
formação de identidades;
Segundo a autora, para o reconhecimento de um direito é fundamental a
existência de um fator subjetivo, qual seja o reconhecimento de sua dignidade
humana. Essa dignidade sempre foi sabotada pela classe dominante, em relação à
classe
subalterna,
ao
lhe
retirar
os
direitos.
Suas
raízes
encontram-se
profundamente imbricadas no sistema escravocrata e colonial e logo em seguida,
pelo capitalismo assolador, que acirrou a situação. Nesse sentido,
Cria-se a consciência não apenas do direito a um direito, mas o direito e o
dever de lutar por este direito e de participar em seu próprio destino. É o
reconhecimento coletivo de um direito que leva à formação de uma
identidade social e política. Reconhece-se mutuamente como pertencendo à
mesma situação de carência e como portador do mesmo direito. [...] Cada
movimento cria a sua identidade política específica. [...] Por outro lado,
mesmo em cada movimento específico, freqüentemente os protestos e/ou
demandas são plurais, referindo-se a exclusões múltiplas. Este é o caso do
Movimento das Mulheres Agricultoras. Podem referir-se a um sentimento
de exclusão no espaço da cidadania política, reivindicando o direito à
participação política nos vários movimentos camponeses, no sindicato, etc.
Suas lutas podem estar voltadas contra a discriminação por sexo,
reivindicando direitos iguais quanto à aposentadoria, assistência à saúde ou
mesmo ao lazer [...]. Enfim, podem lutar contra a exploração, ou
expropriação em termos de classe, fortalecendo a luta mais geral. Portanto,
cidadania, gênero e classe são três dimensões de luta do movimento das
mulheres Agricultoras no Brasil (SCHERER-WARREN, 1993, p.70-71).
Ora, fica explícito que neste processo acontece o desenvolvimento de
uma sociabilidade política. Ao serem provocados a participar de um movimento, seja
95
por demandas e necessidades de seu cotidiano, seja por perceberem questões
deste mesmo cotidiano que lhes causam indignação, seja porque a própria dinâmica
dos movimentos sociais já organizados os atrai, os indivíduos iniciam um processo
particular de politização que os leva ao desenvolvimento de uma sociabilidade
política. Sociabilidade capaz de movê-los coletivamente para a politização genérica
– do movimento e sociedade – levando-os a discutir e aderir a causas que num
primeiro momento não figuravam como prioridade no seu cotidiano.
Destarte, sem este requisito de reconhecimento de sua existência
enquanto sujeito de direitos, portadores e construtores de identidades particulares e
genéricas, a autora aponta que não pode haver Movimento Social e nem projeto
coletivo em torno do qual lutar.
Isto é confirmado por Grzybowski (1987, apud Scherer-Warren, 1993,
p.71), ao dizer que “como espaços de socialização política, os movimentos permitem
aos trabalhadores, primeiramente o aprendizado prático de como se unir, organizar,
participar e lutar”; depois, “a elaboração da identidade social, da consciência de seus
interesses, direitos e reivindicações e finalmente, a apreensão crítica de seu mundo,
práticas e representações sociais e culturais”.
Portanto, o que dizem, tanto Grzybowski quanto Scherer-Warren, é que
no processo de construção e/ou de participação nos movimentos sociais resulta, de
diferentes modos, a construção da sociabilidade, fundada na elaboração de um
projeto de transformação particular e genérica.
Segundo a autora, tal projeto de transformação possui
[...] ao menos, duas perspectivas: uma é o objetivo específico em torno do
qual a luta se trava. A outra perspectiva é a utopia de construção de uma
nova sociedade, a qual é concebida como um processo em que novas
relações comunitárias e societárias vão sendo constituídas. Surge daí a
noção de ‘caminhada’ (inspirados na Igreja), no sentido de se transformar a
partir de um processo gradual (SCHERER-WARREN, 1993, p.72).
Assim, nota-se que há uma materialidade, mas também um aspecto no
plano intelectual deste processo de transformação. Este último não se situa no plano
ideal, mas sim pode ser reconhecido como o aspecto teleológico das lutas, que, ao
mesmo tempo, situa os indivíduos e o grupo - em sua organização de dirigentes,
mas também na sua totalidade – em seu horizonte utópico.
96
Ao finalizar a reflexão, assinala-se que esta última perspectiva é
fundamental para a compreensão dos movimentos sociais na atualidade. Ao mesmo
tempo em que lhes possibilita se identificarem frente à sociedade, alimenta sua
existência ao re-significar suas lutas e relações sociais. Enfim, é esta perspectiva
fundamental que muitos dos movimentos sociais de cunho transformador assumem
como ‘mística revolucionária’.
SEGUNDA SEÇÃO
Movimentos sociais em caminhada
- Um retrato brasileiro, catarinense e campesino -
2.2.1 A trajetória dos movimentos sociais no Brasil
Neste item, será apresentada e, em muitos momentos, discutida a
trajetória dos movimentos sociais no Brasil, que ao longo das décadas foram
oferecendo uma generosa contribuição para a construção histórica do país.
Como recurso didático, para a melhor visualização desta trajetória
histórica, congregou-se em cinco períodos este percurso, não os segmentando a
simples cronologias, mas marcando através da história dos movimentos sociais os
principais momentos que se diferenciaram na história da Nação Brasileira.
Assim, trata-se do período de surgimento dos movimentos e de suas
primeiras expressões, a entrada no período ditatorial militar, seguida pelo momento
de vigência da Ditadura Militar. Em seguida, a reflexão passará pelo período de
transição democrática e de efervescência dos movimentos sociais na América
Latina, dos movimentos sociais na era da globalização, cujo desafio era de
continuidade; e, para finalizar, provoca-se a discussão sobre que movimentos
sociais se apresentam em cena hoje.
97
Antes de adentrar na memória histórica nacional, é necessário explicitar
duas premissas. A primeira refere-se à concordância com muitos historiadores,
cientistas sociais e outros estudiosos contemporâneos que contestam a idéia de que
os movimentos sociais surgiram no Brasil em meados da metade do século XX. Ora,
esta pode ser uma verdade posta pela história e pelos estudos oficiais do Estado, ou
então por aqueles que buscam legitimar os fatos e, por conseqüência, a história
contada segundo os interesses do capital e da burguesia que antes eram nacionais
e agora são bem mais internacionais.
A segunda premissa é que, ao explicitar esta compreensão, cumpre
também dizer que embora se tenha amplamente discutido o aparecimento dos
movimentos sociais no cotidiano da sociedade – considerado pela maioria dos
autores estudados como sendo na Europa do período Pós-Revolucões Industrial e
Francesa, através do movimento operário –, o enfoque principal foi conferido ao seu
surgimento no campo teórico das ciências sociais e humanas. Isto permite afirmar
que não haveria incongruências entre a afirmação da primeira premissa e a
realização da segunda, pois a razão colocada entre elas é fundamentalmente crítica,
no sentido em que considera a história de forma dinâmica, construída por sujeitos e
fatos sociais, políticos, econômicos e culturais concretos, ou seja, que possuem
materialidade histórica.
Cabe ressaltar que para as considerações a seguir, tomou-se como
referência a compreensão de Gohn (1995, p.16), ao elaborar um trabalho em que
mapeou os movimentos e lutas sociais no Brasil dos séculos XIX e XX. Nas suas
palavras, “cumpre registrar que estamos trabalhando com uma concepção ampla de
movimentos e lutas sociais. Na realidade estamos incluindo as principais ações
coletivas
registradas
como
reivindicações,
revoltas,
rebeliões,
atos
de
insubordinações, insurreições, protestos, confabulações etc”.
98
2.2.1.1 Das primeiras expressões à entrada no período autoritário20
Para este momento da trajetória histórica dos movimentos sociais serão
consideradas as ocorrências que remetem desde o século XVIII, até o período que
antecedeu à Ditadura Militar. Vivia-se, primeiramente, o período colonial. Logo após
vieram os tempos de luta pela independência e o período do Brasil Império. Já no
final do século XIX o Brasil torna-se república e inaugura-se, então, a era
presidencial brasileira.
Apesar de a ocupação territorial européia ter se concentrado na faixa
litorânea do país, com a formação de poucas cidades – se comparado com o quadro
atual – já havia significativa diversidade de sujeitos e, conseqüentemente,
diversidade de necessidades e de interesses vigentes na sociedade. Aponta-se isto,
para que se possa compreender que é a fluência e confluência destes interesses
que acabava por gerar os conflitos e lutas sociais do período.
Assim, conforme aponta Gohn (1995, p.18), é possível perceber uma
aglutinação de reivindicações no período, naquilo que ela denomina de categorias
problemáticas do Século XIX. São elas “as lutas em torno da questão da escravidão;
das cobranças do fisco, das lutas dos pequenos camponeses; contra Legislações e
Atos do Poder Público; pela mudança do regime político [tanto para a República,
quanto para o retorno da Monarquia] e, enfim, as lutas entre as categorias
socioeconômicas”.
Este momento da trajetória histórica ainda mantinha proximidade com o
período chamado revolucionário (das Revoluções Industrial e Francesa). Desta
forma, a maioria das lutas e movimentos deste período assumem um caráter
bastante radical recebendo, em contrapartida, um tratamento repressivo, como o uso
da violência direta. Algumas destas lutas, que ilustram o caráter geral do período,
são a Inconfidência Mineira (1789) e a Conspiração dos Alfaiates na Bahia (1798).
20
Para elaboração deste subitem do presente capítulo, utilizou-se como aporte fundamental a obra
de Maria da Glória Gohn (1995), intitulada ‘História dos movimentos e lutas sociais – A construção da
cidadania dos brasileiros’. Referência completa pode ser encontrada no final da dissertação. Para
elaboração dos demais subitens, foram incorporadas as contribuições de vários outros autores,
conforme se poderá verificar durante a leitura.
99
Já na primeira metade do século XIX, os movimentos e lutas sociais
apresentam um radicalismo democrático, o que faz com que muitos deles se tornem
atos revolucionários. Conforme Gohn (1995, p.23):
As principais lutas e movimentos sociais do período eram motins caóticos,
faltava-lhes projetos bem delineados, ou estavam fora do lugar, importados
de outros países; as reivindicações básicas giravam em torno da construção
de espaços nacionais, no mercado de trabalho, nas legislações, no poder
político etc.
A mesma autora ainda afirma que “o protagonismo era sempre canalizado
para os elementos estrangeiros, fazendo com que a questão da nação sobrepujasse
a das classes” (1995, p.24). São exemplos de lutas e movimentos sociais neste
período: a Luta dos Sete Povos das Missões (1801, na região de fronteira do atual
estado do Rio Grande do Sul com a Argentina e Uruguai); o Movimento de Maçons
(1802-1817); a Revolta dos Escravos (1807, na Bahia); o Ajuntamento de Pretos
(1815, em Olinda); A Revolução Pernambucana (1817); as agitações políticas de rua
em torno da partida de D. João VI (1821) e da proclamação da independência do
Brasil (1822); a Balaiada (1830-41, no Maranhão); a Novembrada (1831, em
Pernambuco); o Movimento Cabanagem (1835, no Pará); a Guerra dos Farrapos
(1835-45, no Rio Grande do Sul) e a Revolução Praiera (1847-49, em Pernambuco),
entre várias outras.
Já na segunda metade do século XIX, assistiu-se o desencadeamento de
uma reação conservadora, que gerou muita agitação, bem como uma violenta
repressão. O Estado também se alterou, recompondo-se política e militarmente. Os
movimentos que mais ganharam expressão versavam sobre a questão dos
escravos. Além disto, houve também movimentos messiânicos, de caráter religioso e
alguns deles tinham como objetivo assegurar a sobrevivência das famílias pobres.
Enfim, outra característica comum a vários movimentos deste período é que,
especialmente os urbanos, faziam um intercurso bastante próximo das questões
relacionadas ao fisco (GOHN, 1995).
São exemplos de movimentos e lutas sociais deste período, as Guerras
na Bacia do Prata (1850); a primeira Greve de Escravos-Operários do Brasil (1857,
no Rio de Janeiro); a Revolta de Vassouras (1858); a Guerra do Paraguai (1864-70);
o Movimento Quebra-Quilos (1873, na Paraíba, em Pernambuco, Rio Grande do
Norte e Alagoas); a Revolta de Canudos (1874-97, no sertão nordestino); o
100
Movimento Abolicionista (1878-88); o Movimento Republicano (1880-90); o
Movimento Antiescravista Caifazes (1880, em São Paulo); as reivindicações
populares por melhorias urbanas (1889, no Rio de Janeiro); a criação da União
Operária (1890, em Santos) e de Partidos Socialistas (1890) em São Paulo e no Rio
Grande do Sul; a Revolta Federalista (1892, no Rio Grande do Sul); os movimentos
grevistas em São Paulo e Rio (1892); os movimentos populares e estudantis (189396, principalmente em São Paulo – capital), entre vários outros.
Já nas primeiras décadas do século XX, até o período que antecede o
Golpe Militar, as lutas e movimentos sociais adquirem novo caráter. A maioria deles
acontece no meio urbano e têm por referência as questões urbanas que já se faziam
presentes, de forma significativa, dentro do processo de urbanização do país.
Conforme Gohn (1995), novas categorias em relação às temáticas das
ações e conflitos surgirão. Estas lutas sociais são: da classe operária por melhores
salários e condições de vida; das classes populares urbanas por meios de consumo
coletivos; das classes populares e médias por moradia; as lutas da categoria dos
militares; de diversas classes sociais por legislações e normatizações pelo Estado;
as lutas sociais no campo; as lutas de segmentos das classes sociais pela educação
formal; as lutas e movimentos a partir de ideologias, tais como o socialismo,
anarquismo, fascismo, integralismo etc.; os movimentos nacionalistas; por questões
ambientais; as lutas e movimentos de gênero; também os de raça, etnia e cor; de
categorias de idade, como crianças e adolescentes; as lutas pela preservação do
patrimônio histórico; os movimentos regionais e as lutas cívicas.
Neste momento da trajetória histórica das lutas e movimentos sociais, a
questão do trabalhador migrante tomará centralidade, em relação à questão do
escravo. Houve a presença forte de categorias de anarco-sindicalistas e de
socialistas prestando certa ‘assessoria’ aos movimentos, assim como o faz a própria
Igreja Católica. O Estado passa a tratar a questão social como questão de polícia,
bem como todas as manifestações sociais e políticas como insurreições e agitações
contra a nação e o governo.
No início do período, o cuidado era com a ‘aparência das cidades’. Isto
fez com que despontasse uma política de controle social das massas através da
101
higienização dos centros das cidades. A intenção era de atrair o capital estrangeiro e
coibir ameaças contra o governo.
Num segundo momento do século XX, destaca-se o populismo do Estado
e as tentativas de participação das classes populares no cenário social, político,
econômico e cultural do país. Neste sentido, verifica-se que este é o período de
aparecimento mais efetivo das greves de trabalhadores, principalmente aqueles
urbanos, mas com ocorrências também no cenário rural. Acontecem as primeiras
conquistas das classes subalternas em termos de direitos sociais.
Segundo Gohn (1995, p.81),
[...] As classes populares começam a emergir como atores históricos sob
novos prismas e vão deixando de ser apenas casos de polícia e se
transformando em cidadãos com alguns direitos, como os trabalhistas.
Ainda que tenham ocorrido mais no papel, essas mudanças são marcos
históricos significativos. Simbolizam o coroamento de etapas de lutas dos
trabalhadores e, embora tenham sido promulgadas como dádivas
governamentais, foram conquistas das classes subordinadas em geral.
Num terceiro momento, verifica-se a investidura do governo para o
desenvolvimento industrial / econômico do país. Com isto, o capital internacional
inicia seus investimentos, tendo as classes subalternas uma maior participação no
campo político da nação, o que lhes confere, pela primeira vez, algum poder de
pressão. Este é o momento do Estado desenvolvimentista em sua fase populista.
Para fazer referência a alguns dos vários exemplos de lutas e
movimentos populares do período, continua-se com os aportes de Gohn (1995),
citando-se: a revolta da Vacina (1904, no Rio de Janeiro); a fundação da Liga
Republicana (1906, em São Paulo); a Revolta dos Marinheiros (1910, no Rio de
Janeiro); a Guerra do Contestado (1912-17, na região entre os atuais Estados do
Paraná e Santa Catarina); a constituição da Confederação Operária Brasileira (1913,
em São Paulo); o Movimento das Ligas Nacionalistas (1917); a Greve Geral de São
Paulo (1917), o Movimento Modernista (1922); a Revolução em São Paulo (1924); o
Movimento do Cangaço (1925-38, no nordeste brasileiro); a Revolução de 30 (1930);
o Movimento dos Pioneiros da Educação (1931); a Revolução Constitucionalista
(1932); Movimentos de Associações de Bairros (1942); o lançamento da Campanha
Popular contra a Fome (1946); o Movimento por Reformas de Base na Educação
(1947-61); Passeatas da Panela Vazia (1951-53, em São Paulo); o Movimento “O
Petróleo é Nosso” (1954); criação do Movimento dos Agricultores Sem-Terra –
102
MASTER (1960, no Rio Grande do Sul); Movimentos Religiosos de Juventude –
JAC, JOC, JUC (1954-64); as Ligas Camponesas no Nordeste (1955-1961); a Ação
Popular (1962); e a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura – CONTAG (1963), entre outras expressões de lutas e movimentos
sociais que marcaram o cenário desde o início do século XX até o Golpe Militar de
1964.
Como se percebe, as mobilizações que ocorreram não foram poucas e
nem tiveram caráter irrisório. Nem pequenas foram suas expressões frente à
sociedade e ao Estado-Nação. Muito menos foram insatisfatórias as suas
conquistas.
Fazendo uma mediação entre o cenário brasileiro de expressões de lutas
e movimentos sociais, com o cenário europeu e norte americano de surgimento dos
paradigmas sobre os movimentos sociais, fica evidente que, se ‘pelas bandas de cá’
pouco ou nada se discutia e se produzia neste período em termos teóricos sobre os
movimentos, por outro lado se detinha muito do caldo de manifestações e
acontecimentos de ordem política e social com potencialidade para engrossar as
discussões que ocorriam ‘pelas bandas de lá’.
Entretanto, o que ocorrerá no período seguinte, o período ditatorial?
2.2.1.2 Em tempos de ditadura, quem resistia?
(De 1964 ao início dos anos 1980)21
21
A partir deste subitem da investigação, não mais se deterá nas datas de surgimento das lutas e
movimentos sociais, dado que, como o período é bem mais próximo do atual, opta-se por registrar os
principais elementos da conjuntura social, política, econômica e cultural neste papel, deixando o
registro cronológico dos movimentos e lutas surgidas nestes períodos a cargo de cada leitor, para
que este contribua também para o estudo, fazendo um exercício de memória. Isto se faz com plena
consciência de que o gesto não representa um abandono da trajetória histórica dos movimentos, nem
a sua diminuição por não citá-los particularmente – ao menos na sua maioria. Outrossim, a escolha
se dá por reconhecer que, além da história (recente) gravada na memória de cada leitor, alguns
outros autores já marcaram tais registros na história escrita do Brasil. Neste sentido aponta-se como
destaques a obra de Maria da Glória Gohn (1995), intitulada ‘História dos Movimentos e Lutas
Sociais’; bem como aquela organizada por Ilse Scherer-Warren e Paulo Krischke, intitulada ‘Uma
revolução no cotidiano? Os novos Movimentos Sociais na América do Sul’; entre outras. Referências
completas no final da dissertação.
103
O momento analisado a seguir não é de fácil compreensão. A intensidade
dos fatos minava o campo político, mas também o econômico e o social.
Aparentemente, a imagem da sociedade era de ‘silêncio’, de brandura dos fatos, de
cotidiano apaziguado pelas idas e vindas entre trabalho, casa e família. Entretanto, o
silêncio não era de calmaria, muito menos de ausência de contestações,
manifestações e irrupções. O silêncio era de medo. Era um silêncio contraditório.
O Estado militar preocupava-se em apresentar para a sociedade uma
visão de “Milagre Econômico”, com algumas conquistas de direitos, dentre as quais
estaria a Reforma Agrária, a melhoria nas condições de vida, o aumento dos
empregos, e outras questões do cenário nacional, que eram mantidas com muita
dificuldade pela classe trabalhadora e que, não muito tempo depois, eclodiriam
numa crise econômica de grandes proporções, já por volta de 1973.
Neste período de grande repressão, ocorreram também lutas de
resistência e de protestos no país. Entretanto é fundamental registrar que aquelas
que tinham caráter de movimento popular e social diminuem, embora não se
encerrem, dando espaço de visibilidade para a manifestação dos partidos políticos
que compunham as frentes de esquerda.
Neste sentido, as investiduras no âmbito político e social, protagonizadas
pelos partidos, tinham assumidamente caráter revolucionário e fundamentavam suas
ações nas experiências das revoluções russa, chinesa e cubana, almejando instalar
o socialismo no país. As lideranças destes partidos vivem um período de intensa
articulação de forças políticas e sociais, mas também de clandestinidade.
Segundo Gohn (1995, p.102),
Talvez não avaliando suficientemente a força e a velocidade que o modelo
capitalista teve para redefinir a sociedade brasileira, [...] a esquerda
nacional sonhou com a possibilidade de implantar aqui um modelo que não
correspondia ao curso dos acontecimentos locais. [Veja, por exemplo, que]
sua grande estratégia estava baseada no camponês, no discurso da
Reforma Agrária, da luta do campo que se propagaria para a cidade por
meio do apoio dos estudantes.
Nos anos finais da década de 1960 e primeiros da de 1970 a repressão
militar é intensificada. Muitos líderes revolucionários são presos, torturados,
assassinados e desaparecem. Os partidos políticos de esquerda obrigam-se a viver
realmente na clandestinidade.
Neste cenário, no entanto, deve-se reconhecer que
104
No interior de um estado autoritário e centralizador, apesar de temeroso das
possibilidades de organização política contestatória da sociedade civil, estas
organização mais moleculares, como os grupos de reflexão da Igreja, de
mulheres e ecologistas, puderam multiplicar-se, devido as suas formas de
atuação localizadas. Estes movimentos estavam, antes de tudo, criando
uma nova mentalidade, uma nova cultura política, do que representando um
enfrentamento ao poder central (SCHERER-WARREN, 1987, p.47).
Assim, ainda em 1968 surge o Movimento das Comunidades Eclesiais de
Base – CEBs, organizadas pela Igreja Católica segundo a perspectiva da Teologia
da Libertação. Esta linha teológica, como o próprio nome diz, pretende a ‘libertação’
do homem e, para isto, assume o caráter revolucionário. Neste sentido, acabou se
configurando como um grupo/espaço/movimento que funcionou como base de apoio
para muitos perseguidos políticos, presos e exilados. Além disso, como fica
expresso na passagem acima, este foi um dos principais movimentos – senão o
principal – responsável por tecer uma rede de sustentação para as lutas sociais que
começam ser traçadas ainda na década de 1970, empreendendo forças no período
seguinte.
Em 1973, estoura uma crise econômica que vai minando o silêncio da
população, a qual volta a se insurgir contra o Estado e a sociedade capitalista
burguesa nos anos seguintes, até que em 1978 os movimentos sociais eclodem,
através do movimento sindical que organiza a ‘grande greve geral do ABC Paulista’.
Para Eder Sader é o momento em que “novos atores entram em cena”.
Assim,
A novidade eclodida em 1978 foi primeiramente enunciada sob a forma de
imagens, narrativas e análises referindo-se a grupos populares os mais
diversos que irrompiam na cena pública reivindicando os seus direitos, a
começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar direitos. O impacto dos
movimentos sociais em 1978 levou a uma revalorização de práticas sociais
presentes no cotidiano popular, ofuscadas pelas modalidades dominantes
22
de representação (SADER, 1988, p.26) .
22
Mesmo não sendo objeto deste estudo, assume-se o risco das críticas e faz-se um breve registro
relativo à profissão. Será no fulcro das agitações, movimentos e lutas sociais da classe trabalhadora,
que acontecerá em setembro de 1979, na capital do Estado de São Paulo, o histórico 3º Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais – CBAS, mais conhecido como ‘Congresso da Virada’. Este foi um
dos momentos mais significativos que marcou o processo de ruptura da profissão com a perspectiva
conservadora. Embora não tenha sido um movimento social, acabou se configurando como um
‘movimento interno’ ou uma ‘luta profissional’ que, de dentro da própria profissão do Serviço Social,
desencadeou um processo de transformação da dinâmica profissional, desde os aspectos da
formação teórico-metodológica e ético-política, até as formas de atuação na sociedade, frente às
questão Sociais que surgiam. Esta ‘virada’ acabou saindo dos limites profissionais e avançou para
toda a sociedade, contribuindo muito para o processo de redemocratização e para os seus
desdobramentos. Portanto, seu registro neste estudo não se dá sem motivos, pois na perspectiva
105
Já em crise política, o Estado autoritário e ditatorial contribui para que a
sociedade se interrogue acerca das próprias questões e ângulos que emergem do
olhar dos novos atores para tal cenário. Este é o marco situacional de onde são
iniciadas as lutas pela redemocratização do país.
Para Sader (1988), a experiência provocada pelo fechamento do Estado
Brasileiro fez com que o mesmo deixasse de ser o parâmetro pelo qual se
mensurava a relevância de cada manifestação social. Ocorre, assim, uma resignificação – na perspectiva da valorização - da participação social e política,
principalmente por parte da classe trabalhadora. Essa valorização da “sociedade
civil” acabou por expressar uma alteração de posições e significados na sociedade.
Novos valores emergem tanto nas categorias de pensamento quanto nas
orientações das ações sociais dos movimentos sociais e populares. Para o autor,
enquanto
Na primeira metade dos anos 1970 as classes trabalhadoras foram vistas
completamente subjugadas pela lógica do capital e pela dominação de um
Estado onipotente. [...] Já o fim dos anos 1970 assistia a emergência de
uma nova configuração de classe. Pelos lugares onde se constituíam como
sujeitos coletivos; pela sua linguagem, seus temas e valores; pelas
características das ações sociais em que se moviam, anunciava-se o
aparecimento de um novo tipo de expressão dos trabalhadores, que poderia
ser contrastado com o libertário, das primeiras décadas, ou com o populista,
após 1964 (SADER, 1988, p.36).
Deve-se considerar que “a pausa em termos de organização da
sociedade civil, ocorrida após 1964, pode representar o marco de separação entre o
que se denomina movimentos sociais tradicionais e o surgimento de novas formas
de organização, ou o novo caráter de algumas das antigas organizações populares”
(SCHERER-WARREN, 1987, p.41).
Como se pôde presenciar durante os anos 1970, em toda América Latina,
novos conflitos de classe, nacionais, regionais, urbanos, rurais, de gênero, étnicos,
sobre a violência ditatorial e coercitiva, a juventude, a burocracia etc., começam a
levantar, em sua própria lógica, formas de identidade e conflito, que ultrapassam
tanto as visões unidirecionais, economicistas e tecnocráticas da crise, quanto
crítica aqui adotada, reconhece-se que o próprio Congresso da Virada, foi um movimento dialético de
transformação que atingiu diretamente a profissão e tanto mais a sociedade, mesmo que
indiretamente. Para maior aprofundamento sobre o ‘Congresso da Virada’ e seus desdobramentos,
indica-se consultar, principalmente, a Revista Serviço Social & Sociedade, n.100, novembro de 2009,
publicada pela Editora Cortez, São Paulo, Capital, bem como números anteriores desta mesma
Revista.
106
aquelas simplesmente estadistas ou partidárias. Portanto, os novos movimentos
sociais apontam para a emergência de uma nova ordem democrática e para a
elaboração de novas formas de pensar a sociedade, a política e o desenvolvimento
(GUTIÉRREZ, 1987).
Adentra-se, pois, com estas bases num ‘novo tempo’23!
2.2.1.3 O período da transição democrática: participação e conquista de
direitos (Década de 1980)
É notório que o período da ditadura militar no Brasil produziu muitos
efeitos, redirecionando a própria nação em todos os âmbitos, seja político, social,
econômico e cultural. Sem saber que este seria o resultado, os governos do regime
ditatorial gestaram ‘o novo tempo’ e com ele a retomada das ruas e praças pelo
povo, o retorno das manifestações, passeatas e greves dos trabalhadores, o
surgimento de novos movimentos sociais.
O próprio contexto do período de repressão ditatorial fez emergir
lideranças e militantes politizados, fazendo leituras muito críticas da realidade.
Exigiam mudanças, re-significavam o nacionalismo, propunham participação. Eis
que começa a se conformar uma nova identidade, a qual é particular dos cidadãos
agora participantes, mas também genérica quando se reporta aos grupos sociais e
políticos, aos partidos políticos, aos movimentos sociais e a toda nação.
Isto é confirmado por Scherer-Warren, quando diz que
A década de 1970 e início da década de 1980 foi um período histórico,
nunca antes observado, de constituição de novas identidades coletivas.
Estas identidades foram construídas em torno de significados múltiplos:
carências comuns, defesa comunitária ou cultural. [...] Estas organizações
que proliferaram da década de 1970 aos meados da década de 1980
tiveram sua relevância política durante o regime autoritário, pois se
configuravam como espaço de expressão política possível para novos
atores sociais. Questões do cotidiano transformam-se em demandas
23
Parafraseando o poeta e cantor Ivan Lins, quando diz na letra de sua música “Novo Tempo”
(Composição: Ivan Lins e Vitor Martins, 1987), que “No novo tempo, apesar dos castigos, estamos
crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos, pra nos socorrer [...]! No novo tempo, apesar dos
perigos, da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta, pra sobreviver [...]!”. A música
retrata o período de insurgência dos movimentos sociais na luta pela re-abertura política e redemocratização do país. O povo sai às ruas e a música torna-se um dos hinos das manifestações e
encontros dos movimentos sociais e populares nos anos seguintes.
107
políticas e em instrumento de defesa dos direitos de cidadania ou de
contestação do autoritarismo (SCHERER-WARREN, 1993, p.115).
Porém “na segunda metade da década de 1980, muitas destas
organizações da sociedade civil se reorientam e passam a participar de redes mais
amplas de pressão e resistência” (SCHERER-WARREN, 1993, p.116). Esta situação
teve como conseqüência a constituição de Movimentos Sociais, que, a partir das
articulações e redes se firmaram no cenário público, ampliaram-se em número e
participação política, alterando em muito o quadro da transição democrática.
Destarte, é indispensável o reconhecimento de que havia no próprio
cenário da sociedade elementos que possibilitaram o processo de democratização.
Certamente, as contradições do sistema capitalista, e uma política ditatorial e
desenvolvimentista que beirava ao neoliberalismo, também estavam presentes.
Entretanto, neste caldo foi acrescentado o principal componente: a inflamação e
manifestação popular. É nela que se percebe com proeminência a presença dos
movimentos populares e sociais e suas lutas, dentre as quais a luta pela
redemocratização figura com significativo destaque.
É fundamental identificar - a partir da perspectiva crítica adotada neste
trabalho – que a mobilização da sociedade naquele período foi um movimento
dialético intenso entre sociedade civil e Estado. Ao expressar isto, afirma-se que
aquele contexto não surgiu de repente, como se viesse do ‘nada’; foi, sim, resultante
de um percurso processual e histórico, em que foram acontecendo tensionamentos,
trocas, avanços, retiradas, pressionamentos e novos avanços protagonizados pelos
atores coletivos daquele cenário, o que resultou em conquistas de direito e de
participação para toda a sociedade brasileira. Conquistas que iniciam na década de
1980, estendendo-se nas seguintes – embora com outras características.
A importância e a intensidade de forças sociais e dos acontecimentos
políticos, sociais e econômicos daquele período ficaram registradas nos dizeres de
vários estudiosos que se dedicaram a compreendê-la, mesmo ainda dentro daquele
contexto. Assim, segundo Gutierrez (1987),
A crise que atualmente sacode a região, em concomitância com o
surgimento de processos democráticos e/ou de redemocratização, teve ao
centro de sua origem a emergência e/ou re-emergência de movimentos
sociais. [...] Com a crise dos modos de industrialização e do sistema cultural
que os acompanha, os novos comportamentos dos antigos e dos recentes
atores sociais estão redefinindo, sob várias formas, as suas mútuas
108
interações, bem como as suas relações com o Estado e a política
(GUTIÉRREZ, 1987, p.196).
Reconhecida a significância e amplitude desse tempo histórico, é
imprescindível registrar uma das principais mudanças que resultam nesse processo:
a re-significação, para toda a sociedade e para o próprio Estado, da participação. Na
verdade, o que houve no momento de transição democrática foi o reconhecimento
de uma nova ordem de participação, tanto enquanto possibilidade dos indivíduos
singulares, quanto dos indivíduos coletivos e das próprias instâncias de governo.
A participação parece ter adentrado naquele momento no cotidiano dos
indivíduos e grupos, os quais foram elaborando um novo conteúdo para o termo,
criando novos significados e, neste processo, re-descobrindo a cidadania.
Alguns autores chegam a afirmar que aquele foi o momento de
surgimento efetivo da sociedade civil. Note-se o que diz Avritzer (1994, apud
DAGNINO, 2002, p.09), ao considerar que é neste momento que nasce a sociedade
civil.
A sociedade civil brasileira, profundamente marcada pela experiência
autoritária do regime militar instalado em 1964, experimenta, a partir da
década de 1970, um significativo ressurgimento. Esse ressurgimento, que
tem como eixo a oposição do Estado autoritário, foi tão significativo que é
visto, por alguns analistas, como de fato a fundação efetiva da sociedade
civil no Brasil, já que sua existência anterior estaria fortemente
caracterizada pela falta de autonomia em relação ao Estado.
Segundo esta leitura dos fatos históricos, os movimentos sociais –
considerados como os principais atores coletivos do período – teriam contribuído em
alto grau para o aparecimento de uma nova esfera de participação democrática,
identificada por alguns autores, como Avritzer, como o momento de surgimento da
‘sociedade civil’ de fato.
No entanto, ao falar de movimentos sociais deve-se entender realmente a
pluralidade que há não somente no termo, mas na concretude que eles representam
na esfera social e política da sociedade. Destarte, “a emergência dos movimentos
sociais configura um panorama amplo, um horizonte muito diversificado. O que
existe realmente é uma ampla gama de movimentos sociais multicoloridos,
multiformes e heterogêneos” (GUTIÉRREZ, 1987, p.196).
Esta tendência de pluralidade manifestou-se intensamente na primeira
metade da década de 1980, mantendo-se depois em ‘continuidade’ nos anos
109
seguintes, começando a arrefecer apenas no período de transição entre os milênios.
Ilustrando esta pluralidade, registra-se o surgimento do Movimento de invasões de
terras na Fazenda Itupu (1981, em São Paulo); a criação da Confederação Nacional
de Associações de Moradores - CONAM e da Confederação Geral dos
Trabalhadores - CGT (ambas em 1982); o surgimento do Movimento de
Desempregados (1983, em São Paulo); a criação da Central Única dos
Trabalhadores - CUT (1983); o surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras –
MMA (1983) e do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (1984); o
Movimento Popular Diretas Já (1984); a criação do Movimento Negro Unificado
(1986) e do Movimento dos Sem-Casa (1986, em São Paulo); a criação da Central
dos Movimentos Populares e a recriação do Movimento pela Reforma Urbana
(ambos em 1989), dentre vários outros24.
2.2.1.4 Movimentos sociais na era da globalização: o desafio da continuidade
Uma aproximação mais efetiva do universo dos movimentos sociais na
atualidade e, a partir desta aproximação entrar no universo do Movimento de
Mulheres Camponesas do Brasil atualmente, exige deter o olhar para o contexto
brasileiro nas duas últimas décadas, consideradas como ‘tempos’ de democracia, de
globalização, de crise do Estado e mais recente, de crise do capitalismo25.
Na seqüência das reflexões desenvolvidas nos últimos itens do estudo,
passa-se a algumas considerações acerca do contexto histórico dos movimentos e
lutas sociais na década de 1990. Falar deste cenário é imprescindível, tendo em
vista as transformações que ele acarretou na dinâmica cotidiana da sociedade,
modificando a vida da população e, conseqüentemente, interferindo na trajetória dos
movimentos sociais.
Gohn (1997) auxilia na tarefa, trazendo alguns elementos do período, ao
afirmar que o discurso dos governantes era o de que a retomada do
24
Novamente, para esta ilustração sobre os movimentos que surgiram neste período, reportou-se ao
estudo de Gohn (1995). Referência completa no final da dissertação.
25
Numa anuência a Ribeiro (2005), que faz referência em seu estudo aos “Tempos de democracia e
globalização”.
110
desenvolvimento associado a uma ‘certa’ proteção social aos grupos mais
pauperizados em relação à situação econômica configurava-se como único meio
para a superação da crise. “Novas estratégias de intervenção social têm sido
defendidas para enfrentar os entraves a uma suposta capacidade reguladora do
mercado, de forma a criar oportunidades aos desempregados e subempregados”
(GOHN, 1997, p.295).
O desgaste da economia e a crise inflacionária, herdadas já da década de
1980, geraram situações financeiras insustentáveis não somente para o mercado e
para o Estado, mas principalmente para a sociedade civil e, nesta, para a classe
trabalhadora que aos poucos passou a ‘viver do não-trabalho26’.
Neste cenário, cresce o setor informal, sendo um dos elementos que
compõem – de certo modo - a situação identificada como ‘viver do não-trabalho’.
São muitos os trabalhadores desempregados, sendo que a maioria já se encontra
numa situação que dificulta ainda mais a reinserção no mercado de trabalho formal.
Situações como baixa escolaridade, idade avançada, espaço de tempo sem registro
em carteira de trabalho – conseqüentemente a falta de referências de empregos
anteriores -, moradia nas periferias ou em locais característicos de exclusão social e
de violência urbana, e muitos outros fatores, fazem com que exista naquele
momento da história do Brasil, um elevado contingente de trabalhadores que
passam a buscar alternativas de sobrevivência no mercado informal, passando a
ficar ‘desprotegidos’ em relação à seguridade social previdenciária. A situação piora
quando muitos destes não encontram alternativas de trabalho nem mesmo no setor
informal, passando a viver efetivamente em situação de ‘não-trabalho’.
26
Considera-se que esta temática tem surtido muitos debates recentes sobre a condição do
‘trabalhador’ de ‘viver-do-trabalho’ ou, então, ‘viver-do-não-trabalho’. Esta discussão no Brasil, sem
dúvidas, remete aos estudos de Ricardo Antunes (1999, 2005, 2006), o qual introduz e amplia o uso
do termo classe-que-vive-do-trabalho, como referência à ‘classe trabalhadora’, o qual foi discutido
inicialmente por Huw Beynon, no artigo “As práticas do trabalho em mutação” [In: ANTUNES, Ricardo
(org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. São Paulo: Boitempo, 1998]. Configurada por alguns
estudiosos como uma nova ‘categoria de análise’ nas ciências sociais e humanas, a discussão sobre
classe-que-vive-do-trabalho e classe-que-vive-do-não-trabalho, remonta aos debates sobre o
capitalismo na atualidade, às novas morfologias do trabalho, bem como às condições de vida desta
classe. No contexto do presente estudo, não se fará a devida discussão do termo, mas apenas far-seá seu uso para ilustrar a situação daqueles indivíduos sociais que passam a viver constante, ou até,
permanentemente fora do mercado de trabalho, os quais constroem outros vínculos para
sobrevivência e, com isso, tencionam o Estado na provisão de políticas sociais, tais como os
programas de transferência de renda, previstos na Política Nacional de Assistência Social –
PNAS/2005.
111
Esta mesma classe trabalhadora, em decorrência da situação, utiliza
muito mais os serviços públicos e muitos deles passam a sobreviver através de
programas sociais – principalmente aqueles da Política de Assistência Social -, ou
então, quando não conseguem sua inserção nestes, passam a viver à margem,
inclusive, do Estado - se já não bastasse estarem à margem do mercado e da
própria sociedade.
As relações de trabalho deixam de ser o principal foco das lutas dos
trabalhadores. A luta básica passa a ser pela manutenção de um emprego,
qualquer que seja, e não mais pelas condições de trabalho dentro de uma
categoria. O tempo se altera em função dos novos meios de comunicação.
A mídia, principalmente a TV e os jornais da grande imprensa, passa a ser
um grande agente de pressão social, uma espécie de quarto poder, que
funciona como termômetro do poder de pressão dos grupos que têm acesso
àqueles meios. As organizações não-governamentais, por sua vez, ganham
proeminência sobre as instituições oficiais quanto à confiabilidade na
gerência dos recursos públicos. O “Mapa da Fome” e o “Mapa da Miséria no
Mundo” deixam de ser objeto apenas dos órgãos estatísticos ou da piedade
das entidades caritativas. Passam agora a ser objeto de diagnósticos das
políticas públicas, na medida em que apontam os problemas fundamentais
para a continuidade do sistema socioeconômico mundial (GOHN, 1997,
p.296).
Ainda nos anos 1990 os movimentos sociais começam a ter sua força de
mobilização diminuída em decorrência deste cenário. Conseqüentemente, atenuam
suas ações de maior visibilidade e seu poder de pressão.
A política mundial das agências multilaterais, regidas pelo ditame
‘integrador’, passa a interferir diretamente no perfil das relações entre Estado e
sociedade, colocando as políticas públicas no patamar de políticas integradoras e
responsabilizando
o
indivíduo
pela
sua
situação.
O
individualismo
e
a
competitividade são incentivados, espraiando-se pela sociedade e minando as
relações sociais.
As organizações não-governamentais (ONG’s) vão ganhando espaço no
cenário político, tornando-se as principais parceiras do Estado na implementação
das políticas públicas. Constituem-se num grupo de interferência junto ao Estado,
com força de pressão maior do que o espaço ocupado pelos movimentos sociais,
principalmente na década de 1980.
A forma de participação da sociedade na definição e acompanhamento
das políticas de Estado também se transformou. A interferência direta na criação de
direitos sociais e na implementação de políticas públicas e programas sociais, por
112
parte da sociedade civil, deixou de acontecer através do mecanismo das lutas
sociais, dos movimentos populares e - embora um pouco menos - dos movimentos
sociais, para ocorrer através das ONG’s, as quais se tornaram os interlocutores
válidos a partir da década de 1990.
Além disso, os processos de descentralização e de controle social,
criados sob forte pressão dos movimentos populares e sociais, na década de 1980,
e formalizados pela Constituição Federal de 1988, ao serem implementados foram
institucionalizando os processos de participação da sociedade civil.
Ora, se por um lado, estes processos garantiram e legalizaram espaços
de participação – conselhos, colegiados, conferências etc. -, por outro, o modo como
isto aconteceu fez com que muitos deles atingissem um nível de formalização tão
elevado que impossibilitou a participação da grande massa de cidadãos.
Ao fazer esta afirmação não se deseja retirar ou atribuir menor
importância à criação destes novos espaços de participação política da sociedade
civil. Pelo contrário, pretende-se marcá-los como conquistas das lutas e movimentos
sociais, que realmente podem ser consideradas conquistas, pois se concretizaram
na dinâmica das sociedades civil e política.
Esta importância é confirmada por Silva (2001, p.33), quando aponta que
Uma referência significativa no decênio de 1990, por exigência da
Constituição Brasileira de 1988, no contexto das ações sociais e coletivas,
vem sendo a participação da população nas estruturas de conselhos e
colegiados, em geral, fruto de políticas específicas. A saber, da criança e do
adolescente, dos idosos, da saúde, da educação etc., efetivando, mesmo
que lentamente, o processo de descentralização participada da prestação
de serviços à comunidade. Contudo, a experiência mais bem-sucedida
nesse aspecto é a participação popular na elaboração do orçamento
municipal, que está possibilitando novas relações entre a sociedade e o
poder público.
Entretanto, em face da análise crítica da conjuntura que marca a trajetória
dos movimentos sociais, é necessário registrar que estas novas formas de
participação repercutiram no fazer política e na cultura dos movimentos sociais, pois,
mais do que nunca, estes atores coletivos tiveram de reorganizar sua participação
nestes espaços, através da representatividade, bem como precisaram repensar,
recriar e mesmo fortalecer espaços de controle social que possibilitassem a
participação massiva de seus militantes, tais como eram as manifestações populares
da década de 1980.
113
Assim, na segunda metade da década de 1990 e meados do primeiro
decênio dos anos 2000, foram criados uma série de instrumentos de pressão social
frente ao Estado, voltados para a interferência, logo, para a participação na decisão
de várias ações de governo e outras tantas de Estado. Abaixo-assinados,
campanhas nacionais e plebiscitos foram realizados pelo conjunto da sociedade
civil, sendo que foi imprescindível para que isto acontecesse, a participação dos
diversos movimentos sociais e populares.
Este é o contexto brasileiro para os movimentos sociais da década de
1990 e meados do início do novo milênio. Conforme Gohn (1997, p.297),
especificamente para a década de 1990, os seguintes elementos tiveram grande
influência na dinâmica dos movimentos sociais, principalmente os populares:
a. A crise econômica leva à diminuição de empregos na economia
formal, levando várias pessoas para a economia informal. Nela
encontram instabilidade, incertezas e o aumento da jornada de
trabalho.
b. As políticas econômicas dão suporte para a ampliação do mercado
informal, favorecendo a mão-de-obra com custos reduzidos, mas
sem filiação sindical e proteção social. Há pulverização das
atividades produtivas e das relações sociais em geral.
c. A economia semi-comunitária encontrará nas ONGs uma forma de
servir de suporte como estrutura organizativa do processo de
produção de algumas mercadorias.
d. No cenário das cidades, não importa seu tamanho, passa a ser
incorporado um número significativo de pessoas sem-teto,
moradores de rua e de crianças. Cresce a violência em todas as
suas expressões e os assaltos, furtos, seqüestros passam a ser
rotina na vida de qualquer cidadão. O medo e a incerteza
predominam, ainda que a economia tenha se estabilizado com a
criação da nova moeda, o real.
Portanto, a síntese deste momento indica a transição para um novo
cenário social, político, econômico e cultural que interferirá de forma significativa na
dinâmica dos movimentos sociais. Que a previsão da ‘morte dos movimentos
114
sociais’ não se concretizou, isto é uma certeza. Entretanto, a direção, os
componentes e, acima de tudo, as estratégias de atuação tiveram de ser ‘re-criadas’.
Este é o saldo dos tempos de democracia, globalização e ‘crises’ – anos 1990 –
para os movimentos e lutas sociais no contexto brasileiro.
2.2.1.5 No novo milênio: que movimentos são estes?
O ponto de partida desta nova discussão – num movimento dialético – vai
buscar no momento anterior seus elementos. Assim, deseja-se destacar que os
últimos anos da década de 1990 e os anos iniciais de 2000, são anos marcados pela
transição. Embora ela se faça de fato na passagem para o novo milênio, opera certa
transição também no cotidiano dos grupos sociais, e a partir destes, nos movimentos
sociais, instituições, partidos políticos e no próprio Estado. Esta transição para o
‘novo desconhecido’ também opera transformando as relações sociais, as relações
de classe e, por fim, as relações entre classes sociais e o Estado.
O processo de pauperização e de exploração social e econômica se
intensifica. A classe trabalhadora já entra em dilemas de identidade com o trabalho,
pois passa a viver – em grande parte – do ‘não-trabalho’, ou quando muito, do
trabalho informal. Não é necessário dizer que na passagem para o ‘novo
desconhecido’ a precarização das condições de trabalho e a desregulamentação de
direitos são intensificadas pelo Estado capitalista, com forte cunho neoliberal.
A globalização, aos poucos, vai se transformando em ‘mundialização’ nas
falas de estudiosos, políticos, governos e, como não, dos capitalistas. O mercado é
mundial, os produtos são mundiais, o consumo é mundial e a crise também o é.
Enquanto isto, a exploração do trabalho, a precarização das condições de vida e a
miséria partilhada entre aqueles que não pertencem à classe alguma, são
localizadas apenas numa parte deste mesmo mundo. Na outra parte, localizam-se
os avanços tecnológicos, as riquezas, as melhores condições de bem-estar e as
decisões de todas as políticas. Mundializa-se e separa-se ao mesmo tempo.
A mundialização dos meios de comunicação, através da globalização, faz
com que ora os dois mundos se encontrem ora se afastem totalmente. E, neste
‘novo desconhecido’ milênio os Estados Nacionais se encontram através de seus
115
governantes, formando grandes cúpulas e fazendo amplas reuniões onde o lado
mais ‘atrasado’ tenta passar, mesmo que forçosamente, para o lado em que
circulam os avanços.
Note-se que agora, numa perspectiva de dominação capitalista, há
somente dois mundos, pois aquele que figurava como alternativa socialista até
meados da década de 1980, vai sendo exaurido na década de 1990, chegando ao
novo milênio apenas como uma experiência localizada e segregada na Ilha Cubana.
Observe-se também que é muito tênue a linha entre a ‘mundialização e a
separação’. Esta decisão não é mais tão política, pois parte dos interesses do
capital. Assim, quando o capitalismo entra em crise e colapso, os prejuízos e a
recessão são mundializados, continuando-se a separar e concentrar as riquezas nas
mãos
de
poucos.
Enfim,
no
‘novo
desconhecido’ milênio
aumentam as
desigualdades e injustiças sociais, acirra-se a competitividade nos vários níveis e
ampliam-se as expressões daquilo que se entende por Questão Social.
Verifica-se aqui a necessidade de ‘esmiuçar’ realmente o período anterior
na trajetória dos movimentos sociais, para que se possa apreender o processo
presente. Destarte, neste cenário - porém num contexto nacional - fazendo um
movimento dialético que vai buscar no período de fins da década de 1990 os
elementos para sua discussão sobre movimentos sociais, Ribeiro afirma que
[...] em tempo de produção globalizada, quando são muito fortes nas lutas
sociais as tendências de descentralização e de fortalecimento do espaço e
do poder locais, é preciso que os movimentos sociais se disponham a
aprender com a história, no sentido de preservar a sua especificidade
articulada à universalidade das lutas pela construção de uma nova
subjetividade coletiva ou, como diz Souza Santos, de uma nova cidadania
social (RIBEIRO, 1998, p.43).
Na sua fala, constata-se que o período anterior marcado pela
redemocratização, trouxe consigo ganhos, mas também grandes desafios para os
movimentos sociais. Ou seja, ao mesmo tempo em que significativos avanços
aconteceram no período, exigiu-se também a construção de um conhecimento –
numa perspectiva sócio-histórica - sobre alguns temas incorporados à realidade
brasileira naquele momento: as lutas sociais, a democracia, a participação, a
universalidade, a descentralização, a construção de espaços de participação e de
exercício de poder locais, entre outros.
116
Este desafio teria surgido diante do cenário social, político, econômico e
cultural posto com o término da ditadura militar, e sua superação representou a
materialização da ruptura com a política de governo que antes se preconizava:

Na esfera econômica - o desenvolvimentismo à custa do
endividamento do Estado Nacional e da conseqüente recessão;

Na esfera dos direitos civis e políticos – uma política repressora e
cerceadora de liberdades com vistas ao controle social feito através
da violência do Estado autoritário;

Na esfera da gestão do Estado – as práticas clientelistas e de
construção de alianças segundo os interesses políticos e
econômicos de controle e dominação do povo, que ora já tinha
adentrado na cultura popular como ‘fato’ normal do cotidiano
capitalista burguês.
Eis que então, na mesma intensidade em que aparecem os desafios da
era da conquista de direitos, surge também a necessidade de superá-los com
significativa urgência. Logo, confirma-se que é no momento da ‘redemocratização’
que os indivíduos sociais, atores coletivos dos movimentos sociais e populares,
inauguraram um novo período na história dos próprios movimentos e desta mesma
sociedade. Assim, ao mesmo tempo desfrutam da possibilidade de protagonizarem a
história da nação e são desafiados a superarem – num período de tempo breve – as
contradições que haviam auxiliado a construir e que ora se mostram como
empecilhos para a construção de uma nação democrática. Será sob estas
circunstâncias que os movimentos sociais adentram no ‘novo desconhecido’ milênio.
Diante disto tudo, Forrester dizia que
O momento histórico que estamos vivendo é de acirramento da contradição
entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, em razão da
revolução científico-tecnológica concentrar força-de-trabalho especializada
e expulsar força-de-trabalho não qualificada, excluindo milhões de
trabalhadores aos quais o capitalismo condenou à não-terra, ao não-teto, à
não-instrução, à não-especialização, à não-saúde, à não-habitação, ao nãotrabalho, à não-vida (FORRESTER, 1997, apud Ribeiro, 1998, p.66).
As palavras do autor, denunciam a violência gerada pelo sistema
capitalista, no momento de transição entre os milênios. Esta situação é um dos
elementos que leva a sugerir a indeterminação do futuro da sociedade e, nela, dos
117
movimentos sociais e das forças populares. A violência estrutural adentra na vida
dos indivíduos e o novo se faz ‘desconhecido’ nos fatos do cotidiano.
É esta situação que faz com que Ribeiro indague sobre
O que estão querendo nos dizer os saques a supermercados, as
assembléias sindicais esvaziadas, a diminuição do número de
sindicalizados, os altos índices de abstenção eleitoral em um país onde o
voto é obrigatório? Como interpretar, sem cair numa explicação mecânica e
simplista, o fortalecimento dos movimentos religiosos “fundamentalistas” em
que milhares de pessoas lotam estádios e pagam para serem abençoadas?
(RIBEIRO, 1998, p.63).
Realmente a resposta não será possível, caso não se reflita na dinâmica
entre a mundialização e a separação dos prejuízos e ganhos, a qual é operada pelo
capital. Também é necessário atentar para o fato de que os movimentos sociais são
partes constituintes desta dinâmica. Eles não estão fora deste processo, observando
o seu desencadeamento e aguardando o momento propício para ‘protestar’. Pelo
contrário, eles compõem o quadro, muitas vezes colaborando para que ele funcione
como tal, outras vezes se manifestando contrários e se mostrando combatentes a
ele.
Entretanto, tudo parece apontar para o fato de que, neste período, mesmo
que o Estado Ditatorial brasileiro tenha saído de cena, figura neste cenário um
Estado democrático e de direitos, que manipula a população e disfarça as formas de
violência brutal que utiliza para governar segundo os ditames do capitalismo
internacional.
Ora, a violência, o conflito e a criminalização tornam-se situações
presentes no cotidiano dos movimentos sociais e será a partir deles que os
movimentos sociais re-significarão o seu agir político e o seu fazer social, cultural e,
porque não, econômico. Este é o momento identificado por muitos autores como
‘momento de crise dos movimentos sociais’.
Este quadro denota as diversas contradições surgidas neste ‘novo
desconhecido’ milênio, originadas pela nova configuração mundial, globalizada.
Note-se que Ribeiro confirma isto ao afirmar que
Entre as mudanças que introduzem novos significados e possibilidades aos
movimentos sociais está a globalização ou a mundialização da economia e
dos conflitos, que coloca a humanidade em um novo patamar, acirrando-se
as contradições entre o global e o local na luta que os grupos sociais
desenvolvem para o reconhecimento de suas demandas específicas em
118
uma conjuntura em que as distâncias e a comunicação tornaram-se
planetárias (RIBEIRO, 1998, p.51).
Logo, no que tange à reflexão desenvolvida neste estudo, a questão da
chamada “crise” atual dos movimentos sociais no Brasil, parece ser uma polêmica
mais acadêmica do que um fato concreto. Esta mesma compreensão é partilhada
por alguns autores, dentre os quais está Silva, que afirma
[...] As lideranças dos principais movimentos sociais identificam que estes
não desapareceram, mas estão vivendo um novo ciclo. Estão se
transformando, reconfigurando-se, nesse período histórico da globalização
e da pós-modernidade, que não é homogêneo, como inicialmente se
difundiu, mas profundamente heterogêneo, diferenciado, entre países,
regiões e comunidades (SILVA, 2001, p.33).
Neste ‘novo desconhecido’ milênio, a indignação diante da falta de ética
na política e a agressão a certos valores consensuais da sociedade em relação à
gestão do Estado, levam à eclosão de movimentos sociais de base pluriclassista,
liderados muitas vezes pelas camadas médias e articulados em torno de temas
transversais à luta pela transformação societária, como as questões de gênero, raça
e idade (GOHN, 1997).
Portanto, o “novo” também se faz nos movimentos sociais na entrada do
novo milênio. Nele, as reivindicações populares, a questão dos direitos sociais
assegurados, porém não efetivados, o direito à vida e à sobrevivência reforçam-se
nas manifestações e protestos, tomando lugar central como eixo articulador das
lutas sociais.
2.2.2 Nas terras catarinenses, os movimentos sociais construíram história
Ao se comparar, a exploração do território brasileiro e a formação sóciohistórica-cultural de seu povo, com outras culturas, constata-se que as duas são
bastante recentes. Ora, a formação sócio-histórica do povo catarinense, em termos
de uma constituição mais coesa e que abrange não apenas a faixa litorânea principalmente nos municípios de Laguna, Florianópolis e São Francisco do Sul, cuja
ocupação açoriana iniciou ainda no século XVII - mas, sim, a maior parte de seu
território, é mais recente ainda, datando do século XIX.
119
Sua ocupação deu-se principalmente através das imigrações européias,
embora tenham aportado nas terras catarinenses ‘gentes’ de outras partes do
mundo. Alemães, italianos, poloneses, açorianos (portugueses) e a população negra
predominam, sendo que os portugueses e negros foram os primeiros a chegar –
embora em menor quantidade –, tendo se estabelecido principalmente na faixa
litorânea. Já os alemães foram os primeiros a chegar. Os italianos chegaram mais
tarde, em maior quantidade, vindos através das colônias de imigrantes. Eram
geralmente ‘migrantes’ de uma segunda ou terceira geração dos ‘imigrantes’
europeus e tendo vivido um primeiro período no Brasil, em terras riograndenses,
dirigiram-se para as terras catarinenses ainda não exploradas, na esperança de
neste lugar enriquecer e, então, construir a vida.
Dado seu caráter recente, o desenvolvimento econômico, social, político e
cultural do Estado aconteceu, sobretudo, no século XX, num contexto já interligado
com o contexto mundial e nacional em seus desdobramentos. A dimensão política e
social, no início do século XX em ‘Terras Catarinas’, seguia o mesmo panorama
daquele nacional, sem maiores relevâncias para o campo das lutas sociais, embora
na trajetória histórica alguns conflitos e manifestações populares estiveram
presentes.
Já na segunda metade do século XX, o quadro econômico, político e
social – no que se refere a um olhar para o campo dos movimentos sociais
especificamente - começa a se modificar em face das interferências nos demais
âmbitos. Destarte, é fundamental reconhecer que o cenário mundial no estágio final
do século XX vivia a rápida expansão dos mercados financeiros, a expansão do
neoliberalismo, a introdução de novas modalidades de produção, a revolução
tecnológica com conseqüências sócio-econômicas para o campo e para a cidade,
que vive um intenso processo de urbanização (RIBEIRO, 2005).
Acrescenta-se a isso, o êxodo rural e a migração para os grandes
centros, a concentração populacional no entorno das cidades pólos, gerando
grandes agrupamentos populacionais e, com isso, a sobrecarga dos serviços
públicos, a marginalização de grande parcela da população, a explosão do número
de desempregados e/ou de trabalhadores informais, vivendo do trabalho precarizado
e desprotegido. Estão ainda presentes, nas décadas de transição entre os milênios,
120
mudanças na legislação trabalhista e previdenciária, o aumento das áreas
habitacionais com ocupação irregular, a elevação das desigualdades sociais e o
distanciamento entre os que muito têm e aqueles que nada ou pouquíssimo
possuem.
A mesma autora afirma que
Os princípios orientadores, agora, seriam: flexibilização do trabalho,
gerando desemprego estrutural com graves conseqüências como a perda
de poder dos sindicatos e o aumento da pobreza absoluta; capitalismo
financeiro extremamente volátil em detrimento do trabalho produtivo;
crescimento do setor de serviços, que traz consigo precarização,
subemprego, trabalho semi-escravo e outros; ciência e tecnologia como
agentes do capital, ou seja, monopólio do conhecimento e da informação;
transnacionalização da economia e redefinição no papel político do Estado
nacional (RIBEIRO, 2005, p.82).
Especificamente, no contexto brasileiro, acompanhou-se a introdução dos
programas neoliberais de ajuste estrutural, ditados pelas agências internacionais,
tais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Mundial - BM. Com isto,
tornou-se factual a abertura da economia para o capital estrangeiro acompanhada
pelas privatizações das empresas públicas e pela implementação de programas de
estabilização financeira. Essa mudança retira, do Estado, a responsabilidade de
resolver os desafios da Questão Social, fazendo com que sejam extintos, sutilmente,
os direitos sociais e ocorra o desmonte da rede de proteção social, o que se explicita
num discurso de uma ‘necessária’ reforma do Estado. Enfim, corrobora-se com
Ribeiro (2005, p.82), pela opinião de que afirmar que “[...] este novo quadro agrava
as condições de vida e de trabalho de amplos segmentos da população mundial, em
especial, aquelas dos países periféricos, é redundância que precisa ser
constantemente reafirmada”.
Em conseqüência deste cenário e da conjuntura econômica, social,
política e cultural vigentes, ocorrem também processos em que os indivíduos e
grupos sociais sentem-se incitados a se manifestar e, com isso, tencionar o Estado.
Assim, estes também são tempos de redemocratização associada com a retomada
da participação e da organização popular nas esferas públicas. Ao se iniciarem,
entre os entes federados, processos de descentralização e de partilha das
responsabilidades de gestão e de financiamento do sistema público, o Estado tem
seu papel redefinido. Vive-se o dilema entre conquista e, em seguida, perda da
universalidade dos direitos sociais e de acesso e atendimento nos serviços públicos.
121
Em relação aos movimentos sociais em Santa Catarina, observa-se que
Os anos de 1990 foram de mudança, entendida como reordenamento,
revisão e reorientação destes. Não encontramos mais movimentos de
massa, característica dos anos 1980. Tampouco estes puderam contar com
o apoio da Igreja Progressista, exceção feita aos movimentos rurais. [...] A
centralidade da luta é por cidadania, em que o projeto de uma ordem social,
de fato democrática e emancipatória é compreendida claramente como
processo; daí a importância que a maioria dos movimentos pesquisados
dão à luta parlamentar, com todas as ambigüidades e conflitos que isto
possa trazer para o interior dos movimentos. [Enfim], são anos marcados
pela pulverização de movimentos, pela heterogeneidade e pluralidade
(RIBEIRO, 2005, p.87).
Ao iniciar a contextualização dos movimentos sociais em Santa Catarina,
nota-se a importância de conhecer a trajetória histórica deste Estado, construída ao
longo dos anos por imigrantes europeus e migrantes brasileiros de outras regiões,
sob o prisma do desenvolvimento econômico, que centralizou nas diferentes regiões
do Estado tipos característicos de economia, seja ela de extração de minérios, de
indústrias pesadas de siderurgia, químicas, têxteis, de papel ou de alimentos, seja
ela de base agropecuária e agroindustrial, ou uma economia baseada no setor de
serviços.
Como este não se configura como objetivo central desta investigação –
apesar da sua importância -, destacar-se-á apenas alguns dados da região oeste,
importantes para compreender o contexto em que surge o Movimento de Mulheres
Agricultoras27. Neste sentido, cumpre dizer que tanto a região oeste, quanto do
extremo-oeste catarinense são predominantemente rurais, com destaque para a
agricultura familiar, ou seja, agricultura de pequeno porte,voltada para a produção de
alimentos. Além disso, constata-se a incidência de diversas agroindústrias que se
instalaram e se desenvolveram nestas regiões desde fins da primeira metade do
século XX.
Outra
característica
marcante
é
a
forte
presença
da
Igreja
–
predominantemente católica, mas também evangélicas, luterana e outras –, que há
27
Para uma contextualização mais próxima da história catarinense na perspectiva de um olhar para
os movimentos sociais e para o cenário político do Estado, indica-se a obra de Ribeiro (2005),
“Movimentos sociais em tempos de democracia e globalização em Santa Catarina”. Já um
aprofundamento histórico específico da região oeste catarinense, poderá ser encontrado no estudo
de Lusa (2008), denominado “O trabalho no contexto rural: da divisão sexual do trabalho às políticas
públicas para o campo na região oeste catarinense”.
122
várias décadas trabalhou na perspectiva progressista, acentuando este perfil nas
décadas de 1970 e 1980.
A população que reside nestas regiões é, em sua maioria, originária de
migrações internas, provenientes principalmente do Estado do Rio Grande do Sul.
Seus ascendentes são imigrantes europeus que chegaram ao Brasil em diferentes
fluxos, durante os períodos de guerras, entre guerras e pós-guerras mundiais, com o
intuito de conquistar uma nova terra, construir uma nova vida e enriquecer através
do trabalho.
Somadas estas características, é possível compreender melhor a
formação política de ambas as regiões, que desde o início da ocupação territorial
distinguiram-se das demais regiões catarinenses. Enquanto que no oeste e extremooeste catarinense seguia-se por uma direção política mais progressista - dada a
formação religiosa (progressista), a cultura rural de trabalho e as influências de ter
vivido no Rio Grande do Sul, estado onde o Partido Trabalhista Brasileiro - PTB
marcava o cenário político -, nas demais regiões do Estado preponderava a
dominação político-oligárquica de dois partidos conservadores: a União Democrática
Nacional - UDN e o Partido Social Democrata - PSD.
Logo, quando observamos a região oeste, dois fatores devem ser levados
em conta: uma cultura política anterior desta população e a atuação na
Igreja Católica local, com uma perspectiva majoritariamente popular de
empoderamento daqueles que não têm voz. O surgimento e trajetória dos
movimentos sociais, exatamente nessa época [década de 1970], mostram
claramente isso (RIBEIRO, 2005, p.87, grifos no original).
Voltando para o contexto estadual em relação aos movimentos sociais, é
fato que, embora tenham surgido mobilizações e organizações populares antes do
período da Ditadura Militar deflagrada em 1964, estas eram praticamente reduzidas
às manifestações de movimentos religiosos de juventude, de alguns sindicatos e
associações de moradores e da Ação Popular – AP. Além destas experiências,
registra-se, a partir dos anos 1950, o surgimento da Associação de Mulheres
Catarinenses (AMC), reivindicando seus direitos como igualdade salarial e creches,
sendo, algumas das militantes, ligadas ao Partido Comunista do Brasil - PCB, o que
demonstra o perfil ideológico deste grupo (RIBEIRO, 2005).
Além destas mobilizações, é possível reconhecer no cenário de
mobilizações catarinenses, algumas incidências no campo sindical. Estas já
123
figuravam nos anos 1950 e seguintes, sendo ligados à Confederação Geral dos
Trabalhadores – CGT e contestavam o sindicalismo oficial brasileiro. Assim,
configurava-se, aos poucos, no Estado de Santa Catarina um ‘sindicalismo
combativo’, cujos discursos eram deflagrados preponderantemente contra o
‘peleguismo’ sindical.
A partir do Golpe Militar de 1964 todas as experiências de mobilizações,
organizações e lutas populares ou sociais do Estado são reprimidas, do mesmo
modo como aconteceu no restante do país, “reaparecendo somente no final da
década de 1970, com um sindicalismo diferente, novas formas de associativismo
civil e movimentos sociais distintos” (RIBEIRO, 2005, p.97).
É neste período de ‘reaparecimento das mobilizações sociais’ no Estado,
que a Teologia da Libertação - TL começa a vigorar em terras catarinenses com
maior entusiasmo. Rapidamente ela vai se tornando a referência para os
movimentos sociais tanto do campo quanto da cidade, marcando o período entre as
décadas de 1970 e início de 1980 com o aparecimento de diversos movimentos
sociais, dentre os quais se encontram aqueles ligados ao contexto de lutas rurais: o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST, o Movimento de Atingidos
por Barragens - MAB e o Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA.
É na década de 1980 que se nota um grande número de sindicatos
catarinenses de diversos setores filiando-se à Central Única dos Trabalhadores –
CUT. Isto possibilita identificar que o ‘sindicalismo combativo’ ou ‘sindicalismo de
oposição’ da década anterior havia se firmado no cenário estadual, contribuindo para
que fluíssem alguns processos, principalmente no âmbito político da sociedade –
mas também no âmbito cultural e social –, ocasionando um campo profícuo para a
expansão dos partidos políticos de esquerda, destacadamente o Partido dos
Trabalhadores – PT, confirmando-se em Santa Catarina o que estava acontecendo
no cenário nacional.
Neste mesmo período ocorre o surgimento de movimentos com temáticas
e identidades diversificadas, tais como aqueles de caráter ambientalista, étnicoracial, feminista, entre outros, os quais colaboram para que o cenário catarinense da
década de 1980 fosse sendo revestido por mobilizações, lutas e movimentos sociais
e culturais contestatórios e reivindicativos.
124
Conforme aponta Ribeiro (2005, p.99),
As regiões Oeste, Extremo Oeste e Planalto Serrano do Estado, mesmo
tendo se urbanizado e se industrializado, permaneceram com base
econômica fundamentalmente agrícola, o que marca profundamente os
movimentos sociais mais significativos destas regiões, muitos surgidos no
final dos anos 1970, início da década de 1980. São movimentos sociais
marcadamente rurais, como o MAB, surgido em 1979; os Movimentos de
Oposições Sindicais que apareceram no fim dos anos 1970, início dos 1980
[...]; o MMA, que tem sua fundação em 1983, bem como o MST, que
oficialmente surge em 1985, mas que começa a se estruturar bem antes.
Para finalizar esta seção do estudo que trata sobre o contexto histórico
dos movimentos sociais catarinenses, é imprescindível registrar, segundo a mesma
autora, que todos estes movimentos, mobilizações e lutas sociais surgidas no
período pós-ditadura militar, tiveram forte influência da Igreja Católica Progressista.
Esta interferência propositiva, cuja origem vincula-se à Teologia da
Libertação, foi marcada principalmente pelo Movimento de CEBs e pelas diversas
Pastorais Sociais, dentre as quais estão a Pastoral da Juventude - PJ e a Comissão
Pastoral da Terra – CPT, que também datam seu surgimento em fins da década de
1970 e seguinte.
Entretanto, já nos anos 1990 ocorre um recuo desta Igreja Progressista
em quase todas as regiões do estado, com exceção da região Oeste e Extremo
Oeste, o que faz com que aconteça, ainda naqueles anos, um arrefecimento de
alguns destes movimentos. Esta tendência é confirmada nos anos 2000, quando há
um visível retorno da Igreja Católica ao conservadorismo, figurado pela própria
transição papal quando do falecimento no ano de 2005 do Papa João Paulo II e
eleição do Cardeal Ratzinger (ligado à ala ultraconservadora da Igreja, a Opus-Dei)
como seu substituto, o qual passa a se chamar Papa Bento XVI.
Ainda na década de 1990 e mais intensamente a partir do novo milênio,
ocorre o processo de globalização e junto com ele a mundialização da economia, o
aprofundamento da política neoliberal ditada pelas agências internacionais e a
monopolização da cultura pela mídia consumista mundial. Isto também vem interferir
no cenário dos movimentos sociais. Todas as características deste período, já
elencadas anteriormente, influenciaram no modo de ser e fazer dos movimentos
sociais também em Santa Catarina.
Nas palavras de Ribeiro (2005, p. 152),
125
Aliado à dimensão econômica da globalização, outro fator marcante do
contexto, considerando a origem rural destes movimentos [da região oeste
catarinense], foi o processo migratório campo/cidade decorrente das
políticas agrícolas, até então, adotadas. [...] Acrescenta-se a isto a perda de
lideranças, que na busca de subsistência, deixam a luta social. [...] Por outro
lado, os movimentos da região tiveram parceiros outros que contribuíram
para a reorientação das lutas, tal como a Universidade. É importante
lembrar que os mesmos chegaram aos anos 1990 embalados pelas
conquistas inscritas na Constituição de 1988, seja no mundo urbano, seja
no mundo rural. Mas, ao longo da década, os limites, decorrentes do novo
modelo econômico foram se delineando: o agravamento da crise da
agricultura, o êxodo rural acelerado, a privatização, dentre outros.
É óbvio que não foram apenas estes fatores a arrefecer os movimentos
sociais e nem que isto tenha ocorrido somente em Santa Catarina. Igualmente,
vários outros elementos colaboraram para que esta tendência de mudança nos
movimentos sociais acontecesse também em outros cenários.
Alguns estudiosos, ou simplesmente ‘palpiteiros’, indicavam um momento
de ‘crise dos movimentos sociais’, outros chegavam a afirmar que estas formas de
processos sociais estavam morrendo. Aqui não serão discutidos estes paradigmas
de análise, mas cabe sinalizar que os anos 2000 foram anos de transformação,
inclusive, para os movimentos sociais. E quando se fala ‘inclusive’ é porque ‘esta tal
transformação’ não foi um processo solitário dos movimentos sociais, nem
ocasionada apenas por eles.
Tratou-se de um momento histórico de intensas, rápidas e bruscas
transformações no cenário local, estadual, nacional e internacional das sociedades,
sejam elas capitalistas ou então de experiência socialista.
Porém, no âmbito destas transformações, os movimentos sociais não
ficaram ‘esperando’ para ver o que iria acontecer. Sentindo as conseqüências da
realidade, buscaram formas de compreendê-la e, por isso, começaram a investir
fortemente na formação de seus quadros de militantes, o que ocorria não apenas no
aspecto político, mas envolvia o processo intelectual na sua integralidade.
Os movimentos sociais ligados ao campo foram alguns dentre os
movimentos que mais investiram na educação formal e informal de seus quadros.
Assim, observa-se ainda na década de 1990 a efetivação do projeto de
‘Universidade do Campo do MST’. O Movimento de Mulheres Camponesas também
não fica para trás, instigando e incentivando para que várias mulheres camponesas
chegassem nas Universidades, atingindo inclusive níveis de pós-graduação stricto
126
sensu. Exemplo disto é a militante do MMC, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto, que
ainda em 1999 defende sua dissertação de mestrado no Programa de História da
PUC-SP, com o título de “Atalhos da luta: trajetórias e experiências das mulheres
agricultoras e do Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina (19831993)”.
Este cenário de transformações foi marcado por ações significativas para
a sociedade em geral, para as camponesas e os camponeses, e, principalmente,
para os próprios movimentos sociais catarinenses ligados ao campo. As ações são
tanto
as
que
implicaram
na
construção
de
experiências
concretas
que
materializaram as lutas desenvolvidas pelos vários sujeitos coletivos, como aquelas
que contribuíram para a retomada dos princípios fundantes dos movimentos, as que
se materializaram em conquistas de direitos sociais, as que se concretizavam na
formalização de instrumentos de luta dos movimentos e aquelas que implicaram em
revisão interna dos próprios movimentos, possibilitando-lhes um salto de qualidade
na forma de organização. Cabe ainda ressaltar as ações de protesto, de luta por
direitos, de mobilização de massa, entre outros (RIBEIRO, 2005).
Por outro lado, é importante ressaltar que tais transformações iniciaram
na década de 1990 e dão mostras de que até hoje não findaram. Portanto, não se
sabe até onde elas chegarão e nem como será a trajetória futura dos movimentos
sociais catarinenses, brasileiros e/ou latino-americanos. No entanto, o que se sabe é
que os movimentos sociais são resultado do processo contraditório de construção da
sociedade - de caráter dinâmico, plural, histórico e cultural -, o que faz com que
passem eles mesmos pela transformação ocorrida no cenário social, político,
econômico e cultural, para o qual colaboraram que acontecesse.
Parece não haver dúvida de que os desafios encontrados neste cenário
de transformações locais e globais foram grandes e geraram e foram gerados por
crises externas e internas aos próprios movimentos sociais. Porém, não obstante as
dificuldades enfrentadas, a superação destas crises resultou num momento de
revisão destes movimentos. Como afirma Ribeiro (2005, p.163), “é inconteste que os
anos 1990 foram de re-orientação para os movimentos rurais, em que o novo e o
velho se fizeram presentes. Anos em que as lutas empreendidas se materializaram
127
num novo patamar: tanto na capacidade de negociação, quanto na dimensão
nacional e internacional de atuação”.
Enfim, a reflexão sobre movimentos sociais, que orientará as discussões
e análises que seguem, é a de que são processos sociais dinâmicos, com caráter
dialético em relação à realidade e à sociedade, uma vez que agem transformando
ao mesmo tempo em que são transformados na cotidianidade. Atuam direta e
indiretamente na construção de uma esfera de participação democrática; na
configuração de novas institucionalidades; na constituição de valores e ideais que
incidem na cultura; logo, intervindo no dia-a-dia da população; na conquista de
direitos e nas suas efetivações através de políticas públicas. E, enfim, na construção
de espaços de pluralidade, onde a soma de indivíduos se torna coletivo social e
político, seja ele identificado como ator, sujeito, indivíduo ou outra terminologia que
venha demonstrar seu protagonismo no cenário social, político e cultural.
O desafio de estudar, discutir e investigar os movimentos sociais está nas
suas características, o que exige uma atitude permanente de atenção para olhar,
ouvir, entender e refletir no sentido de se captar criticamente a realidade, apoderarse de seus significados analíticos e traduzi-los para a sociedade, ampliando o poder
de ação contido nestes processos sociais.
2.2.3 A caminhada dos movimentos sociais no campo
Se até 1940 o messianismo e o cangaço foram formas dominantes de
organização e de manifestação da rebeldia camponesa, a partir dos anos 50 as ligas
camponesas e o sindicato serão as formas mais importantes de organização e luta
política dos camponeses, ainda que convivendo com a persistência do messianismo
e do banditismo com outras formas de luta e de resistência (MARTINS, 1986, p. 67).
Com esta afirmação de Martins, inicia-se uma breve reflexão – ou melhor,
resgate - sobre o histórico das lutas e dos movimentos sociais camponeses no
Brasil.
Segundo o autor, a relação de dominação e exploração no campo teve
como marco de surgimento no Brasil a chegada dos portugueses e a política de
128
colonização implantada. Inicialmente, o fundamento desta dominação e exploração
era o escravo e aos poucos passou a ser a terra. São estes os elementos que
causam aprisionamento aos sujeitos, levando a confrontos diretos, ora entre
escravos e senhores, ora entre camponeses e fazendeiros. “O fim do trabalho
escravo, a revelação de um novo instrumento de dominação, revelou também a
contradição que separava exploradores de explorados. Sendo a terra a mediação
desse antagonismo, em torno dela passa a girar o confronto e o conflito de
fazendeiros e camponeses” (MARTINS, 1986, p.63).
E nesta questão dois componentes são fundamentais para a observação:
o coronelismo e a questão da terra enquanto valor. O primeiro refere-se ao poder
dos coronéis (exploradores), sendo este um poder exercido principalmente no
contexto local, que apenas em alguns momentos adentrava no contexto mais amplo
da sociedade. Isto significa que não era um poder presente e constante no cenário
político da sociedade, embora tenha comparecido nele em vários momentos da
história. Portanto, não lograva ser um poder político com ampla força de
interferência, tal como o era o poder da burguesia urbana, embora detivesse um
poder local que permitia dominar facilmente a população a ele subjugada.
Além disso, deve se considerar que tal poder emanava de suas
propriedades, dentre as quais estava o escravo. Quando este foi liberto, passou a
ocupar seu lugar de sujeição o camponês pobre (explorado), que trabalha
principalmente como foreiro ou meeiro28. Este componente guarda nexo, embora
sutil, com as relações existentes hoje entre o campesinato brasileiro - especialmente
os camponeses pauperizados, muitos dos quais são militantes de movimentos
sociais – e a elite fundiária.
Em relação ao segundo componente, pode-se dizer que este, sim, guarda
nexo mais forte com a atual situação de lutas e disputas no campo, a qual remete à
questão da propriedade, acesso e utilização da terra. Neste sentido, é importante
salientar que num primeiro momento na história brasileira, as questões de terra
diziam respeito às chamadas ‘terras consideradas em comum’, as quais eram
28
No contexto em discussão, foreiro é o trabalhador rural que alugava as terras do senhor de
engenho, pagando-lhe uma importância anual em dinheiro e ficando ainda na obrigação de trabalhar
alguns dias gratuitamente para o senhor de engenho; meeiro é o trabalhador rural que arrenda terras
do senhor de engenho e como forma de pagamento divide com o senhor os rendimentos anuais
obtidos de seu trabalho na terra.
129
indivisas e advinham de herança, sendo essa destinada ao herdeiro, justamente por
ser ela o seu local de trabalho. É a partir do momento em que a terra começa a ter
valor que começam as questões de disputa de terras no Brasil.
Desejando fazer uma análise histórica do cenário das lutas camponesas
no Brasil, volta-se o olhar para o início do século XX e para os conflitos identificados
com o ‘messianismo e o cangaço’; respectivamente, a ‘Guerra do Contestado’
(1912-1916, Santa Catarina e Paraná) e a Guerra de Canudos (1896-1897, Bahia); e
o movimento dos ‘Cangaceiros’ (final do século XIX e início do XX, sertão
nordestino). Nas palavras de Martins, tanto um quanto outro
[...] Já indicam uma situação de desordem nos vínculos tradicionais de
dependência no sertão. A apropriação da terra pelos grandes fazendeiros,
que fora subproduto da escravidão, passa a ser condição da sujeição do
trabalho livre, instrumento para arrancar do camponês mais trabalho. [...]
Ainda que essa resistência tenha ocorrido na moldura da dominação dos
coronéis, messianismo e cangaço foram as formas primeiras de libertação,
no sentido de manifestação de uma vontade própria (MARTINS, 1986,
p.62).
Conforme se destacou no início deste item, estas duas lutas sociais
marcaram a história e todo o cenário brasileiro até por volta da década de 1940,
quando começam a surgir movimentos camponeses em todo o Brasil.
Há que se registrar, inclusive, que é na mesma região sul do Brasil, onde
ocorreu o conflito caracterizado pelo messianismo, chamado de ‘Guerra do
Contestado’ – divisa dos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná - que irão surgir
entre as décadas de 1970 e 1980 as primeiras organizações dos movimentos
camponeses mais conhecidos na atualidade: o Movimento de Agricultores Atingidos
por Barragens - MAB, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST e o
Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA. Mesmo hoje, estes movimentos têm em
seus princípios orientadores de luta o direito à propriedade e de acesso a terra, para
produzir.
Entretanto, antes de iniciar a discussão sobre os atuais movimentos
camponeses, é imprescindível dedicar atenção para os movimentos e lutas
camponesas que marcaram a história brasileira.
É importante, de saída, se dizer que as lutas camponesas foram
consideradas, na grande maioria dos momentos políticos da nação como ‘lutas de
menor valor’, ou de menor poder político de transformação. Entendia-se que era do
130
contexto urbano que emergiam, não somente as expressões da questão social, mas
também as forças políticas que poderiam ameaçar a ordem burguesa num país
continental, cujo ordenamento político de Estado ainda estava em construção. Era
do urbano também que brotaria o desenvolvimento econômico, político, social e
cultural da nação. O Campo figurava neste cenário ainda como nos tempos
coloniais, como mero fornecedor de matérias-primas de subsistência da nação e, em
outros momentos da conformação econômica brasileira, como produtor das matérias
para exportação: cana de açúcar, café, algodão, entre outros, mas cujo poderio de
negociação econômica e política desta produção era exercido no espaço urbanizado
das capitais e pelas figuras também urbanas da burguesia brasileira.
A grande questão que se colocava era a forma pela qual o campo – vida,
trabalho, relações sociais, políticas, culturais, relações de produção e a própria
produção – é compreendido na esfera de produção de riquezas no mundo
capitalista. O mundo rural, tal como analisado no capítulo da dissertação que
antecedeu a este, guarda grande associação, no campo ideológico, com o mundo
arcaico/feudal. A imagem é de um mundo romântico e bucólico, mas que causa
atrasos para a modernização e, portanto, para o desenvolvimento capitalista
brasileiro.
As lutas e movimentos sociais no campo parecem ter herdado estes
ranços figurativos, recebendo respingos que os tornam lutas de menor valor, tanto
para as elites que controlam o país política e economicamente, quanto para o
próprio conjunto de movimentos contestatórios da ordem capitalista.
Para Martins, o grande elemento responsável pela atribuição de menor
valor diz respeito ao capitalismo e às relações de trabalho que nele se desenvolvem,
colocando o camponês num patamar de subalternidade.
Todas as lutas das categorias sociais cuja existência não está baseada no
trabalho assalariado são consideradas lutas condenadas, sem futuro, sem
importância histórica, portanto. É que são tidas como lutas de resistência ao
desenvolvimento do capitalismo, ao progresso da sociedade, diferentes das
lutas operárias que deverão levar à superação do capitalismo e à
construção do socialismo (MARTINS, 1985, p.77).
Por conseguinte, a vida, as demandas e lutas dos trabalhadores
camponeses vão se inserindo timidamente na história social e política do país. Para
131
falar do processo do camponês ao longo da história, Martins toma como exemplo o
caso da cultura de cana-de-açúcar no nordeste. Segundo ele,
O agregado marginal no regime de trabalho escravo, ocupado
ocasionalmente no trabalho da cana de açúcar, passa ao lugar principal
como fim da escravidão, como morador de condição [aluguel da terra em
troca de pagamento em dinheiro e também em dias de trabalho gratuito],
para, à medida que a condição aumenta e que seu trabalho gratuito ou
barato na cana é a renda que paga pela terra em que planta a sua
subsistência, ir aos poucos se convertendo em assalariado (MARTINS,
1986, p.66).
Ora, é indiscutível como figura a subalternidade do trabalhador camponês
em todas as imagens que retratam sua relação com a sociedade, seja no campo do
trabalho, da produção, seja no campo cultural e social.
Em outra obra, discutindo emancipação política e libertação dos
movimentos sociais no campo, o mesmo autor afirma que
O ponto essencial é que a condição subalterna do camponês já não
aparece nessas interpretações como decorrência de uma desqualificação,
pura e simples, em face da suposta superioridade e da eficácia histórica do
próprio desenvolvimento econômico. Aí a subalternidade aparece na
privação do conhecimento pleno das situações e do processo histórico por
parte das populações camponesas. Manifestação de uma espécie de
insuficiência cultural. Aqui caberia dizer que tal insuficiência não é resultado
de uma incompetência, mas, antes, expressão da própria subalternização
do camponês, componente de sua pobreza (MARTINS, 1986, p.66).
Somente na história mais recente é que surgem instituições ou
organismos que irão mediar os conflitos entre camponeses e senhores,
trabalhadores rurais e proprietários/usineiros no campo, a partir da defesa dos
camponeses e contra a exploração dos fazendeiros e latifundiários. Em 1955
surgem as Ligas Camponesas e pouco tempo depois começam a aparecer alguns
sindicatos. Isto acontece nas várias regiões do país, com a intensidade política
mobilizadora e as características próprias de cada região. Assim, são observadas no
nordeste as lutas dos trabalhadores da cana, na região do estado de São Paulo as
lutas se situam no entorno da cultura cafeeira e assim por diante.
Uma das regiões de conflitos camponeses que têm relevância para a
história dos movimentos sociais no campo trata-se da região mineira de Teófilo
Otoni e de Governador Valadares, cuja insurgência dos conflitos iniciou-se ainda na
década de 1940 e se alastrou até meados da década seguinte. Especificamente na
última cidade, em 1955 foi fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, não
reconhecido formalmente, constituído por trabalhadores posseiros e alguns
132
arrendatários, expulsos das terras em que trabalhavam e moravam. Com este fato
os conflitos na região aumentam, sendo que ambos somente irão finalizar com a
repressão do Estado, tal como aconteceu com Canudos e Contestado.
Sobre as Ligas Camponesas e os conflitos instalados na região do
Nordeste Brasileiro, serão apresentados, sinteticamente, alguns pontos que
possibilitarão compreender qual foi sua importância, bem como a de outros atores
coletivos que contracenaram naquele contexto, para as lutas sociais no campo que
se seguiram.
Em 1955 surge no ‘Engenho Galiléia’, Pernambuco, num contexto de
crise regional, de expansão dos canaviais e de expulsão de foreiros da terra, uma
associação denominada ‘Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de
Pernambuco’, logo conhecida como Liga dos Camponeses. Era formada por
pequenos camponeses autônomos, foreiros expulsos ou em processo de expulsão
das terras alugadas (foro) nos antigos engenhos, que no início da organização
contavam com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB) e com a oposição da
Igreja Católica. Espalhou-se rapidamente pelo nordeste e, mais tarde no Rio de
Janeiro, representando uma instituição de luta pelos direitos dos camponeses e dos
trabalhadores das ‘recentes’ usinas de cana de açúcar, contra a expulsão dos
primeiros das terras e a favor de uma revolução camponesa.
Segundo Martins (1986, p.77), “embora formalmente reconhecidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho, os trabalhadores rurais não gozavam no país
inteiro de direito à sindicalização”. Isto faz com que, diante da impossibilidade de
organizar um sindicato de trabalhadores rurais, crie-se uma ‘associação’ com a
finalidade de organizar e legitimar as ações deste grupo de trabalhadores da canade-açúcar.
As Ligas Camponesas, desde o seu surgimento, mantêm forte relação
com a esfera política eleitoral, na perspectiva de avançar na conquista de seus
direitos. Neste sentido, participava dando apoio ou fazendo oposição às
candidaturas locais e regionais, destacando-se sua participação para a vitória no
estado e na capital pernambucana de uma aliança de centro esquerda, ainda em
fins da década de 1950.
133
Neste período, ainda mantinha vínculo com o Partido Comunista do
Brasil, através de Francisco Julião, advogado e deputado socialista, que
assessorava as Ligas Camponesas em sua organização e lutas. A atuação das
Ligas acabou por reforçar o cenário de participação política tanto dos camponeses,
quanto dos trabalhadores rurais das usinas, que viviam um processo de
assalariamento.
No período seguinte, como conseqüência do próprio avanço do
movimento camponês durante os anos 1950, o presidente João Goulart (1961-1964)
se empenha na regularização dos sindicatos, o que faz com que o sindicalismo rural
se desenvolva rapidamente pela região e comece a acontecer um refluxo das Ligas
Camponesas.
As Ligas Camponesas, no entanto, continuam a insistir na sua
importância e reconhecimento como defensora dos interesses dos camponeses e da
própria ‘revolução camponesa’. Já o Partido Comunista começa a apoiar a criação e
fortalecimento dos sindicatos de trabalhadores rurais, numa perspectiva de que a
‘revolução democrático-burguesa’ poderia acontecer a partir da convivência pacífica
entre a burguesia e os trabalhadores rurais.
Soma-se a esse contexto de refluxo e crise das Ligas Camponesas, o
Golpe Militar de 1964 e a perseguição política aos ‘perigosos’ comunistas e
movimentos sociais, instalada pela ditadura militar. Ora, se já anteriormente as Ligas
viviam um período de refluxo, dado o avanço do sindicalismo rural de Estado, agora,
sim, elas desapareceriam.
Numa perspectiva de análise deste processo histórico de luta dos
camponeses e dos trabalhadores rurais – mesmo que em fase de assalariamento -,
percebe-se que houve uma correlação de forças dentro do próprio grupo de
trabalhadores camponeses que viviam na região.
A distinção entre eles, para confirmar a questão da centralidade da terra e
da renda extraída dela, era a de que os camponeses, embora estivessem sendo
expulsos da terra que anteriormente tinham alugado dos antigos senhores de
engenho/coronéis, mesmo sendo explorados por eles, não eram tão empobrecidos e
tinham certa autonomia de trabalho e produção. Logo, seu interesse não estava
diretamente na propriedade da terra, mas numa estratégia que lhes permitisse
134
continuar produzindo cana para os usineiros, atentos à renda que poderia ser
extraída da terra.
Já os considerados trabalhadores rurais não tinham autonomia para
produzir, tinham sido expulsos várias vezes das terras que ocupavam, viviam
empobrecidos, sendo obrigados a trabalhar para os usineiros e a morar no entorno
das usinas, pagando aluguel e vivendo com suas famílias em precárias condições.
Para eles a luta era, sim, pelo acesso à terra e pelos seus direitos enquanto
trabalhadores rurais.
Conforme Martins (1986), muitos outros conflitos do campo marcaram a
história brasileira em cada região ou Estado do país. A revolta de Trombas e
Formoso em Goiás (1948), a Guerilha de Porecatu no Paraná (1950), a Revolta do
Sudoeste do Paraná (1957) na região de Pato Branco, Francisco Beltrão e
Capanema, entre outros. O autor diz que esses movimentos eram bastante distintos
entre si, sendo suas características assumidas conforme o contexto de cada região.
Em suas palavras, “embora tais movimentos não apresentem unidade na forma de
sua expressão, organização e seus objetivos, eles apresentam certa unidade quanto
à causa. De fato, o que em todos estava em jogo não era propriamente a
propriedade da terra e, sim, a renda capitalista da terra” (MARTINS, 1986, p.79).
Embora, neste capítulo, o objetivo é de uma explanação sobre os
movimentos sociais – num sentido bastante amplo que contempla vários aspectos,
desde os teóricos até os históricos sobre o surgimento -, não se pode isentar da
análise de que se discorda - em parte - desta consideração de Martins (1986).
Concorda-se que a maioria dos movimentos sociais do campo, os quais
surgiram no Brasil da Nova República, tinham como principal zona de conflito o
acesso da terra, para dela poder extrair maior renda. Dizendo isto, reconhece-se que
os posseiros, por exemplo, desejavam continuar no mesmo local de onde estavam
sendo expulsos, isto é, ter a posse da terra, mas não necessariamente queriam ter
propriedade sobre ela.
Entretanto, caso se volte o olhar para o empobrecimento e a exploração
contínuos de muitos camponeses, observar-se-á que nos objetivos das lutas que
travavam estava, sim, o desejo de acesso e ‘também’ de propriedade da terra. A
questão sobre ‘a maior renda’ possível de ser extraída daquele chão, vinha para a
135
maioria dos movimentos sociais do campo como discussão conseqüente ao direito
de ter terra para trabalhar e de nela permanecer, o direito a sua propriedade.
Assim aconteceu com os combatentes da Guerra do Contestado, pintados
na história brasileira como ‘fanáticos’, mas que lutavam por um espaço de terra em
que pudessem trabalhar e viver com sua própria organização, gozando de
autonomia, cultivando seus valores, crenças e costumes, longe da exploração da
sociedade capitalista que se apresentava para eles na figura das empresas
internacionais de colonização da região sul do país. Assim, também se observa no
caso da luta dos trabalhadores rurais das usinas de cana-de-açúcar no nordeste
brasileiro.
O próprio Martins, poucos anos mais tarde, irá dizer que “a compreensão
sociológica das lutas populares no campo, o desvendamento do seu sentido
histórico, seu alcance e seus limites passa, pois, necessariamente, por esse eixo
estrutural da questão, que é a propriedade da terra: o direito que a sustenta e o uso
que dela se faz” (MARTINS, 1988, p.67).
Ora, tanto a propriedade da terra, quanto seu acesso, interferem
diretamente no modo pelo qual se estabelece a relação com a terra. A renda
possível de ser extraída desta propriedade pode, sim, em alguns momentos e
contextos, ser um fator importante para significar a disputa pela terra, mas não tirará
o sentido maior que é a luta pelo direito de propriedade e acesso da terra.
Destarte,
É particularmente essencial compreender que a forma assumida pela
propriedade territorial ‘amarra’ relações sociais, organiza relações de
classes, sustenta relações econômicas e relações políticas, edifica uma
determinada estrutura de poder, alimenta relações de dominação, define
limites para a participação democrática nas diferentes classes sociais,
particularmente as classes trabalhadoras (MARTINS, 1988, p.67).
Não obstante esta consideração, volta-se ao resgate da trajetória histórica
dos movimentos e lutas sociais camponeses no Brasil, para registrar que todas elas
sempre giraram em torno da questão da terra e da ‘premente necessidade de uma
reforma agrária’. Apenas em alguns momentos a luta por direitos para aqueles que
viviam no campo aparecia no rol das reivindicações, mesmo assim, eram
considerados pelo Estado, pela burguesia, pelos historiadores e estudiosos como
conteúdo de menor valor diante da emblemática disputa pela terra.
136
Sinaliza-se com isto, que na trajetória histórica dos movimentos sociais no
campo, embora muitos aspectos das lutas sociais sejam relevados e considerados
de menor valor - tais como a luta por direitos numa outra proposta de sociedade –
eles estiveram, sim, presentes no ideário dos militantes. Ora apresentavam-se como
luta pelos direitos trabalhistas e pelo pagamento de salário por seu trabalho, ora se
colocavam no plano da conquista de autonomia e contra o mando e a dominação,
seja do Estado, seja da aristocracia rural – e logo após, da burguesia - agrária e
urbano-desenvolvimentista.
Observa-se que Martins sinalizava, há mais de 20 anos, que uma
categoria de camponeses, cuja luta estava sendo colocada ‘de lado’ era a dos
pequenos proprietários rurais.
Numericamente a mais importante, mas cujas lutas têm se limitado a
disputas periódicas em torno de preços de produtos agrícolas. Cada vez
mais subjugados pela agroindústria e pelo capital industrial, tem se
orientado, sobretudo para lutas econômicas com as empresas e os bancos,
ou contra a política de preços agrícolas do governo (MARTINS, 1985,
p.104).
É notória que a luta social no campo assume a diversidade proporcional à
diversidade da própria composição territorial, populacional e cultural brasileira. Ela
também conforma lutas econômicas, além daquelas sociais, as quais trazem sempre
imbricações no campo político e cultural da sociedade brasileira.
Outra expressão de lutas pela conquista de direitos no campo, ainda no
período anterior à Ditadura Militar, deu-se através das propostas dos partidos
políticos de oposição, os quais representavam a vanguarda política. Nota-se que o
‘Manifesto de Agosto’, de 1950, apresentava uma proposta coletiva de composição
entre operários, camponeses e camadas médias. As questões camponesas tinham
destaque e o plano da luta e da ação aconteceria através da revolução29.
Martins (1986, p.84) relembra que
A ação do partido em vários dos movimentos camponeses da época foi
claramente influenciada pela idéia de criar governos municipais
democráticos de libertação nacional. [...] Já em setembro de 1953, fora
organizada a Primeira Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas em
São Paulo, Paraíba e Ceará, definindo-se pela criação de sindicatos,
fundação de uma entidade nacional e organização dos trabalhadores rurais.
Em agosto de 1954, houve também o Congresso Nordestino de
29
O aprofundamento desta questão pode ser encontrado no livro ‘Os camponeses e a Política no
Brasil’, de José de Souza Martins, capítulo II, item 5. Referência completa no final da dissertação.
137
Trabalhadores Rurais, em Limoeiro, que foi encerrado violentamente pela
polícia. Em 1954, foi fundada a ULTAB (União dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas do Brasil) que seria o germe da futura
Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG).
Não será aqui aprofundada a proposta daquele partido. Outros autores –
como José de Souza Martins - o fazem com maior propriedade e podem ser
buscados diretamente pelo leitor. Pretende-se, tão somente, registrar que houve no
Brasil, mesmo antes do período ditatorial militar, discussões políticas, lutas,
mobilizações e movimentos sociais que dedicavam um olhar para o campo, para o
camponês, sua família, seu trabalho e condições de vida.
As estratégias pelas quais isto acontecia, ou mesmo as propostas que
surgiam destas organizações, partidos políticos e movimentos sociais eram as mais
diversas. No caso do PCB, a proposta era de ‘Revolução Socialista’, que aconteceria
através da revolução passiva, que aconteceria através de reformas parciais, nos
marcos da legalidade. A Igreja Católica atenta à difusão dos ideais comunistas e/ou
anarquistas também se coloca nessa disputa no campo.
A Igreja entrou na questão agrária através da pastoral de D. Inocêncio, por
uma porta extremamente reacionária. Aquela pastoral nasceu numa reunião
de fazendeiros, padres e professores rurais e não numa reunião de
camponeses e trabalhadores rurais. A preocupação era com a agitação que
estava chegando ao campo, com a possibilidade da Igreja perder os
camponeses, como tinha perdido os operários. [...] No entender dos bispos,
só a fixação do homem a terra evitaria o êxodo, a proletarização. A
transformação do trabalhador em pequeno proprietário constituía assim a
única saída para salvá-lo do comunismo. As propostas são destinadas a
criar uma classe de camponeses que servisse de barreira de contenção da
maré vermelha. Ampliar o número de pequenos proprietários para salvar a
propriedade privada (MARTINS, 1986, p.88).
O sindicalismo camponês teve uma trajetória semelhante àquela do
urbano. Quem revisa esta trajetória é a estudiosa Scherer-Warren (1987), que
ressalta o fato de que até 1964 havia uma tutela política do sindicato camponês, o
qual desenvolvia lutas sociais – muito embora ainda incipiente –, as quais pairavam
entre as perspectivas do populismo, do PCB e da Igreja Católica. A partir de 1964, o
sindicato se institucionaliza e passa a atuar nos moldes do sindicalismo urbano,
atrelado ao Estado. No período mais recente (década de 1980), depara-se com a
formação de um movimento sindical paralelo àquele sindicalismo oficial no campo.
Conforme a autora,
[Um dos marcos é que] os sindicatos de trabalhadores rurais da Região Sul
reúnem-se em Chapecó – SC, em maio de 1984, organizando novas formas
138
de luta e propondo coordenações estaduais do que denominam ‘sindicato
combativo'. [...] É uma estrutura sindical diversa da atual, em pequenos
grupos, engaja todos, homens, mulheres e jovens; faz crescer a consciência
de classe; é mais autêntica que o próprio sindicato; é incompatível com a
autopromoção; as decisões do trabalhador é que definem os rumos da luta
(SCHERER-WARREN, 1987, p.44).
Entre meio das décadas de 1950 e 1960 vivia-se um período tenso, de
agitações sociais e de instabilidade política. Em 1961 o então presidente Jânio
Quadros renuncia e João Goulart assume a presidência do país. Diante do cenário
social e político já expresso – pelo menos parcialmente -, surge no estado do Rio
Grande do Sul o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), através da via
institucional, sob a direção do então governador do Estado, Leonel Brizola.
O campo se agitava. O Estado estava temeroso. Da sociedade
emanavam protestos contra a situação social e econômica e contra a onda de
avanço da ação internacional no país e de dependência externa, provocada pelas
políticas dos últimos governos. Em meio a esta turbulência e alegando perigo de
ruptura da ordem nacional, os militares organizam um golpe e tomam o poder em
1964, instalando a ‘ditadura militar’.
Todos os movimentos e lutas sociais, bem como sindicatos, partidos
políticos revolucionários e organizações da Igreja Católica Progressista – ligados à
Teologia da Libertação – sofrem dura repressão e são eliminados do cenário da
sociedade, retornando timidamente na segunda metade da década de 1970, quando
a ditadura começa a abrandar.
Muitos trabalhadores rurais, líderes dos movimentos e sindicatos,
militantes de partidos políticos são presos e torturados violentamente. Alguns são
assassinados e outros são exilados pelo Estado autoritário. As lutas sociais que
estavam em curso no cenário rural brasileiro sofrem um duro golpe e a possível
reforma agrária é adiada. Vivem-se anos de silêncio e de medo.
Por outro lado, há que se considerar que foi durante o período da
Ditadura Militar que o Estatuto da Terra foi criado. Nota-se com isto que
O golpe militar não desencadeia, portanto, a situação de conflito. Ao
contrário. O golpe e a política fundiária do Estado Militar golpeiam também a
luta camponesa, a revolta no campo. E trabalham para despolitizá-la. [...] O
que muda com a ditadura é o direcionamento militar e geopolítico do
conflito, como forma de circunscrever a luta dos trabalhadores rurais para,
ao mesmo tempo, com incentivos fiscais, a transformação do grande capital
em proprietário de terra (MARTINS, 1989, p.76).
139
Então, a pergunta que vem à tona é sobre os motivos que levaram o
Estado ditatorial, numa conjuntura totalmente adversa à conquista de direitos e à
efetivação da reforma agrária a fazê-la?
Ora, as causas desta aprovação podem ser encontradas na própria forma
pela qual ela foi pensada e divulgada pelo governo. A reforma agrária havia sido
apresentada como medida que, possivelmente ampliaria o mercado interno,
interessaria à própria burguesia, proporcionando um processo de transformação e
de
‘modernização
da
agricultura’30,
o
que
seria
imperativo
do
próprio
desenvolvimento capitalista (MARTINS, 1986).
Portanto, a ditadura militar conseguiu atenuar significativamente as lutas e
movimentos sociais no campo, quase que as levando à extinção, seja pela
truculência e violência com que foram perseguidos e combatidos os camponeses e
camponesas que lideravam os movimentos até aquele momento, seja pela via
institucional de uma reforma agrária proposta segundo os interesses da burguesia
nacional e sob os marcos do capitalismo desenvolvimentista internacional. Ou seja,
uma reforma agrária que vinha de cima, fruto dos interesses da classe burguesa
dominante e não da base camponesa, da classe trabalhadora.
No entanto, o tensionamento político repressivo e a conjuntura econômica
do país vão, gradualmente, ocasionando um desgaste do regime político autoritário,
que acaba perdendo sua sustentação já no final da década de 1970. É o momento
de ressurgimento dos movimentos sociais e da criação de novos.
Dadas as estratégias de imobilização dos movimentos sociais, utilizadas
no período inicial da ditadura, as primeiras mobilizações sociais camponesas e a
própria organização dos movimentos sociais começou a agregar forças em torno dos
direitos trabalhistas e do sindicalismo rural, para somente anos depois congregar
forças na direção da reforma agrária.
Destarte, aparecem inicialmente movimentos como o dos ‘Agricultores
Atingidos por Barragens’ (MAB) e o próprio ‘Movimento de Mulheres Agricultoras’
(MMA) – objeto desta investigação. O sindicalismo combativo adquire força política e
aparecem no cenário novos partidos políticos, bem como novas frentes de lutas
30
O processo de ‘modernização da agricultura’ marca o cenário do campo no Brasil, merecendo ser
aprofundado. Sugere-se para isso, consultar autores como ABRAMOVAY (1992), PAULILO (1989),
STROPASOLAS (2006), SILVA (2003), entre outros.
140
políticas, sociais e econômicas que unem diversos segmentos da sociedade,
assumindo como bandeira comum das lutas a ‘redemocratização’ do país.
Scherer-Warren (1993) salientava que entre os mais expressivos
movimentos sociais e formas de organização camponesa, surgidos em fins da
década de 1970 e posteriormente na década de 1980, estava o ‘Movimento de
Atingidos por Barragens’ a partir de 1976, com atuação nas regiões nordeste e sul; o
‘Movimento dos Sem-Terra’, a partir de 1979, com articulação principalmente na
região sul e sudoeste; e o ‘Movimento de Mulheres Agricultoras’, organizado a partir
de 1981, na região sul e logo se expandindo para outras regiões e estados. Segundo
a autora, “estes movimentos têm se influenciado reciprocamente e têm recebido o
apoio de uma corrente do sindicalismo no campo, denominada ‘novo sindicalismo’
ou ‘sindicalismo combativo’. Por outro lado, são os próprios movimentos que
também estimulam a renovação sindical” (SCHERER-WARREN, 1993, p.66).
Grzybowski (1991), em um estudo que marca o início dos anos 1990,
apontava que as relações sociais de produção e de propriedade são o foco central
dos movimentos sociais camponeses e que, portanto, é importante visualizá-los
enquanto grupos voltados, inclusive, para o fortalecimento da agricultura
camponesa. Neste sentido, esses movimentos conferem as suas ações um sentido
político que resulta das experiências acumuladas em vários outros pequenos
movimentos sociais, tais como as Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s e
Movimentos Sindicais, os quais estariam articulados às grandes lutas da classe
trabalhadora.
Scherer-Warren (1993) corrobora esta afirmação sobre a presença de um
sentido político nas ações dos movimentos sociais do campo, dizendo que as novas
formas organizadas no espaço rural valorizam a participação ampliada das bases, a
democracia direta e se opõem ao autoritarismo, à centralização do poder e ao uso
da violência física. Além disto, no conteúdo de suas lutas está a busca pela
ampliação do espaço da cidadania, incluindo-se aí a modificação das relações
sociais cotidianas. Para a autora, a maioria destes grupos pretende modificar o jogo
141
de relações de poder31 e, neste sentido, são entendidos como verdadeiros
movimentos sociais.
Foi neste contexto das lutas sociais no campo que, a partir das primeiras
experiências de organização e atuação política e social, surgiram e se ampliaram
alguns movimentos que apontaram para outras questões, além da terra, do salário
(direto) e da produção camponesa. Um desses movimentos é o Movimento das
Mulheres Agricultoras.
Seria errôneo, porém, entender que a presença de mulheres nas lutas
sociais no campo, no Brasil, seja recente. As lutas no campo já produziram mulheres
líderes do porte de Elizabeth Teixeira (das Ligas Camponesas), Margarida Maria
Alves (Presidente do Sindicato de Alagoa Grande, na Paraíba, assassinada em
1983), Maria Oneide Costa Lima (líder dos posseiros em São Geraldo, na
conflagrada região do Araguaia-Tocantins). Em todas as lutas as mulheres se fazem
presentes e empurram os próprios maridos: nas lutas de posseiros, dos sem-terra,
das barragens, de assalariados, de integrados (GRZYBOWSKI, 1991).
Afirmando a presença das mulheres nas lutas camponesas, o mesmo
autor constata o elemento que passa a configurar aquele momento da década de
1980, como um novo momento para as mulheres na história das lutas sociais no
campo: se antes elas participavam, fortaleciam e até mesmo ancoravam as lutas
gerais de homens e mulheres camponeses, a partir de então elas começaram a
fomentar um movimento com base nas suas questões enquanto mulheres
trabalhadoras rurais. “As reivindicações estão centradas no reconhecimento social e
legal de sua situação como mulheres e trabalhadoras: direito à sindicalização, à
terra, à previdência social etc.” (GRZYBOWSKI, 1991, p.47).
Assim, surgiram, em vários lugares do Brasil, diversos grupos de
mulheres trabalhadoras rurais: as Mulheres Trabalhadoras Rurais no Rio Grande do
Sul (1985), o Movimento das Mulheres do Brejo Paraibano (mesmo período), e
vários outros movimentos e manifestações do norte ao sul do país.
Segundo
Grzybowski
(1991,
p.48),
o
Movimento
das
Mulheres
Agricultoras surgiu como ‘movimento de base’ na região Oeste Catarinense e Norte
31
Adverte-se para o fato de que este conceito é desenvolvido por Michel Foucault, no livro “Vigiar e
Punir” (1975). A partir da década de 1980, passa a ser utilizado por muitos estudiosos em todo
mundo, principalmente das ciências humanas e sociais.
142
do Rio Grande do Sul, conhecida como região do Alto Uruguai. Suas lutas no
contexto inicial de mobilização estavam voltadas para
“A sindicalização das mulheres, seu direito à aposentadoria, direito à
assistência médica e à indenização por acidentes de trabalho. Surgiu em
Chapecó, em 1981, articulado à oposição sindical e adquiriu autonomia
como movimento desde fins de 1982. [...] Este movimento exigiu, também,
que no recadastramento eleitoral recente os juízes reconhecessem o direito
das mulheres de serem identificadas como ‘agricultoras’ e não ‘do lar’”.
Enfim, aparece o Movimento de Mulheres Camponesas no cenário
brasileiro, desenvolvendo-se, fortalecendo-se e firmando-se no contexto social e
político nacional, para surgir em seguida em outros países, aonde suas ações
chegaram via a atuação em rede, através da Via Campesina.
É desta forma que se constitui a realidade do campo, sendo seus
contornos dados pelos próprios indivíduos que nele vivem, trabalham e lutam. São
sujeitos de luta, sujeitos de garra e de presença e também por isso sujeitos de
direitos. Portanto, reitera-se que “o campo está prenhe de contradições e se agita de
muitas formas. Cruzam e se entrecruzam lutas. Emergem sujeitos sociais de muitas
caras, impondo a sua conflituosa presença, exigindo o reconhecimento de seus
direitos” (GRZYBOWSKI, 1991, p.49).
TERCEIRA SEÇÃO
Para além das discussões conceituais, a abordagem dos movimentos
sociais sob o ponto de vista de sua interação dialética na sociedade
Nesta seção do estudo serão apresentadas questões que abarcam –
sinteticamente - os elementos constituintes dos movimentos sociais, através de seu
pensar, discutir, organizar, mobilizar e agir. São estes elementos que juntos vão
formando as tramas do tecido identitário, o qual permite reconhecer não somente as
suas similaridades, mas também suas especificidades.
143
2.3.1 Sobre a criação de novas relações sociais: participação e democratização
como estratégias dos movimentos sociais
Os movimentos sociais sempre estiveram imersos no cotidiano da
sociedade, ora compartilhando e ora – fundamentalmente - contestando valores,
princípios, comportamentos e reflexões. Na contemporaneidade não seria diferente,
visto que se configuram como um dos elementos que constituem a sociedade civil,
portanto necessariamente interagem com os outros elementos dentro dela, bem
como com aqueles que se configuram numa outra esfera, como, por exemplo, o
Estado.
Embora esta interação seja permanente, as formas de se relacionarem
diferem de período para período, tendo em vista o desenvolvimento das forças
econômicas, políticas, sociais e culturais. Portanto, haveria um movimento
permanente de transformação, no qual agem os movimentos sociais tanto como
agentes, quanto como sujeitos desta transformação. Provém daí o caráter de
transitoriedade dos movimentos sociais, que ora é abrandado e ora é aguçado
dentro desta dinâmica.
Considerando isto e também a reflexão elaborada em parágrafos
anteriores, de que o momento de transição para o novo milênio traz as marcas de
uma transformação incerta, denominada, por isso, de ‘transição para o novo
desconhecido milênio’, afirma-se que os movimentos sociais têm a possibilidade de
exercer um papel nunca antes visto, nem mesmo nos tempos de reabertura
democrática.
Esta possibilidade de exercer papel preponderante se dá justamente pelo
clima de instabilidade econômica, de descrença na governança do Estado e de falta
de referências para a vida em sociedade de forma geral, visto que aumentam cada
vez mais a violência, o autoritarismo, a defesa apenas de interesses pessoais, a
competição e o desrespeito com a alteridade nas relações sociais.
Por conseguinte, neste momento em que parece ocorrer uma ausência de
direcionamento para a sociedade ampla, o aprofundamento das estratégias de ação
dos movimentos sociais, segundo os princípios e valores baseados na democracia,
144
na participação, na cidadania, na justiça social e nos Direitos Humanos, pode
preencher esta vacância.
Tomando o Movimento de Mulheres Camponesas como exemplo, afirmase que isto seria possível por reconhecer que nas suas práticas cotidianas estes
elementos estão presentes, marcando inclusive a sua identidade. A socióloga
Scherer-Warren confirma isto ao dizer que nos movimentos sociais
Valoriza-se a democratização interna, destacando-se a crescente
participação de mulheres e jovens, o uso da democracia direta através de
decisões em Assembléias e a participação de todos nas diversas comissões
de trabalho. Valoriza-se também a autonomia relativa dos movimentos em
relação ao Estado e partidos, [...] e ainda a resistência ativa não-violenta
(SCHERER-WARREN, 1993, p.73).
Mas o que os movimentos sociais deverão fazer para concretizar esta
interferência positiva junto à sociedade? Quais espaços de interação são possíveis?
Alvarez, Dagnino e Escobar (2000 e 2002) oferecem as respostas ao
tratar sobre os espaços de participação da sociedade civil, tais como os conselhos
de direitos, e neles inserir a participação dos movimentos sociais. Ora, pois, estes
são espaços ainda recentes e, portanto, em construção, mas que guardam grande
potencialidade no que se referem à participação efetiva, ao pleno exercício da
cidadania e a materialização da democracia no novo, ainda ‘desconhecido’, mas já
‘possível’ milênio.
Neste sentido, em relação à participação da sociedade civil em espaços
de decisão política, tais como os conselhos gestores de políticas, as conferências
temáticas ou os espaços do ‘orçamento participativo’ - OP, Dagnino (2002, p.284),
argumenta.
A característica central da maior parte dos espaços estudados – seu
envolvimento com políticas públicas, seja na sua formulação, discussão,
deliberação ou execução – exige, quase sempre, o domínio de um saber
técnico especializado do qual os representantes da sociedade civil,
especialmente dos setores subalternos, em geral não dispõem. [...] Além
desse, outro tipo de qualificação se impõe, o que diz respeito ao
conhecimento sobre o funcionamento do Estado, da máquina administrativa
e dos procedimentos envolvidos.
Nota-se que neste início de experiência da efetivação dos espaços de
participação, há muitos desafios a serem superados, sendo um deles a própria
formação política e técnica dos representantes da sociedade civil. Embora os
movimentos sociais gozem vantagem em relação a vários outros grupos da
145
sociedade civil, no que tange à formação política, também enfrentam dificuldades
em relação à formação técnica. Esta preocupação se agrava ainda mais quando se
percebe que o principal veio de formação para os movimentos sociais na década de
1980 e parte de 1990 vinha da Igreja Católica em seus quadros originários da
Teologia da Libertação, os quais desde o segundo período da década de 1990 saem
em veloz retirada, tendo em vista o fugaz retorno ao conservadorismo religioso da
Igreja, que partiu do Vaticano e rapidamente atingiu todo o mundo.
Sobre o acompanhamento da Igreja e a formação de lideranças, Ribeiro
(1998, p. 61) aponta que “o vazio deixado no lugar do trabalho desenvolvido pelas
assessorias ligadas às pastorais populares foi ocupado pelas organizações nãogovernamentais, cuja atuação ainda não é suficientemente conhecida”.
Ainda sobre a participação da sociedade civil, mas já no que se refere à
publicização das demandas como forma de tensionamento do Estado por parte da
sociedade civil, tendo em vista a conquista e efetivação de direitos, Dagnino aponta
(2002, p.296) que
A participação da sociedade civil na publicização de um enorme número de
demandas de direitos tem alterado a face da sociedade civil brasileira ao
longo das duas últimas décadas. O fato, inquestionável, de que essas
demandas encontrem escasso abrigo nas políticas públicas do Estado não
deve obscurecer o avanço que a sua publicização e legitimação no âmbito
societal significam.
Neste sentido, reforça-se a necessidade de uma atuação que também
esteja voltada para o exercício do controle social por parte dos movimentos sociais,
o qual passará, inclusive, pela via da publicização das demandas e, junto destas, a
publicização das lutas agregadas e das formas de repressão sofridas pelos
movimentos, através do Estado, o qual indiscutivelmente ainda permanece sob o
jugo do capital e sob o comando de uma minoria burguesa e latifundiária.
Uma atuação voltada para a publicização da luta política na América
Latina, faz com que os possíveis projetos alternativos de democracia sejam
visibilizados pela sociedade em geral e pelos Estados Nacionais, conferindo
relevância neste cenário aos movimentos sociais que desempenham, neste sentido,
um papel crítico. (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000).
Diante disto tudo, é impreterível que os movimentos sociais agreguem às
suas práticas democráticas, a sua participação em espaços de controle social e à
146
publicização das demandas, o reforço do conceito de cidadania em seu sentido
pleno.
Isto se torna cada vez mais urgente, pois num cenário de globalização e
de políticas de ajuste neoliberal o que se percebe é que
Enquanto a sociedade civil é obrigada a assumir responsabilidades sociais
evitadas agora pelo Estado neoliberal em processo de encolhimento, sua
capacidade como esfera política crucial para o exercício da cidadania
democrática está cada vez mais desenfatizada. Nessa concepção, os
cidadãos devem fazer-se por seus próprios esforços particulares e a
cidadania é cada vez mais equiparada à integração individual no mercado
(ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.16).
É contra esta concepção de cidadania - que remete à ‘responsabilização
dos indivíduos sociais’ - preconizada pelos organismos internacionais e adotada pela
maioria dos Estados Nacionais latino-americanos, e difundida pelos meios de
comunicação social como única forma de sobrevivência das sociedades, através do
discurso de ‘faça sua parte’, que os movimentos sociais devem se posicionar.
Acredita-se que isto é possível, dado que a fala da maioria dos movimentos sociais –
de perspectiva crítica – pronuncia-se na direção de
Uma concepção alternativa de cidadania, que vê as lutas democráticas
como contendo uma redefinição não só do sistema político, como também
das práticas econômicas, sociais e culturais que possam engendrar uma
ordem democrática para a sociedade como um todo. [...] O campo de ação
das lutas democratizantes se estende para abranger não só o sistema
político, mas também o futuro do “desenvolvimento” e a erradicação de
desigualdades sociais tais como as de raça e de gênero, profundamente
moldadas por práticas culturais e sociais (ALVAREZ, DAGNINO e
ESCOBAR, 2000, p.16).
Sob este enfoque de cidadania e de lutas políticas foi que os movimentos
sociais exerceram papel fundamental na conquista de direitos sociais e de políticas
públicas. Portanto, se já naquele período de reabertura democrática, muitos
movimentos não somente conseguiram reverter suas agendas em políticas públicas,
expandindo as fronteiras da política institucional, como alcançaram significativas
redefinições das noções convencionais de cidadania, representação política,
participação e democracia, acredita-se que hoje poderão fazer ainda mais
(ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000).
Portanto, na construção do cotidiano dos indivíduos e dos movimentos
sociais, são fortalecidas as lutas sociais e, com elas, a democracia, a participação e
o exercício da cidadania como identidade dos movimentos.
147
2.3.2 Sobre ‘os movimentos de mulheres’ e a ‘participação das mulheres’ nos
movimentos sociais – iniciativa, autonomia e participação - construindo as
relações sociais de gênero
É mais freqüente dar visibilidade às lutas dos diversos movimentos de
mulheres, do que conferir visibilidade para as mulheres dentro dos movimentos que
congregam a participação não sexista ou misto, isto é, constituído por homens e
mulheres. Este é um dos motivos pelos quais muitas mulheres deixam de participar
de movimentos sociais não sexistas, para participar de movimentos constituídos
apenas por mulheres. Além de conseguir maior visibilidade, para suas questões e
lutas, conseguem maior possibilidade de participação dentro dos próprios
movimentos. Neles as mulheres sentem que suas necessidades e demandas são
constituintes das pautas de reivindicação e lutas, o que não aconteceria em
movimentos mistos.
Muitos elementos compõem esta situação: a possibilidade de expressar
seu pensamento, de fazer uso da palavra, de conseguir sentir-se à vontade e em
condições de elaborar proposições, o sentimento de igualdade em meio à
diversidade de outras mulheres companheiras de movimentos, são alguns dentre
vários outros elementos que possibilitam às mulheres a participação efetiva,
segundo
princípios
democráticos,
nos
movimentos
de
mulheres
na
contemporaneidade.
Ao iniciar este assunto, é interessante ter presente que os movimentos de
mulheres no Brasil não datam de épocas recentes, muito embora a configuração
atual o seja, visto que se transformaram durante a trajetória histórica, frente aos
processos ocorridos não somente no Brasil, mas em todo mundo ocidental
capitalista.
Reconhecendo esta transformação e sua principal causa – as
transformações capitalistas -, pode-se distinguir também um tradicional e um novo
caráter dos movimentos sociais de mulheres a partir da década de 1970. Segundo
Scherer-Warren (1987, p.46)
148
[...] O primeiro mais reivindicativo e o segundo mais autônomo. [...] A partir
da década de 1970, começa-se a organizar movimentos feministas com um
novo caráter: libertários. Esses movimentos não almejam apenas igualdade
de condições femininas e masculinas no sistema atual. Lutam por uma
sociedade modificada, onde mulheres e homens serão diferentes.
Ora, fica evidente, nesta contribuição da autora, a existência de
elementos das relações humanas que se transformam em pontos de reivindicação
dos movimentos de mulheres, os quais passam a integrar sua bandeira de luta. Por
conseguinte, é indispensável apontar que – de forma geral - o pensamento feminista
sempre fez uso de conceitos de utopias libertárias tradicionais, tais como: opressão,
liberdade, igualdade, justiça, emancipação, solidariedade, poder e dominação.
Entretanto os movimentos de mulheres, principalmente aqueles da fase
atual, inovaram através de uma visão mais radical, ao considerar que “a
transformação social, como parte da libertação final da mulher, mudará todas as
relações humanas para melhor. Embora centralmente sobre mulheres, o feminismo
é, também, fundamentalmente sobre os homens e sobre a mudança social”.
(EISENSTEIN, 1984, apud SCHERER-WARREN, 1993, p.29).
Embora se perceba de que existe neste momento a garantia de que
vigora na organização, manifestação e lutas dos movimentos sociais o caráter
democrático, participativo, de igualdade e de justiça social, há também o
compromisso de que a transformação societária, bandeira dos movimentos, contém
todos esses valores. Aqui residiria o nexo entre a reivindicação pela igualdade de
gênero e aquela pela construção de uma nova ordem societária. Ambas são
‘decorrentes’ e, ao mesmo tempo, são ‘requisitos’ uma da outra, pois haveria um
movimento dialético entre elas, que possibilitaria avanços até atingir, um dia, o
horizonte utópico. Sendo assim, nem uma e nem outra teriam maior ou menor
prioridade, pois são consideradas como elementos constituintes e indispensáveis da
mesma luta social.
Com este perfil histórico e trajetória de lutas, adentram no cenário
nacional os novos movimentos sociais de mulheres no Brasil. Segundo Maria Lúcia
de Carvalho da Silva, a partir da década de 1970,
É indispensável assinalar que os movimentos sociais, no Brasil como na
América Latina, trouxeram à cena política, de forma majoritária, a
participação das mulheres, especialmente como demandatárias de
reivindicações populares por melhorias e serviços coletivos. Elas estão
mudando com sua participação, forte e decidida, muitos valores e
149
comportamentos entre os sexos na cultura popular brasileira (SILVA, 2001,
p.33).
Maria da Glória Gohn (1995), em seu livro “História dos movimentos e
lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros”, ao fazer um mapeamento
dos movimentos, lutas sociais e ações coletivas, desde o século XVI até o século
XX, enfatiza que os mesmos não só marcaram períodos, lugares e fatos, mas
construíram a história do Brasil. É nesta história construída pelos movimentos que
pode ser encontrado o Movimento de Mulheres Camponesas, que no seu
surgimento denominava-se Movimento de Mulheres Agricultoras.
Embora nesta obra Gohn (1995) não faça referência direta ao Movimento
de Mulheres Camponesas, seu surgimento acontece no contexto histórico que a
autora denomina de ‘fase das lutas pela redemocratização’, que se estende de 1975
a 1982. Nas suas palavras,
Corresponde a uma fase de resistência e enfrentamento ao regime militar,
que já perdera sua base de legitimidade junto à sociedade devido à crise
econômica que se esboçava desde 1973 com a chamada crise do petróleo,
a retomada vagarosa da inflação, o desmonte das facilidades do paraíso do
consumo das classes médias. [...] Havia um clima de esperança, de crença
na necessidade de retomada da democracia, da necessidade da
participação dos indivíduos na sociedade e na política. Havia também a
crença na força do povo, das camadas populares, quando organizadas,
para realizarem mudanças históricas que outros grupos sociais não tinham
conseguido realizar no passado (GOHN, 1995, p.111).
Se o marco oficial de surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras
é atribuído ao “[...] dia 28 de maio de 1983, no salão comunitário do Distrito de
Itaberaba, quando 28 mulheres se reuniram e formaram um núcleo, que seria a
primeira célula de sua organização enquanto mulheres agricultoras” (KROTH, 1999,
p.71), os ‘germes’ deste surgimento já estavam presentes no período das lutas
sociais que marcaram os anos finais da década de 1970 e início de 1980.
Através da participação nas discussões políticas do sindicalismo
combativo que estava sendo construído na região oeste de Santa Catarina,
identificado como ‘sindicalismo de oposição’, as mulheres agricultoras foram
conquistando o direito a ter voz, a se manifestar, a reivindicar seu direito de
participar de forma direta com seu voto.
É importante rememorar que se vivia o período, marcado por Gohn (1995,
p.123) como “época da negociação e a era dos direitos”. O cenário das lutas sociais
que anteriormente tinha como foco central a questão da classe operária, a partir
150
deste momento começa a incorporar a atuação de movimentos e lutas sociais com
diversos temas e nos diversos âmbitos. Em meio às críticas de que os movimentos
sociais teriam a bandeira mobilizadora do socialismo, percebe-se que “[...] ao lado
das lutas sindicais, surgirão novos movimentos sociais, de luta contra as
discriminações aos negros, às mulheres, aos homossexuais e outras minorias”
(GOHN, 1995, p.156). Esta fala guarda conexão direta com o surgimento do MMC
em Santa Catarina, visto que é da participação em um grupo que organizava a frente
de oposição do sindicato dos trabalhadores rurais da região, que vai surgir o MMC.
Havia um novo perfil que conformava grande parte dos movimentos
sociais que antes tinha origem nas entidades político-partidárias de esquerda, dos
sindicatos de oposição, das instituições religiosas ligadas à Teologia da Libertação e
outras. Agora eles, pouco a pouco, iam se tornando pluriclassistas, passando a
receber muitas vezes o apoio e a participação das camadas médias da população.
Para alguns estudiosos isto é bom, pois faz parte do pluralismo que deve figurar na
sociedade. Para outros isto é ruim, pois retira parte de sua identidade enquanto
movimento de classe, interferindo nas lutas em cujos interesses começam a divergir
entre uma e outra classe.
Entretanto, nem todos os movimentos sociais caminham na direção da
pluralidade de classe. Muitos deles, principalmente aqueles ligados ao campo,
persistem na linha da identidade de classe e a partir dela na contestação política ao
Estado e à sociedade capitalista neoliberal. É o caso do Movimento de Mulheres
Camponesas. Mesmo num cenário contrário aos questionamentos e protestos que
envidam contra o capitalismo e o Estado, assume-se como representante da classe
trabalhadora camponesa e consegue persistir na afirmação de seus princípios e
ideais, através da organização, formação política, manifestações e lutas.
Então, contrariando os críticos dos movimentos sociais da década de
1990, a identidade do MMC continua sendo fortalecida enquanto um movimento da
classe trabalhadora, constituído essencialmente pelas mulheres, considerando a luta
pela justiça e igualdade de gênero, primando pela autonomia do Movimento frente
aos Partidos Políticos e Sindicatos e pelo protagonismo das mulheres camponesas,
tendo como horizonte utópico as lutas cotidianas na direção do ‘socialismo’.
151
Pode-se, portanto, afirmar que este é um dos Movimentos Sociais que
mesmo diante dos limites e desafios colocados pela sociedade capitalista
competitiva e excludente, não abre mão dos valores e princípios que o orientou
desde o surgimento, tornando-se um dos Movimentos Sociais através do qual é
possível discutir a questão da autonomia.
2.3.3 Sobre os movimentos sociais na cotidianidade e o surgimento da cultura
política como desafio atual
Ao tratar da relação entre cultura e política nos movimentos sociais latinoamericanos, Alvarez, Dagnino e Escobar, (2000), trazem a discussão para o campo
que vai desde a identidade dos movimentos sociais, até as novas formas de atuação
coletivas, muitas das quais protagonizadas em rede.
Neste sentido, indicam que se vive um momento de transformação, ao
mesmo tempo realizado e vivido pelos movimentos sociais em sua grande parte, no
qual há uma passagem da cultura – no sentido amplo - para a política cultural – no
sentido estreito do laço constitutivo entre cultura e política, processo no qual o
cultural se torna fato político – e, processualmente da política cultural para a cultura
política de grupos sociais, da população e do povo.
Este último movimento acontece através das inferências que a política
cultural opera na construção da cultura política de um povo, sendo esta
compreendida como a ‘formação’ específica de cada sociedade, sobre o que se
concebe como política.
As políticas culturais determinam fundamentalmente os significados das
práticas culturais, tendo vínculo direto com o exercício do poder e, reciprocamente,
coma resistência a ele. Já a cultura política é resultante de vários elementos na
conformação cultural de um povo, inclusive do elemento constituído pelas políticas
culturais, no sentido dos modos de fazer e difundir a cultura. Devido a tudo isto é
que Alvarez, Dagnino e Escobar são contundentes em afirmar que
As políticas culturais dos movimentos sociais tentam amiúde desafiar ou
desestabilizar as culturas políticas dominantes. [Neste sentido,] devemos
152
aceitar que o que está em questão para os movimentos sociais, de um
modo profundo, é uma transformação da cultura política dominante na qual
se movem e se constituem como atores sociais com pretensões políticas
(ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.26).
Desta forma, reitera-se os autores quando estes defendem que os
movimentos sociais, ao atuarem nas sociedades – também – através da política
cultural que lhes é própria, contribuem para a construção de uma cultura política
associada à concepção de cidadania, igualdade, democracia, participação, entre
outras concepções, as quais são significadas e re-significadas a partir dos valores e
vivências cotidianas dos movimentos sociais e dos indivíduos que os constituem.
Sader (1988, p.20) também corrobora com a idéia, ao dizer que
Ao observarmos as práticas desses movimentos, nós nos damos conta de
que eles efetuaram uma espécie de alargamento do espaço da política.
Rechaçando a política tradicionalmente instituída e politizando questões do
cotidiano dos lugares de trabalho e de moradia, eles “inventaram” novas
formas de política. Mas a história dos movimentos sociais não é apenas a
sua história interna. Os trabalhadores são o resultado não somente de suas
próprias ações, mas também de sua interação com outros agentes.
Portanto, esta é mais uma das dimensões pelas quais os movimentos
sociais operam para a transformação da sociedade na atualidade. Ela está
diretamente relacionada com o que alguns autores, como Marlene Ribeiro (1998),
identificam como ‘caráter pedagógico’ dos movimentos sociais, dado que este último
é profundamente constituído pelo político e pelo cultural destes movimentos, em
sentido amplo.
Mas atenção, ao elaborar este nexo, deve-se tomar como fundamento a
idéia de que “ao explorar o político nos movimentos sociais, devemos ver a política
como algo a mais que um conjunto de atividades específicas (votar, fazer campanha
ou lobby), que ocorrem nos espaços institucionais claramente delimitados, tais como
parlamentos e partidos”, embora elas também constituam o conjunto das práticas
dos movimentos na atualidade. “Ela deve ser vista como abrangendo também lutas
de poder realizadas em uma ampla gama de espaços culturalmente definidos como
privados, sociais, econômicos, culturais entre outros” (ALVAREZ, DAGNINO e
ESCOBAR, 2000, p.29).
Este fazer ‘político’ dos movimentos sociais está presente em todas as
suas práticas, desde a reflexão até a concretude de suas ações. Já o fazer ‘política’
se manifesta, como expresso pelos autores citados anteriormente, em vários
153
âmbitos que não somente aqueles institucionalizados. Isto reveste suas práticas de
um significado e importância especiais, dado que através delas os movimentos
sociais vão agindo, continuamente, de forma direta e indireta, para a construção da
cidadania e da democracia social – elementos fundamentais para a sociedade que
almejam construir e para o momento presente dos grupos e classes sociais
subalternos.
Não distante disso,
Alvarez sustenta que as demandas, discursos e práticas políticas, bem
como as estratégias políticas e de mobilização de muitos movimentos
sociais atuais estão amplamente espalhadas, às vezes, de modo invisível,
pelo tecido social, com suas redes político-comunicativas atingindo
parlamentos, a academia, a Igreja, os meios de comunicação e assim por
diante (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.36).
A partir das considerações sobre a difusão da cultura e da política dos
movimentos sociais, pretende-se chamar a atenção para duas dimensões daquilo
que pode ser considerada como ‘ a atuação em rede’ destes movimentos.
Uma delas diz respeito ao que Alvarez (apud ALVAREZ, DAGNINO e
ESCOBAR, 2000) aponta como forma “invisível” de atuação: as interferências nas
mudanças que os movimentos sociais vão gerando nos modos de pensar e agir das
instituições e dos indivíduos que compõem a sociedade. Também diz respeito à
forma pela qual as agendas, reivindicações e lutas de um movimento social vão se
disseminando e entrecruzando com as de outros movimentos, construindo-se aos
poucos pautas e lutas coletivas. Seu significado seria o de que as práticas dos
movimentos sociais vão minando o modo de ser da sociedade, se alastrando
invisivelmente de modo a operar na direção da transformação social.
Outra dimensão remete à atuação direta em redes de movimentos
sociais, termo mais usual nos atuais estudos. Observa-se, hoje, a constituição de
várias redes de movimentos sociais, que se congregam desde o nível local,
chegando até o nível internacional. Nessas redes são discutidos os objetivos
comuns, pautas e estratégias de ação, são organizadas e efetivadas ações, que
extravasam o nível interno dos movimentos e, freqüentemente o nível local das
manifestações, chegando ao nível amplo das manifestações compartilhadas por
diversos movimentos sociais, os quais passam a se congregar em forma de rede de
atuação política, cultural e social.
154
Slater (2000) insere esta discussão sobre as novas formas de atuação e
de relacionamento ‘dos e entre’ os movimentos sociais, na esfera da teoria política
social e no contexto de interpretação dos movimentos sociais, situando-a como uma
questão relativa à dialética entre interior e exterior dos movimentos sociais.
Para ele, esta é uma questão difícil, pois a maioria dos estudiosos sobre
movimentos sociais visualiza a situação de forma cristalizada, como se existisse
uma fronteira intransponível entre a interioridade dos movimentos – o mundo da
comunidade, participação, moralidade, responsabilidade democrática, obrigações e
direitos e fidelidades - e sua exterioridade – os mundos alternativos de estrangeiros,
dos acasos, dos princípios externos e das imoralidades incertas. Não haveria
permeabilidade entre esta fronteira e tudo que a transgredisse seria considerado
como ameaça de anarquia e de destruição do próprio movimento.
Na sua concepção dialética, Slater (2000, p.520) afirma que “a política
moderna é uma política espacial”. Para ele “é óbvia a importância de ligar o interior e
o exterior, de ver o global, o regional e o local como intimamente entrelaçados, em
vez de mundos separados e desconectados”.
Neste sentido, organização e participação dos movimentos sociais em
redes assume a perspectiva de totalidade, permitindo construir nexos entre os
contextos, situações e realidades, as quais, resguardadas as particularidades, tocam
a sociabilidade ampla, dado que compõem um cenário geral que partilha os efeitos
de um capitalismo financeiro, globalizado e neoliberal. A constatação deste
entrelaçamento do marco situacional, também possibilita entrelaçar mobilizações,
manifestações e lutas sociais, congregando a uma só voz as questões comuns e
reforçando aquelas relacionadas às especificidades.
Para Slater (2000, p. 524), é necessário estar atentos à dinâmica ampla
do entrelaçamento – em redes – entre o interior e o exterior, pois ela “varia bastante
entre os próprios movimentos, assim como os graus de conexão entre os diferentes
tipos de luta no interior de uma mesma sociedade”.
Já Alvarez, Dagnino e Escobar (2000, p.37) inserem uma nova expressão
na discussão sobre a ‘atuação em rede’. Para eles, esta atuação remete à
construção de “teias de movimento social”. Nas suas palavras, “o termo transmite o
aspecto intrincado e precário dos múltiplos laços e imbricações, estabelecidos entre
155
organizações dos movimentos, participantes individuais e outros atores da
sociedade civil e o Estado”.
Quando construídas, as ‘teias dos movimentos sociais’ passam a
congregar / apoiar um ou mais objetivos dos movimentos particulares, auxiliando na
difusão de seus discursos e demandas, agindo de dentro e também contra as
instituições e culturas políticas dominantes.
Em relação aos movimentos sociais do campo, é impossível não inferir
sobre a construção da ‘via campesina’, que, de forma sintética, é uma rede mundial
de movimentos sociais, que tem como objetivo primeiro a luta pela democracia, pela
igualdade e pela justiça social no campo. Mais adiante, se retornará a esta questão
da rede / teia de movimentos sociais camponeses para maior aprofundamento.
Diante dessas considerações, entende-se que uma avaliação adequada
dos movimentos sociais - principalmente no que se refere à articulação, organização
e impactos - exige um aprofundamento da ‘teia de relações’ que conseguiram
construir e o que esta representou para a materialização de seus objetivos e difusão
de seus valores, princípios e ideais. Ou seja, “quando examinamos o impacto dos
movimentos, devemos avaliar a extensão em que suas demandas, discursos e
práticas, circulam de modo capilar, como numa teia, em arenas institucionais e
culturais mais amplas” (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p.37).
2.3.4 Sobre os movimentos sociais enquanto formuladores de políticas e
construtores de cultura
A
mesma
corrente
de
pensadores
que
defende
a
‘crise
e
desaparecimento dos movimentos sociais’ que teria se iniciado na década de 1990,
defende que eles teriam desempenhado um papel menor no processo de
redemocratização, cujo auge se deu em meados de 1985.
Apesar da ampla difusão da relação histórica no Brasil entre os
movimentos sociais e o processo de redemocratização do país, “a contribuição real
ou potencial [dos primeiros] para a expansão e o aprofundamento da democracia foi
questionada”, tanto por alguns analistas dos movimentos sociais, quanto por parte
156
do próprio corpo político institucional. Esta contestação é rebatida por Dagnino, que
defende que “os movimentos sociais no Brasil contribuíram para dar novo significado
às relações entre cultura e política em suas lutas pela democratização” (DAGNINO,
2000).
O argumento da autora - composto por três idéias – é o de que, em
primeiro lugar, “os movimentos sociais desenvolveram uma concepção de
democracia que transcende os limites tanto das instituições políticas enquanto
tradicionalmente concebidas, como do modelo das “democracias realmente
existentes”. Segundo ela, “o traço distintivo desta concepção [...] é que sua
referência básica, mais do que a redemocratização do regime político, é a
democratização da sociedade como um todo” (DAGNINO, 2000, p.80).
Em segundo lugar, “a operacionalização dessa concepção de democracia
está sendo levada adiante por meio de uma redefinição da noção de cidadania e de
seu referente central, a noção de direitos”. Já a terceira idéia que funda o argumento
da autora, é o de que “essa ênfase na sociedade não implica, uma recusa da
institucionalidade política e do Estado, mas, ao contrário, implica uma reivindicação
radical de sua transformação” (DAGNINO, 2000, p.81).
Seguindo a tese32 de que os movimentos sociais trazem implicações para
o campo político-cultural das sociedades, parece evidente de que contribuíram para
a produção de um cenário político, cultural e social que colaborou para o
desencadeamento do processo de redemocratização, bem como foram um dos
principais atores coletivos daquele período que, com suas manifestações e
protestos, intensificaram e aceleraram o andamento de tal processo.
Além disso, tomando em consideração que toda e qualquer mudança no
campo da cultura política não ocorre apenas num momento isolado, mas permanece
conformando os valores políticos - neste caso - da sociedade, até que
processualmente ocorram novas transformações culturais, é possível atribuir aos
movimentos sociais a participação direta e indireta nas ocorrências políticas do início
da década de 1990, tal como o processo de cassação e impeachment do então
32
Ver considerações de ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, no artigo “O cultural e o político nos
movimentos sociais latino-americanos” (2000). Referência completa no final da dissertação.
157
presidente Fernando Collor de Mello (1992), que havia sido eleito durante o primeiro
pleito com eleições diretas para presidente, depois da quebra do regime militar.
Apesar daquele movimento – denominado de ‘movimento das caras
pintadas’ – ter tido caráter popular e não social, muitos dos indivíduos que o
protagonizaram constituíam-se também como atores coletivos, já que militavam nos
mais diversos movimentos sociais que vigoraram no cenário público brasileiro
durante o período de redemocratização. Para efeitos desta investigação, ao adentrar
na trajetória histórica do Movimento de Mulheres Camponesas, fica clara a presença
das mulheres neste cenário de protesto político, compondo forças com vários outros
movimentos.
Como afirma Dagnino (2000) em um de seus argumentos, o processo de
redemocratização não pode ser considerado somente a partir das transformações na
institucionalidade
política
do
Estado.
Para
além
desta,
o
processo
de
redemocratização significou a ocorrência de mudanças nos parâmetros de
cidadania, participação e democracia, ou seja, mudanças que atingem o epicentro
da cultura política de uma sociedade, as quais não teriam acontecido com este
mesmo sentido sem a atuação dos movimentos sociais.
Portanto, nesta perspectiva de análise, ao concordar com a autora sobre
a importância dos movimentos sociais como elementos que contribuíram para o
processo de redemocratização do país, recusa-se a idéia que minimiza o potencial
de atuação política e cultural dos movimentos sociais – especialmente do MMC,
objeto principal desta investigação – tanto nos espaços da sociedade ampla, quanto
frente às transformações operadas diretamente na esfera política – institucional dos Estados.
Alinhavando as seções deste capítulo: algumas palavras sobre os movimentos
sociais: dos estudos aos desafios encontrados hoje no cenário brasileiro
Antes de tudo é imprescindível dizer que se buscou fazer um mergulho no
tema dos ‘movimentos sociais’, na ótica teórica, histórica, conceitual e de
experiências contadas. Uma imersão na vida de indivíduos sociais e atores coletivos
158
que colaboraram para a construção - cada qual do seu jeito, embora estivessem
juntos e compusessem o mesmo contexto – da história do povo e da nação
brasileira.
Sobre esta imersão, alguns pontos serão salientados, ainda que todos
mereçam destaque. Em primeiro lugar, deve-se considerar que os movimentos
sociais são expressões sociais e políticas resultantes dos intercursos da sociedade
capitalista. Destarte, embora já adensados na sociedade, são expressões recentes
na história da humanidade, mas que, desde o seu aparecimento, configuraram-se
como elementos fundamentais para o movimento dialético da sociedade em geral,
uma vez que tencionam principalmente o Estado, mas também o mercado e os
demais elementos constituintes da sociedade civil, desafiando-os a atuar. Portanto,
são forças sociais significativas para o movimento da sociedade, tendo a
possibilidade de imprimir ações na direção de transformar e também de serem
transformados neste mesmo movimento dialético.
Em segundo lugar, a perspectiva teórica dos estudiosos brasileiros sobre
movimentos sociais é preponderantemente vinculada ao paradigma europeu. Isto se
explica por dois fatos principais: o primeiro deve-se à presença ainda tímida, ou
pouco reconhecida, dos movimentos sociais no cenário público da sociedade
brasileira, do início até meados da segunda década do século XX. O segundo referese ao fato de que será somente a partir deste mesmo período que começarão a
funcionar os cursos de pós-graduação na área das ciências sociais, através dos
quais seria possível o desenvolvimento de teorias e de um paradigma teórico
próprio. Não obstante, é preciso reconhecer a riqueza de produções – tanto em
termos de qualidade de abordagem, quanto em termos de quantidade de
publicações – que já existe no campo científico brasileiro.
Em terceiro lugar, enfatiza-se que a característica de ‘tensionamento
político e social’ que os movimentos sociais trazem na sua identidade, faz com que
sejam colocados em ‘segundo ou terceiro, ou quarto plano’ nos meios de
comunicação, no que tange à publicização de suas agendas, lutas, reivindicações,
conquistas, enfim, de suas trajetórias sociais. É obvio que isso não poderia ser
diferente, tendo em vista que a maioria deles contesta a sociedade capitalista e as
políticas de Estado e de governo. Entretanto, há que se perguntar o que é possível
159
fazer para mudar esta situação, a qual é responsável por criar falsas imagens sobre
os movimentos sociais, colocando-os no papel de vilões na história da sociedade?
Um quarto ponto a ser ‘alinhavado’ remete à trajetória dos movimentos
sociais camponeses. Foi tornando-se cada vez mais evidente durante a
investigação, que desde o surgimento dos movimentos sociais no Brasil até o
presente momento, os movimentos sociais camponesas marcaram o cenário
nacional, posicionando-se intransigentes na luta pela conquista e defesa de direitos,
ora para o campo, ora para a sociedade em geral. Foi a partir de suas
manifestações, protestos e, muitas vezes, conflitos armados que o desenho atual
dos direitos e das políticas sociais para o campo foi construído.
Salienta-se ainda que, dentre as lutas camponesas a que mais tem fôlego
e ganha forças é a luta pela terra – propriedade, acesso e condições de trabalho.
Inclusive, que esta é uma das principais lutas contra o atual modelo econômico e
que é por isso que seu combate é feito de forma tão intensa pelo Estado burguês e
pelos próprios latifundiários, que fazem uso não somente da coerção, mas também
da repressão violenta, ocasionando muitas mortes e tragédias no campo.
No quinto e último ponto desta tarefa de alinhavar os elementos
conclusivos do capítulo, deseja-se destacar a importância e o significado histórico do
Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil - MMC. Sua trajetória, embora
recente, demonstra o nível de empenho e organização que as camponesas
militantes e dirigentes dedicam ao movimento. Sabe-se que várias conquistas de
direitos e políticas foram protagonizadas por elas, mesmo que isto ainda não esteja
registrado nas páginas das produções teóricas sobre os movimentos sociais no
Brasil.
No tocante à conquista de espaço público, o MMC recebe destaque por
ser um dos movimentos sociais que luta pela visibilidade política e social de suas
práticas, sem descuidar de seus valores, princípios e objetivos, os quais fazem parte
do cotidiano das mulheres camponesas, sendo cultivado por elas em seu dia-a-dia:
no trabalho, com a família, no grupo de base, nos momentos de mística, nas
Assembléias, nas campanhas e momentos de formação e, inclusive, nos momentos
de manifestações, protestos e lutas sociais.
160
Portanto, como resultado desta imersão no tema dos movimentos sociais,
feita neste capítulo, nota-se a construção de uma base teórica importante para
alcançar o objetivo desta investigação, qual seja ‘analisar a incidência da atuação do
MMC na esfera da conquista e garantia dos direitos e na efetivação de políticas
públicas para o campo no Brasil.
Permanecem deste capítulo várias indagações e vários desejos de
descobertas. Algumas caminham na direção da identidade deste movimento, outras
na direção dos direitos e políticas conquistadas e outras, ainda, seguem na direção
do protagonismo destas mulheres do MMC. Então o jeito é continuar na lida e
convidar para um novo mergulho, agora já no terceiro capítulo.
161
CAPITULO III
O MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL – DA
COTIDIANIDADE À CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia, [...]
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
[...]
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
Fragmento de “Morte e Vida Severina”
João Cabral de Melo Neto
162
Para início de conversa... algumas coisas precisam ser ditas!
Desde o início desta empreitada se teve clareza sobre a amplitude do
desafio proposto, ao se pretender desvendar a identidade do Movimento de
Mulheres Camponesas no Brasil, a partir da discussão sobre a cotidianidade, a
consciência, o particular e o genérico da humanidade, os indivíduos reais com suas
ações e condições materiais de vida.
Na verdade, a aceitação do desafio é o que motiva e encoraja a continuar
a caminhada, pois é ele que confere cores, cheiros, sabores e outras sensações ao
caminho e ao próprio caminhar. E, se é a partir da cotidianidade que o debate será
construído, é essa mesma cotidianidade que concede os cheiros, sabores e outras
sensações ao desafio, o que significa tomar emprestado, ao pensamento de Agnes
Heller (1989), a afirmação de que é na vida cotidiana que os sentidos são colocados
em funcionamento.
Parece importante destacar que o desafio não deixa de incitar para sua
superação e por isto tem sabor! Como já dizia o poeta Mario Quintana33: “se as
coisas são inatingíveis... Ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os
caminhos, se não fora a presença distante das estrelas!”
Pois bem, parte-se! Mas para não se sentir solidão na caminhada, foram
colocados na mala alguns mestres que têm importante papel para a empreitada
proposta. Ora! Que pretensão, dir-se-ia! Heller, Lukács e o próprio Marx! Sim, são
companheiros de caminhada, porém o desafio assumido é só nosso! Eles fazem
parte daquilo que desafia, motiva, concede sensações, promete conhecimentos
antes não acessados. Eles próprios configuram-se como ‘desafios’. Para esta
conotação de desafio não se almeja a superação - por não ser minimamente a
pretensão - mas sim, a conquista.
Inicialmente, o plano traçado para a caminhada tinha como horizonte
maior - como já dito - o desvendamento da identidade dos sujeitos da investigação
para elaboração da dissertação de mestrado: O Movimento de Mulheres
33
Sobre ‘As Utopias’ em seu poema Espelho Mágico.
163
Camponesas do Brasil - MMC. Entretanto, como se aproximar desse horizonte
continuava-se com a sensação de inquietude. Não se imaginava um caminhar que
permitisse apenas a percepção do processo de identificação dos sujeitos, mas que
revelassem, de forma geral, os processos que ocorrem com diversos sujeitos,
mesmo marcando o MMC como sujeito central neste momento de estudo. Qual seria
o plano mais significativo que possibilitasse isto? ... As indagações continuavam.
Até que, já no segundo semestre de mestrado e também do curso
‘Serviço Social: Identidade e Contemporaneidade’, ministrado pela Professora Dra
Maria Lúcia Martinelli aconteceu um instigante encontro com Agnes Heller e a sua
discussão sobre ‘o cotidiano’. Ora, o plano inicial parecia começar a se mover e
provocar novas perguntas investigativas. Eis que então se encontra a primeira
categoria: o cotidiano!
Mas como e o que é esse tal cotidiano? Como se estrutura a
cotidianidade? Existem outros elementos que precisam ser considerados? ... E a
resposta foi afirmativa. Foi-se adentrando no espaço da ‘consciência do ser
humano’, mas também de sua constituição enquanto ser particular-genérico; de suas
necessidades de integração sociais; dos aprendizados que surgem disto; do
processo de maturação do indivíduo para a vida em comunidade e dos elementos da
própria vida social, tendo sempre como pano de fundo a cotidianidade de Agnes
Heller. Assim, sutilmente foi se aproximando da dinâmica - que ora apenas se
aposta enquanto possibilidade de processo - que confere os contornos à identidade
dos sujeitos em questão: as mulheres camponesas mobilizadas e organizadas no
movimento social, o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil!
Feitas essas colocações, apresenta-se brevemente o conteúdo do
capítulo, já dizendo que este, ao contrário do segundo capítulo, será composto de
‘Seção Única’, pois a discussão apresentada aqui, centraliza-se num único tema de
análise: a matriz identitária.
Depois de iniciada a conversa e tendo dito os primeiros traços do plano
da caminhada, é necessário agora falar um pouco sobre estes sujeitos que - para
fins deste estudo - foram os artistas principais. Eis que então o primeiro passo –
compreenda-se primeiro item - ao iniciar a caminhada será dedicar um espaço
especial para falar destes sujeitos, ‘as mulheres camponesas em movimento’!
164
No passo seguinte – segundo item do capítulo - discute-se brevemente
sobre a cultura patriarcal e as relações de gênero no campo, as quais, de forma
transversal nas atividades do cotidiano, imprimem a identidade das mulheres e
homens camponeses de modo geral.
Tomado o contexto sobre o coletivo de que se tratará, no terceiro item
deste capítulo, partir-se-á para a análise de algumas das categorias já apresentadas
na introdução, para ao final chegar mais próximo do horizonte desejado: a
identidade dos sujeitos da investigação.
Eis que se parte!
165
SEÇÃO ÚNICA
Movimento de Mulheres Camponesas e a matriz identitária
3.1.1 Os movimentos sociais camponeses no Brasil e o Movimento de
Mulheres Camponesas
Brasil, final da década de 70’ e início de 80’, período de transição do
regime militar e ditatorial para o civil e democrático. É o momento de efervescência
dos movimentos sociais. Na cidade e no campo é época de reflexão crítica acerca
da realidade do país, de mobilização e participação popular para a defesa da
liberdade política e para conquista de novos direitos sociais. A Igreja, através de sua
linha mais crítica baseada na Teologia da Libertação, que se difundia rapidamente
por toda América Latina, colabora para esta mobilização através das Comunidades
Eclesiais de Base, as CEB’s. Surgem neste pré-caldo democrático, além de vários
movimentos sociais, também novos partidos de esquerda, dentre os quais o Partido
dos Trabalhadores.
No entanto, não é somente no contexto de conquistas sociais, de
participação e mobilização que se está envolvido. A realidade que se coloca é
também de uma assoladora crise financeira e fiscal em todo país e continente. No
campo, acrescenta-se ainda o contexto de concentração de terras, de políticas de
defesa dos latifúndios, do capital internacional e das agroindústrias, além de um
assustador empobrecimento do trabalhador rural que gera um movimento de
migração para as cidades, nunca observado antes em tamanha proporção. É o
acirramento da questão social no campo e, em conseqüência, o aumento do êxodo
rural.
Segundo Tavares (1992, p.09),
O descanso da terra é coisa do passado e agora a palavra chave é mais
produtividade. De novo, só os grandes proprietários são privilegiados. As
culturas de exportação têm todas as prioridades. A terra valoriza mais ainda
e ao agricultor sem posses resta amargar a cidade grande. Entre os anos
70 e 80 mais de 16 milhões de pessoas saíram do campo.
166
Mas este é também um período de ‘resistência camponesa’. E tal como
aconteceu na época de Canudos e do Contestado, grupos de camponeses
começam a se organizar e se mobilizar na luta por terra e por direitos sociais.
Iniciam-se as ocupações de terra, que posteriormente levam ao surgimento do
Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. “Neste tempo, junto com as
ocupações, os pequenos produtores lutam pela conquista dos Sindicatos de
Trabalhadores Rurais que estavam nas mãos de dirigentes comprometidos com o
governo, os chamados pelegos” (TAVARES, 1992, p.15).
As mulheres começam a participar das mobilizações sociais e a
reivindicar direitos de igualdade em relação aos homens, e de participação política.
Parafraseando Tavares (1992), pode-se afirmar que no mundo rural, ‘as agricultoras
vão à luta’, Segundo a autora (1992, p.19), “a falência do campo faz a mulher partir
para a luta concreta, num campo até então masculino”, referindo-se à participação
sindical e à criação de um movimento social autônomo, o Movimento de Mulheres
Agricultoras - MMA. Apesar de longa, a passagem que segue, também de autoria da
jornalista Elaine Tavares, contextualiza exatamente o surgimento do MMA.
Nas reuniões falavam sobre a terra, a política agrícola, o reconhecimento
dos direitos da mulher. Pela primeira vez a mulher participava de forma
organizada e tinha como objetivos, a sindicalização e o reconhecimento da
profissão. [...] Foi então que em maio de 83, 28 mulheres se reuniram em
Itaberaba34 e fundaram o primeiro núcleo do Movimento de Mulheres
Agricultoras. [...] Depois da fundação do primeiro núcleo, a discussão se
espalha pelo campo. Em quase todas as cidades do Oeste [catarinense]
vão se formando núcleos e o movimento começa a crescer como entidade.
No dia 8 de março de 84 (Dia Internacional da Mulher), o Movimento faz sua
primeira manifestação pública e reúne 500 mulheres em Chapecó. Discutem
questões como aposentadoria, saúde e política agrícola, educação, reforma
agrária, falta de terra e discriminação (TAVARES, 1992, p. 18,19,21).
São reconhecidas, aqui, algumas das características deste movimento,
que perpassam a sua história, conformando sua identidade: a capacitação política
crítica das militantes; a organização a partir de grupos de base; a mobilização e
manifestação em torno de datas significativas para as mulheres e para o mundo
rural; o reconhecimento e a valorização da profissão; as falas denunciantes da
realidade rural excludente e as lutas reivindicatórias de direitos sociais. Enfim, uma
identidade em consonância com a militância engajada na luta pelo acesso aos
34
Distrito rural do município de Chapecó, localizado no oeste catarinense.
167
direitos, pela valorização da mulher e do homem camponeses, pela igualdade social
e pela transformação societária.
Atualmente, o movimento está organizado em vinte e dois estados
brasileiros. Realiza Assembléias Deliberativas em todas as instâncias - nacional,
estaduais, regionais e municipais. Quanto à organização, possui equipes de
coordenações e direções executivas em cada nível de participação, sendo que no
nível local a mesma corresponde ao Grupo de Base.
Numa entrevista35 concedida à socióloga rural Maria Ignez Paulilo, uma
das lideranças do Movimento no Brasil, Dona Adélia Schmitz, identifica o MMC como
um movimento autônomo, democrático e popular. Segundo ela:
Somos um movimento classista, das mulheres trabalhadoras do campo que
compõem a classe trabalhadora. [...] Nossa causa é a transformação da
sociedade. Por isso nós lutamos por direitos sociais; pela garantia de uma
Previdência pública, universal e solidária; salário maternidade [...]; saúde
pública integral com atendimento humanizado para todos e todas; fim da
violência contra a mulher, por uma agricultura camponesa com políticas
públicas; produção de alimentos saudáveis; soberania alimentar; reforma
agrária; crédito especial para as mulheres; defesa, preservação,
multiplicação e conservação da biodiversidade; acesso e garantia de
documentos pessoais e profissionais para as mulheres camponesas; [...]
entre outras reivindicações (PAULILO e SILVA, 2007 [15(2)], p.399-417).
Neste excerto, fica explícita a forte identidade camponesa ligada à
militância política e social, bem como a existência de uma pauta reivindicatória que é
levantada como bandeira de luta em todos os espaços públicos onde o movimento
consegue participar. Foram estas características que levaram a optar por dedicar
maiores esforços de investigação, no campo brasileiro, para este que é um
movimento social, cujas militantes são mulheres, as quais se identificam – inclusive como trabalhadoras camponesas.
3.1.2 As inflexões da cultura patriarcal nas relações de gênero e na construção
da identidade das mulheres camponesas
35
Entrevista publicada na Revista Estudos Feministas, maio-agosto/2007, sob autoria de Paulilo e
Silva. A referência completa da entrevista encontra-se no item que finaliza este estudo.
168
O modo de vida construído no cotidiano dos indivíduos incide em diversas
dimensões do mesmo: seja nas atividades consideradas de ordem prática, seja
naquelas intelectuais, ou sociais, políticas, culturais e, porque não, econômicas. E
incidindo nas mais diversas dimensões do cotidiano, este modo de vida vai sendo
construído, criado, recriado e, geralmente, perpetuado para além das vidas que o
vivenciam. Uma das estratégias desta perpetuação diz respeito ao fato do modo de
vida e a cotidianidade dos indivíduos adentrar sutilmente no imaginário e nas
experiências de homens e mulheres, imprimindo-lhes traços na subjetividade, que
passam a ser reproduzidos automaticamente e só dificilmente são questionados no
sentido de uma transformação.
Nas mulheres e homens rurais este processo ocorre muito mais
efetivamente, já que as estruturas da vida camponesa promovem transformações
mais lentas e graduais que aquelas do contexto urbano. Assim, as relações sociais
são cotidianamente reiteradas e reproduzidas enquanto modelos ideais de
sociabilidade, integração e solidariedade que possibilitam a produção e reprodução
da vida.
A pesquisa de Lusa (2008) sobre o mundo rural da agricultura familiar36,
já observou a continuidade de padrões desiguais de gênero no cotidiano dos
camponeses. Estes padrões datariam de longa existência e ocasionariam às
mulheres maiores dificuldades para o exercício da vida cotidiana, do que para os
homens. Segundo foi observado, essas dificuldades iriam desde o acesso a serviços
e benefícios sociais, até a participação social efetiva junto aos grupos sociais locais
e a própria sociedade ampliada.
Nota-se neste quadro a presença de um elemento que também aparece
nas relações de gênero, o qual se evidencia significativamente na divisão sexual do
trabalho: trata-se da atribuição de identidades. Conforme Martinelli (2008, p.11), “a
identidade atribuída decorre de circuitos externos ao indivíduo, não opera com a
totalidade do processo social, é visualizada como dada, pressuposta, préestabelecida e se encontra distanciada do processo histórico e esvaziada de
substancialidade política”.
36
Nos marcos de uma pesquisa desenvolvida no contexto da região oeste do Estado de Santa
Catarina. Referência completa no final do estudo.
169
Esta categoria analítica indica a existência de uma identidade que é
prévia à existência do próprio indivíduo social e que lhe é atribuída como sendo ‘sua
própria identidade’. É como se fosse colocada uma máscara permanente no
indivíduo, que o impossibilita de construir ele mesmo a sua identidade, através das
suas relações sociais, políticas e culturais, segundo o contexto e a conjuntura em
que vive.
Ora, ao considerar que as identidades são construções sócio-históricas,
que acontecem no próprio movimento da vida cotidiana, através das relações e do
jogo de forças no campo social, político, econômico e cultural (MARTINELLI, 2008),
não é possível admitir que as identidades de homens e mulheres sejam conferidas,
até mesmo impostas, segundo padrões ou modelos da sociedade. Além disso, há
que se notar que essas identidades atribuídas são forjadas para que contribuam à
plena expansão do capital, o que possibilita indicar que também através das
identidades atribuídas o capital manipula a sociedade.
É possível observar que na divisão sexual do trabalho, determinada
segundo os padrões da cultura patriarcal capitalista, evidencia-se a existência de
uma identidade atribuída às mulheres, indicando a subalternidade feminina na
agricultura familiar, sendo esse um dos aspectos que conformam o modo de vida
naquele contexto, já que perpassa desde a divisão sexual do trabalho, a divisão das
responsabilidades na propriedade e na vida familiar e a divisão das tarefas;
responsabilidades e funções na vida pública e social das localidades rurais. Como
conseqüência, há uma interferência direta nas formas de sociabilidade e na própria
subjetividade das mulheres camponesas. Assim, pode-se notar na identidade
(atribuída) das mulheres camponesas a existência de uma tripla subalternidade: ser
mulher, ser trabalhadora rural, ser invisível na sociedade de forma geral.
Julga-se imprescindível compreender e reconhecer a existência desta
realidade no cotidiano rural - se bem que não ocorra somente neste espaço da
sociedade - para posteriormente compreender quem são as mulheres que compõem
o grupo social tomado como objeto de investigação: o Movimento de Mulheres
Camponesas. Entender esse processo possibilitará notar que suas identidades
individuais e também aquela coletiva já superaram vários aspectos dessa identidade
subalterna atribuída e é essa ocorrência que acaba construindo, inclusive, a
170
identidade do movimento na atualidade. Ao afirmar isso, considera-se que as
identidades são permanências, mas também são transformações, visto que esse é o
movimento dialético que as constitui.
Entretanto, para poder decifrar essa questão é importante apreender
algumas idéias presentes nos estudos sobre as ‘relações de gênero’, desenvolvidos
no Brasil de modo mais amplo a partir da década de 198037. Para elucidar a
questão, toma-se como referência o artigo da historiadora Joan Scott (1995),
“Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, cujo debate sobre gênero é
considerado um marco na história dos recentes estudos de gênero, por realizar uma
análise histórica sobre os estudos em relação à mulher, ao feminismo e ao
surgimento da categoria gênero.
Inicialmente, o termo gênero era utilizado para referir-se aos traços
sexuais e à identificação gramatical dos objetos ‘masculinos e femininos’;
recentemente, o uso da categoria passou a enfatizar o caráter social das distinções
entre homens e mulheres. Portanto, gênero como categoria analítica, somente
emergiu na segunda metade do século XX, abrindo um novo campo teórico, uma
categoria analítica e marcando o vácuo, a lacuna entre as teorias até então
existentes, aproximando-as de forma a eliminar as incapacidades das mesmas de
oferecerem, conjuntamente, explicações às relações sociais entre homens e
mulheres (SCOTT, 1995).
Para Scott (1995), repensar a mulher na história significa criar uma ‘nova
história’ de mulheres e homens, ou seja, implica em transformar paradigmas
científicos e disciplinares, já que a utilização do termo “gênero” torna-se
especialmente útil para contextualizar e compreender as construções acerca dos
significados culturais sobre ser homem e ser mulher, nos diferentes contextos
históricos (temporais) culturais.
37
As reflexões que se passa a apresentar têm como fundamentação a principal corrente teórica dos
estudos de gênero, utilizada pelos movimentos sociais, inclusive os movimentos feministas no Brasil,
embora numa perspectiva crítica esta corrente utiliza noções do estruturalismo europeu para poder
avançar na perspectiva histórico-dialética das relações sociais. Seu marco teórico advém das
contribuições da historiadora francesa ‘Joan Scott’ (1941), cujo artigo mais célebre - Gênero: uma
categoria útil de análise histórica (original em 1986) - inaugurou uma nova compreensão
contemporânea sobre as relações sociais entre mulheres e homens.
171
Fica expresso no artigo em referência, que não existe um único poder nas
relações sociais, e que as relações de gênero passam a “ser constituídas dentro de
campos de força sociais”. Conseqüentemente, a definição de gênero para Scott
(1995, p.86) “tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão inter-relacionados,
mas devem ser analiticamente diferenciados”. O núcleo central da sua concepção é
que o gênero seria constitutivo das relações sociais entre os sexos, e seria também
uma forma primária de dar significado às ‘relações de poder’38. Entretanto, vinculado
a este núcleo central da concepção, deve-se estar atento, nos estudos que utilizam
gênero como categoria de análise, aos símbolos que definem feminino e masculino
nas diferentes culturas, aos conceitos normativos, à concepção política e às
referências a instituições e à organização social, bem como à identidade dos
sujeitos.
Por fim, Scott (1995) vem questionar - a partir da relevância que ela
mesma dá para as relações de poder - as transformações dentro do cenário social já
estabelecido. Em sua resposta, a autora ressalta que o processo histórico social
também é composto por processos políticos, os quais assumem diferentes
significados conforme lhes forem atribuídos pelos sujeitos e instituições sociais.
Logo, a análise, estudo, exploração e difusão dessas novas questões acerca das
relações de gênero, possibilitará o surgimento de novas perspectivas sobre velhas
questões, fazendo com que surja uma ‘nova história’, redefinindo e reestruturando, a
partir de uma visão de igualdade, as relações entre homens e mulheres na sua
diversidade, levando também em consideração a raça e a classe social.
Portanto, parte-se do pressuposto de que as transformações na
contemporaneidade vêm acontecendo de forma intensa, nos mais diversos setores
da sociedade, contextos e conjunturas, bem como nas mais diversas áreas do
conhecimento. As questões de gênero inserem-se dentro deste conjunto de
transformações, tanto de ordem prática, através de mudanças nas relações sociais
entre os indivíduos homens e mulheres, quanto de ordem teórica, através dos
estudos nas diversas áreas de conhecimento, inclusive de forma inter e transdisciplinar. Ao mesmo tempo, seguindo o ritmo intenso das transformações, são
38
Conceito originário do pensamento Foucaultiano, também referenciado na nota n.27.
172
percebidas mudanças no contexto rural do Brasil, que ocasionam o surgimento de
novos paradigmas de ruralidade.
Neste contexto de transformações, no que tange especificamente ao
contexto rural da agricultura familiar, constatou-se - conforme já mencionado - que
permanece uma situação de desigualdade nas relações de gênero, fazendo com
que as mulheres daquela realidade vivam a ‘ausência da autonomia e emancipação’.
Ora, se por um lado, isto alerta para a existência de uma situação ‘não desejada’,
por outro, aponta para a possibilidade (dada à necessidade) de desencadear,
através das próprias mulheres, processos voltados para a construção da autonomia
e da emancipação.
Entretanto, para isso acontecer, é necessário reconhecer que a divisão
sexual do trabalho é ainda bastante explícita na agricultura familiar. Essa divisão é
notória na cotidianidade e comprovada por investigações de caráter científico39.
Assim, inclusive nos dias atuais, cabem ao homem as tarefas destinadas à geração
de renda, tais como o cultivo dos campos, inclusive no corte, na preservação das
matas, a construção de cercas, as relações comerciais de venda de produtos,
compra de insumos, maquinários, a aquisição de bens ou financiamentos etc. Já
para a mulher, cabem as tarefas relativas ao âmbito doméstico, que se estende aos
arredores da casa. Logo, sua responsabilidade tange às tarefas destinadas à
reprodução familiar, como os cuidados com a casa, com a comida e a educação dos
filhos, o cultivo da horta e cuidados com o jardim, as pequenas criações de gado,
aves e suínos etc.
Isto foi confirmado também por outras pesquisadoras, como Boni (2005) e
Paulilo (2003), as quais aferem que a desigual divisão sexual dos papéis, nas
pequenas propriedades agrícolas, associa-se à dominação que permeia desde as
relações familiares internas - aquelas do âmbito privado - até as relações familiares
externas - âmbito público -, como por exemplo, as relações de herança e
propriedade, os arranjos matrimoniais etc. Essas questões são intrínsecas à vida da
mulher no campo e fundamentais para que se possa propiciar o debate proposto
neste estudo.
39
Para maior aprofundamento, consultar Lusa (2008) e Bauermann (2009).
173
Enfim, a superação desta situação de subalternidade das camponesas,
adentra na imprescindibilidade da modificação das relações de gênero. Tal
transformação deve ser tomada como um processo social gradual, que pode ser
potencializado através de ações emancipatórias, as quais somente são possíveis a
partir da construção de uma consciência crítica, politizada e histórica, que considere
todos os elementos da cotidianidade, reconhecendo neles o meio e os instrumentos
de mudança.
3.1.3 Avançando o olhar para ‘as identidades’ presentes no Movimento de
Mulheres Camponesas do Brasil - os aportes teóricos para a reflexão
Nesse item do estudo, enfrenta-se o trecho mais desafiador desta
caminhada: a reflexão sobre a realidade levantada, a partir do diálogo com Heller,
Lukács e Marx. Na tarefa, como se pode notar pelo título do item, as discussões
terão um olhar, tanto para as identidades particulares das mulheres que compõem o
movimento, quanto para a identidade coletiva do movimento, uma vez que se
compreende que ambas se inter-relacionam, constituindo uma unidade na
diversidade - embora seja um olhar dedicado principalmente para o último.
As reflexões pessoais, agregadas às contribuições dos grandes
pensadores, aparecerão aqui preponderantemente em forma de seqüência - Marx,
Heller e Lukács -, embora em alguns momentos poder-se-á estabelecer
contrapontos entre eles. Opta-se por este modo de trabalhar, pois, dado o desafio já
considerado, deseja-se aprofundar o olhar específico de cada autor. Além disso,
resgata-se neles, as contribuições específicas que ora se destacam em um, ora em
outro. Enfim, procurar-se-á proceder desta forma sem esquecer que para a
existência de um debate profícuo é imprescindível que os contrapontos se interseccionem, se inter-relacionem para que sejam evidenciados.
A primeira contribuição que saltou aos olhos desta ‘investigadora de
gênero e do rural’ vem de Marx & Engels. Na obra, ‘A ideologia Alemã’, escrita entre
174
1845 e 184640, sutilmente figura uma observação acerca do rural e do urbano que,
no ver desta investigadora, fornece o norte pelo qual se deve guiar o olhar para a
questão. Nesta obra, os autores tratam da divisão do trabalho e aquela entre o
campo e a cidade, confirmando que todas as atividades humanas - e o próprio
homem em si - encontra-se a serviço dos interesses não dos próprios homens, mas
sim da nação e, subentenda-se aqui, a serviço do capital, de sua reprodução e
acumulação nas mãos de uns poucos.
O que aconteceria, é que, a partir da divisão do trabalho, divide-se
também o mundo em duas partes. Uma destinada a ‘se oferecer’ sempre em
subserviência à outra; e a outra, colocando-se no posto de quem dita as regras,
domina, subjuga o lado oposto. Observe-se a expressão: lado oposto. A Referência
aqui é para o ‘campo’, no primeiro exemplo, e para a ‘cidade’, no segundo, os quais,
a partir do surgimento da ‘divisão do trabalho’ passam a serem tratados como dois
lados, duas dimensões opostas da vida em sociedade.
Segundo os dois pensadores, a divisão do trabalho no seio de uma nação
começa por provocar a separação do trabalho industrial e comercial daquele
agrícola e, com ela, a separação entre cidade e campo e a oposição de interesses
entre ambos (MARX & ENGELS, 1984). Esta constatação leva a reconhecer que,
historicamente, as ideologias hegemônicas nas sociedades - principalmente a
capitalista - incutiram a ‘subalternidade’ do campo em relação à ‘cidade’, o que traz
determinantes diretos para a identidade dos sujeitos destes espaços. Esse
reconhecimento é um passo fundamental.
Ora, quando se afirmou em parágrafos anteriores sobre a tripla
‘subalternidade’ que caracteriza a mulher rural (de forma geral, isto é, sem
especificar como isto acontece ou não em alguns grupos), uma delas referia-se à
‘identidade ligada ao campo’. Já lá, estava-se tratando da subalternidade gerada
neste processo de divisão social do trabalho, a qual traz consigo fortes elementos de
subserviência e de dominação.
Assim, é impreterível que no começo das reflexões teóricas, seja
considerado este elemento que, sutilmente, na história das sociedades, vai
40
A edição acessada data de 1984, da Editora Moraes. Ver referência completa ao final do estudo.
175
conformando a identidade das mulheres camponesas, assim como de todos os
demais indivíduos rurais.
Portanto, uma das possibilidades pelas quais a agricultura de subsistência
é tão combatida pelo capitalismo, guarda nexo com uma das afirmações de Marx &
Engels sobre o quanto a ‘divisão do trabalho’ determina as demais relações sociais
dos indivíduos. Conforme esses pensadores,
[...] As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho, são
outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das
fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos
entre si no que respeita ao material, ao instrumento e ao produto do
trabalho (MARX & ENGELS, 1984, p.17)
Assim, a agricultura familiar quanto mais se aproxima da ‘subsistência’,
isto é, da própria autonomia, mais se opõe aos interesses do capital, e, portanto,
produz enfrentamentos enquanto forma alternativa de produção, reprodução e
organização da vida social.
Outro elemento que merece destaque nas reflexões de Marx & Engels
(1984), remete as suas observações sobre ‘as premissas da concepção materialista
da história’. Ora, é importante salientar que esta concepção é fortemente
considerada neste estudo, dado que ao se apropriar da perspectiva crítica do
materialismo histórico para a reflexão, esta consideração torna-se condição sine qua
non para as análises e compreensões decorrentes.
A própria explicitação das premissas já fala por si, ao afirmar a
imprescindibilidade da existência de indivíduos reais e da observação de suas
condições materiais de vida, para poder compreender a dinâmica e dialética das
sociedades. Neste sentido, não se atingiria o objetivo deste estudo caso não se
trabalhasse diretamente com as ’mulheres’, com base nas condições materiais de
vida existentes no ‘cotidiano rural’.
Enfim, a tônica do debate que se assume neste estudo, confirma o
pensamento dos dois autores de que as ‘premissas da concepção materialista da
história’ remetem à imprescindibilidade de indivíduos reais, indivíduos humanos
vivos; de suas ações; e de suas condições materiais de vida (MARX & ENGELS,
1984). A partir destas premissas podem ser notadas - criticamente - as identidades
que caracterizam os indivíduos e os contextos rurais.
176
Destarte, é importante ter clareza que a organização física desta
categoria e a relação com o restante da natureza são elementos que condicionam a
forma de produzir os seus meios de vida. E é isto que, na concepção materialista da
história e na perspectiva de análise aqui adotada, os distingue dos demais animais,
já que isto faz com que eles produzam indiretamente a sua própria vida material.
Enfim, é isto que passa a exprimir o seu ‘modo de vida’.
Assim, aquilo que os homens são, coincide com a sua produção: o que
produzem e como o fazem são elementos que retratam seu modo de vida e de
organização social. Ora, é a partir da expressão do modo de vida destes sujeitos em
sua cotidianidade, que se constroem suas bases identitárias e no caso específico do
Movimento de Mulheres Camponesas, o modo de vida camponês é elemento
fundamental no reconhecimento da identidade das integrantes e do próprio
Movimento.
Ainda discutindo sobre a consciência, Marx & Engels (1984) dizem que
ela nasce como linguagem ou expressão da necessidade e da carência física no
intercâmbio com outros homens. Portanto, “o homem também tem consciência”. Já
em nota marginal, Marx afirma que “[...] os homens têm história porque têm de
produzir a sua vida para além de determinado modo de produção econômica, assim
a vida é produzida tanto pela sua organização física, tal como o é pela sua
consciência.” (MARX & ENGELS, 1984, p.33, grifos no original).
A consciência é, pois, logo de começo, um produto social, e continuará a
sê-lo enquanto existirem homens. A consciência, naturalmente, começa por ser
apenas consciência acerca do ambiente sensível imediato e, portanto, é uma
consciência da conexão limitada com as outras pessoas e coisas fora do indivíduo,
que aos poucos vai se tornando consciente de si. Por outro lado, ela é - ao mesmo
tempo - consciência da natureza, a qual em princípio se opõe aos homens como um
poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o qual os homens
se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se deixam amedrontar
como animais. Portanto, essa seria uma consciência puramente animal da natureza,
tal como algumas religiões que têm suas crenças nos fenômenos naturais (MARX &
ENGELS, 1984).
177
É importante observar como a consciência vai sendo construída, para se
compreender posteriormente de onde surgem as idéias dominantes. Este segundo
entendimento, por sua vez, só é possível ao se relacionar classe dominante com
consciência dominante. É neste sentido que Marx & Engels (1984) afirmam que as
idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja,
a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante.
Destarte, na ‘A Ideologia Alemã’, os pensadores finalizam o debate sobre
a consciência de forma próxima ao modo pelo qual iniciaram. Segundo eles, “os
indivíduos partiram sempre de si e partem sempre de si. As suas relações são
relações do seu processo real de vida. A que se deve que as suas relações se
autonomizem contra eles? Que os poderes da sua própria vida se tornem
opressores contra eles?” (MARX & ENGELS, 1984, p.105).
Portanto, ficam expressas as indagações, cujas respostas levam
obrigatoriamente a tratar de um ‘modelo cerceador do indivíduo’ e ‘autonomizador do
mercado’. Infelizmente, é nesse sistema opulento que as mulheres camponesas
estão inseridas. Assim, a reflexão alerta que a consciência identitária e a autonomia
dos sujeitos da presente investigação não podem ser analisadas de forma descolada
de seus processos de vida e, muito menos, do modelo que determina o cotidiano da
sociedade. Apesar disso, há que se relevar - com tamanha intensidade - que é
possível a liberdade de consciência, esta mesma que dá origem às percepções
críticas acerca da vida e de seus processos, porém, essa mesma consciência só
pode ser construída a partir do real da vida cotidiana.
O seguinte aspecto que se pretende tomar emprestado de Marx & Engels
(1984) para as reflexões desse estudo, trata sobre a ‘consciência’. Essa concepção
é muito importante, pois a partir dela pode-se discutir sobre o próprio
reconhecimento da identidade, além de outros aspectos presentes nas próximas
reflexões. Sobre essa questão, o ponto de partida encontrado no estudo sobre ‘A
ideologia Alemã’, diz que
A Produção das idéias, representações, da consciência está a princípio
diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material
dos homens, linguagem da vida real. [...] A consciência nunca pode ser
outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo
real de vida. [...] Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
178
se representam, e também não dos homens narrados, pensados,
imaginados, representados, para aí se chegar aos homens em carne e
osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo
real de vida apresenta-se também os seus reflexos e ecos ideológicos deste
processo de vida. (MARX & ENGELS, 1984, p.22)
Logo, reconhece-se nessa afirmação dos pensadores, que é o ’chão
cotidiano’ que fornece os fundamentos para a existência da consciência. É a partir
da cotidianidade e ‘na cotidianidade’ que os indivíduos vão construindo a
‘consciência de si’ e dos processos em que estão envolvidos. Portanto, a elaboração
da consciência é elemento imprescindível para o reconhecimento da identidade dos
indivíduos, homens e mulheres.
Parece importante considerar que “[...] os homens, ao mudarem a sua
realidade, ao desenvolverem a sua produção material e o seu intercâmbio, mudam
também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência
que determina a vida, é a vida que determina a consciência (MARX & ENGELS,
1984, p.23). Por conseguinte, é impossível falar de consciência, sem tomar ‘a vida’
como seu fundamento ontológico. Essa é a confirmação de que da cotidianidade
emerge a consciência, a qual possibilitará a construção das identidades sociais de
homens e mulheres, indivíduos históricos das sociedades.
Já numa reflexão posterior, Marx & Engels (1984) vão tratar das relações
sociais como força produtiva. Neste sentido, coloca-se uma indagação em relação à
organização
e
mobilização
de
movimentos
camponeses
de
mulheres,
especificamente o MMC no Brasil. Seria possível reconhecê-lo, a partir da
perspectiva de Marx & Engels, como ‘força produtiva’ na sociedade brasileira?
Conforme os autores (MARX & ENGELS, 1984, p.32),
A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na
procriação, surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um
lado como relação natural, por outro como relação social - social no sentido
em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos seja em que
circunstância for e não importa de que modo e com que fim.
A compreensão construída a partir deste estudo, assim como a passagem
pelo pensamento dos autores, permite afirmar ‘sim’ que o Movimento de Mulheres
Camponesas é uma força produtiva na sociedade. Esse - assim como outros
movimentos sociais - não geram de forma direta e freqüente produção de riquezas
para o mercado; no entanto, são produtores de processos sociais, os quais geram
produtos nas várias dimensões da vida, algumas delas incidindo inclusive na
179
produção material da vida, como é o caso do MMC ao levantar como uma de suas
bandeiras de luta a defesa de um ‘Projeto de Agricultura Familiar Sustentável’. E,
decorrente disto, a produção ecológica, a utilização de sementes crioulas, entre
outras lutas que incidem diretamente no mercado e se contextualizam, por isso,
como embates com o modo de produção dominante, portanto, frente ao capital.
Continuando a discussão, tendo como fundamento o materialismodialético, sente-se necessidade de tratar uma questão ainda não abordada com a
profundidade necessária. Trata-se da identificação do homem (humanidade)
enquanto ser social particular, ou seja, em sua dimensão singular, individual, e
enquanto ser humano-genérico, isto é, integrado em uma coletividade que é apenas
possível para os animais do gênero humano.
Para pontuar teoricamente esta reflexão, reporta-se às contribuições de
Agnes Heller, tomando como ponto de partida a afirmação de que
Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a
ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário,
não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão
somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente
(HELLER, 1989, p.17).
Percebem-se nesta afirmação dois elementos importantes para a
reflexão. Um deles trata da relação entre a vivência da cotidianidade, na
especificidade da vida de cada indivíduo, e a direta ligação desta dimensão da vida
com a construção do ser humano-genérico existente em todos os sujeitos. Ora, o
que chama atenção na afirmação da autora, em relação à reflexão proposta, é que
na cotidianidade das mulheres camponesas vai se construindo uma identidade que
comporta em si especificidades, mas que se eleva na condição do reconhecimento
social de sua existência no universo do ‘gênero’ feminino e também do gênero
humano. É nesse trânsito entre o particular - que se constrói no cotidiano - e o geral
- que, embora abarque outras dimensões mais amplas, carrega aspectos desse
mesmo cotidiano - que a identidade vai sendo forjada.
O segundo elemento refere-se à intensidade que representa a dimensão
cotidiana na conformação da vida dos indivíduos. Neste sentido, ela é a base que dá
sustentação para o seu desenvolvimento. A partir dela, mulheres e homens vão se
descobrindo e se construindo enquanto sujeitos sociais. Destarte, Heller (1989, p.18,
grifos no original) considera que “[...] o homem já nasce inserido em sua
180
cotidianidade. Seu amadurecimento significa, em qualquer sociedade, que o
indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana [...]. É
adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade”.
Entretanto, a filósofa ressalta que para atingir a maturidade o homem
deve aprender primeiramente a manipulação das coisas e aprendendo isto significa
que já assimilou também as próprias relações sociais. O mesmo acontece com a
“assimilação imediata das formas de intercâmbio ou comunicação social”. Essas
assimilações não acontecem para o indivíduo quando está isolado, mas sim
começam sempre nos grupos, identificados por Heller (1989, p.19, grifos no original)
como “[...] grupos face-to-face, [os quais] estabelecem uma mediação entre o
indivíduo e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores”, ou
seja, “[...] quando é capaz de se manter autonomamente no mundo das integrações
maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo
humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e de mover
por sua vez nesse mesmo ambiente”.
Nota-se que há uma relação explícita entre a sociabilidade dos indivíduos
e a cotidianidade. Outrossim, a sociabilidade do homem, enquanto necessidade
ontológica, vai sendo suprida na cotidianidade através da inserção de mulheres e
homens em grupos, desde o nível primário representado, inicialmente pela família sem referência desta como modelo -, até o nível societário mais amplo, como a
classe social. Portanto, constata-se que é no grupo - em seus vários níveis - que os
elementos da cotidianidade são apreendidos pelos indivíduos.
Outro elemento a ser levado em conta, é que o indivíduo é sempre, ao
mesmo tempo, um ser particular e um ser genérico. É particular, não somente no
sentido de um ser ‘isolado’, mas no sentido de que todos detêm uma individualidade.
É neste âmbito de sua particularidade social que se manifestam suas necessidades
e suas expressões para, depois, serem levadas à coletividade. Como diz Heller
(1989, p.20), “a unicidade e irrepetibilidade são, nesse ponto, fatos ontológicos
fundamentais”.
Também Lukács (1997) trata a questão, afirmando que a individualidade
já aparece como uma categoria do ser natural, assim como sua genericidade. Para
ele, esses dois pólos do ser orgânico podem se elevar à pessoa humana e a gênero
181
humano no ser social - tão somente de modo simultâneo no processo que torna a
sociedade cada vez mais social.
Neste sentido, o filósofo assevera
[...] Assim, o homem é simultaneamente produtor e produto da sociedade,
realiza em seu ser-homem algo mais elevado que ser simplesmente
exemplar de um gênero abstrato, que o gênero não é mais uma mera
generalização à qual os vários exemplares se liguem “mudamente”; é
mostrar que esses, ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma
voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese
ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o
gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si
(LUKÁCS, 1997, p.35).
Note-se que o autor tece uma relação direta entre a individualidade, o
gênero - genericidade - e a consciência de si. Tudo isto como passagem, num
processo de transição vivido contemporaneamente e de modo dinâmico, que confere
ao indivíduo aquilo que Heller (1989) caracteriza - conforme já ressaltado nos
parágrafos anteriores - como sua particularidade social, unicidade e irrepetibilidade
Ora, chega-se então ao momento de discutir sobre as necessidades e
expressões particulares, já que são eles dois importantes elementos da
singularidade, que quando agregados no conjunto dos grupos sociais, conferem
efeito de coletividade aos mesmos. Isto fica evidente na afirmação de que “as
necessidades humanas tornam-se conscientes no indivíduo, sempre sob a forma de
necessidades do Eu. [...] A dinâmica básica da particularidade individual humana é a
satisfação dessas necessidades do “Eu”. (HELLER, 1989, p.20, grifos no original).
Por outro lado, Heller (1989, p.21) também afirma que “também o
genérico está ‘contido’ em todo homem e, mais precisamente, em toda atividade que
tenha caráter genérico, embora seus motivos sejam particulares”. E ainda
complementa a perspectiva histórica dizendo que “para o homem de uma dada
época, o humano-genérico é sempre representado pela comunidade ‘através’ da
qual passa o percurso, a história da humanidade”. Foi através da relação consciente
com a comunidade que se formou a consciência de nós e “configurou-se também
sua própria consciência do Eu”.
Portanto, é notória a relação dialética existente entre o particular-singular
e o genérico-coletivo na constituição da humanidade. Nesta concepção, é
fundamental a compreensão do processo de sociabilidade do indivíduo, enquanto
condição sine qua non para sua existência. É isto que permite afirmar que o homem
182
é um ser genérico “[...] já que é produto e expressão de suas relações sociais,
herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do
humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração”
(HELLER, 1989, p.21).
A dialética entre particularidade e genericidade da humanidade é vivida
na cotidianidade em forma de unidade, que não atinge diretamente o nível de
consciência, mas que vai ocorrendo e sendo significada pelos sujeitos, na medida
em que estes assumem e exercem funções na vida cotidiana. No entanto, esta
dialética não ocorre - preponderantemente - de forma harmoniosa. É tensionada,
como diz Heller (1989), “mudamente”. Segundo ela, com esta tensão “aumentam as
possibilidades da particularidade submeter a si o humano-genérico e de colocar as
necessidades e interesses da integração social a serviço dos afetos, desejos e do
egoísmo do indivíduo. Isso suscitou a ética como uma necessidade da comunidade
social”. (HELLER, 1989, p.23)
Esta ética suscitada como necessidade para a integração coletiva,
construída a partir de exigências e normas a fim de que o indivíduo submeta sua
particularidade ao genérico da comunidade, aos poucos vai introduzindo uma
motivação interior, que passa a ser adotada livremente pelos indivíduos diante da
vida, da sociedade e dos homens. A esta última denomina-se moral, sendo uma de
suas funções a inibição, o veto. Nas palavras da filósofa, “[...] por mais intenso que
seja o esforço transformador e culturalizador da moral, não se supera sua função
inibidora e essa se impõe na medida em que a estrutura da vida cotidiana está
caracterizada
basicamente
pela
muda
coexistência
de
particularidade
e
genericidade.” (HELLER, 1989, p.23).
Conseqüentemente, o que ocorre é a elaboração de padrões, de cunho
cerceador,
que
determinam
como
devem
ser
ações,
atitudes,
posições,
pensamentos e outras formas de expressão dos indivíduos. Esta padronização,
embora esteja presente na cotidianidade, é considerada como algo exterior a ela,
uma vez que aparece como uma determinação decorrente de uma moralidade não
construída, mas atribuída aos indivíduos, não sendo passível de decisão. Por isto,
“[...] quanto maior for a importância da moralidade, do compromisso pessoal, da
individualidade e do risco na decisão acerca de uma alternativa dada, tanto mais
183
facilmente essa decisão eleva-se acima da cotidianidade e tanto menos se pode
falar de uma decisão coletiva” (HELLER, 1989, p.24).
Nota-se nesse ponto, a pertinência entre o pensamento de Heller (1989),
as afirmações encontradas nos estudos de gênero e as constatações apresentadas
no item anterior, as quais possibilitam perceber que a reprodução dos ‘papéis de
gênero’ acontecem sob forma espontânea, quando tomadas como padrões onde a
impregnação da moralidade é forte. Ora, quando assim ocorre, significa que as
relações já foram abstraídas do nível de questionamentos e liberdade de
construções das relações que fariam parte da cotidianidade, encontrando-se num
patamar que não possibilita autonomia para o indivíduo, mas que lhe são
determinadas pelos padrões construídos por outrem.
Heller (1989, p.25) também traz em suas discussões a ‘possibilidade de
escolhas’, porém, ‘escolhas compreendidas no contexto de ideologias’. Daí advém a
importância de se refletir sobre a escolha como instrumento ou meio de construção
do caminho do comportamento humano. Neste sentido, observa-se Heller dizer que
“[...] o caminho desse comportamento é a escolha (decisão), a concentração de
todas as nossas forças na execução da escolha e a vinculação consciente com a
situação escolhida e, sobretudo, com suas conseqüências”.
Entretanto, reportando-se ao cotidiano das mulheres camponesas, sem
fazer alusão a sua participação ou não junto ao Movimento de Mulheres
Camponesas, o quadro encontrado de modo predominante no contexto rural, não
permite afirmar que as escolhas são feitas de modo consciente e baseadas em
possibilidades. Pelo contrário, parecem sobressair decisões determinadas pelos
‘moralismos’ tratados pela autora.
De certo modo, Heller diz que nem sempre serão possíveis decisões com
base em escolhas conscientes, já que na cotidianidade, não é possível concentrar
todas as energias em cada decisão. Neste sentido, Heller denomina que existiriam
decisões contextualizadas no âmbito do cotidiano e do não-cotidiano, as quais
seriam baseadas nos tipos de comportamentos: aqueles que apenas reproduzem,
segundo automatismos, ou aqueles conscientes. Mesmo considerando isto, a autora
reconhece que é difícil definir exatamente até onde vai o comportamento cotidiano
do não-cotidiano, pois ‘esta dialética é isenta de automatismos’.
184
A partir deste pensamento, Heller (1989, p.25, grifos no original) afirma
que “[...] o meio para essa superação dialética parcial ou total da particularidade,
para sua decolagem da cotidianidade e sua elevação ao humano-genérico, é a
homogeneização”. Mas, sendo a vida cotidiana heterogênea, a pergunta decorrente
é: o que significa, então, essa homogeneização?
Para desvendar a questão, Heller (1989, p.27) aponta três fatores para
discussão. O primeiro refere-se ao fato de que a vida cotidiana requer o
desenvolvimento de várias habilidades em diversas direções e que nenhuma é
solicitada com intensidade especial. Neste sentido, remete à expressão de Lukács
de que “é o homem inteiro que intervém na cotidianidade”. O segundo refere-se ao
fato de que mesmo quando o homem concentra-se numa única questão, ele apenas
suspende temporariamente as outras, dedicando-se com afinco para o que está em
pauta. Da mesma forma, Heller remete a Lukács lembrando que o indivíduo se
transforma neste sentido em um “homem inteiramente”, ou seja, dedicado com sua
“inteira individualidade humana41”. O terceiro fator é que este processo não acontece
de forma arbitrária, mas “[...] de modo tal que nossa particularidade individual se
dissipe na atividade humano-genérica que escolhemos conscientemente e
autonomamente, isto é, enquanto indivíduos.
Ao se discutir aqui a estrutura básica da cotidianidade do indivíduo,
aponta-se para a necessidade do debate sobre a alienação, um passo posterior
nesta investigação. Embora não seja possível esmiuçar esta categoria de análise
neste capítulo, é imprescindível considerar que a questão da ‘alienação do homem’
de suas próprias ações, decisões e, por conseqüência, de seu próprio cotidiano, traz
reflexos diretos para a construção da identidade. É esta alienação do cotidiano o
elemento fundamental que possibilita que identidades sejam atribuídas e não mais
construídas.
Retomando a questão, para Heller (1989), somente quando estes três
fatores acontecem contemporaneamente é que se pode falar da passagem da
cotidianidade para penetrar na esfera do humano-genérico. É exatamente neste
ponto que se verifica a existência de relação com a construção de identidades
coletivas, a partir do compartilhamento de cotidianidades particulares, elevadas pelo
41
Expressão com o destaque da própria Heller.
185
indivíduo no patamar de genericidade, pois se considera que identidades coletivas
são sempre identidades partilhadas.
É nesta dinâmica que se percebe a espontaneidade presente na vida
cotidiana, como característica dominante. É neste sentido, que Heller (1989, p.29)
afirma: “[...] é evidente que nem toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo
nível,
assim
como
tampouco
uma
mesma
atividade
apresenta-se
como
identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos estágios de
aprendizado.”
Ora,
esta
espontaneidade
não
deve
ser
confundida
com
os
‘automatismos’ aferidos anteriormente. No entanto, ela é característica dominante na
vida cotidiana. Isto quer dizer que a vida cotidiana não acontece de forma calculada,
mas nela são agregados também fatos e elementos inusitados, que conformam a
própria característica do ser humano, sem com isto retirar o nível de consciência.
Pelo contrário, reafirma esta presença quando mulher e homem são incitados a
agirem segundo a criatividade na elaboração e/ou percepção de possibilidades de
direcionarem seus pensamentos, atitudes e ações. Estas são características da vida
cotidiana. Segundo a autora (1989, p.30),
Na vida cotidiana, o homem atua sobre a base da probabilidade, da
possibilidade: entre suas atividades e as conseqüências delas, existe uma
relação objetiva de probabilidade. Jamais é possível, na vida cotidiana,
calcular com segurança científica a conseqüência possível de uma ação.
Por conseguinte, passa-se a compreender que “[...] o pensamento
cotidiano orienta-se para a realização de atividades cotidianas e, nessa medida, é
possível falar de unidade imediata entre pensamento e ação na cotidianidade”
(HELLER, 1989, p.31). É neste ponto que se começa a tratar de outro elemento da
cotidianidade, que nos interessa na construção da identidade do movimento de
mulheres camponesas em questão: a elaboração de juízos e pensamentos
correspondentes diretamente às exigências cotidianas da classe ou grupo em
questão.
Para tratar deste elemento, parte-se da afirmação de Heller de que “[...] a
unidade imediata de pensamento e ação implica na inexistência da diferença entre
‘correto’ e ‘verdadeiro’ na cotidianidade; o correto é também verdadeiro”.
Esclarecendo esta questão, Heller (1989) diz que o pensamento cotidiano
apresenta-se repleto de fragmentos, de material cognoscitivo, mas também de juízos
186
que não dizem respeito à manipulação das coisas ou às objetivações, mas se
referem exclusivamente à orientação social.
Assim, os pensamentos e os juízos podem ser mais ou menos
verdadeiros e podem resultar mais ou menos corretos conforme as exigências
cotidianas do grupo social em que se está inserido. Neste sentido, entram em cena
para o debate a questão das ‘crenças’, da ‘fé e da confiança’, da construção de
valores que se convertem em ideologias, os quais assumem relativa independência
na cotidianidade dos indivíduos, mas que são assimilados e, portanto, defendidos,
pelos mesmos em seus pensamentos, falas, gestos e ações.
Dito isto, quer-se trazer duas realidades para a reflexão. Uma delas
remete à realidade predominante no tocante às relações de gênero no contexto
rural. Nela observa-se que a subalternidade da mulher camponesa é compreendida
de forma geral, tanto pelos homens quanto pelas mulheres, como algo natural, que
simplesmente é assim e da mesma forma deve continuar. Dito de outra forma, criase uma espécie de mito no que tange às relações entre homem e mulher, o qual é
perpassado no cotidiano como uma ‘espécie’ de crença, a qual baliza que se algo
‘fugir’ deste padrão mitologizado, deverá ser considerado como disfunção, patologia,
anormalidade; e, portanto, banido tanto o comportamento, quanto -muitas vezes - o
próprio indivíduo.
Nesta realidade, ainda não houve avanços significativos quanto à
compreensão das relações sociais igualitárias - não somente aquelas de gênero que possibilitassem progressos em relação à construção de outras crenças voltadas
para a realização humana, num âmbito coletivo (mulheres e homens) e não parcial
(homens). Já a outra realidade referida, remete ao próprio Movimento de Mulheres
Camponesas que, ao construir princípios e objetivos coletivos, deposita-os como
uma espécie de ‘crença’ (fé ou confiança) que deve ser perseguida na
individualidade de cada militante e na coletividade das lutas do Movimento. Neste
contexto, a relação que se põe é a da construção de um horizonte utópico coletivo,
que motiva e direciona a coletividade imprimindo-lhe identidade ideológica,
identidade que configura seu espaço e lugar na cotidianidade e a partir dessa
configuração seu direcionamento de lutas. Assim, afirma Heller (1989, p.33, grifos no
original),
187
É indiscutível que uma ação correspondente aos interesses de uma classe
ou camada pode se elevar ao plano da práxis, mas nesses casos superará
o da cotidianidade; a teoria da cotidianidade, nesses casos, converte-se em
ideologia, a qual assume certa independência relativa diante da práxis
cotidiana, ganha vida própria e, conseqüentemente, coloca-se em relação
primordial não com a atividade cotidiana, mas com a práxis.
Note-se, aí, que já se está tratando de ações, que dizem respeito à
transformação, ações imbuídas de significados políticos para a vida e cotidianidade
dos indivíduos e, por isso mesmo, podem ser consideradas como ‘práxis’. Note-se
também que na primeira referência esta dimensão não está presente; porém, na
segunda, ela é contextualizada como elemento propulsor do movimento, nas
palavras do próprio MMC,
Na trajetória de luta e organização das mulheres camponesas foi sendo
construída uma mística feminina, feminista e libertadora, cujo conteúdo se
expressa no Projeto Popular que o Movimento está comprometido, que
articula a transformação das relações sociais de classe com a mudança nas
relações com a natureza e a construção de novas relações sociais de
gênero (MMC, 2009, s/p)
Mas, atenção! Se por um lado, as crenças podem ser elevadas a
ideologias e estas à práxis, por outro lado, Heller (1989, p.35, grifos no original)
também alerta que “os juízos provisórios que se enraízam na particularidade e, por
conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou preconceitos”. Complementando
esta observação, a mesma autora afirma que “o juízo provisório pode se cristalizar
em preconceito e pode ocorrer que já não prestemos atenção a nenhum fato
posterior que contradiga abertamente nosso juízo provisório; aí podemos nos
submeter à força de nossas próprias tipificações, de nossos preconceitos”.
Desse modo, segundo o pensamento da autora, o juízo provisório
analógico é inevitável no conhecimento cotidiano dos homens, mas está exposto ao
perigo da cristalização e é aí que reside o fundamento para os preconceitos e,
conseqüentemente, para os determinismos, dentre os quais os que fundam as
desigualdades de gênero.
Heller (1989, p.37) também discute outros fatores constituintes do
cotidiano dos indivíduos, que considera como “momentos característicos do
comportamento e de pensamento cotidianos”. Para ela, estes momentos
Formam uma conexão necessária. [...] Todos têm em comum o fato de
serem necessários para que o homem seja capaz de viver na cotidianidade.
Não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo, economicismo,
188
andologia, precedentes, juízo provisório, ultra generalização, mimese e
entonação (HELLER, 1989, p.37, grifos no original).
Conforme a autora, tais elementos não devem paralisar as ações e o
comportamento dos indivíduos, mas devem dar margem de mobilização. Entretanto,
caso se “absolutizem”, o que ocorrerá é a alienação da vida cotidiana. Destarte,
tratando-se da questão da alienação, deve-se salientar, antes de qualquer coisa,
que
A alienação é sempre alienação em face de alguma coisa e, mais
precisamente, em face das possibilidades concretas de desenvolvimento
genérico da humanidade. [...] A vida cotidiana, de todas as esferas da
realidade, é aquela que mais se presta à alienação. Por causa da
coexistência “muda“, em-si, de particularidade e genericidade, a atividade
cotidiana pode ser atividade humano-genérica não consciente, embora suas
motivações sejam efêmeras e particulares (HELLER, 1989, p.37, grifos no
original).
Concomitantemente, também ocorre que a estrutura da vida cotidiana,
embora esteja sempre sujeita à alienação, não pode ser tomada necessariamente
como uma estrutura alienada. Por ser constituída de diversos elementos e
dimensões, não se pode atribuir uma total alienação e nem mesmo o contrário, a
privação total dela. Entretanto, diante do contexto das sociedades, principalmente as
capitalistas - embora também ocorra em outras sociedades - cuja esfera econômica
produz várias implicâncias para a cotidianidade, há de se ter presente que “[...]
quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma dada
sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as
demais esferas. (HELLER, 1989, p.38)
Em relação à questão da alienação, é imprescindível compreender sob
quais aspectos a filósofa Heller a compreende. Assim, ressalta-se que numa
primeira consideração a alienação existiria quando da ocorrência de um abismo
entre o desenvolvimento humano-genérico conquistado de fato e as possibilidades
de desenvolvimento dos indivíduos particulares. Fica explícita a alusão à
apropriação do desenvolvimento genérico-coletivo feito indevidamente por alguns
indivíduos, em detrimento da possibilidade de alcance por parte de outros
indivíduos. Neste sentido, a própria autora é imperiosa na afirmação de que a
alienação residiria no abismo “entre a produção humano-genérica e a participação
consciente do indivíduo nessa produção” (HELLER, 1989, p.38)
189
Logo, em relação à vida cotidiana, não é possível atribuir a ela
objetivamente a alienação como se fosse conseqüência direta de sua estrutura. Mas
deve-se reconhecer que a alienação ‘pode’ ocorrer na vida cotidiana, sendo
determinantes para isto, as circunstâncias sociais que estiverem em vigência
(HELLER, 1989).
Ao transferir esta reflexão para a discussão proposta, novamente há
possibilidade de refletir segundo a realidade das mulheres camponesas militantes do
MMC e a realidade observada na pesquisa citada em páginas anteriores. Segundo o
pensamento de Heller (1989), em circunstâncias sociais de ausência de uma
ideologia coletiva crítica, onde o indivíduo particular encontra-se isolado em seu
cotidiano, vivendo apenas na e para a reprodução de padrões - automatismos - são
maiores as possibilidades de existência de alienação. Enquanto que, em
circunstâncias
sociais
onde
há
compreensão
sobre
os
avanços
para
o
desenvolvimento produzidos pelo homem e, em decorrência há incidência de uma
dinâmica que reclama a distribuição igualitária destes avanços, é menor a
probabilidade de alienação.
Portanto, diante do objeto deste estudo, reconhece-se que o Movimento
de Mulheres Camponesas orienta-se na direção de provocar que as mulheres
trabalhadoras do campo avancem do primeiro patamar para o segundo, liberando-as
da alienação da vida cotidiana, sem, contudo, retirá-las da própria cotidianidade.
Este acaba sendo um dos aspectos da identidade do Movimento: a formação política
e crítica oferecida às integrantes.
A formação política acontece desde o nível local, nos encontros dos
grupos de bases, através do estudo das cartilhas desenvolvidas pelo próprio
movimento, mas também no estudo de outros materiais disponíveis no âmbito dos
movimentos sociais e da sociedade em geral. Além disso, são promovidos espaços
específicos de formação, como cursos, encontros, congressos e semanas de
estudo, os quais ocorrem em diversos níveis organizativos do movimento, sem
deixar de considerar a formação política que acontece quando da organização,
preparação e efetivação de manifestações sociais. Como exemplo, podemos citar a
‘Jornada de Lutas das Mulheres Camponesas - 2009’, ocorrida em todo o Brasil,
com organização de atividades diferenciadas em cada Estado da Federação, ou a
190
ocupação da Aracruz Celulose, ocorrida em março de 2009, no estado do Espírito
Santo (evento que compôs o cronograma de atividades da já citada ‘Jornada de
Lutas’, o qual foi veiculado pela imprensa nacional como vandalismo do MMC do
Brasil).
O aspecto da formação política e crítica do MMC, enquanto elemento que
imprime identidade ao Movimento, também acaba propiciando situação favorável
para o surgimento de outros aspectos identitários, como a sua ’autonomia’ enquanto
movimento social. E isso, não casualmente, guarda nexos com a promoção da
autonomia de cada mulher camponesa integrante do Movimento. Portanto, o que
ocorre é que essa característica do próprio movimento colabora na construção das
identidades particulares dos indivíduos que compõem a sua coletividade. Embora
não se possa afirmar que isso ocorra para todos os aspectos da identidade do MMC,
há que se dizer que pode ser observado em vários deles42.
Retomando a discussão sobre a alienação e não-alienação na vida
cotidiana, compreende-se que a segunda é possível. Entretanto, isso ocorre quando
da existência concreta de relações sociais baseadas na liberdade e quando há
compreensão acerca do lugar que os indivíduos particulares e coletivos ocupam na
sociedade.
Como a própria Heller (1989, p.41) vem confirmar “[...] a condução da vida
não pode se converter em possibilidade social universal, a não ser quando for
abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução da
vida mesmo quando as condições gerais econômico-sociais ainda favorecem a
alienação”. Nesse sentido, nota-se que o Movimento de Mulheres Camponesas é
um exemplo de que este empenho voltado para a ‘não-alienação’ pode propiciar
resultados efetivos no cotidiano rural.
Tendo avançado nesta questão, retorna-se para a discussão sobre a
‘consciência’, já iniciada a partir de Marx e Engels (1984), e aqui retomada a partir
das contribuições do grande filósofo Lukács. Seu ponto de partida é dado pela
afirmação de que “[...] quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre
42
A questão da implicação entre identidades particulares e identidade coletiva também requer maior
discussão que poderá ser desenvolvida numa investigação posterior. Desde já, reconhece-se a
existência de indicativos de que o debate sobre o ‘particular-genérico’ é uma das vias para seu
enfrentamento. Entretanto, a questão que requer rigoroso cuidado teórico.
191
essa base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer-se dizer que
a consciência tem um real poder no plano do ser e não que ela é carente de força”
(LÚKÁCS, 1997, p.12).
Ora, note-se que esta assertiva é completa de significados e que nem
uma pesquisa dedicada somente a ela poderia exaurir as possibilidades de
desvendamento da ‘consciência’ e sua relação direta com a realidade. Então,
mesmo que, timidamente, afirma-se como possível apresentar alguns nexos
encontrados em relação ao objeto de estudo - no que tangencia ‘consciência e
realidade’ -, que poderão oferecer indicativos para posterior aprofundamento.
Ao afirmar que a consciência reflete a realidade, Lukács chama a atenção
para a importância da realidade na vida do indivíduo particular, bem como para o ser
humano genérico. Conseqüentemente, o indicativo é de que a realidade rural tem
significado fundamental na construção - apropriação - da consciência dos sujeitos
deste estudo, uma vez que seu ‘chão cotidiano’ é este mundo rural. Entretanto, ao
considerar a importância do real, deve-se atentar para o fato de que não se trata de
uma realidade aparente, momentânea e efêmera. O real de que se trata tem raízes
históricas, é fruto de processos sociais vividos por um grupo de indivíduos particulares e genéricos - e, sendo processo, também guarda nexos entre o ‘real
passado, presente e futuro’.
É, portanto, um processo num jogo de relações de forças que
transformam a realidade, a partir da própria ‘realidade refletida pela consciência’.
Esta, por sua vez, possibilita a vida presente, numa relação dialética com a passada
e a futura e que, muito embora esta última não possa ser determinada, pode sim ser
visualizada pela própria consciência, a partir da capacidade teleológica humana.
Ao se colocar a reflexão nesta ótica, resgata-se a questão chave da visão
de Lukács, que é, sem dúvida, a da ‘ontologia do ser social’. Note-se que todas as
contribuições que esse filósofo oferece têm como pano de fundo o debate e
aprofundamento sobre a ‘ontologia do ser social numa perspectiva materialista
dialética’. Destarte, sua estratégia para discutir a questão parte da própria ontologia
da atividade humana, ou melhor, do seu trabalho. Entretanto, na tessitura de suas
discussões, o filósofo vai explicitando que, para realizar a atividade-trabalho, é
192
necessário ao homem pensar, produzir indagações e respostas para que possa
chegar ao trabalho e ao produto do seu trabalho.
Logo, o que Lukács oferece é o indicativo para retornar à discussão sobre
a consciência, demonstrando como ela guarda nexos diretos com a origem da
humanidade, embora sempre afirme que é o trabalho a base fundante na ontologia
do ser social. Além disto, fica evidente no pensamento do autor, que é a existência
da ‘consciência’ que diferencia o homem dos demais animais.
Embora a ‘ontologia do ser social’ se dê pelo trabalho, para executar este
processo o homem necessita desenvolver sua consciência e é esse o fator que o
diferencia dos demais seres da natureza, tornando-o ser social. Isso é confirmado
quando ele diz:
Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal
tornado homem através do trabalho como um ser que dá respostas. [...]
Todavia, o núcleo da questão se perderia caso se tomasse aqui como
pressuposto uma relação imediata. Ao contrário, o homem torna-se um ser
que dá respostas precisamente na medida em que ele generaliza,
transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas
possibilidades de satisfazê-los; e quando em sua resposta ao carecimento
que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações,
freqüentemente bastante articuladas. De modo que não apenas a resposta,
mas também a pergunta é produto imediato da consciência que guia a
atividade [...] (LUKÁCS1997, p.16).
É a partir deste pressuposto que Lukács vai discutir o que, dentro da
concepção materialista histórica, se denomina de ‘teleologia’ - já introduzida
sutilmente em alguns parágrafos anteriores -, que de forma objetiva significa a
‘visualização, através do pensamento, do produto do trabalho - ação humana - antes
mesmo que ele tenha sua existência real’.
Portanto, já está presente aí a consciência humana, o que possibilita
afirmar que “o trabalho é formado por posições teleológicas que, em cada
oportunidade, põem em funcionamento séries causais”. Lukács ainda complementa
dizendo que “todo ato social, surge de uma decisão acerca de posições teleológicas
futuras” (LUKÁCS, 1997, p.18-19).
É possível perceber nessas reflexões que a consciência é algo próprio da
humanidade e que é ela que confere a genericidade do ser social. Assim, seguindo o
pensamento proposto pelo filósofo Lukács, afirma-se que a consciência é
componente essencial na constituição das mulheres camponesas, que as torna ser
193
social e sujeitos no mundo, tanto quanto os homens camponeses ou às mulheres e
homens urbanos.
Então, a questão a ser desvendada é: quais elementos da consciência
conferem identidade às mulheres camponesas - enquanto indivíduos sociais -, tanto
na dimensão particular, quanto na coletiva? E ainda, como acontece a passagem da
consciência de ser social particular (individual) para aquela genérica (coletiva)?
Seria através da interação social?
Essas são indagações surgidas a partir do presente estudo e se tem claro
de que suas possíveis respostas não serão encontradas nesta mesma reflexão,
dada a brevidade desta e a complexidade daquelas. Entretanto, reconhece-se o
indicativo de que tanto a consciência acerca do real - o mundo rural -, quanto a
existência de uma visualização de uma realidade - desejada - antes que ela venha a
se concretizar, são duas características que compõem a identidade do Movimento
de Mulheres Camponesas.
Ora, se por um lado, a primeira referência versa sobre o reconhecimento,
através da consciência, de aspectos da realidade camponesa, enquanto aspectos
constituintes desta identidade, por outro, a segunda referência reconhece na própria
‘mística’ do Movimento os aspectos de uma ‘teleologia que é elevada ao nível da
coletividade’, impulsionando neste mesmo âmbito as suas lutas.
Nesta última referência, especificamente, deparou-se com a questão da
possibilidade de se afirmar a existência de uma ‘teleologia coletiva’. Embora se
reconheça a necessidade de maiores aprofundamentos sobre a questão, encontrouse no próprio Lukács uma pista para a resposta. Segundo ele, “foi-nos possível,
neste local, mencionar apenas a base sócio-ontológica. [...] Todo evento social
decorre de posições teleológicas individuais; mas, em si, é de caráter puramente
causal. A gênese teleológica, todavia, tem naturalmente importância em todos os
processos sociais” (LUKÁCS, 1997, p.28).
Esta pista que parece afirmativa à indagação feita acima, é colocada em
suspenso quando o filósofo diz que quanto mais amplos forem os processos sociais
- processos globais, como ele os denomina - menores são as possibilidades de que
o pensamento teleológico venha se tornar real (LUKÁCS, 1997). Ele ainda
complementa:
194
O processo global da sociedade é um processo causal, que possui suas
próprias normatividades, mas não é jamais objetivamente dirigido para a
realização de finalidades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de
homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados produzem, via
de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido.
[...] Essa discrepância interior entre as posições teleológicas e os seus
efeitos causais aumenta com o crescimento das sociedades, com a
intensificação da participação sócio-humana em tais sociedades (LUKÁCS,
1997, p.29).
Mesmo considerando esta afirmação de Lukács, continua-se defendendo
a existência de uma teleologia coletiva do Movimento de Mulheres Camponesas, a
qual carrega, em si, os traços de uma identidade coletiva construída com base no
processo de reconhecimento (construção de consciência) de seus traços comuns,
sendo os principais o ‘ser-mulher’ e ‘ser-camponesa’, subentendido neste último o
reconhecimento de ‘ser-trabalhadora-camponesa’.
Essa teleologia - na compreensão elaborada até o momento - está
representada nos princípios do movimento, em seus objetivos e bandeiras de lutas,
mas principalmente na sua “mística revolucionária”, assumida e defendida pelas
integrantes como elemento forte para a identidade coletiva e para a renovação
cotidiana dos esforços empreendidos para atingir o ‘horizonte utópico’.
Afirmando
isto não
se
está
desconsiderando os processos de
organização, mobilização e atuação do MMC e a incidência de fatos e elementos
gerais que compõem o cenário social, econômico, político e cultural mais amplo da
sociedade. Pelo contrário, entende-se que eles são constituintes do próprio processo
social em que o MMC está envolvido, ou seja, são elementos do contexto
conjuntural da sociedade, que devem ser observados para que seja possível uma
compreensão mais próxima da dinâmica de qualquer movimento social. E o
Movimento de Mulheres Camponesas, como já foi reconhecido e afirmado em
parágrafos anteriores, vive com forte imbricamento a relação entre consciência e
realidade, fazendo disso uma de suas ‘molas propulsoras’ nas mobilizações sociais.
Lukács colabora para esta reflexão ao falar que
É verdade que a diferença entre finalidade e seus efeitos se expressa como
preponderância de fato dos elementos e tendências materiais no processo
de reprodução da sociedade. [...] Todavia, o fator subjetivo, resultante da
reação humana a tais tendências de desenvolvimento, conserva-se sempre,
em muitos campos, como um fator por vezes modificador e, por vezes, até
mesmo decisivo (LUKÁCS, 1997, p.29).
195
Ora, esta reflexão do filósofo parece confirmar a importância da ‘mística’
assumida pelo MMC, enquanto um horizonte revolucionário que se pretende atingir,
mas que já começa a ser real através da teleologia que move suas reflexões,
discussões e ações coletivas. Esta mística - denominada pelo movimento de ‘mística
revolucionária - existe enquanto subjetividade compartilhada e se associa aos
processos reais de lutas, protestos e negociações, na direção de conquistar a
concretude dos direitos sociais no campo.
Para finalizar as contribuições trazidas do pensamento de Lukács para
este estudo, relembra-se sua afirmação de que
É a consciência da melhor parte dos homens, daqueles que, no processo da
autêntica humanização, colocam-se em condição de dar um passo à frente
com relação à maioria de seus contemporâneos; e é essa consciência que,
a despeito de todo problema prático, empresta às manifestações desses
homens uma tal durabilidade (LUKÁCS, 1997, p.35).
Percebe-se, nesta afirmação, a importância da existência de Movimentos
Sociais e outras formas de manifestação coletiva que tenham no horizonte a
transformação societária, ou seja, que estejam orientados para o processo de
autêntica humanização. Reside nisso a importância da atuação do MMC, tendo
como horizonte consciente a luta na direção do socialismo, o que é expresso em
seus princípios e objetivos.
Dos fios ‘das identidades’, tecendo as tramas finais: amarrando as reflexões
apresentadas à guisa de encerramento do capítulo
Procurou-se, no último capítulo deste estudo, algumas reflexões sobre os
processos de construção de identidades, a partir de dois pensadores marxianos
(Heller e Luckács) e de uma das obras de Marx & Engels (A Ideologia Alemã) - em
se tratando dos aportes teórico-analíticos para o objetivo proposto. Evidenciando
que o olhar estava voltado integralmente para as mulheres camponesas e para o
Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil - MMC, pode-se afirmar que, apesar
do desafio, foi possível perceber várias ligações entre os aportes teóricos e a
identidade do MMC.
196
Dado que as reflexões teóricas foram permeadas pelas características
percebidas no MMC como constituintes da identidade do movimento, não caberá
neste item repeti-las, mas sim, reforçar os nexos já evidenciados no quarto item
deste estudo. É através desses nexos e de seus elementos que se acredita ser
possível desvendar o processo de construção da identidade coletiva do movimento
social em questão.
Ao encerrar a discussão, salienta-se que desde que se decidiu abordar a
temática, tinha-se como pano de fundo para a análise da ‘matriz identitária’ do MMC
a categoria ‘cotidiano’ de Agnes Heller (1989). Entretanto, após uma orientação com
a Professora Maria Lúcia Martinelli - especialista no assunto - notou-se a
necessidade de incluir outros pensadores e outras categorias de análise. Foi assim
que se incluiu Marx & Engels e também Lukács.
Acompanhando-os,
vieram
novas
categorias
como
‘consciência’,
‘teleologia’, ‘ser particular e ser humano-genérico’, ‘realidade’, ‘alienação’, entre
outras. Foram elas que possibilitaram estabelecer os nexos entre os fios da
identidade do Movimento, reconhecidos nos objetivos, princípios, valores, bandeiras
de luta e na própria mística declarada publicamente pelo MMC, em seus materiais e
no seu site na Internet43.
Assim, pode-se assegurar de que se reconhece a existência de uma
identidade construída pelo próprio MMC, onde figuram como elementos centrais a
mobilização e a manifestação em torno de datas significativas para as mulheres e
para o mundo rural; o reconhecimento e a valorização da profissão; as falas
denunciantes da realidade rural excludente; as lutas reivindicatórias de direitos
sociais. A esses elementos agrega-se o fato de o MMC assumir-se como
‘movimento autônomo, democrático, popular e classista’ - já que é composto por
trabalhadoras do campo - além de ser portador de uma mística revolucionária, que o
sustenta nas lutas travadas no cotidiano de cada integrante e também naquelas
assumidas coletivamente, através das manifestações organizadas pelo Movimento.
Segundo os dados institucionais, “nossa causa maior é a transformação da
43
Como fonte principal destas informações, acessou-se o site do Movimento de Mulheres
Camponesas do Brasil, cujo endereço eletrônico consta nas referências.
197
sociedade
na
perspectiva
socialista”
(MOVIMENTO
DE
MULHERES
CAMPONESAS, 2009).
Destarte, é notória a existência de uma consciência acerca da realidade
destas mulheres, que as baliza fundamentalmente no mundo camponês, enquanto
mulheres e também enquanto trabalhadoras. Desta consciência decorre a noção de
que o movimento coletivo se faz através das várias singularidades presentes em
cada camponesa que faz parte do movimento. Esta mesma consciência permite a
elas imprimir maior criticidade e politização as suas falas, reflexões, atitudes,
decisões e à própria organização, afastando, com isto, as probabilidades de
alienação de seu cotidiano.
Além disto, numa perspectiva teleológica, estas mulheres animam,
alimentam e reforçam suas lutas coletivas e também o dia-a-dia de cada integrante,
ao renovar constantemente sua mística, a qual se fundamenta - basicamente - em
seus princípios e valores. Desta forma, integradas a partir da sociabilidade humana
e de suas necessidades, vão se consolidando enquanto um dos Movimentos Sociais
do Campo e de Gênero mais expressivos das últimas décadas.
E, sem esquecer-se da categoria que primeiro provocou este estudo, é
imprescindível dizer que isto tudo acontece no chão do cotidiano destas mulheres. É
neste cotidiano que a história de cada uma dessas mulheres e também de toda a
sociedade vai sendo construída: individualmente, coletivamente, conscientemente,
cotidianamente.
Portanto, ao sintetizar as principais ligações entre os fios que compõem
as tramas da identidade do MMC, observou-se que é plenamente possível construir
um processo de desvendamento da identidade dos Movimentos Sociais a partir da
perspectiva do materialismo dialético e das categorias analíticas estabelecidas por
Marx & Engels e pelos marxianos Heller e Lukács, embora se reconheça que o que
se fez neste estudo foi o início das primeiras aproximações e que a questão
demanda maior investigação.
Resta agora o desafio de aprofundar algumas das reflexões aqui
introduzidas – numa perspectiva teórica -, bem como de procurar mais elementos
que possibilitem construir respostas sobre o tema para as indagações que ainda
permanecem em aberto. E, da mesma forma como se iniciou este capítulo da
198
dissertação, falando dos desafios que se propunha superar na caminhada
investigativa, finaliza-se afirmando que muitos deles realmente foram superados,
outros tantos ainda requerem um olhar cuidadoso, e, outros mais surgiram na
trajetória percorrida. Portanto, cumpre aceitá-los e, a partir disso, procurar
criticamente descobrir novos caminhos a construir.
Dito isto, eis então que se parte para o quarto e último capítulo da
dissertação, no qual acontecerão vários encontros. Alguns deles acontecerão entre
os sujeitos da investigação com a própria pesquisa, outros ocorrerão entre os
sujeitos e a investigadora e outros ainda entre os próprios sujeitos da pesquisa.
Neles procurar-se-á reconhecer o caráter das lutas do Movimento de
Mulheres Camponesas, as vivências e objetivos que estão por trás de suas
reivindicações, a forma como acontecem os processos de transformação de
mulheres camponesas em militantes e, até mesmo, em atrizes do cenário político, e,
por fim, o significado das conquistas na vida das mulheres e para o cotidiano das
famílias camponesas.
199
QUARTO CAPÍTULO
O CAMPO, OS MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES E O MMC
NA VOZ DAS MULHERES CAMPONESAS
Mulher Agricultora, heroína da terra,
Herói sem medalha que luta sem guerra.
Mulher agricultora cultiva o chão,
Produz alimentos para o povo da nação.
É uma mistura de muita fé e coragem,
Carregando na bagagem muita fibra e canção.
Quebrando correntes, derrubando a opressão,
Mulher agricultora, força nobre da nação.
Passagem do Hino do
Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina
Letra e música de Salete Fornaro
200
Sobre o caminho e os caminhantes da última parte dessa empreitada!
Nesse capítulo, será realizada a discussão dos elementos que
compuseram os três capítulos que o antecedem na estrutura geral do presente
trabalho, sejam eles: o rural; os movimentos sociais; e a identidade construída a
partir do cotidiano: trabalho, família e comunidade, os quais, através de seus
princípios e valores, compõem as relações sociais camponesas. Tais elementos
agora passam a ser debatidos à luz dos fundamentos teóricos, dos materiais
documentais do Movimento de Mulheres Camponesas - MMC e dos enriquecedores
diálogos realizados com as militantes do MMC/SC em Terras Catarinas.
A discussão de cunho analítico parte agora das ‘falas das entrevistadas’.
Logo, será utilizada no presente capítulo a linguagem própria das três militantes,
com quem se estabelece um diálogo, a fim de que se possa ‘dar voz aos sujeitos da
investigação’, permitindo-lhes falar e expressar sobre suas trajetórias, cotidiano e
lutas.
Esta discussão está organizada em cinco importantes eixos decorrentes
das indagações que estiveram presentes em todo processo investigativo, marcando,
inclusive, o roteiro que orientou a realização das entrevistas44. Feitas essas
considerações, poder-se-ia perguntar: como se pretende chegar às respostas das
indagações que sempre perseguiram a investigadora em seu percurso de pesquisa
e que, freqüentemente, não lhe ofereciam possibilidades de solucioná-las?
Ora, a grande questão é que um elemento inédito é acrescentado, neste
momento, ao percurso da investigação. Embora ele estivesse previsto desde o início
do planejamento da pesquisa, somente objetivou-se na parte ‘quase final’ do
percurso da caminhada e foi assim definido: a voz das mulheres camponesas do
Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil, no Estado de Santa Catarina45. Foi
partir das falas das protagonistas dessa história que se procurou dar visibilidade ao
cotidiano de vida, às lutas, às conquistas e às perspectivas das mulheres
camponesas do MMC, militantes e dirigentes do Movimento em terras catarinenses.
44
Apêndice I: Roteiro de orientação para entrevista.
45
Apêndice II: Termo de livre consentimento para entrevista.
201
Entretanto antes de iniciar a análise das falas das entrevistadas, torna-se
necessário conhecê-las! Logo, passa-se a evidenciar quem são as camponesas com
quem se dialogou durante o período da pesquisa em que se procedeu ao
recolhimento dos dados de campo. Essa identificação torna-se indispensável a partir
deste momento, pois será por meio das falas destas mulheres que se começará a
tratar, especificamente, do objeto desta investigação: o Movimento de Mulheres
Camponesas – MMC, em sua organização e atuação no estado de Santa Catarina.
Além disso, é importante localizar temporalmente as falas das
entrevistadas, bem como o âmbito de suas participações, já que não será possível
interpretar os discursos dos sujeitos, sem localizá-los também na trajetória histórica
do Movimento (MMC/SC).
Destarte, a primeira a ser identificada é Noeli, uma mulher camponesa em
seus 29 anos de idade, cujo início da militância remonta o ano de 2003.
Rapidamente essa jovem camponesa avança da participação em seu grupo de base
do Movimento - localizado numa comunidade rural do município de Tunápolis - para
a militância como dirigente regional e estadual do MMC/SC, onde é responsável
atualmente pela ‘Direção Estadual de Lutas’.
Noeli, enquanto militante do Movimento, mas também como dirigente
estadual, atua diretamente em âmbito regional e estadual, além de participar de
várias atividades em âmbito nacional. Sua experiência no Movimento retrata,
inclusive, informações de nível internacional, já que representou o Movimento de
Mulheres Camponesas do Brasil em atividades fora do país. Como exemplo, no ano
de 2008 foi à Alemanha participar do ‘Encontro sobre o Protocolo de Cartagena’ e da
‘Conferência das Partes’, as quais trataram da diversidade biológica. É com base na
participação nestes diversos âmbitos, que sua fala expressa um olhar que percorre
desde o nível de base do MMC, avançando para os níveis regional, estadual,
nacional e internacional.
Apesar de Noeli ser a militante mais jovem do grupo das camponesas
entrevistadas – tanto por seus vinte e nove anos de vida, quanto pelos seus seis
anos e meio de militância -, sua fala demonstra a compreensão da trajetória histórica
do movimento, conquistada através da partilha de experiências realizada com outras
militantes do Movimento, cujas participações remontam desde a década de 1980.
202
Portanto, embora o diálogo com ela traga como marca o contexto contemporâneo da
organização e mobilização do MMC/SC, em vários momentos sua reflexão remete
aos períodos que marcaram a história do Movimento nas duas décadas anteriores:
1980 e 1990.
A segunda militante a ser identificada é Justina Inês Cima, uma mulher
trabalhadora do campo, com 53 anos de vida, que participa do MMC desde o seu
surgimento em 1983. Justina também deve ser considerada como uma das
militantes do Movimento que teve intensa atuação na esfera política da região oeste
catarinense, onde mora. Foi vereadora pelo Partido dos Trabalhadores e candidata à
vice-prefeita no município de Formosa do Sul na década de 1990, além de candidata
a Deputada Estadual por este mesmo partido.
Atualmente Justina mora no município de Quilombo, ainda na região
oeste de Santa Catarina. É dirigente do MMC em nível estadual, tarefa assumida
desde o ano de 1992 e também dirigente em nível nacional, cuja responsabilidade
assumiu desde o ano de 1995. Além disso, é importante registrar que Justina marca
sua participação no Movimento desde o grupo de base em sua comunidade,
chegando a ser sua representante junto à Articulação Nacional das Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Brasil – ANMTR, à Coordenação Latino-Americana de
Organizações do Campo – CLOC e à Via Campesina, em nível mundial. Por
conseguinte, sua fala é fortemente marcada por uma análise crítica da sociedade em
sua totalidade, abarcando reflexões que remetem desde a cotidianidade de vida dos
indivíduos sociais – inclusive aqueles urbanos – até o âmbito geral de organização
da sociedade capitalista ocidental.
Já a terceira militante a ser identificada é Luci Teresinha Choinaki, uma
mulher camponesa de 55 anos, cuja participação em mobilizações e lutas sociais
remonta ainda o final da década de 1970, no contexto das Comunidades Eclesiais
de Base – CEB’s da Diocese de Chapecó (SC). Luci participou ativamente do
processo que originou o Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA, como foi
inicialmente denominado em Terras Catarinas. Configura-se como uma figura
política de destaque na história do Movimento, pois foi a militante que assumiu junto
ao Movimento a tarefa de atuação direta na esfera Legislativa, com intenção de
203
fazer com que as reivindicações do Movimento lograssem vez e voz nesse espaço e
se tornassem direitos efetivos.
Portanto, Luci é a camponesa que fez, juntamente com suas
companheiras de militância social e política, a interligação entre as lutas sociais
camponesas e a esfera estatal, colaborando para tornar conquistas históricas
algumas de suas reivindicações. É importante ressaltar que Luci foi eleita –
majoritariamente por mulheres camponesas do Movimento – Deputada Estadual no
mandato de 1987 a 1990 e Deputada Federal nos mandatos de 1990 a 1994 e 1998
a 2002, sempre no âmbito político do Estado Catarinense.
Antes de sua participação direta na esfera política, Luci havia sido
dirigente, pelo MMC/SC - nas esferas municipal, regional e estadual - trabalhando
em vários setores de direção, dentre os quais destacou, durante a entrevista, a
atuação na direção da comissão estadual de ‘Previdência Social’. Depois de sua
primeira eleição como Deputada Estadual, Luci retirou-se do quadro de dirigentes e
passou a se identificar somente como militante do MMC/SC, uma vez que os cargos
legislativos lhe exigiam dedicação exclusiva – dado seu compromisso ético com o
eleitorado e visando uma atuação efetiva.
Atualmente, vive na capital catarinense, onde ocupa o cargo de
Presidente Estadual do Partido dos Trabalhadores. Assim, desde o ano de 1985
percorre todo o território catarinense, atuando tanto no âmbito estadual como
nacional, tendo sua identidade fortemente marcada pelo fato de ser mulher,
trabalhadora e camponesa.
Foram estas as três mulheres camponesas - Justina, Luci e Noeli – que,
muito gentilmente, falaram sobre ‘a expressão do campo na atual sociedade
capitalista’, sobre ‘os movimentos sociais camponeses no Brasil’ e, especialmente,
sobre ‘o Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil – MMC/Brasil’, relembrando
e significando sua trajetória histórica, a construção da identidade e as lutas sociais.
Foram elas também que contaram sobre ‘os direitos sociais e as políticas públicas
para o campo’, destacando as conquistas, as demandas e as atuais reivindicações
das mulheres camponesas organizadas nesse Movimento.
Por fim, foram essas mulheres camponesas que conversaram sobre ‘a
relação entre Serviço Social e espaço rural’, mesmo ponderando sobre o desafio
204
que isso significa para todas e todos os indivíduos que se encontram afastados
dessa profissão. Dito isto, ainda é imprescindível expressar duas questões, antes de
partir para a grande e última aventura investigativa desse ‘processo de dissertar’.
A primeira é que, embora aqui se avance numa aproximação às respostas
das indagações que perseguiram a pesquisadora, não se pretende esgotá-las,
sendo um dos motivos o reconhecimento de que isso é tarefa impossível e o
reconhecimento de que toda investigação finaliza abrindo brechas para novas
indagações, portanto, para o surgimento de novas demandas investigativas. Esse é
o processo. Esse é o caminho. Essa é a dialética investigativa, logo, essa também é
a luta. Investigar é construir, é caminhar e é lutar, tendo como horizonte investigativo
maior a singela colaboração para a transformação societária.
A segunda questão que precisa ser marcada, é que se nota que as falas
das protagonistas dessa história poderiam ter permeado as discussões teóricas
apresentadas nos três capítulos anteriores, procedimento esse que enriqueceria o
debate e tirar-lhe-ia o ‘peso’ de um discurso apenas de cunho teórico. Entretanto,
isso não foi possível, dado que para conseguir dialogar – à altura do seu saber - com
as mulheres camponesas de Santa Catarina, foi necessário antes adentrar nas
construções teóricas sobre o campo, os movimentos sociais no Brasil, os
movimentos sociais camponeses e sobre as questões do cotidiano e da identidade
das mulheres camponesas. Por conseguinte, o encontro com tais protagonistas
somente aconteceu no momento em que já se tinha avançado na construção teórica
de um novo saber, objetivado nos três capítulos anteriores.
Enfim, feitas essas considerações, parte-se para a nova empreitada!
205
PRIMEIRA SEÇÃO
A expressão do campo na atual sociedade capitalista
4.1.1 “Não dá para tratar do campo como uma coisa única”
Ao iniciar o diálogo com as mulheres camponesas, tinha-se como
pressuposto delimitar o âmbito do que se pretendia conversar, tanto como
procedimento de investigação, mas fundamentalmente como estratégia para
conhecer qual é a concepção que as mulheres camponesas entrevistadas têm sobre
o lugar onde vivem. Esta concepção é importante porque se entende que é ali que
está a referência para suas falas. Esta foi uma das primeiras questões para
estabelecer o diálogo, sendo que a curiosidade investigativa que movia a
investigadora para a troca de saberes direcionava-se para a ‘concepção sobre o
campo no Brasil, segundo as camponesas entrevistadas’.
Essa indagação - que também esteve presente no primeiro capítulo deste
estudo, em que se percorreram os fundamentos clássicos da sociologia rural –
possibilitou, da parte da investigadora, ter como pressuposto para a conversa de que
o ‘rural’ é constituído por uma significativa diversidade de características,
dependendo do contexto sócio-histórico, das relações, da conjuntura política,
cultural, econômica e social da realidade. Embora não se tenha pronunciado isso
diretamente, a fim de preservar a autenticidade das respostas das entrevistadas, o
pressuposto da investigadora indicava a existência da diversidade conceitual e de
realidade do ‘campo’, sugerindo a necessidade de especificar sobre ‘que rural era
aquele que seria objeto da conversa’.
Em contrapartida aos pressupostos da investigadora, as militantes do
MMC foram logo apresentando os seus, indicando suas concepções acerca do rural
e, ao mesmo tempo, explicitando a necessidade de uma discussão que precede o
nível conceitual. Conforme uma das entrevistadas:
Em primeiro lugar, quando se fala do campo é preciso demarcar bem a
agricultura camponesa e o agronegócio. Em segundo, para falar do campo,
temos que falar do Brasil onde o latifúndio permanece em contraposição à
206
reforma agrária que continua com dificuldade de desenvolvimento, e isto é
fundamental nesse olhar. Terceiro, é imprescindível notar que apesar do
pouco incentivo, a agricultura camponesa se mantém e se mantém
resistindo. [...] Veja que 70% de toda produção que é consumida no Brasil é
produzida pela agricultura camponesa, com organização e mão de obra,
predominantemente, familiar (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009).
Ora, foi assim que as próprias militantes camponesas indicaram qual seria
o primeiro elemento de análise: a distinção de classes sociais no meio rural! Isso o
fizeram ao apontarem para a imprescindibilidade de demarcar que o ‘campo’
brasileiro é constituído de contradições e desigualdades, as quais demarcam a
pequena e a grande produção; a existência do latifúndio e do ‘não acesso - de fato à propriedade da terra; a incipiente reforma agrária; e a inexistência de
investimentos públicos para a agricultura camponesa, em contraposição à ‘teimosia
dos pequenos camponeses’ que resistem em suas atividades laborais e em seu
modo de vida, mesmo diante da conhecida falta de incentivo.
Note-se que o elemento central das contradições apontadas acima –
como já expresso anteriormente - reside na ‘questão de classe’. Destarte, aponta-se
que não é verdadeiro o argumento de alguns estudiosos do Serviço Social, que
fundamentados em releituras marxistas, não reconhecem no ‘campo’ a presença das
categorias analíticas marxistas e, por isso, não visualizam como trabalhar com as
expressões das lutas de classe nesse contexto. Com isto, justificam que tal espaço e
seus sujeitos passaram a demandar pouca atenção, esforço investigativo e
interventivo da profissão, a partir do momento em que a categoria rompeu com a
matriz conservadora e passou a adotar a matriz crítica do materialismo dialético
marxista como perspectiva teórica.
Logo, reconhecendo que para as entrevistadas o elemento fundamental a
ser considerado na identificação do ‘meio rural’, possui como questão central a
distinção de ‘classe social’, afirma-se a necessidade de que seja atribuída relevância
e visibilidade a essa dimensão contraditória do capitalismo. Somente a partir do
reconhecimento desse pressuposto é que se pode intentar a discussão sobre a
realidade do campo no atual estágio histórico da sociedade capitalista brasileira.
Observe-se que tal pressuposto também é confirmado por outra militante do MMC,
quando essa afirma de forma semelhante que
Em primeiro lugar, no campo você precisa distinguir as classes sociais,
porque não dá para tratar do campo como uma coisa única. Temos o campo
207
do agronegócio, das grandes fazendas, dos latifundiários e o campo dos
camponeses, das trabalhadoras e trabalhadores do campo, dos
assentamentos do Brasil que têm diferenças neste olhar para o campo
(LUCI, Florianópolis, setembro de 2009).
Deste modo, há que se salientar que a necessidade de delimitação do
campo não foi novidade, pois isso já se fazia presente nas discussões elaboradas a
partir dos referenciais teóricos discutidos anteriormente. Entretanto, a grande marca
deixada no diálogo com as entrevistadas foi a intensidade com que as mulheres
camponesas significam a distinção de classes sociais no campo, como requisito sine
qua non para discutir sua realidade.
Percebe-se que, com o aprofundamento do capitalismo – ora no estágio
do ‘capital fetiche’46, sob o comando do capital financeiro e das políticas neoliberais , cada vez mais crescem as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais,
tornando-se gritantes as diferenças de classe e acirrando de forma espantosa as
expressões da Questão Social, que ocorrem tanto no meio urbano, quanto no rural.
Por conseguinte, ao discutir sobre o ‘campo’ – ou espaço rural, como se
prefira – também se torna imprescindível delimitar o modo de produção vigente e
seu estágio de aprofundamento na sociedade, já que se compreende o ‘campo’
como espaço de produção constitutivo do conjunto da sociedade. Somente a partir
dessa contextualização é possível pensar nas desigualdades produzidas e na
decorrente luta de classes, as quais imprimem reflexos nos modos e condições de
vida dos indivíduos sociais camponeses.
Neste sentido, as militantes do MMC indicam que contextualizam sua
organização, estratégias de lutas e reivindicações, no modo de produção capitalista,
o qual não se constitui como modelo de produção e de vida em sociedade que
possibilite o desenvolvimento da autonomia e da emancipação dos indivíduos
sociais, especialmente das mulheres camponesas, no caso dos objetivos do
Movimento. Por este motivo, assumem como ideário – ou horizonte utópico, na
expressão do movimento – a luta pela transformação societária na perspectiva
socialista.
Tal conjetura é expressa por uma das militantes, ao dizer que
46
Categoria de análise marxista, discutida pelo Serviço Social na atualidade por diversos autores,
dentre os quais se destaca Iamamoto (2008). Referência completa ao final do estudo.
208
O que nos orienta é uma análise que o modelo capitalista, que se coloca
nos últimos tempos como o ideal de organização da sociedade, não vem
dando conta de si e vem criando várias crises para ele mesmo. [...] Por isso,
indicamos que o grande desafio, que também é representado pela luta de
classe e de gênero, diz respeito à questão estrutural da sociedade que é a
superação do modelo capitalista (JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009).
As reflexões acima permitem afirmar que o rural é também o espaço do
contraditório, das lutas de classe e de gênero, das disputas e dilemas ideológicos e,
dadas tais condições, é também o espaço onde é possível o movimento dialético de
transformação, uma vez que são as contradições do sistema que alimentam sua
transformação. Logo, o rural torna-se um espaço pleno de potencialidades de
transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, que se direcionam para a
construção de ‘outra ordem’, em contraposição à ordem capitalista.
4.1.2 “O dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados
como cidadãos de primeira classe”
Dadas as análises anteriores, passa-se a considerar outras dimensões do
modo de vida e de produção camponesas. Para tanto, o novo ponto de partida é o
reconhecimento de que ele é constituído por trabalhadores e trabalhadoras rurais,
que organizam seu modo de vida e de trabalho a partir da agricultura familiar. Esse
tipo de agricultura é desenvolvido no espaço das pequenas propriedades rurais, mas
também em terras arrendadas, em propriedades rurais onde encontram trabalho
remunerado – seja temporário ou permanente -, ou até mesmo em terras ocupadas.
Nelas, a mão-de-obra que produz a subsistência é predominantemente familiar,
sendo importantes as relações sociais, familiares e comunitárias, as quais fornecem
os referenciais de segurança social, propiciados através do compartilhamento do
trabalho e também dos princípios e valores de vida.
Conforme indica Justina,
[...] A agricultura camponesa exige viver um ‘modo de vida em comunidade’.
Então você não vai desenvolver a agricultura camponesa individualmente,
ela tem relações de entre-ajuda, de solidariedade, logo, é uma vida de
comunidade, [...] onde quem trabalha e produz é o núcleo familiar, que
convive e compartilha das mesmas relações de comunidade, relações
familiares e relações de trabalho. [...] Portanto, nós do MMC estamos
falando do campo da agricultura camponesa, que produz 70% de toda
209
produção que é consumida no Brasil, com organização e mão de obra,
predominantemente, familiar, numa esfera em que se defende uma
produção equilibrada entre a produção de alimentos e a preservação do
ambiente, onde nossa grande meta, nosso maior sonho é chegar a uma
agricultura ecológica (Chapecó, setembro de 2009).
Essa é a expressão do ‘campo’ para o Movimento de Mulheres
Camponesas, sendo que tal característica também imprime, inclusive, os traços da
identidade das mulheres camponesas, dos movimentos sociais do campo e, por fim,
do próprio MMC.
Há que se problematizar que, nessa expressão do campo, há elementos
como ‘solidariedade’ e ‘comunidade’ que, de forma geral, se reportam à perspectiva
conservadora e funcionalista. Tal referência imprime a idéia de organicidade
funcional e sistemática, sendo esses alguns dos traços que levam estudiosos a
afirmarem que o meio rural é o lugar do conservadorismo e do tradicionalismo; e,
portanto, a negarem a este lugar a possibilidade de ser um espaço de transformação
e, conseqüentemente, de ação profissional.
Neste sentido, não se pode deixar de comentar que as características
destacadas acima conformam, sim, o perfil da vida no campo. Entretanto, elas não
fazem deste modo de vida algo fixado no passado, enrijecido em valores e princípios
que não se transformam. Outrossim, essas características remetem ao fato de que
no campo, tanto os indivíduos quanto as relações sociais continuam num plano
bastante pessoal e encontram, neste mesmo âmbito, visibilidade no contexto social,
contrapondo-se à impessoalidade do espaço urbano. Nele a massificação encontra
menos ancoradouros para se firmar e reproduzir e, muito embora, os modelos e
padrões culturais da sociedade sejam incorporados, eles encontram dificuldade para
se desenvolver. Por esse mesmo motivo, o campo continua sendo um espaço
profícuo para organizações sociais e políticas, enquanto no contexto urbano essa
questão já se tornou mais difícil de ser efetivada, uma vez que a competitividade, a
individualismo, a falta de segurança social, entre outras características, fazem com
que a organização social e política encontre terreno menos profícuo para se
desenvolver.
210
Assim, nota-se nexo direto entre tais características, o perfil acerca do
‘rural’ levantado no primeiro capítulo47 e a fala das militantes do MMC, quando
afirmam que ‘o campo é visto pela sociedade como o lugar do atraso’. Note-se que
todas as militantes referem-se ao ‘desmerecimento’ que o campo sofre, o qual é
difundido pelos meios de comunicação, mas também pelas instituições da sociedade
e pelos cidadãos urbanos.
Para Justina, ‘o atraso’ refere-se principalmente à questão do progresso
tecnológico, o qual é defendido pela sociedade capitalista a qualquer custo,
independente dos meios empregados e das conseqüências ambientais e de saúde
que podem ser acarretadas, uma vez que é esse mesmo progresso tecnológico que
possibilita firmar e fortaleceer o capitalismo no contexto contemporâneo.
Agora, quando você pergunta como ele é visto, infelizmente, para a maioria
da sociedade o campo da agricultura camponesa e familiar é visto como o
atraso, como ignorante, já que o moderno é plantar transgênico, é fazer as
roças extensivas com insumos, com venenos, com herbicidas etc. logo esse
rural camponês ainda é visto como um lugar de atraso (Chapecó, setembro
de 2009).
Veja que para ela a defesa de ‘outra forma sustentável de produzir’ está
ligada ao bom-senso e à sensibilidade de perceber e se relacionar com o meio
ambiente, de forma a garantir condições de vida para as gerações futuras. Além do
que pode significar, fundamentalmente, a luta contra-hegemônica ao capitalismo
tecnológico e financeiro, pois significa um modo de produção alternativo à
dependência produzida pelo mercado capitalista.
Luci também faz sua reflexão de forma semelhante, ressaltando que a
agricultura camponesa é desconsiderada no âmbito da produção econômica. Para
ela
Pode-se dizer que ainda hoje não se percebe como os pequenos
camponeses são importantes economicamente, logo, não se valoriza eles.
Olha-se para os camponeses como ‘alguém pobre do campo’, que não se
deu bem, que não tem cultura, que não progrediu e não virou grande
fazendeiro ou um pecuarista porque não teve sucesso. Então, a sociedade
– na minha opinião –, a mídia e o próprio pensamento brasileiro colonizador
ainda permanecem com esse olhar para os pequenos camponeses, tanto
que são tratados como ‘menos inteligentes’. Isso é uma ofensa à realidade
social, econômica e inclusive cultural, porque não há respeito,
47
Apesar de que a maioria das referências dos estudos clássicos de sociologia rural, utilizados para
fundamentar o primeiro capítulo, remete a essa caracterização, sugere-se dar atenção especial às
considerações de Henri Lefebvre e de Aldo Solari, apresentadas nos itens 2.1 e 2.2 do referido
capítulo.
211
reconhecimento a sua forma de vida, de cultura, de produção. [...] Penso
que o dia que existir este reconhecimento os camponeses serão tratados
como cidadãos de primeira classe. Pois, se hoje alguém consegue ter uma
alimentação melhor na cidade, ou seja, uma alimentação mais saudável, é
porque estes cidadãos de primeira classe lá do interior, geralmente vistos
como menos capazes, conseguem produzir uma alimentação mais
equilibrada, sem deixar de se responsabilizarem pela preservação da
natureza (Florianópolis, setembro de 2009).
Já para Noeli, o ‘atraso’ conferido ao camponês e ao seu modo de vida e
de produção tem nexo direto com a questão da educação, no que tange à
possibilidade de acesso e, posteriormente, o nível de instrução, o qual teria como
conseqüência a conquista de um trabalho urbano. Conforme a militante
A gente tem que reconhecer, sim, que a sociedade faz diferença entre os
homens e mulheres do campo e os homens e mulheres da cidade. Porque é
bastante visível que para a maioria das pessoas o indivíduo do campo é
aquele atrasado, que não conseguiu oportunidades para estudar e trabalhar
na cidade. Isso é devido, em partes, porque na cidade para você conseguir
um emprego, predominantemente, você precisa ter nível de instrução
superior e na agricultura esse grau de escolaridade não é exigido e isso faz
com que muitos setores da sociedade pensem que o pessoal que está na
roça é burro, é aquele que não sabe nada, que está lá porque não tem outra
opção. Essa questão é bastante notória quando nós, do Movimento, vamos
em algum espaço da sociedade fazer alguma fala, participar de palestras ou
debates, fazer algum trabalho enquanto movimento de mulheres. Desde o
início a gente se apresenta como agricultora e no final, dependendo da fala
e do trabalho que se realiza, as pessoas perguntam: mas como que você
sabe isso se você mora no campo? Logo, parece mesmo que quem mora
no campo, de fato, não teria competência ou possibilidade de compreensão
da própria sociedade.
Ora, fica premente que, tanto em nível teórico, quanto no nível do
cotidiano da sociedade, o campo continua sendo considerado como o âmbito das
relações tradicionais; do modo de vida que conserva o passado, o espaço em que
podem viver e conviver os indivíduos que não alcançaram o progresso e os avanços
da sociedade capitalista. Um lugar envolto no passado e reservado para aqueles
que não conseguem, ou optam por não acompanhar o progresso proporcionado à
sociedade pelo modo de produção capitalista. Estas, dentre outras, são atribuições
de desvalorização direcionadas para o campo e para os indivíduos sociais
camponeses no contexto capitalista neoliberal.
Para esse cenário e para os sujeitos que nele vivem não haveria
necessidade de dedicar olhares, atenção e, nem mesmo, ações, pois eles se
configurariam como um quadro à parte da sociedade capitalista, embora
paradoxalmente essa mesma sociedade se sirva do camponês, de seu trabalho e de
seu modo de vida para subsistir enquanto modo de produção hegemônico.
212
Diante
de
todo
esse
enredo,
é
possível
assegurar
que
as
desconsiderações econômica, cultural, social e política, expressas nas falas das três
militantes, têm como conseqüência o não reconhecimento dos direitos dos cidadãos
camponeses, excluindo-os do rol de demandatários e público-alvo das políticas
públicas e, consequentemente, destituindo-os de sua cidadania – ou, pelo menos,
atribuindo-lhes uma cidadania desigual em relação aos indivíduos urbanos.
Neste sentido, chama-se a atenção para as indagações que marcaram,
desde o início, esse estudo: qual é o olhar que o Serviço Social dedica ao meio
rural? Qual é o olhar que esse meio e os indivíduos camponeses demandam para a
profissão? Além destas, acrescenta-se o questionamento: como o Serviço Social
corrobora para a construção desse quadro inaceitável de atribuição de uma
cidadania desigual para os sujeitos rurais? E ainda: o que seria necessário para que
seu trabalho incorporasse o olhar para o ‘campo’, permitindo reconhecer nele as
demandas que requisitam sua atuação profissional?
Portanto, mesmo sem respostas para essas perguntas, reconhece-se que
a circunstância de exclusão do camponês da atual sociedade torna-se muito
favorável tanto para o Estado, em seu processo de negação das responsabilidades
públicas na execução das políticas sociais e na garantia dos direitos, quanto para o
próprio mercado, o qual explora – mesmo que invisivelmente – o campo, retirandolhe as riquezas socialmente produzidas e responsabilizando-o de encontrar
alternativas para sua subsistência em tempos nos quais a natureza já se encontra
praticamente exaurida de recursos.
Respeitando seus compromissos ético-políticos no sentido de garantir
direitos, e no horizonte da transformação societária, cabe, ao Serviço Social –
extensivo a todas demais profissões de caráter social e político - incorporar em sua
bandeira de luta o reconhecimento e a valorização do campo enquanto modo de
vida e produção; das mulheres e homens camponeses como indivíduos sociais
portadores de especificidades, mas também de direitos. E, finalmente, o
reconhecimento e a valorização dos movimentos e organizações sociais que se
dedicam à luta contra-hegemônica ao capitalismo.
213
SEGUNDA SEÇÃO
Os movimentos sociais camponeses na construção sócio-histórica do
Brasil
4.2.1 “Olha, se não fossem os movimentos camponeses de resistência
histórica nesse país, nada estaria como hoje”
No segundo capítulo do presente estudo, a partir das bases teóricas,
foram discutidos diversos aspectos que tocam a existência dos movimentos sociais
no Brasil. Ainda naquele debate, tornou-se evidente a importância dos movimentos
sociais na trajetória histórica do país, principalmente no que se refere aos avanços
na esfera da conquista de direitos e da democracia política.
Reconhecendo e afirmando esse valor, discutiu-se com as militantes do
MMC sobre o significado histórico dos movimentos sociais no Brasil, já que para
além das concepções dos estudiosos do tema, a intenção era compreender tal
significado através da contextualização das próprias militantes, uma vez que uma
das estratégias perseguidas para dar visibilidade às lutas dos movimentos sociais é
a de ‘dar voz e vez aos sujeitos’.
Nesse sentido, ao passo em que o diálogo era situado, de imediato
começou-se ouvir as militantes fazerem registros objetivos sobre grandes marcos de
mobilização e resistência popular na história brasileira. Uma das militantes
demonstrou não ter dúvidas sobre essa participação, dizendo “olha, se não fossem
os movimentos camponeses de resistência histórica nesse país, nada estaria como
hoje. Desde os índios, porque eles também resistiram” (LUCI, Florianópolis, 2009).
Para ela, um dos elementos mais fortes na imagem e significado das lutas
sociais e populares é a ‘resistência social’. Este elemento conforma a correlação de
forças entre dominantes e subalternos, estabelecendo a dialética que move a
sociedade historicamente e lhe imprime as características tais como se apresenta na
atualidade. Suas afirmações indicam que,
214
Não só no Brasil, mas em toda a humanidade, sempre quando uns
dominam os outros, sempre há resistência, sempre há organização, porque
o povo nunca foi assim tão passivo. [...] No Brasil existiram resistências
mais localizadas, não tivemos aqui muitas lutas unificadas em vista de
mudanças estruturais e da alteração do poder [econômico], mas sempre
teve resistência, desde o início da colonização houve sempre resistências.
[...] Assim como nos anos 1980, no período pós-ditadura militar, se não
fossem as Comunidades Eclesiais de Base, que funcionavam como um
ponto de articulação e de resistência contra a ditadura militar, não seria
possível o surgimento de movimentos sociais extraordinários, como em
Santa Catarina, por exemplo: o Movimento de Mulheres Agricultoras, o
Movimento de Atingidos por Barragens, o Movimento Sem-Terra, a
‘oposição aos sindicatos pelegos’. Portanto, houve uma construção de
resistência, mas junto com isso houve uma mobilização para pautar
questões que não estavam colocadas como importantes, como a questão
da terra, da própria organização dos agricultores, as questões envolvendo
as mulheres, como o direito à previdência, do direito à saúde que
anteriormente estava longe da vida dos agricultores e agricultoras (LUCI,
Florianópolis, setembro de 2009).
Ora, nota-se nessa fala a presença de várias questões que compõem o
perfil sócio-histórico do povo brasileiro. Encontram-se imbricados a resistência, a
não
passividade,
a
luta
social,
a
articulação
e
mobilização
popular,
o
estabelecimento de pautas reivindicatórias e a conquista de direitos na construção
de uma identidade, cujo traço fundamental é a ‘resistência’ ao poder desigual,
excludente e explorador.
Não obstante a resistência e a mobilização marcarem a história do país, a
militante não deixa de manifestar sua crítica ao dizer que não houveram lutas
unificadas que propiciassem a transformação estrutural das relações de poder. Ao
dizer isto, evidencia-se, junto com a crítica, sua perspectiva de que ainda é possível
esta transformação. Neste sentido, tal crítica vem confirmar um dos traços
identitários do movimento que é a afirmação de um horizonte societário cuja
transformação passa do capitalismo para o socialismo.
Essa mesma análise é confirmada por outra militante, que também afirma
a importância dos movimentos sociais na construção sócio-histórica do país, dizendo
É importante registrar que desde o período da colonização, o Brasil sempre
teve grandes lutas por parte de quem vivia no campo. Então é importante
trazer presente toda a luta histórica dos indígenas. [...] É preciso ter
presente essa marca na história do país. Existiram grandes lutas nesse
sentido e que continuam existindo até hoje. Então é só você considerar os
povos indígenas que resistem até hoje, com grandes lutas como a da
Reserva “Raposa Serra do Sol” em Roraima. [...] Também é importante
trazer aqui a grande luta de resistência que houve e continua existindo por
parte dos povos negros. Então se a gente for ver desde o período da
escravidão aqui no Brasil e da organização dos negros em quilombos, essa
luta foi ocorrendo e continua perpassando a história. [...] Portanto, todas
215
estas questões que são importantes para esse olhar histórico das lutas
(JUSTINA, Chapecó, setembro de 2009).
Feitos esses registros, nota-se que tanto Luci quanto Justina, resgatam
na história do país a ocorrência de várias lutas sociais, conferindo visibilidade aos
grupos, movimentos e organizações populares e prestando-lhes reconhecimento de
valor na construção social e política da nação brasileira.
Por fim, as militantes do MMC fazem uma releitura da história oficial do
país, registrando nela categorias de análise que frequentemente lhe são subtraídas.
Portanto, uma das colaborações da presente investigação é evidenciá-las nestas
páginas para que sejam rememoradas como questões constitutivas da identidade do
país. Opressão, submissão, rebeldia, resistência, organização, lutas, conquistas e
direitos passam a fazer parte da trajetória sócio-histórica do Brasil, a partir da voz
das militantes do MMC em Santa Catarina.
4.2.2 “Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses
tiveram junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição
Federal de 1988’”
O reconhecimento da existência de desigualdades econômicas, sociais e
políticas, em contraponto ao não reconhecimento de direitos, a exploração do
trabalho e o não acesso à propriedade da terra e aos bens necessário para produzir
no campo, são alguns dos diversos elementos que fizeram com que, desde muito
cedo na história do Brasil, existisse mobilização social no campo.
Todas as lutas de resistência já citadas pelas militantes do MMC têm
como pano de fundo ‘o campo’. Embora algumas delas não figurem nos quadros que
retratam os modelos hegemônicos do ‘rural’, todas estão ligadas ao contexto ‘não
urbano’ e ao modo de vida cuja organização social e o trabalho estão arranjados em
torno das relações familiares, grupais e comunitárias, numa produção para
subsistência coletiva. Não obstante as culturas diferentes de cada grupo social,
nota-se essa ocorrência nas comunidades indígenas, quilombolas e campesinas.
Destarte, da mesma forma como vários estudiosos dos movimentos sociais no Brasil
216
atestam, também as militantes do MMC registram que a resistência, a rebeldia, a
organização e a luta social e política no campo sempre estiveram presentes e
marcaram a história do Brasil, desde o período de sua colonização.
Assim aconteceram as lutas sociais no campo, segundo os cenários e
conjunturas sociais e políticas de cada período e contexto regional. Algumas delas já
ganharam reconhecimento histórico, tal como a Guerra do Contestado, entretanto,
outras ainda se encontram bastante invisibilizadas, tais como as ‘Ligas
Camponesas’ e a luta pela reforma agrária, intensificada nas últimas décadas pelos
movimentos camponeses e, principalmente, pelo ‘Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra - MST’.
É impreterível, então, afirmar o valor histórico dos movimentos e lutas
sociais camponesas, os quais desempenharam um papel inigualável na trajetória
histórica do país. Isso é o que faz Justina ao dizer que
[...] É preciso, sim, ter presente as lutas históricas no campo como aquela
do Contestado ou de Canudos, mas também a importância das Ligas
Camponesas, no sentido da organização dos camponeses para resistirem
como ‘agricultura camponesa’, de lutarem para terem direito à terra, para
poderem enfrentar os coronéis, de não serem oprimidos e submissos, mas
de se rebelarem de forma organizada contra isso (Chapecó, setembro de
2009).
Novamente é destacada a dinâmica das relações de poder que marca as
mobilizações camponesas. Esse movimento dialético vai produzindo a história, ora
com avanços na conquista de direitos, ora com momentos de aparente estagnação,
nos quais - bem no fundo – eram preparadas as novas mobilizações e lutas.
O importante é reconhecer e registrar que a trajetória histórica da nação –
considerada sua diversidade territorial - não se faz sem a presença dos grupos e
movimentos camponeses. Isso é o que afirma Justina, ao situar o surgimento dos
movimentos campesinos no Sul do Brasil. Segundo ela
[...] Há de se dizer que os movimentos sociais aqui no sul do país surgem –
de forma marcada - a partir do período pós-ditadura militar. Mesmo
considerando a Guerra do Contestado e outros mais que aconteceram em
outras épocas, os novos movimentos surgem, se colocam e seguem a
trajetória com diferentes formas, em diferentes momentos, mas são
movimentos que continuam lutando contra o latifúndio, pelo direito à terra,
pelo direito de produzir, de plantar, de colher, de ter direito à casa, à
moradia, à dignidade. [...] Portanto, em relação aos movimentos sociais do
campo – ligados à agricultura camponesa - na história do Brasil, é
importante marcar que foram organizadas grandes lutas, que
movimentaram a nação (Chapecó, setembro de 2009).
217
Partindo para uma análise da participação dos movimentos campesinos
na esfera política da sociedade, dando atenção para a participação que
desempenham nas lutas e conquistas para a garantia de direitos, percebe-se a
presença significativa de organização, mobilização e envolvimento dos movimentos,
tanto no âmbito específico do campo, quanto no âmbito das lutas gerais da
sociedade.
Essas últimas experiências assumiram significado histórico ainda maior,
na medida em que congregaram rebeldia, esforços e resistências de toda classe
trabalhadora brasileira na direção das lutas políticas, as quais são retratadas em
momentos históricos substanciosos como aquele da luta pela abertura democrática
e pela conquista dos direitos sociais na Constituição Federal de 1988.
Essa análise figura na fala de Noeli quando diz que
Nós vemos a grande importância que os movimentos camponeses tiveram
junto à questão da mobilização pela elaboração da ‘Constituição Federal de
1988’ e continuam tendo na questão da conquista de direitos. [...] Faz parte
desse contexto de conquistas, a eleição de várias pessoas que moram no
campo e que também conseguiram ter acesso a vários espaços para
concretizar essas lutas (Chapecó, setembro de 2009).
Observa-se que Noeli adentra num outro âmbito da discussão que remete
à participação política propriamente dita nos espaços de poder. Nesse sentido, a
militante situa como conquistas da esfera política não apenas os direitos, mas a
própria dimensão da participação política, das camponesas e camponeses, nos
espaços de deliberação da sociedade. Essa participação torna-se estratégica para
novas conquistas, bem como para concretizar as lutas dos movimentos. Logo, para
além da ocupação de espaços, a participação política assume o significado de
estratégia de luta e de conquista de autonomia, tanto por parte dos sujeitos
individuais, quanto por parte do próprio movimento enquanto sujeito coletivo.
Para o Movimento de Mulheres Camponesas,
De modo geral, é frágil a inserção das mulheres trabalhadoras nos espaços
de poder institucional: partidos políticos, instituições financeiras e de
segurança pública, nas direções de movimentos sociais e sindicais, de
comunidades, associações, cooperativas e outros. [...] Entretanto, a
participação política da mulher na sociedade é muito mais que participar ou
estar presente. Quando falamos em participação política nos referimos à
partilha do poder, que na maioria das vezes não acontece nos espaços
institucionais. [...] Por isso, a participação política da mulher na sociedade, é
uma necessidade para a emancipação e um desafio a assumir (Movimento
de Mulheres Camponesas de Santa Catarina, s.d. - folder institucional).
218
Fica explícita nessa manifestação do MMC-SC que o poder institucional é
ainda bastante institucionalizado no Brasil, concentrando-se nas mãos de poucos
indivíduos e grupos, os quais majoritariamente representam os interesses do capital,
da burguesia e dos latifundiários. Além disso, a figura central no exercício do poder
continua sendo a do homem, tendo em vista que a cultura, patriarcal e machista,
enraizada na sociedade brasileira, ainda permanece hegemônica apesar das
conquistas e avanços das mulheres.
Nesse contexto, a mobilização dos movimentos sociais, voltada para a
participação política direta nos espaços institucionais se transforma na expressão da
estratégia fundamental de luta. Essa estratégia é retratada por Luci, quando afirma
que
Os movimentos sociais camponeses participam na esfera política,
entretanto, nós temos pouca representação política, ou seja, é ainda
insuficiente nossa representação, pois há ainda aquela cultura do camponês
de que lá no campo a gente não pensava, de que havia alguém que
pensava por nós e ainda hoje muitas vezes permanece a dúvida: será que
eu voto num camponês ou não voto? [...] Nesse sentido é importante
reconhecer que há um processo em andamento, de que não importa onde
você mora, onde você vive e o modo pelo qual vive. Qualquer lugar é lugar
e você precisa ter respeito. [...] Reconheço que há ainda dificuldade de
participação política com mais força, com maior reconhecimento do seu
poder (Florianópolis, setembro de 2009).
Não obstante o desafio que é para os movimentos sociais – sejam eles
campesinos ou feministas – e para as próprias mulheres camponesas a participação
direta nos espaços de poder e de deliberação institucional, o MMC desde a década
de 1980 já visualizava a participação política da mulher como estratégia de
conquista de espaço, de direitos e de efetivação das pautas de luta. Embora longa, a
passagem, citada abaixo, da entrevista com a militante Luci, demonstra com riqueza
de dados históricos como foi o processo de descoberta dessa estratégia de luta pelo
MMC. Segundo ela
[...] Então a gente ia buscar respostas para esta realidade e os porquês
dessa realidade. Aí refletimos que o que tínhamos a fazer era fortalecer o
movimento, começar a nos sindicalizar, a nos organizar inclusive
politicamente. Tanto surgiu essa consciência, que nós fizemos o primeiro
‘Ato Público’ em Xanxerê, que ocorreu no dia 12 de agosto de 1986,
reunindo em torno de 30.000 pessoas, das quais a maior parte eram
mulheres, mas também alguns homens que foram ver o que iria acontecer.
Como resultado da pauta daquele dia, tiramos a decisão de organizar um
ônibus em forma de caravana e assim fomos para Brasília já tendo na pauta
de lutas a aposentadoria e o salário maternidade. [...] Entretanto, ao final da
mobilização em Brasília, foi esse processo que começou a educar as
219
mulheres, que era necessário erguer as bandeiras, se organizar e também
participar do processo político. Foi nesse contexto de 1986 que surgiu a
reflexão de que o movimento tinha que ter uma mulher candidata a
Deputada Estadual; entretanto, nenhuma de nós queria ser. Imagina
naquela época, em 1986, há mais de 25 anos, a gente que trabalhava na
roça, cuidava de filhos, cuidava de casa e ia para algumas reuniões, então,
nesse meio, como sair candidata? [...] Foi assim que começamos a discutir
dentro do movimento quem iria para essa esfera de participação e foi um
empurra, empurra dizendo “eu não vou, vai você, vai você...” e no fim as
mulheres disseram “então vai a Luci, porque ela já fala um pouco mais do
que nós”. [...] Já nessas primeiras eleições aconteceu que fui a primeira
mulher agricultora eleita no Brasil, a primeira mulher eleita pelo Partido dos
Trabalhadores em Santa Catarina e a primeira deputada eleita por este
partido. E as mulheres tiveram um papel extraordinário na época. [...] E
assim começamos um novo tempo no processo político (Florianópolis,
setembro de 2009).
A fala de Luci demonstra objetivamente como foi o processo de
participação política das mulheres camponesas militantes do MMC e a própria
conquista de espaço no cenário público no Estado de Santa Catarina. Note que a
militante relata sobre o contexto de meados de 1986, em que se vivia o auge da luta
pela reabertura democrática, da campanha pelas ‘Diretas Já’ e pela elaboração da
‘Constituição Cidadã’. A partir de seu relato, é possível perceber a significativa
contribuição do Movimento de Mulheres Camponesas para o aprofundamento da
participação popular e para a nova configuração da esfera política, agora sob o
cunho da mobilização, participação e cidadania, tendo em vista a conquista de
direitos.
Assim sendo, tanto a contribuição para o aprofundamento da democracia
e do exercício da cidadania, como aquela na construção da trajetória sócio-histórica
da nação, são elementos imanentes ao processo de mobilização, organização e luta
dos movimentos sociais camponeses no Brasil. Esse reconhecimento é ainda uma
dívida da sociedade para com tais movimentos, cabendo também à academia dar
passos para que seja saldada.
4.2.3 “Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram
resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações”
Não há movimento social sem organização, articulação e mobilização
social. Isso é fato quando se trata dos movimentos sociais camponeses, caso que
220
figura como objeto desta parte do presente estudo. Entretanto, o que é interessante
discutir neste item é a forma pela qual os movimentos sociais do campo articulam-se
e organizam-se, a fim de congregar forças na luta pelos seus direitos.
Nesse sentido, em relação aos movimentos sociais camponeses48, de
forma geral, é possível notar a existência de articulação entre os mesmos, tanto no
sentido de fortalecerem as pautas específicas de cada movimento, mas também na
defesa de pautas comuns, o que ocorre devido ao fato de que a maioria deles vive
em contextos semelhantes, sente demandas e propõe objetivos de luta que se
aproximam. A isso se pode atribuir o status de ‘reivindicações históricas e coletivas’,
tal como o é a luta pela terra.
Por outro lado, falando das dificuldades das lutas sociais, é importante se
considerar que as conquistas camponesas sempre foram desafiadoras, o que, por
inúmeras vezes, levou à morte de militantes. Mesmo sabendo da forte repressão por
parte do Estado, camponeses e camponesas empenhavam-se na luta para que
fossem reconhecidos direitos e implementadas políticas que já existiam no contexto
urbano, mas que eram negados a todos aqueles trabalhadores cujas atividades
laborais eram desenvolvidas no meio rural.
Movimentos sindicais de
oposição,
movimentos sociais como
o
Movimento de Atingidos por Barragens - MAB e o Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST, grupos resultantes da mobilização em torno da Teologia da
Libertação, os quais existiam tanto na Igreja Católica, quanto na Luterana, além das
Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s e dos Partidos Políticos de oposição aos
governos, constituíam, juntamente com o Movimento de Mulheres Agricultoras MMA, um contingente de militantes congregados na luta pela melhoria das
condições de vida e de trabalho no campo e, principalmente, na luta pela
transformação societária.
Uma das militantes, ao falar das pautas gerais do próprio MMA,
demonstra o grau de dificuldades que estiveram presentes nas lutas sociais no
campo, as quais eram sentidas por todos os movimentos. Isso lhes imbuía de um
sentimento de compartilhamento de causas e desafios e de amplitude dos efeitos de
suas mobilizações, seja no sentido da conquista de direitos para todos camponeses,
48
Um apontamento específico sobre o MMC/SC será realizado na terceira parte do presente capítulo
221
seja no que se refere à repercussão de suas mobilizações e manifestações, as
quais, freqüentemente assumiam o caráter de lutas coletivas.
Com suas palavras, a militante revela que
Nós percebemos é que os direitos que nós conquistamos sempre foram
resultado de organização popular e da ocorrência de grandes mobilizações.
Assim foi o processo da Constituição Federal de 1988, na luta pelas ‘Diretas
Já’ e também foi, para nós mulheres camponesas, na luta pela conquista
dos direitos previdenciários, que são direitos muito recentes, porque nós
camponesas, não tínhamos nenhum direito até meados de 1992. [...] A
pensão para os viúvos e para as viúvas e assim, por diante, foram
conquistas que ocorreram somente através da luta das mulheres, as quais
não lutaram para si somente, mas encamparam a luta pelos direitos de
todas as pessoas que viviam e vivem da agricultura camponesa e também
de outros segmentos, como por exemplo, englobar os direitos
previdenciários para os pescadores e pescadoras artesanais, que também
foram regulamentados como segurados especiais (JUSTINA, Chapecó,
setembro de 2009).
Fica expresso na fala da militante, que a maioria dos direitos hoje
existentes foram resultantes das mobilizações e lutas recentes, as quais partiam das
necessidades sentidas no cotidiano de vida de mulheres e homens, mas que
somente tinham efeito quando atingiam o nível de lutas coletivas, ou seja, aquelas
mais amplas na sociedade. Para isso, muitas vezes era preciso romper com as
fronteiras do modo de vida camponês e adentrar em outras realidades, a fim de que
as pautas e conquistas não lhes fossem exclusivas, mas se configurassem como
direitos de cidadania, universais e inclusivos.
Justina ainda complementa ao afirmar que
[...] Portanto, foram grandes mobilizações, grandes lutas, a organização das
mulheres, o estudo e conhecimento da realidade, a capacidade de
elaboração, de argumentação e de convencimento, que garantiram outras
lutas e conquistas como é o caso do crédito e do seguro agrícola para o
camponês, da reforma agrária, da conquista da terra (Chapecó, setembro
de 2009).
O caráter amplo das lutas, no ver desta investigadora, contém traços de
alteridade, coletividade, partilha, encorajamento, compromisso e responsabilidade
coletiva – ou comunitária, como preferirem – sempre presentes no modo de vida
rural e que conformam, de forma mais ou menos marcante, a identidade de
mulheres e homens camponeses.
A partir de tais traços impressos às lutas coletivas dos movimentos
sociais camponeses, tornaram-se possíveis conquistas posteriores. Isso demonstra
que a estratégia das lutas coletivas possibilita a construção de um terreno
222
reivindicatório em que o reconhecimento político das mobilizações produz elementos
favoráveis às conquistas.
Portanto, fica expresso, através dos diálogos estabelecidos com as
militantes do MMC, que as conquistas de direitos dos cidadãos – sejam camponeses
ou citadinos, agricultores ou pescadores – devem partir das experiências de vida
cotidianas, porém, sobretudo, devem atingir as lutas coletivas. Eles indicam também
que há por parte dos movimentos sociais camponeses a compreensão de totalidade
da sociedade. É pensando nas totalidades social, econômica e política que se
descobre a também necessária ‘totalidade – no sentido de congregação - das
mobilizações e lutas sociais’ para que seja possível a transformação societária.
4.2.4 “Não há mudança, não há processo de transformação, caso os ‘de baixo
não tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e [...] não
fizerem ‘o movimento da sociedade’”
Como último item desta seção do capítulo em que se trata do significado
histórico dos movimentos sociais camponeses na sociedade brasileira, almeja-se
refletir sobre como o processo de mobilização e participação social, por um lado,
propicia a aquisição da consciência crítica e, por outro, se torna força propulsora de
transformação social. Não obstante, salienta-se – para que não haja equívocos de
interpretação -, que se considera que os efeitos da mobilização e participação social
encontram-se imbricados no mesmo processo.
Na experiência dos movimentos sociais camponeses, o trabalho de base
assume grau de importância tão elevado quanto à mobilização coletiva. Isso
acontece porque, para tais movimentos, a concepção de participação e mobilização
adquire caráter de processualidade. Neste sentido, a força que gera as lutas sociais
deve partir do nível da vida cotidiana para o nível da coletividade. Entretanto, para
que isso aconteça, torna-se imprescindível despertar para a construção de uma
consciência que possibilite fazer uma leitura que, aos poucos, vai superando o nível
do senso comum, tornando-se crítica. A partir dela ficam evidenciadas as diversas
desigualdades, o não reconhecimento de direitos, o não atendimento das
223
necessidades dos cidadãos e várias outras questões que se configuram como
elementos geradores de mobilização social. Logo, propulsores de transformações
que ocorrem desde o âmbito da vida cotidiana até aquele da sociedade ampla.
Essa é a concepção de movimento social que têm as militantes do MMC.
É algo processual, dialético, que conforma e é conformado num jogo de forças
sociais, que transforma e é transformado a partir dos indivíduos sociais e de seus
cotidianos, porém, atinge também a amplitude da sociedade, no sentido da
transformação coletiva.
Reforçando as palavras que abriram esse subtítulo, salienta-se, através
da fala de Luci, que “[...] não há mudança, não há processo de transformação, caso
os ‘de baixo não tiverem consciência dos seus direitos’, não se organizarem e não
buscarem a sua efetivação, ou seja, não fizerem ‘o movimento da sociedade’. Essa
é a importância dos movimentos sociais” (Florianópolis, setembro de 2009).
Portanto, nessa concepção de movimentos sociais residem os elementos
que justificam a atenção que se deposita no trabalho de base, nas experiências de
vida dos militantes e no reconhecimento da cotidianidade do povo.
TERCEIRA SEÇÃO
O Movimento de Mulheres Camponesas num olhar que parte das
Terras Catarinas!
Inicia-se a terceira seção do capítulo, no qual se continuará direcionando
o ‘olhar analítico’ sobre o Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina –
MMC/SC, segundo as ‘falas’ de três mulheres trabalhadoras camponesas, militantes
e dirigentes do Movimento em ‘Terras Catarinas’. Entretanto, antes de iniciar a
empreitada dessa ‘terceira seção’ do capítulo, é necessário considerar três aspectos
fundamentais que estão ligados à própria trajetória do MMC/SC.
224
Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que as militantes do
MMC/SC, ao serem provocadas na entrevista a se expressarem em relação ao
Movimento, o foram segundo a territorialidade referente ao Estado de Santa
Catarina. Não obstante essa delimitação estabelecida para o diálogo, em alguns
momentos as entrevistadas ampliaram suas falas para o contexto brasileiro, o que
leva a compreender que para elas a territorialidade nacional se fazia necessária para
explicar os fatos no contexto catarinense.
Diante desta questão, coloca-se como desafio reconhecer os momentos
em que as militantes transitam seus olhares entre o contexto estadual e o nacional,
bem como os motivos pelos quais o fazem. Além disso, salienta-se que a própria
dinâmica de desenvolvimento da trajetória histórica do movimento já propicia as
informações necessárias para que seja possível compreender a territorialidade em
seus diversos níveis: local, regional, estadual, nacional ou, até mesmo, internacional.
Em segundo lugar, alerta-se para dois tipos de identificações do
movimento social em questão, presentes nas falas das entrevistadas. Um deles
refere-se à denominação de Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA e o outro à
denominação de Movimento de Mulheres Camponesas – MMC. O primeiro está
relacionado ao contexto do seu surgimento no Oeste do Estado Catarinense,
demarcando desde o ano de 1983 até 2004; e, o outro, está relacionado com o
período mais recente da trajetória do movimento: desde 2004, já que a partir deste
ano, como resultado de uma assembléia nacional de mulheres camponesas, o
Movimento delibera a mudança de seu nome para Movimento de Mulheres
Camponesas do Brasil – MMC do Brasil, a fim de abarcar mais efetivamente a
diversidade de expressões de mulheres trabalhadoras camponesas presentes no
território nacional.
Dizendo isso, deseja-se destacar que não se estará tratando de dois
distintos movimentos sociais de mulheres do campo, mas de um único movimento
social que tem uma trajetória de 26 anos em terras catarinenses. Portanto, muitas
vezes, poder-se-á encontrar a denominação de MMA e n’outras tantas a
denominação de MMC, já que serão respeitados os termos expressos nas falas das
entrevistadas.
225
Em terceiro lugar, indica-se a necessidade de que a interpretação das
‘falas e expressões’ das militantes do MMC/SC entrevistadas, seja feita a partir do
âmbito de atuação de cada uma delas no movimento. Assim, mais uma vez se faz
menção à localização territorial das falas das entrevistadas, afirmando que o diálogo
com Justina remeterá, para além de sua participação no grupo de base de sua
comunidade e município, também sua militância como dirigente nacional e
representante do Movimento em nível de América Latina (Coordenação Latino
Americana de Organizações do Campo – CLOC) e também mundial (Via Campesina
Mundial).
Já o diálogo com Luci remeterá, fundamentalmente, a sua atuação direta
na esfera política da sociedade catarinense, o que a leva a desempenhar atividades
e funções em nível nacional – nesta mesma esfera da sociedade, forma e nível de
atuação política que ocorreram desde meados do ano de 1985, quando concorre ao
primeiro pleito nas eleições estaduais, elegendo-se como deputada estadual. Desde,
então, Luci não se retira do cenário político legislativo e partidário. Sem
descontextualizar sua militância em nível local – grupos de base do MMC/SC -,
através da participação de atividades locais nas diversas comunidades rurais e
municípios que visita e desenvolve atividades, este é o marco situacional de sua
fala: a atuação política direta em Santa Catarina e no Brasil.
Por fim, a fala de Noeli remete às considerações de uma militante de
grupo de base e dirigente estadual do Movimento. Logo, abarca o contexto de vida e
de atuação das mulheres camponesas militantes do MMC em todo Estado de Santa
Catarina. Mesmo sendo este o marco situacional de sua fala, muitas vezes Noeli
transpõe suas reflexões para o âmbito de atuação nacional e mundial, como reflexo
de sua participação em várias atividades do movimento nestes níveis. É
principalmente nas considerações de Noeli que aparecem os elementos mais
significativos do cotidiano de vida das mulheres camponesas.
Enfim, feitas essas considerações, inicia-se a próxima tarefa!
226
4.3.1 “O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência,
através da participação em todo esse processo de reabertura democrática”
A primeira
questão
compartilhada pelas entrevistadas tratou
do
surgimento do Movimento. Assim, para iniciar as reflexões, é importante considerar
que o MMC é tomado como resultado de um processo de participação popular,
através da construção da consciência crítica das mulheres sobre sua subalternidade
na sociedade patriarcal capitalista.
Note-se que o componente da teia sobre o MMC que primeiro se faz
presente é a questão da ‘construção de uma consciência crítica’ sobre a realidade e
o contexto de vida das mulheres. Esta mesma questão já apareceu no terceiro
capítulo do presente trabalho, através dos estudos principalmente de Lukács (1997)
e Heller (1989), mas também de Marx & Engels (1984) e de Martinelli (2008). Para
tanto, é necessário avançar o olhar para a realidade, saindo das percepções sobre o
senso comum e elaborando um pensamento que, aos poucos, vai se tornando
crítico, através do reconhecimento dos elementos de dominação e subalternidade
que
compõem
a
cotidianidade,
neste
caso,
das
mulheres
trabalhadoras
camponesas.
Este processo de elaboração de uma consciência crítica se explicita na
fala de Justina quando diz que
[...] O que levou ao surgimento do MMC foi uma tomada de consciência,
através da participação em todo esse processo de reabertura democrática e
de conquista de espaços de participação. Foi nele, que as mulheres foram
percebendo, primeiro, que não era possível serem sócias do sindicato, e
depois, que não tinham direito de fazer parte da diretoria, entre outros
elementos do sindicalismo. [...] As mulheres foram tomando a consciência
de que não possuíam determinados direitos como possuíam as mulheres da
cidade de ter a carteira de trabalho assinada, o salário maternidade, que na
roça não tinha nada disso (Chapecó, Setembro de 2009).
Na alocução da militante fica claro o reconhecimento dos espaços de
participação que não estavam sendo permitidos às mulheres camponesas, bem
como os direitos sociais trabalhistas a que as trabalhadoras camponesas não
podiam acessar, quando se tomava como referência a situação das trabalhadoras
urbanas. Tal processo de construção da consciência é contextualizado em sua fala
num momento de fortalecimento político das lutas populares no país, que passam a
227
ter forte caráter social e político, marcando o período da reabertura democrática no
Brasil.
Também Luci expressa a mesma questão com maiores detalhes,
relacionando o processo de elaboração de uma consciência crítica, a partir da
perspectiva da Teologia da Libertação e do contexto de participação nas
Comunidades Eclesiais de Base. Para ela, um dos grandes colaboradores para o
surgimento do Movimento foi o Bispo da Diocese de Chapecó naquela época, Dom
José Gomes. Sua fala, rica de detalhes históricos, retrata que
Quando nós começamos o Movimento, ele iniciou sem uma estrutura ou
organização determinada e definida, mas partiu das Comunidades Eclesiais
de Base. [...] A partir das CEB’s, dos movimentos sindicais, do movimento
de oposição e de outros movimentos sociais como o Movimento de
Atingidos por Barragens que foram surgindo no período, foi acontecendo
também a organização e participação das mulheres, pois foram esses
movimentos de lutas que serviram como incentivadores, isso porque nós
mulheres começamos a participar de uma forma ou de outra na oposição
sindical. Aí ele [o Bispo Dom José] começou a perceber que as mulheres
participavam, mas não podiam decidir, não podiam participar da direção do
sindicato, não podiam votar, não eram sindicalizadas e todas outras
questões decorrentes dessas. De fato, as mulheres não tinham
participação, apenas eram pessoas que ajudavam a fazer as coisas. Aí
Dom José começou a incentivar que as mulheres precisavam se organizar.
Com isso, a gente já ia para alguns encontros de mulheres, mesmo porque
tinham grupos de mulheres em São Paulo, com os quais nós nos reuníamos
para discutir os direitos das mulheres, porém ainda não havia organicidade,
os encontros eram ainda esporádicos. Foi a partir dessa situação que a
gente começou a sentar e conversar. Foi através da Diocese de Chapecó
que começamos a reunir algumas lideranças de algumas regiões para
começar a discutir a organização das mulheres e o que fazer (LUCI,
Florianópolis, Setembro de 2009).
Na passagem da fala de Luci, fica registrada a forte presença da Igreja no
contexto da organização, articulação e mobilização das lutas sociais que foram
surgindo no período final da década de 1970 e início de 1980. Esta presença deve
ser contextualizada como uma significativa contribuição da Igreja - tanto luterana,
mas principalmente católica – no processo de construção de consciência crítica
acerca da conjuntura política, social e econômica do país, a qual colaborou para
desencadear um processo de mobilização popular que, entre outras decorrências,
cooperou para a reabertura democrática.
É notória a contribuição da Teologia da Libertação para a mobilização das
mulheres camponesas e para a organização de vários movimentos populares e
sociais que surgiram naquele período, dentre os quais o Movimento de Mulheres
Agricultoras – MMA. Isto é confirmado por Justina, ao dizer que “[...] essas mulheres
228
agricultoras catarinenses iniciam uma trajetória, muito impulsionadas pela própria
Teologia da Libertação que tinha uma influência muito forte naquele período tanto na
Igreja Católica quanto na Luterana” (Chapecó, Setembro de 2009).
Outro elemento presente na trajetória inicial de mobilização das mulheres
camponesas é o forte traço cultural de subordinação da mulher à esfera privada da
vida. Por isso, elas deviam superar também a territorialidade ‘privada’, que as
colocava como protagonistas apenas do âmbito doméstico, onde eram responsáveis
pelos cuidados com a família, com a casa e com a produção de diversos produtos
para o consumo – subsistência – familiar. Produtos tais como o leite, as verduras e
hortaliças, os ovos, entre vários outros, que na produção agrícola são considerados
como ‘miudezas’49, uma vez que não são produzidos em quantidade significativa
para gerar sua comercialização constante e, portanto, a geração de renda
permanente.
Este quadro é característico da cultura patriarcal, que continua
perpassando ainda hoje as relações sociais e que encontrou no campo um espaço
profícuo para se enraizar. Tal quadro é contextualizado por Luci como um quadro
que gerava dificuldades para a participação da mulher, demandando estratégias que
possibilitassem romper com a ‘dependência’, a fim de que pudessem iniciar um
processo de mobilização e organização social. Nesse sentido, a militante relembra
[...] Mas aí não tínhamos estrutura e então começamos a montar uma
estratégia de organização com muita dificuldade, mesmo porque tinha toda
a questão da dependência ‘normal’ para a época em relação aos homens,
sejam maridos, filhos, ou outros da comunidade, o que desafiava a
organização (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009).
Por outro lado, foi neste difícil processo que as mulheres foram,
sutilmente, desenvolvendo a capacidade de percepção crítica em relação à
realidade cotidiana, as suas necessidades e perspectivas; mas também em relação
à caminhada necessária para romper com a dependência, a subordinação, e a falta
de participação, principalmente no espaço público da sociedade. Destarte, “no
desenrolar da luta, algumas mulheres foram percebendo que ‘lutar’, menos que uma
49
Essa questão foi abordada em trabalhos anteriores, dentre os quais se indica recorrer à LUSA
(2008). Referência completa no final do estudo.
229
batalha, é um modo de vida, onde se sucedem novas reivindicações. A luta é,
portanto, histórica. Constrói-se. É processo” (KROTH, 1999, p.88)50.
Este era o cenário do surgimento do MMA: mobilização social e política
provocada pela elaboração de ‘consciência crítica’, o que propiciou que grande
parcela da população brasileira, tanto do campo quanto da cidade, conseguisse
reconhecer elementos de sua realidade e, nela, as demandas e os direitos elevados
à condição de necessidades humanas.
Enfim, a construção de uma consciência crítica, a partir dos elementos da
cotidianidade das mulheres, de fato, foi o elemento central do processo de
organização social e política do Movimento. Luci novamente traz a tona essa
questão, ao relatar as primeiras reivindicações que caracterizaram o MMA
[...] E assim nós fizemos as primeiras atividades de base e depois uma geral
onde tiramos nossas bandeiras de nossa organização e luta, que eram: a
participação no sindicato; a reivindicação de direitos sociais da previdência,
a aposentadoria, o salário maternidade, o reconhecimento dos direitos todos
da previdência que eram somente para os cidadãos urbanos enquanto nós
não tínhamos nenhum na época; e a participação política. A participação
política, por exemplo, surgiu junto com todas essas necessidades. Foi um
processo que resultou das próprias perguntas que a gente estava se
fazendo: qual era a realidade que a gente estava vivendo? O que
determinava ela? ...Então a gente ia buscar respostas para esta realidade e
os porquês dessa realidade. [...] Aí refletimos que o que tínhamos a fazer
era fortalecer o movimento, começar a nos sindicalizar, a nos organizar
inclusive politicamente (Florianópolis, Setembro de 2009).
Esse mesmo elemento também é expresso pelo MMC em um de seus
mais recentes materiais que registra a história do Movimento, quando afirma:
Em diversos municípios as mulheres camponesas sentem a necessidade de
serem ouvidas e valorizadas. Reúnem-se e trocam idéias sobre a
possibilidade de construir uma organização própria para enfrentar e superar
as dificuldades. No dia 01 de maio de 1983, em Nova Itaberaba, na época
Distrito de Chapecó, algumas mulheres passam a dar organicidade a um
grupo. A principal motivação era a participação na oposição sindical. Mas,
elas também traziam presente, questões referentes ao seu cotidiano de
discriminação, exploração do trabalho, endividamento, preços baixos dos
produtos, êxodo rural, entre outros. Todo este envolvimento dá origem aos
primeiros alicerces de uma organização específica e autônoma de mulheres
camponesas (MMC, 2008, p.09).
Portanto, eis o marco de surgimento do Movimento de Mulheres
Agricultoras em Terras Catarinas. Construção de consciência crítica, cotidianidade,
mobilização, articulação e participação política tornam-se elementos intrínsecos ao
50
Em nota de rodapé, Kroth (1999) sugere recorrer ao “Diálogo de Thompson com Giambattista Vico,
a respeito de ‘A História como processo’. In: THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria, Capítulo XI”.
230
processo e, portanto, compõem esse marco histórico de surgimento e organização
do MMA.
4.3.2 “Os políticos que estavam no Congresso Nacional não entendiam nada,
não sabiam da vida na roça, muito menos sobre a vida das mulheres”
As
conquistas
resultantes
do
processo
de
participação
e
de
reconhecimento da realidade marcam toda a trajetória do Movimento. Entretanto, o
processo de elaboração consciente sobre a realidade não foi imediato; pelo
contrário, fez parte de um movimento de correlação de forças que foi se
desenvolvendo gradualmente, com a ocorrência de fatos que significaram avanços
incontestáveis em relação as suas estratégias de lutas.
Isto é retratado tanto por Luci quanto por Justina, quando rememoram um
dos processos que mais marcaram a trajetória histórica do movimento, já que,
através do reconhecimento da conjuntura política desfavorável às mulheres
agricultoras na época, deliberou-se pela ‘participação direta na esfera legislativa’
como estratégia de luta pela conquista de direitos.
Relatando este momento, seqüencialmente Luci e Justina dizem que
Tanto surgiu essa consciência, que nós fizemos o primeiro ‘Ato Público’ em
Xanxerê, que ocorreu no dia 12 de agosto de 1986, reunindo em torno de
30.000 pessoas, das quais a maior parte eram mulheres, mas também
alguns homens que foram ver o que iria acontecer. Como resultado da
pauta daquele dia, tiramos a decisão de organizar um ônibus, em forma de
caravana, e assim fomos para Brasília já tendo na pauta de lutas a
aposentadoria e o salário maternidade. [...] Entretanto, ao final, foi esse
processo que começou a educar as mulheres de que era necessário erguer
as bandeiras, se organizar e também participar do processo político. Foi
nesse contexto de 1986 que surgiu a reflexão de que o movimento tinha que
ter uma mulher candidata a Deputada Estadual (Florianópolis, Setembro de
2009).
Em 1986 aconteceu inclusive uma ‘ida’ em caravana à Brasília, com um
ônibus lotado com as companheiras lideranças do Movimento nas várias
cidades catarinenses, que tinham como objetivo levar à Câmara Federal e
ao Congresso a proposta da aposentadoria para as mulheres trabalhadoras
rurais. Ao retornarem, trabalharam nos grupos existentes sobre a
importância da luta e fizeram isto convictas de que os políticos que estavam
no Congresso Nacional não entendiam nada, não sabiam da vida na roça,
muito menos sobre a vida das mulheres agricultoras e que nós
precisaríamos eleger alguma representante nossa, para que se pudesse de
fato levar para aquele espaço os nossos anseios (Chapecó, Setembro de
2009).
231
Ora, note-se que a estratégia de luta do movimento perpassou
indiscutivelmente pela esfera da participação política direta nos espaços de decisão
da sociedade. Desse modo, as mulheres camponesas começaram a romper as
barreiras que as limitavam ao mundo privado da família, da pequena propriedade
rural e, quando muito, da participação da vida na comunidade rural, para avançar na
direção da participação política.
Esse processo significou a ruptura com os padrões patriarcais de
desigualdade de gênero – tal como já se afirmou em parágrafos anteriores - e
ocorreu tanto nos espaços familiares, através de uma maior distribuição das tarefas
domésticas entre os membros da família, como também nos espaços de deliberação
das comunidades, dos sindicatos, associações e organizações sociais e, por fim,
nos espaços de participação política direta.
Entretanto, para que o Movimento conseguisse efetivar tal estratégia, foi
necessário congregar forças e organizar-se entre o ‘coletivo de mulheres
camponesas’. É notório que o momento de reabertura política e de participação
popular colaborou para que as mulheres camponesas lograssem êxito em sua
estratégia; porém, há que se reconhecer que o MMA – em suas militantes e
dirigentes – soube aproveitar todo o contexto de contradições políticas revelado a
partir da construção da consciência crítica sobre a realidade. Isso aparece na fala de
uma das militantes quando relata como foi a organização e participação no primeiro
pleito eleitoral assumido pelo MMA em Santa Catarina.
E as mulheres tiveram um papel extraordinário na época. Até é interessante
porque havia uma cultura, que ainda não modificou totalmente, que as
mulheres votavam no candidato que o homem – seu parceiro - mandava
votar. Por isso, nós montamos uma estratégia que era assim: ‘você pega o
santinho que o seu marido manda votar, já que é um tipo de obrigação, mas
leva também o teu número para votar’. Foi assim que a maioria das
mulheres levava para a urna o candidato do marido, mas na hora de
escrever o nome e número do seu candidato votava na Luci. Portanto, a
nossa vitória se deu pela consciência que uma grande parte das mulheres
tiveram. Claro que houve votos de homens, mas uma parcela fundamental
dos votos que me elegeram, vieram da tomada de consciência das próprias
mulheres do movimento de que podiam fazer o processo político (LUCI,
Florianópolis, Setembro de 2009).
É importante observar que as próprias instituições sociais e políticas
foram percebendo a importância estratégica da participação das mulheres do MMA,
uma vez que elas estavam despontando em muitos espaços de visibilidade da
sociedade, como forças sociais e agentes políticos fundamentais no movimento
232
dialético de transformação da sociedade naquele período. Em relação a isso, Luci
aponta:
Bom, também teve outra questão interessante, porque daí o partido queria
que nós fôssemos candidata, porque como nós fizemos aquele ‘Ato’ em
Xanxerê, que ficou marcado na história como a coisa mais importante da
época, seria interessante para o próprio partido. Pense que ninguém
imaginava naquele período que as mulheres agricultoras fossem capazes
de ‘puxar’ um Ato, todos tinham dúvidas dessa capacidade e se iria dar
certo ou não. Foi assim que o partido começou a discutir se era bom ter
uma mulher candidata, ou não, para representar esse movimento
(Florianópolis, Setembro de 2009).
As falas acima mostram o quadro social e político no qual o MMA se
insere como ator político coletivo, ao identificar tal inserção como estratégia para
concretizar suas lutas e, portanto, lograr êxito em suas reivindicações.
Assim, o MMA passa a eleger em vários municípios algumas de suas
militantes para funções legislativas e também executivas, como foi o caso da
militante Justina de Cima, eleita vereadora no município de Formosa do Sul, onde
residia. Além disso, o Movimento avança para a representação nas esferas estadual
e nacional, a partir de 1986, quando elege a militante Luci Choinaki para Deputada
Estadual, a qual se tornou “a primeira mulher agricultora eleita no Brasil, a primeira
mulher eleita pelo Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina e a primeira
deputada eleita por este partido” (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009).
4.3.3 “E assim começamos um novo tempo no processo político” – Os anos de
1980 para o MMA
É eminente a contribuição que o Movimento de Mulheres Agricultoras teve
para o aprofundamento democrático do país e para o início do processo de
superação das desigualdades de gênero ainda nos anos de 1980. Pouco a pouco,
através de seus trabalhos de base, as mulheres camponesas iam ‘minando’ as
estruturas de dominação cultural, social e política que alicerçavam as relações
sociais. Famílias, comunidades camponesas, municípios, estados e a própria nação
foram
sutilmente
incorporando
algumas
pequenas,
mas
significativas
transformações nos padrões de gênero e societários do capitalismo.
233
Para Kroth (1999, p.108)
Na perspectiva de luta das agricultoras do oeste de Santa Catarina,
podemos dizer que a década de 80 pode ser caracterizada sob três
aspectos importantes. O primeiro diz respeito à redemocratização do País,
cujas marcas expressam mobilizações intensas, lutas específicas e
fortalecimento de vários movimentos populares [...]. O segundo aspecto diz
respeito à participação das mulheres não só nas lutas mais gerais dos
trabalhadores, mas também na construção efetiva de suas lutas específicas
[...]. A terceira questão colocada nesse período pelas agricultoras diz
respeito à autonomia de sua organização.
Destarte, a década de 1980 passou a ser reconhecida como o período de
efervescência social e política, muito embora seja considerada como ‘década
perdida’ na esfera econômica do país. Já a partir desse contexto, o MMA foi
estabelecendo redes de atuação coletiva, junto com outros movimentos sociais e
partidos políticos, tanto em nível local, como nacional e internacional. Como
resultado desta interlocução, o povo brasileiro conquista um novo referencial para
exercício da cidadania, calcado na questão da participação social, da democracia e
da luta por direitos.
Merece, ainda, destaque a colaboração que o MMA – enquanto
movimento social feminista, de classe e do campo – teve na construção de uma
nova esfera política, em cuja cultura de participação social adquiriu status de ‘direito
e dever da coletividade’. Essa colaboração é expressa por Luci, ao avaliar que
Nós tivemos uma participação importante nesse cenário, pois se
conseguimos fazer o maior evento político da história daquele período, é
sinal que as mulheres desempenharam um papel fundamental e uma
participação significativa, embora, muitas vezes isto não tenha acontecido
de forma tão consciente daquilo que estávamos fazendo. Agora, a
repercussão foi muito boa e isso incentivou muitas mulheres, inclusive de
outros movimentos sociais a ter coragem de adentrar nesse campo e a
olhar com um pouco menos de preconceito essa esfera da participação
política e social na sociedade (Florianópolis, Setembro de 2009).
Também o próprio movimento afirma em um de seus documentos que
resgatam sua história que, desde a década de 1980, trabalhavam para a articulação
de pautas coletivas junto com outros movimentos sociais feministas e do campo.
Segundo o documento, as mulheres camponesas do MMA, “articuladas com outros
movimentos e entidades assumiram a luta por preço justo dos produtos, seguro
agrícola, saúde, reforma agrária, direito dos povos indígenas, resistência contra as
barragens e outros” (MMC, 2008, p.10).
234
Além disso, naquela década, o MMA começa a participar de uma
articulação de mulheres trabalhadoras rurais da região Sul do país e passa a
colaborar na elaboração conjunta de um plano de trabalho coletivo, com a finalidade
de aprofundar a organização das mulheres agricultoras, avançar na luta por direitos
e aprofundar discussões sobre “saúde, sexualidade, reconhecimento da profissão,
produção, reprodução, gênero e as causas da violência contra a mulher a partir da
realidade do Sul do Brasil” (MMC, 2008, p.12).
Portanto, enquanto âmbito investigativo ligado à academia e à construção
do conhecimento, torna-se eminente reconhecer a importância da colaboração
desse movimento na efetivação dos avanços para a construção de uma nova
concepção de cidadania, Estado, governo e participação social e política do povo
brasileiro, os quais marcaram ‘um novo tempo’ na trajetória sócio-histórica do país.
4.3.4 “Se os outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de
mulheres se colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização” – Os
anos 1990: conquistas e avanços
Anos de intensidade política, de dedicação para o Movimento e para a
luta. Anos de renúncias pessoais e de avanços coletivos. Anos de muita mobilização
e, sobretudo, anos de históricas conquistas. Ora, qual foi a representação dos anos
de 1990 para o Movimento de Mulheres Agricultoras em Santa Catarina?
Conforme os registros do MMA/SC (2008, p.12),
Na década de 90, o Movimento se caracteriza pela luta e conquista dos
direitos – documentação pessoal e profissional, reconhecimento da
condição de seguradas especiais, implementação da Previdência Pública
Universal e Solidária. Mas também pela garantia do acesso aos benefícios –
auxílio acidente de trabalho, aposentadoria aos 55 anos para as mulheres e
60 anos para homens, auxílio doença, aposentadoria por invalidez, auxílio
reclusão e pensão por morte, salário maternidade – todos no valor de um
salário mínimo. Além disso, o direito a titulação da terra em nome da
mulher.
Nota-se, já pelo elenco de conquistas, a intensidade política e social do
Movimento naquele período, fato que contrasta, de certo modo, com o momento de
235
‘crise’ dos movimentos sociais no Brasil, visão presente nas análises de diversos
estudiosos do tema51.
Uma das militantes do MMC/SC confirma essa diferenciação em relação à
atuação dos demais movimentos socais no período. Conforme ela,
Eu diria que no MMC foram vividos diferentes momentos em relação à
maioria dos demais movimentos. Por isso, no nosso caso, eu acredito que
não dá para falar em ‘crise nos anos 1990’. Penso que, em cada momento
da história do país, foi exigido dos movimentos diferentes formas de
organização. [...] Destaco que o período de 1990 a 1996 foi um período de
muita mobilização e de muita organização no MMC, pois é um momento em
que nós fizemos a luta pela regulamentação dos direitos que haviam sido
conquistados, como muitos abaixo-assinados, muitas coletas de ‘campanha
de kilo’ para poder ter o dinheiro para pagar os ônibus e manter as
companheiras nos acampamentos e mobilizações. Além disso, foi um
período de vários debates na esfera política direta, como no Congresso
Nacional, o que era algo realmente impressionante, pois as mulheres se
organizavam no sentido de preparar esses debates e os argumentos de
convencimento para demonstrar que nós ainda não tínhamos legalmente
esses direitos (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009).
Diante do relato, não há dúvida sobre a intensidade de atuação do
Movimento, naquele período, o que propicia um significativo amadurecimento
enquanto sujeito coletivo que já conquistou certa visibilidade social e política na
sociedade. Um exemplo disso, segundo o Movimento, foi o fato de que “em 1994, a
conquista do salário maternidade, trouxe o reconhecimento da profissão de
trabalhadora rural e provocou na sociedade o debate sobre a função social da
maternidade” (MMC, 2008, p.12).
Esse reconhecimento público da profissão se torna uma referência para a
construção de identidades, não somente para suas militantes, mas também para
diversas outras mulheres camponesas e/ou feministas, que se orientam pelos
avanços conquistados, para de fato reconhecerem-se socialmente como mulheres,
trabalhadoras camponesas e sujeitos sociais constituídos de direitos.
Além disto, as estratégias de luta, de mobilização e as conquistas daquela
década passam a lhes conferir repercussão social - inclusive nos meios de
comunicação social - enquanto movimento social feminista e camponês. Esse fato
está presente na fala de outra militante, que diz:
Lembro, inclusive, de um artigo que o ‘Florestan Fernandes’ escreveu para
o colunista semanal da ‘Folha de São Paulo’ dizendo que “O Brasil não é
51
A questão acerca da ‘crise dos movimentos sociais’ foi abordada no segundo capítulo deste
trabalho.
236
mais o mesmo, a luz é outra”, no qual falava do surgimento da CUT, do
Movimento dos trabalhadores Sem-Terra e do Movimento das Mulheres
Agricultoras, que chegaram de chapéu e chinelo, que não pediram licença,
mas foram entrando e ocupando o seu espaço que nunca existiu antes
naquela casa, mas que foi conquistado através da presença da Deputada
Federal Luci Choinaski, que representava essa esperança, esse sonho e as
palavras vividas e expressadas pelas mulheres agricultoras naquele
plenário, que não foram pedidos de mendicância, mas foram dicas de
coisas que deviam ser feitas, porque eram necessárias. Então assim se
constrói um novo tempo e aquele momento foi marcante, pois foi a primeira
vez na história, em março de 1992, que as mulheres camponesas do Brasil
estão no cenário nacional com o seu rosto, com o seu jeito, com suas
propostas e sem pedir licença, porque elas já tinham conquistado o seu
espaço lá dentro (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009).
A fala de Luci, bastante carregada de emoção, manifesta o que
representou para cada mulher camponesa toda a mobilização da década de 1990: a
conquista de visibilidade social e de espaços que eram seus, mas que até aquele
momento lhes eram negados. E, a partir de então, elas ‘não mais precisam pedir
licenças’, pois seus espaços já foram conquistados. Lá estão elas com sua
identidade: como mulheres e trabalhadoras camponesas, de chapéu de palha e
sonhos na cabeça, além de chinelos nos pés e a firmeza na caminhada.
É a partir deste período que as mulheres camponesas do MMA – agora
não somente de Santa Catarina, mas de todo o Brasil – começam a circular no
cenário público nacional e nas instâncias legislativas e executivas dos diversos
âmbitos de governo, fazendo propostas, exigindo o cumprimento de suas
reivindicações, negociando novos avanços e a garantia dos direitos conquistados.
A militante Justina, ainda compartilha sua análise sobre o período,
afirmando que
Esse foi um período de muita movimentação e de mobilização das
mulheres, onde as próprias mulheres vinham participar do Movimento com
mais facilidade, pois estava colocada a possibilidade econômica, que era a
questão da aposentadoria e o significado dela para as famílias camponesas,
mas que, ao mesmo tempo, exigiu muita firmeza e dedicação das mulheres
militantes e das dirigentes. Nós tivemos que ocupar os Ministérios de
Governo, apanhamos muito das polícias e passamos por momentos de
muita tensão como quando nós ficamos com o Ministério ocupado de um
dia para o outro para conseguir que o Ministro conversasse conosco. Sem
contar as manifestações nas rodovias federais e estaduais, entre outras
estratégias de luta. Deste modo, eu gostaria de registrar aqui que de 1985
até os anos 1990 foi um período de expansão do Movimento em nível
nacional, junto com lideranças da Comissão Pastoral da Terra, dos
Sindicatos Combativos, das Pastorais Sociais (Chapecó, Setembro de
2009).
237
Analisando estes relatos, nota-se que os avanços na articulação e
mobilização do Movimento naquela década, caminharam na direção da ampliação
da organização coletiva enquanto movimentos sociais camponeses no nível
nacional, mas já em nível latino-americano. Para além do próprio significado da
articulação de forças políticas e sociais, esse fato representa o amadurecimento do
Movimento no sentido de reconhecer que se tornava imprescindível agregar forças e
lutas, para que o horizonte de transformação societária, na perspectiva socialista,
pudesse ser concretizado.
A militante Justina também retrata as dimensões da organização e da
participação social e política do Movimento, nos diversos espaços da sociedade. Diz
ela:
Também nos anos 1990, foi possível extrapolar os limites da esfera nacional
e nós passamos a participar também enquanto articulação do Movimento
nos Estados do Sul, numa coordenação latino-americana e caribenha das
organizações do campo, chamada Coordenação Latino Americana de
Organizações do Campo - CLOC, que hoje resultou na Via Campesina, que
é uma organização mundial. [...] Portanto, é necessário perceber que se os
outros movimentos entram em crise, mas os movimentos de mulheres se
colocam, num período de intensa iniciativa e de mobilização para a
ocupação de espaços ditos como masculinos em diretorias de sindicatos,
em Câmaras de Vereadores, Prefeituras, Câmaras de Deputados etc
(Chapecó, Setembro de 2009).
Justina apresenta em sua fala o contexto de expansão e intensificação da
organização e mobilização dos movimentos feministas nos anos 1990. É neste
cenário que o Movimento de Mulheres Agricultoras – MMA avança em suas lutas,
bem como no âmbito de sua organização e articulação internas.
Diante disso tudo não restam dúvidas sobre os acúmulos que o MMA
conquistou na década de 1990. É a partir deste cenário que ele parte para novas
discussões no período seguinte, aproximando-se mais das lutas e da organização
que o identifica atualmente.
4.3.5 “Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do
Brasil”
238
Depois de adentrar na trajetória histórica do Movimento de Mulheres
Camponesas, é importante dedicar o olhar analítico também para a atual
organização do MMC, a fim de que se possa reconhecer nela as lutas atuais e as
perspectivas futuras para o Movimento.
Para desenvolver tal tarefa, a primeira militante entrevistada é Noeli.
Segundo ela,
A organização do MMC é composta a partir dos grupos de base, das
direções municipais, das direções regionais e das direções em cada Estado
e depois, por último, das direções em nível nacional. É claro que têm
estados que se organizam e trabalham um pouco diferente conforme a
realidade, mas de forma geral, sempre se parte dos grupos de base, sendo
que as instâncias seguintes – que são as de maiores níveis de organização
- são formadas pelas representações das instâncias menores (Chapecó,
Setembro de 2009).
Observa-se a presença de, pelo menos, dois elementos significativos na
atual organização do Movimento. O primeiro refere-se à importância atribuída aos
grupos de base – a qual é marca não somente desse movimento, mas também de
outros movimentos sociais brasileiros. O segundo tangencia a questão da autonomia
que cada Estado - onde existe o Movimento - possui para se organizar.
Partindo desses dois elementos, pode-se perceber o movimento dialético
que existe entre o processo de tomada de decisões e aquele de execução, os quais
acontecem em todos os espaços e âmbitos do Movimento. Assim, nota-se que o
processo de participação, formação, amadurecimento político e ideológico das
militantes acontece desde os grupos de base, a partir dos elementos do cotidiano de
vida das mulheres camponesas e de suas famílias e comunidades. É neste espaço e
âmbito que elas iniciam o ‘processo de discutir para decidir e depois executar’. Logo,
tornam-se responsáveis pela própria militância e pelo grupo em que participam.
Decidem como se organizar, o que discutir, o que e como fazer, entre outras
questões. Elegem suas representantes e indicam suas demandas de luta. Já aí vão
construindo coletivamente e gradualmente seu processo de autonomia e de
emancipação, num movimento em consonância com o próprio MMC, uma vez que
também vão contribuindo para a construção da autonomia do mesmo.
Ao avançarem em todos os níveis de representação – do grupal,
municipal, regional, estadual, nacional, ao internacional – vão construindo redes de
compartilhamento, onde trocam não somente as discussões e deliberações locais,
239
mas também as experiências de vida e de realidade, a visão de mundo e as
perspectivas que depositam no MMC. Assim, dialeticamente, vão conformando a
identidade do Movimento enquanto também constroem a sua identidade de mulher,
trabalhadora, camponesa etc.
Enfim, observa-se que a importância dos trabalhos e deliberações dos
grupos de base e do respeito à autonomia de cada região, reflete, nada mais que o
reconhecimento e respeito à diversidade de identidades e realidades, que ao final
vão congregar-se em objetivos de luta e perspectivas comuns de sociedade. É esta
dinâmica que as leva a sugerir mudanças, que abarcam desde as transformações
que ocorrem em nível pessoal, nas relações conjugais e familiares, passando pelo
nível das relações comunitárias e de trabalho, chegando ao nível das relações
societárias de gênero e de classe. É na totalidade deste movimento que reconhecem
a necessidade de transformação da sociedade capitalista e, portanto, indicam o
horizonte socialista como perspectiva.
Feitas estas colocações, é imprescindível chamar a atenção para a ampla
abrangência do movimento, tanto na esfera nacional – que também é retratada pelas
entrevistadas – quanto na esfera estadual catarinense. Note-se o que Noeli aponta.
Nós temos hoje núcleos de organização de base em 22 Estados do Brasil e
temos a articulação nacional do Movimento de Mulheres Camponesas. Aqui
no Estado de Santa Catarina nós temos os grupos de base, cujos trabalhos
são coordenados pelas direções municipais. Na seqüência nós temos as
regionais com suas respectivas direções, que são as instâncias onde
acontecem os encontros de organização, de formação, de luta, de
celebração e mística e também de comemoração da caminhada, então
temos vários regionais no Estado. E, por fim, nós temos uma direção
estadual que é composta atualmente por 14 linhas de trabalho e para
coordenar essas linhas nós temos 14 companheiras (Chapecó, Setembro
de 2009).
O cuidado com as diversas dimensões que compõem a integralidade da
vida de cada mulher camponesa também aparece na organização do movimento.
Organização, formação, ação-luta, celebração e mítica, e também comemoração,
são elementos fundamentais para alimentar tanto a caminhada de cada militante,
como a própria caminhada do MMC.
Assim, observa-se que a abrangência do movimento - que até meados do
ano de 2009 estava presente em todo o território estadual de Santa Catarina e em
22 Estados da Federação – indica que existe um significativo tecido social no
campo, composto de mulheres que possuem consciência crítica acerca da realidade,
240
as quais estão imbuídas de objetivos direcionados à transformação social, política,
econômica e cultural da sociedade brasileira. Este reconhecimento é fundamental
para compreender a significativa contribuição do Movimento de Mulheres
Camponesas de Santa Catarina e do Brasil, para o campo político do país. Da
mesma forma, tal reconhecimento é imprescindível para marcar a forte presença dos
movimentos sociais camponeses no cenário local e também nacional.
Já em relação às atuais bandeiras de luta do Movimento, a militante
ressalta que
Uma das principais bandeiras de luta, ou melhor, a primeira de todas é
voltada para a emancipação e libertação das mulheres de todas as formas
de opressão. A segunda bandeira de luta é o projeto de agricultura
camponesa, [...] e a terceira é a transformação da sociedade, sendo esta a
nossa missão maior, ou seja, fazer a nossa luta no sentido de transformar a
sociedade (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009).
As três questões de luta presentes na fala de Noeli, quais sejam, ‘a
emancipação das mulheres de todas as formas de opressão’, do ‘campesinato’ e da
‘transformação societária’, são reforçadas na mensagem pública do Movimento de
Mulheres Camponesas, ao comemorar seus 25 anos de organização em Terras
Catarinas. Para o Movimento, “a mensagem política do MMC/SC é a emancipação
das mulheres camponesas e a construção da agricultura camponesa e ecológica
combinadas com a luta pela transformação da sociedade” (MMC/SC, 2008, p.37).
As três questões que marcam as lutas do Movimento na atualidade se
traduzem para o cotidiano através de outras lutas visíveis no dia-a-dia das mulheres
camponesas. Isto é o que também relata Noeli, ao dizer que
Dentro dessas linhas todas, nós temos a luta pelos direitos, que hoje se
intensifica no sentido de que os direitos que já foram garantidos,
permaneçam: a saúde numa perspectiva, o acesso à educação por parte de
todas as companheiras e dos cidadãos brasileiros, a questão do resgate,
dos cuidados e do cultivo das sementes crioulas, mas também de recuperar
e valorizar a sabedoria popular e o jeito de produzir, herdados dos nossos
antepassados, a questão sobre a importância da produção da alimentação
saudável e de subsistência, de modo que as famílias se tornem menos
dependentes do mercado e sistema capitalista; o trabalho com as plantas
medicinais, que é voltado para que a gente possa utilizar sustentavelmente
os bens da natureza, a fim de que também possamos ter uma saúde
melhor. Além disso, temos como uma das principais bandeiras do MMC, a
questão da participação política das mulheres nos diversos espaços da
sociedade e a luta contra a violência praticada contra a mulher [...]. Essas
são as principais bandeiras de luta atualmente, mas nós apoiamos e
trabalhamos integralmente várias outras lutas que as mulheres encontram e
enfrentam no dia-a-dia e trazem para os grupos de base e para o
Movimento (Chapecó, Setembro de 2009).
241
Ora, fica explícito que este movimento social volta suas lutas na direção
de um horizonte amplo, com objetivos que só podem ser buscados através da
coletividade e de uma orientação ideológica que se localize na contra-hegemonia do
capitalismo e das políticas neo-liberais. Entretanto, para que estas lutas possam se
concretizar, o Movimento reconhece a necessidade de objetivá-las no cotidiano, o
que perpassa a luta pela conquista, garantia e manutenção dos direitos de cidadania
de mulheres e homens, do campo e da cidade, mas também luta pela transformação
de padrões desiguais de gênero e classe, enraizados em modelos culturais, dentre
os quais se destacam: a cultura patriarcal, burguesa e machista.
Esta reflexão é demonstrada com significativa nitidez por outra militante, a
qual expressa que
Somado a isso, está colocada a questão da luta por uma sociedade que
tenha maior igualdade de gênero, ou seja, igualdade de condições entre os
homens e as mulheres, assim como maior igualdade e justiça com a
distribuição de renda, com a dignidade e com a garantia de direitos. [...]
Portanto, nós fazemos a leitura de que a cultura patriarcal é um suporte
para o capitalismo e apesar dela ser anterior ao capitalismo, nesse
momento ela se configura como um dos principais pilares desse sistema.
Temos também a consciência que dentro da cultura patriarcal, o que
sustenta isso tudo é a dependência econômica das mulheres, pois ao
manter as mulheres dependentes torna-se mais fácil de manipulá-las. [...]
Outro elemento de manipulação e dominação é o não-direito das mulheres
de decidirem sobre o seu corpo, pois o corpo das mulheres vive muito em
função do que determina a Igreja, o que determinam os homens, o que
determina o Estado e a dificuldade das próprias mulheres poderem decidir
sobre o seu corpo. E o último pilar que sustenta esse sistema de dominação
é a violência praticada contra as mulheres e sobre isso é importante
registrar que, pela nossa avaliação, a violência se justifica principalmente
porque o sistema capitalista colocou, ou melhor, conferiu centralidade para
a questão da propriedade, pois tudo gira em torno da propriedade e do
lucro. [...] Essa é uma realidade muito dura de ser dita e difícil de ser
assumida, mas que é indispensável colocá-la em debate, porque a mulher
não pode continuar sendo usada como objeto e muito menos como
propriedade dos homens. Portanto, está colocada aí uma grande questão
dentro da luta feminista é que a questão do ‘direito de decidir’, de ter
autonomia política, econômica, financeira e de ser respeitada com
igualdade, de não ser considerada como ‘posse’ do outro.
Nota-se nas falas das entrevistadas, como – ao retratarem o próprio
MMC/SC - conseguem transitar entre o objetivo geral que colocam no horizonte da
atuação do movimento - logo, na utopia do movimento -, sem perder de vista em
suas falas, decisões e ações, a concretude do cotidiano, de onde surgem
necessidades e demandas e onde este horizonte utópico é traduzido a partir da
escolha das linhas prioritárias de ação, da organicidade do Movimento, de sua
242
formação política e de sua comunicação com outros movimentos sociais
camponeses e urbanos e com a sociedade de forma geral.
Muitas outras questões que conformam os traços do Movimento de
Mulheres Camponesas de Santa Catarina demandam da investigadora que sejam
aqui comentados e analisados. Eis aqui um desafio, pois a trajetória histórica desse
Movimento, de onde decorrem seus traços atuais, é tão rica em elementos, os quais
extrapolam o olhar analítico possível para uma investigação do porte desta que se
desenvolve.
Destarte, reconhecendo tal limite e a fim de encerrar este item de
discussão, há que se ressaltar a importância do MMC tanto em nível nacional,
quanto nos níveis estaduais, regionais e locais, para a dinâmica social, política,
econômica e cultural da sociedade brasileira. Através de sua organização e de sua
atuação política, este movimento social feminista, de classe e do campo, contribui
significativamente para instigar a transformação societária, minando as estruturas do
sistema capitalista com suas lutas políticas e sociais.
4.3.6 “Nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não
negar a sua história” – A construção da identidade
Para o Movimento de Mulheres Camponesas, sua existência não é
possível, sem a construção de ‘identidades’. Esse é um traço intrínseco ao próprio
processo de constituição de um Movimento, o qual se configura como um elemento
necessário para que o mesmo possa construir sua trajetória social e política.
Entretanto, ao tratar da identidade, no contexto deste estudo, há
indicativos de que é necessário esclarecer sobre ‘qual identidade’ se está falando:
se das identidades particulares ou singulares de cada mulher camponesa militante
do MMC, ou se da identidade coletiva do próprio Movimento. Neste sentido, é
importante informar que aqui se tratará de ambas as identidades, uma vez que ao
dialogar com as três militantes durante a pesquisa de campo, notou-se que, para
elas, há um processo de entrelaçamento entre o reconhecimento das identidades
243
singulares e a construção de uma identidade coletiva, processo este que não pode
ser dissociado.
Antes de partir para o debate das contribuições trazidas pelas
entrevistadas, é também importante relembrar algumas considerações que foram
aprofundadas no capítulo anterior a este. A concepção de identidade aqui adotada,
parte do pressuposto de que é uma construção sócio-histórica, elaborada no próprio
movimento da vida cotidiana, através das relações e do jogo de forças no campo
social, político, econômico e cultural (MARTINELI, 2008). Logo, quando se fala de
‘identidade’ ou ‘identidades’, faz-se referência a algo processual, que está em
permanente elaboração a partir da cotidianidade dos sujeitos e da aquisição da
consciência crítica. Marcam essa cotidianidade e, portanto, compõem a identidade
dos indivíduos, as relações sociais, o trabalho – em sua presença ou ausência -, os
laços familiares, os valores e princípios de vida, a cultura, enfim, as tradições
vividas.
Por
conseguinte,
toma-se
a
identidade
como
um
componente
fundamental na vida dos indivíduos sociais, uma vez que se compreende que
contém tanto os elementos que marcam a história do indivíduo – ou grupo, no caso
de identidade coletiva -, quanto as projeções de seu futuro, através do ‘devir’
presente no imaginário de cada sujeito.
Enfim, as identidades são processos também políticos, de afirmação das
características pessoais e grupais e das perspectivas de vida presentes no dia-a-dia
dos indivíduos sociais. Logo, é a partir do cotidiano destas mulheres camponesas
com quem se dialogou, que se passará a discutir o significado da ‘identidade’, tanto
para elas quanto para o movimento.
Já numa primeira contribuição das militantes, o elemento central que está
presente remete à aquisição de uma consciência crítica sobre a realidade e sobre a
própria vida.
O processo de construção da identidade acontece a partir do momento em
que você vai tomando consciência de você mesmo e da realidade em que
você vive e atua, porque enquanto você está lá produzindo sem perceber o
que você está fazendo, sem analisar como e porque você está fazendo, não
acontece esse processo de reconhecimento e de construção de uma
identidade (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009).
244
Note-se que, para Noeli, a construção da identidade vai ocorrendo a partir
do momento em que o indivíduo age na sociedade e tem consciência de sua
atuação. Portanto, a construção da identidade - que para ela também é processual faz parte de um movimento em que o indivíduo ‘se coloca’ no mundo, significando
seu fazer, mas também seu ‘ser’ no espaço onde vive.
Já para Luci, “a identidade é um instrumento pedagógico de mudança
social, de aprendizado, é educativo. A identidade, assim, passa a ser um
instrumento de transformação” (Florianópolis, Setembro de 2009). Por isso, sua
construção não é um processo que pode ser vivido isoladamente. Faz parte de um
processo social, o qual resulta em um reconhecimento, que primeiro se efetiva na
esfera pessoal, ou seja, no reconhecimento de ‘quem eu sou’, mas que, logo, se
alastra para a esfera coletiva dos grupos de sociabilidade, seja a família ou os
grupos comunitários, isto é, no reconhecimento dos outros sobre ‘quem eu sou’.
Neste sentido, a militante continua sua assertiva, salientando que “[...] os
indivíduos precisam conhecer sempre a sua produção, a sua cultura e não sentir
vergonha pelos seus valores, simplesmente porque os seus valores e o meio em
que vivem é diferente” (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009).
Observa-se na sua fala a presença da questão da ‘auto-afirmação’ como
elemento de ligação entre o reconhecimento efetivado na esfera pessoal e aquele da
esfera social. Assim, o outro somente pode ‘reconhecer quem sou’, caso ‘eu mesma
me reconheça’ e, portanto, ‘auto-afirme minha identidade frente a ele’.
Neste sentido, reconhece-se que todo processo de construção de
identidade é um processo dialético que se faz a partir de trocas sociais, as quais vão
constituindo o indivíduo como sujeito político, portador – inclusive – de cultura. Esta
é mais uma das características que leva a afirmar que não é possível dissociar o
processo de construção de identidade nos âmbitos singular e coletivo, pois uma é
produto e, ao mesmo tempo, produtora da outra.
Essa concepção é expressa por Noeli quando afirma que
Por isso, eu ressalto a importância que tem o MMC nesse processo.
Tomando meu próprio processo como exemplo, se for considerar a Noeli
antes e depois de entrar no MMC, a minha concepção de identidade
camponesa é bem diferente. Foi a partir dessa compreensão que veio o
reconhecimento da identidade, a sua valorização e sua afirmação no dia-adia (Chapecó, Setembro de 2009).
245
Essa fala destaca a processualidade na elaboração da identidade das
mulheres camponesas e a importância do Movimento nessa construção. Entretanto,
deve-se estar atento, a fim de não se equivocar em compreender que a ‘identidade
passa a ser outra’ depois da participação no Movimento, pois neste sentido estar-seia caracterizando a ocorrência de uma identidade atribuída pelo MMC e não
identificando como um processo de construção da identidade por meio do
desenvolvimento de consciência crítica, através da participação social e política,
como de fato acontece.
Outra militante do MMC/SC também confirma isso, ao dizer que
Para o nosso Movimento, a tomada de consciência se dá no processo de
formação, na organização e nas lutas. [...] É através da luta coletiva, da
organização e tudo o mais, que consegue ir constituindo, construindo essa
identidade de mulher camponesa. E pode-se dizer que isso vai mais além
ainda, pois para nós, a construção da identidade é o reconhecimento de
uma identidade camponesa, mas também feminista, que está diretamente
relacionada com valorização do ser humano, da igualdade, da justiça, da
garantia do território, da cultura popular e local etc. Por isso tudo, é que se
diz que uma coisa é o seu reconhecimento enquanto pessoa antes da
entrada no movimento e outra é depois que já se participa (JUSTINA,
Chapecó, Setembro de 2009).
Note-se que nas palavras de Justina já está expresso o entrelaçamento
entre os elementos da identidade singular das militantes e aqueles que conformam a
identidade coletiva do próprio Movimento de Mulheres Camponesas. Nesta questão
está a diferença entre a identidade antes da militância no MMC e depois dela, uma
vez que no processo de construção das identidades – singular e coletiva
reciprocamente – vão acontecendo acúmulos, trocas e transformações, as quais
nunca se colocam enquanto negação, mas sim como afirmação do ser mulher,
trabalhadora, camponesa, militante e protagonista política e social.
Isso é o que fica expresso nas palavras de Luci, que, assim como fez
Noeli anteriormente, toma seu próprio exemplo para ilustrar a questão. Segundo ela
Para falar de identidade, vou te dizer que, por exemplo, eu não deixei de ser
agricultora. Em todos os lugares que eu vou, eu sou presidente estadual do
Partido dos Trabalhadores, já tive mandatos federais inclusive, mas eu
nunca perdi a minha identidade de camponesa, o que significa não negar a
sua história (Florianópolis, Setembro de 2009).
Assim vão se constituindo as identidades das mulheres e do próprio
Movimento. Nenhuma delas está descolada da outra. Pois, tal como a importância
que o MMC/SC atribui aos grupos de base, também ele atribui importância ao
246
processo de construção de sua identidade coletiva, já que ela é fundamentalmente
construída a partir da cotidianidade de vida das militantes.
Apreensão semelhante, acerca do processo de reconhecimento da
identidade singular e/ou de construção da identidade coletiva que acontece no
Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinenses, é também apontada
por Kroth (1999, p.85), quando afirma que “o processo de luta das mulheres levouas a construir uma identificação com o feminino e um perfil de mulheres capazes de
reunir os papéis de mãe, esposa, trabalhadora e cidadã”. Desse modo, compreendese que a chamada ‘construção da consciência’ – no caso em questão – está
relacionada ao processo de retomada de uma identidade já existente que era a de
mulher, acumulada ao reconhecimento de outros traços, que geralmente antes não
eram afirmados: ser trabalhadora e ser cidadã.
Portanto, confirmando todo o debate, a militante Luci colabora também
para lhe conferir um caráter de encerramento, reafirmando aquele que foi o primeiro
elemento destacado neste item, o qual se refere à construção ‘da’ e/ou ‘das
identidades’: a aquisição da consciência crítica a partir dos elementos da
cotidianidade da mulher camponesa, militante do MMC/SC. Para ela, “há diferença,
sim, entre antes e depois da militância, no que se refere à questão da identidade
camponesa. Essa diferença passa, fundamentalmente, pela consciência que as
mulheres constroem” (Florianópolis, Setembro de 2009).
4.3.7 “O Protagonismo também se dá na participação política na sociedade, na
participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos” –
O protagonismo social e político
A questão que se propõe a discutir nesse item do capítulo, novamente
encontra relação direta com a participação social e política das mulheres e com os
objetivos do próprio Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina. É a
questão acerca do ‘protagonismo’ desempenhado pelas mulheres camponesas
militantes do Movimento, a qual influencia o próprio protagonismo desenvolvido pelo
247
MMC/SC frente a outros movimentos sociais, organizações populares e partidos
políticos.
Para provocar a discussão, resgata-se de um dos materiais institucionais
do Movimento, um dos objetivos reafirmados pelo MMC/SC em sua 10ª Assembléia
Estadual, realizada no município de Quilombo, entre os dias 20 e 22 de outubro de
2007. Segundo definição em Assembléia, um dos objetivos do Movimento é
“avançar na participação política da mulher na sociedade e preparar militantes para
contribuir na transformação social” (MMC, 2008, p.38).
A participação política da mulher na sociedade, desde o início do
Movimento em Santa Catarina, configurou-se como uma das mais importantes
estratégias de luta. Nela está impressa a orientação em desenvolver com as
militantes atividades de formação da pessoa, de consciência social e política,
através de espaços de animação, estudo, debate , avaliação e comemoração, as
quais possam elevar o nível de consciência das mulheres camponesas - sóciopolítica, econômica, cultural e técnica. Com isto, pretende-se desencadear
processos articulados entre projeto pessoal de vida e projeto societário, em que as
mulheres avancem, tanto na perspectiva da emancipação enquanto mulheres e
sujeitos sociais, construtoras de história, mas também que possam ampliar e
fortalecer a organização do próprio movimento e, com ele, de suas lutas (MMC,
2008).
Entretanto, esta não é uma tarefa fácil, pois a presença da cultura
patriarcal e machista arraigada no modo de vida da sociedade capitalista, imprime
condições que dificultam a participação da mulher em patamar de igualdade com o
homem, em espaços políticos e de sociabilidade. Por isto, a luta pela participação da
mulher e, por conseguinte, pelo exercício de seu protagonismo, deve iniciar desde
os espaços familiares e comunitários, para que possa adentrar nos espaços sóciopolíticos da sociedade.
A investigadora Sirlei Kroth, que no ano de 1999 trabalhou com o
Movimento de Mulheres Agricultoras de Santa Catarina, relatava que
As mulheres começaram a perceber, pouco a pouco, que as principais
barreiras a serem enfrentadas estavam relacionadas ao conteúdo básico de
participação no sindicato. Elas, que de certa forma acumulavam práticas
vividas nos grupos de reflexão, nas CEBs e na experiência concreta de luta
de oposição sindical, queriam e estavam aptas a contribuir no processo de
248
pensar e ‘construir propostas sindicais’ [...]. Já não bastava a postura de
apenas ouvir, estarem presentes para ampliar o número de sócios. Mesmo
sem muita clareza, suas práticas conduziam-nas à busca de cidadania. Em
alguns lugares, a organização das agricultoras foi sendo cada vez mais
expressiva. [...] Entretanto as dificuldades e a luta pela auto-valorização das
mulheres agricultoras residiam também no árduo trabalho de
convencimento da importância da participação da mulher na sociedade,
inúmeras vezes rejeitada e não aceita pelas próprias companheiras
(KROTH, 1999, p. 75).
Aos poucos o processo de conquista de autonomia e de participação
social foi acontecendo, configurando-se enquanto um processo de construção do
protagonismo dessas mulheres camponesas. Para as militantes, o primeiro passo e
um dos mais difíceis para a mulher é o de sair do espaço privado de sua casa, para
participar dos espaços públicos. Este passo significa o início de um processo de
construção do protagonismo, o qual é gradual e acontece em sua totalidade,
envolvendo tanto o âmbito familiar, quanto o comunitário, social e político.
A militante Justina assevera que,
O protagonismo acontece através do processo de participação e de
formação das mulheres no Movimento. Ele se concretiza na vida das
camponesas através da capacidade de organização, de intervenção, de
compreensão política. Ele também acontece quando elas se colocam como
indivíduos com capacidade de continuar cuidando e melhorando as
sementes crioulas, de produzir alimentos saudáveis e oferecer eles para a
sociedade. Ele também se dá na participação política na sociedade, na
participação em outros movimentos, nos sindicatos, nos partidos políticos e
em diversos outros espaços onde elas estão colocando as suas propostas
(Chapecó, Setembro de 2009).
A partir dessas considerações, é possível perceber a forte ligação que as
mulheres participantes do MMC/SC fazem entre a conquista da emancipação das
mulheres no âmbito pessoal de suas vidas e a efetivação daquelas que são as
propostas do Movimento. Logo, significando a concretização do protagonismo, notase a conquista da compreensão política – o que acontece na esfera singular dos
indivíduos sociais –, mas também a intervenção na sociedade através da adoção
dos princípios e objetivos do Movimento em suas vidas, o que repercute tanto no
exercício de seu trabalho cotidiano, mas também na participação política –
processos que geralmente acontecem no âmbito da coletividade.
A
construção
do
protagonismo
–
em
sua
característica
de
processualidade - não pode ser fragmentada nas dimensões pública e privada da
vida. É um processo dialético composto por elementos de singularidade e de
genericidade dos indivíduos sociais, os quais se encontram em constante
249
movimentação no campo das correlações de forças que acontecem nas esferas
social, econômica, política e cultural.
Justina
exemplifica
esse
processo
dialético
de
construção
do
protagonismo das mulheres e do próprio MMC/SC – o qual ocorre na vida pessoal
das militantes e na organização / existência do Movimento –, ao relembrar de um
dos projetos desenvolvidos no corrente ano de 2009.
[...] Nós tivemos no mês passado a apresentação de uma peça teatral sobre
a ‘agroecologia’ em vários municípios catarinenses e nós sentimos como foi
importante as mulheres serem as protagonistas nos debates que
aconteceram em diversas universidades onde essa peça teatral foi
apresentada pelas jovens e mulheres camponesas que estão no MMC.
Penso que, na verdade, foi a partir das experiências das lutas e da própria
consolidação do movimento, que o cotidiano das mulheres foi sendo
transformado em conteúdo, o qual foi transformado em arte e a arte foi
sendo usada para fazer a reflexão e o debate para fortalecer a articulação
do Movimento, o projeto de agricultura camponesa e a organização das
mulheres. Portanto, o protagonismo das mulheres se dá no sentido da
formação, da organização, da participação das mulheres no próprio
movimento e na sua trajetória de lutas sociais (Chapecó, Setembro de
2009).
Percebe-se, a partir da fala da militante, que todos os elementos pessoais
de vida, de trabalho e as próprias relações sociais das mulheres que participam no
Movimento, se entrelaçam com a constituição e mobilização do Movimento. É a
partir dessa totalidade que o protagonismo das mulheres camponesas vai sendo
trabalhado pelo movimento e, portanto, vai acontecendo na vida de cada militante.
Traços dessa totalidade também são percebidos na fala de Luci, que
direciona sua reflexão para o ‘significado do protagonismo do movimento’, embora
não deixe de relacioná-lo com o processo que ocorre na vida das mulheres. Diz ela,
Eu acredito que o protagonismo do Movimento se faz no sentido de criar o
seu próprio espaço e de reconhecer que tem suas próprias bandeiras, tem
sua identidade, tem seu próprio rosto e jeito, de que mantém a cultura das
camponesas e nela constrói uma forma própria de fazer as coisas
acontecerem, de criar suas estratégias. Portanto, mesmo estando junto com
os outros, pois tem caráter social e coletivo, continua mantendo a sua
forma, seus objetivos, princípios e valores originais. Esse protagonismo
aparece quando as mulheres começam a criar consciência, pois até que
elas não criam consciência esse protagonismo fica invisível. É
impressionante. Tudo se torna visível quando você adquire consciência do
que você é (Florianópolis, Setembro de 2009).
Ora, a criação de espaços próprios, o reconhecimento de suas bandeiras
e a elaboração de estratégias de luta, o ‘fazer acontecer’ a caminhada do
Movimento, mantendo coerência com seus princípios, objetivos e valores, torna-se
250
uma das expressões de protagonismo possíveis para o próprio movimento.
Entretanto, ele não se concretizará sem que as mulheres camponesas, que nele
militam, possam exercer seu protagonismo pessoal e elevá-lo ao âmbito coletivo.
Assim sendo, os processos de protagonismo das mulheres camponesas
ganham espaço e significado no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras
Catarinas. Tais processos encontram-se imbricados em outros, como o da
construção da identidade. Portanto, tal como ressaltou Luci, também partem da
elaboração da consciência crítica acerca da realidade, das relações sociais, dos
traços culturais e da conjuntura política e econômica que configuram o cotidiano.
4.3.8 “[...] Tem um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no
processo de autonomia das mulheres” – A conquista da autonomia
Como último item desta que se constitui a terceira Parte do presente
Capítulo, assume-se o desafio de debater com as entrevistadas a questão da
‘autonomia das mulheres’ militantes do MMC/SC e seu desenvolvimento enquanto
um traço que vai demarcar também a identidade do Movimento.
Para tanto, o caminho a ser feito partirá do desenvolvimento da
autonomia na esfera pessoal da vida das militantes, para depois adentrar na questão
da autonomia do Movimento. Sempre considerando que tais âmbitos de
desenvolvimento da autonomia não podem ser considerados desvencilhados um do
outro, tal como se procedeu em parágrafos anteriores em relação aos processos de
construção de identidade e de protagonismo.
Sendo assim, a primeira contribuição que se resgata é da militante Luci.
Para ela,
As principais dificuldades e desafios para construir essa autonomia são as
mais variadas possíveis. Entretanto, digamos que o primeiro desafio é a
mulher sair de casa. A agricultura é uma atividade, uma profissão que tem
um aspecto cultural muito forte de ‘colonização’ também no processo de
autonomia das mulheres em relação à questão de gênero. O que se dizia, e
ainda se diz, é que a mulher sai de casa porque não quer trabalhar, não
quer fazer seu papel, para deixar a família, o marido, os filhos. Enfim,
aquela coisa ‘ bem pequena’ na nossa compreensão, mas arraigada na
cultura de dominação, simplesmente para boicotar a participação das
mulheres (Florianópolis, Setembro de 2009).
251
Percebe-se que o elemento cultural é um dos aspectos mais fortes que
impõem às mulheres – mas também aos homens – modos de se relacionarem e se
portarem na sociedade, os quais muitas vezes lhes cerceiam a liberdade sobre suas
vidas e, conseqüentemente, o exercício da autonomia no que tange à leitura da
realidade, à tomada de decisões sobre o que desejam fazer, como e quando. Ou
seja, a fala de Luci contém em si um dado de denúncia de que o aspecto cultural da
vida no campo é pleno de um ‘ranço’ colonizador, que dificulta o alargamento da
autonomia por parte das mulheres, uma vez que as coloca sob o jugo dos padrões
de dominação masculina.
Reconhecendo tal situação, a militante afirma que é necessário fazer algo
para desconstruir tal situação e coloca a participação das mulheres no Movimento
de Mulheres Camponesas como uma estratégia para que isto aconteça. Na sua fala,
com conotação de denúncia e de desabafo, são nítidos os modelos culturais que
perpassam a vida das mulheres camponesas, imprimindo-lhes o perfil ideal para ‘ser
esposa’, ‘ser mãe’, ‘ser mulher’ e ‘ser trabalhadora no campo’. Para ela, a ruptura de
tais modelos torna-se condição sine qua non para que o processo de construção da
autonomia possa ser desencadeado. Nas suas palavras,
Então, sempre as mulheres sofreram esse tipo de definições
preconceituosas e cerceadoras. Quando você sai de casa é porque não
quer ou não sabe, ou não está ‘a fim’ de cuidar dos filhos, do marido e da
casa. Para enfrentar isso, exige-se um passo bastante difícil para as
mulheres, para o qual tem que ter uma energia muito grande, que é o de
demonstrar que a casa não é só privada da mulher, mas pode ser do
marido, dos filhos, de todos aqueles que moram lá, ou seja, da própria
família, portanto, não é responsabilidade única da mulher. Então, esse é o
primeiro passo: de conseguir tirar o primeiro pé de casa, o segundo já sai
mais fácil (LUCI, Florianópolis, Setembro de 2009).
Destarte, reconhecendo que há perspectiva de que os primeiros passos
voltados para que a mulher consiga sair de casa possam se concretizar e também
que a participação no MMC/SC possa se configurar como uma das etapas para
efetivar avanços na direção da conquista da autonomia, é imprescindível aceitar que
o processo é penoso.
Esse foi o processo que nós vivemos, sendo o primeiro passo o de levar a
mulher para a reunião e começar a criar a consciência, para que depois ela
possa chegar em casa e levar esse saber novo e conseguir colocar ele na
própria família, o que geralmente lhe leva a passar por muitas dificuldades,
já que o seu pronto de vista não é aceito. Portanto, esse processo é
exemplo da contradição que a gente vive no processo de transformação de
252
quem está permanentemente lidando com isso (LUCI, Florianópolis,
Setembro de 2009).
Nota-se que os passos que constituem o processo de conquista de
autonomia, para muitas pessoas, podem ser desprovidos de importância. Entretanto,
como disse Luci, desde ‘o primeiro passo de sair de casa’, pela primeira vez, para
participar de um espaço político e de sociabilidade, é fundamental para que se
possa desencadear o processo de despertar e alargar a autonomia e emancipação
das mulheres camponesas.
É aqui que começam a relacionar-se a construção da autonomia das
militantes com a do próprio movimento, uma vez que uma vai colaborando para o
acréscimo da outra, alargando-se num processo recíproco.
Conforme Kroth (1999), a participação nos espaços sociais e políticos
propiciados pelo MMC/SC levam a significativos acréscimos de autonomia – poderse-ia dizer emancipação – das mulheres militantes. Neste sentido, a autora discute
tanto a ‘autonomia’ propiciada pela participação em espaços coletivos e de decisões
políticas, como os sindicatos e partidos políticos, mas também o despertar para a
autonomia que acontece através dos reflexos econômicos na vida das camponesas,
provenientes das conquistas efetivadas pelo Movimento, em relação ao acesso ao
‘salário maternidade’ e à ‘aposentadoria para a mulher agricultora’. Para ela,
Muitas mulheres que nunca haviam tido seu próprio dinheiro, passaram por
um novo processo de liberdade e escolha na hora de fazer suas compras,
de dar um presente ao neto, de ir numa festa sem precisar depender do
marido ou do filho para tomar um refrigerante. Outras agricultoras que nem
sequer conheciam a cidade, tiveram que enfrentar os bancos, conheceram
mais gente. Algumas despertaram para usar um batom, compraram um
brinco, foram a um salão arrumar o cabelo, passaram a se vestir melhor.
Foram percebendo que o caminho traçado na luta lhes apontava a história
como um campo de possibilidades, cuja mudança é possível (1999, p.123.
Grifos no original).
Ora, é nítido na fala da investigadora, o efetivo alargamento da autonomia
na vida das mulheres camponesas, o qual tem como principal aspecto a
‘possibilidade de decidirem por si mesmas em relação ao que querem fazer, como e
quando fazer’. Esse alargamento é resultado não apenas da participação no
Movimento, mas também do aumento da participação no âmbito familiar e da
propriedade rural, bem como em outros espaços políticos e de sociabilidade
existentes na comunidade. Além disto, outros elementos significativos, que são
geradores do processo de aprofundamento da autonomia e emancipação, são as
253
conquistas concretizadas pelas militantes do movimento, através de suas lutas,
desde a década de 1980, quando o Movimento começou a ser articulado.
Notadamente, o mesmo processo, que trouxe acréscimos na autonomia
das mulheres camponesas militantes do MMC/SC, provocou nelas uma dinâmica em
que se passou a discutir e perceber a importância de um espaço político, no qual as
participantes gozassem de certa autonomia para tomar as decisões relativas à
caminhada coletiva. Em decorrência dessas discussões, desde os primeiros anos de
articulação do Movimento, as militantes decidiram imprimir-lhe o mesmo caráter que
desejavam para suas vidas.
Assim, o MMC/SC – Movimento de Mulheres Agricultoras - MMA, na
época de sua criação – já nasce como um movimento social autônomo, de mulheres
trabalhadoras do campo. Segundo Noeli,
A principal característica que diz que o MMC é autônomo é que o
movimento pensa, elabora e delibera suas próprias linhas estratégicas, o
seu trabalho. [...] Não são outras pessoas ou outros movimentos que vêm e
dizem para nós o que teremos que trabalhar, se é esta ou aquela questão.
Pelo contrário, é o próprio MMC que pensa e faz as suas próprias linhas de
atuação, ou seja, que reflete, que discute e que decide suas ações através
de um trabalho coletivo que é pensado e concretizado a partir do Movimento
e segundo os seus próprios objetivos. Isso é feito com base no que vem
acontecendo na sociedade, através da análise da realidade. Claro que
temos também algumas linhas de atuação que são trabalhadas juntamente
com outros movimentos sociais, numa perspectiva coletiva mais ampla que
engloba a participação, ora dos movimentos de mulheres e ora dos
movimentos camponeses (Chapecó, Setembro de 2009).
Fica explícita nessa fala, a importância que representa para o Movimento
poder decidir sobre suas ações, estratégias, lutas e a partir delas propor ações
conjuntas com outros coletivos de movimentos sociais, sejam eles ligados ao campo
ou às questões de gênero.
Mas, para que a autonomia possa ser reconhecida, é necessário que as
militantes e dirigentes do MMC/SC estejam atentas à situação das conjunturas
social, econômica e política do país, especialmente dos reflexos delas na realidade
do campo, pois o processo de autonomia ocorre sempre numa relação de alteridade,
em que o outro precisa reconhecer e respeitar aquele que a requer. Para tanto, é
fundamental o estabelecimento de parcerias, pois de outra forma, a autonomia não
terá seu necessário reflexo de alteridade.
Nesse sentido, Noeli também destaca que para o MMC/SC construir “a
autonomia do Movimento – e também das mulheres - significa que ele pode e deve
254
buscar parcerias para suas lutas, porém é o próprio Movimento, desde a sua base,
que determina as linhas gerais daquilo que decide trabalhar” (Chapecó, Setembro de
2009).
Já Justina, salienta os desafios enfrentados no processo de conquista de
autonomia, dizendo que
[...] Para sustentar essa autonomia, existem diversos requisitos que exigem
do Movimento sua superação, que são desde as questões financeiras, as
questões de estudo, de elaboração das pautas, até a própria questão da
conquista de visibilidade pública e de respeito na sociedade. Portanto,
esses seriam os nossos maiores desafios na organização e atuação do
MMC (Chapecó, Setembro de 2009).
Nas suas palavras fica marcado que esse processo de conquista de
autonomia também é um processo de cultivo, de cuidado para com a caminhada
política. Portanto, configura-se este cuidado como uma dinâmica permanente, que
deve ser pensada e renovada por todas as militantes e dirigentes, a cada ação do
MMC/SC, a fim de que lhes seja reconhecida sua importância política e sua
visibilidade social.
Com efeito, perfiladas tais questões, é possível continuar trabalhando na
perspectiva do alargamento da autonomia de vida de cada militante, mas também de
um acréscimo de autonomia extensivo às famílias e à classe trabalhadora
camponesa. Com isto, poder-se-ia aproximar cada vez mais do patamar de
emancipação humana, o qual representa um dos elementos componentes da
transformação societária encontrada atualmente no horizonte utópico do Movimento.
255
QUARTA SEÇÃO
Os direitos sociais e as políticas públicas para o campo
– Conquistas, demandas e Reivindicações atuais -
Eis que uma nova página se abre para discussão: o campo das
conquistas, demandas e reivindicações indicadas pelo Movimento de Mulheres
Camponesas de Santa Catarina, através de suas militantes Justina, Luci e Noeli.
Mais uma vez a página está em branco, convidando para que seja
completada com palavras que expressem olhares e percepções acerca da trajetória
sócio-histórica do Movimento. Neste sentido, a principal tarefa que aqui se coloca,
para quem quiser percorrer o caminho, é a de desvendar as principais conquistas do
MMC/SC, dando-lhes visibilidade.
Entretanto, também caberá como tarefa para esta seção do percurso
investigativo, levantar as políticas públicas existentes no campo, tanto aquelas que
já se concretizaram na esfera política e social do país, quanto àquelas que ainda se
configuram como demandas de efetivação.
Destarte, é, sobretudo, acerca destas últimas, que se nota a necessidade
de dedicar olhares e discussões, a fim de provocar a atuação por parte dos agentes
políticos e sociais deste país, os quais são constituídos por - pelo menos - dois
segmentos distintos: um, formado por grupos, organizações e movimentos populares
e sociais, dentre as quais uma de suas principais funções é o tensionamento do
Estado para que cumpra seu papel na garantia dos direitos conquistados. E o outro
que é formado pelos próprios agentes do Estado, aqueles que o representam em
suas funções executivas, exercendo ações de planejamento, gerenciamento e
execução das políticas públicas em questão. Deste modo, ter-se-á a possibilidade
de avançar na construção de um mapa de perspectivas de atuação do Serviço
Social – profissão dessa investigadora – que pode trabalhar tanto com um, quanto
com outro segmento, tendo como orientação da ação as demandas camponesas,
levantadas através das lutas e enfrentamentos do Movimento de Mulheres
256
Camponesas e relatadas pelas militantes e dirigentes que vivem e atuam em Terras
Catarinas.
Feitas essas considerações, inicia-se a nova tarefa.
4.4.1 “Continuam as históricas bandeiras de luta [...]”
Antes tudo, é importante iniciar afirmando uma das características do
Movimento de Mulheres Camponesas, que não foi antes dita neste trabalho, mas
que ficou subentendida em diversos momentos: seu caráter reivindicatório!
Este é um Movimento Social do Campo, de cunho feminista e de classe,
que já nasce no contexto da efervescência das lutas pela conquista de diversos tipos
de direitos, dentre os quais também se compreendia o direito de viver sob um
regime de democracia popular e de gozar de direitos sociais e políticos, mas
também culturais e econômicos que, enfim, convergissem para uma nova realidade
societária de participação e exercício de cidadania, de justiça social e de promoção
de igualdades econômicas, políticas e sociais.
Ora, caso tudo isso pareça ser um sonho, ou uma perspectiva evasiva de
luta, há de se dizer que ‘não’. Realmente, esta era a perspectiva que animava as
mobilizações sociais e populares em fins da década de 1970 e início de 1980 no
Brasil e em muitos outros países latino-americanos. Como resultado deste caldo de
mobilizações, em torno da democracia e da luta pelo modelo societário socialista,
surgiram muitos movimentos sociais urbanos e campesinos que se articulavam em
torno de ‘pautas reivindicatórias’, ora direcionadas para objetivos que surgiam de
suas realidades – campo ou cidade – ora para objetivos comuns, tal como a luta
pela reabertura política e a ‘Campanha Diretas Já’. Aqui está o Movimento de
Mulheres Agricultoras de Santa Catarina – MMA/SC! E na efervescência das
reivindicações, eis que ele também reivindica!
Não cabe, neste momento, relembrar suas primeiras pautas de luta,
mesmo porque isto já foi retratado em várias páginas anteriores. É importante
destacar que a trajetória histórica desse movimento social foi marcada por
mobilizações, manifestações públicas, passeatas e protestos, direcionados para a
257
conquista de espaços de participação, de reconhecimento da cidadania e de
garantia de direitos e de políticas públicas, principalmente aquelas de caráter social.
Neste sentido, como já figurou na ‘terceira seção desse capítulo’, a
década de 1990 foi um período de grande destaque em relação à luta, mas também
no que tange às conquistas sociais. Nele conquistou-se, além da visibilidade pública
do Movimento, o reconhecimento da profissão e da cidadania das mulheres
agricultoras – referindo-se ao termo utilizado pelo Movimento naquela época - e dois
dos principais direitos previdenciários: o direito à aposentadoria rural e ao salário
maternidade.
Conforme a militante Luci, que naquele período exerceu um mandato
como Deputada Estadual e dois como Deputada Federal, pelo Estado de Santa
Catarina,
Uma das maiores conquistas foi a da aposentadoria rural para as mulheres
aos 55 anos e para os homens aos 60 anos, com a garantia de um salário
mínimo. Então, vejo que ela representa uma das formas de distribuição de
renda [...]. Já a conquista do direito ao salário maternidade, significa [...] o
simples reconhecimento da maternidade e de que essa função de cuidados
com os filhos não é somente de responsabilidade da mulher, mas é da
família e de toda a sociedade, pois se os seres humanos não nascerem
mais, a sociedade logo se acaba. Então é o reconhecimento da função
social da maternidade (Florianópolis, Setembro de 2009).
Além destas conquistas no campo previdenciário, a militante Justina
também relata outras conquistas, bastante significativas na vida cotidiana das
mulheres camponesas, sendo uma delas voltada para o reconhecimento do direito à
documentação e outra voltada para o acesso à educação e o avanço nos níveis de
escolaridade.
Eu vejo que o que marcou a trajetória do MMC, em relação às
reivindicações e conquistas de direitos, foi o campo previdenciário. Por
outro lado, essa mesma trajetória histórica também mostrou uma busca
muito grande das mulheres na questão do acesso à escolarização, sendo
possível perceber um avanço das camponesas no sentido do acréscimo do
nível de escolaridade, o que se configura também como uma conquista.
Outro avanço que marcou a trajetória, mas que é pouco visível, foi a
questão da documentação da trabalhadora e do trabalhador rural. Nesse
caso, é importante registrar que houve uma grande campanha nacional para
a ‘documentação’ dos camponeses e, principalmente, das camponesas e
hoje essa campanha continua e se transformou numa política de governo,
através da realização de mutirões. Então esta também é uma questão que
deve ser considerada como uma das conquistas realizadas a partir da luta
das mulheres camponesas. Então essas são algumas das marcas deixadas
na história recente da sociedade a partir da mobilização das mulheres
(Chapecó, Setembro de 2009).
258
Embora longa, a fala da militante contém os elementos que imprimem o
significado de tais conquistas para a vida das mulheres camponesas e de suas
famílias. Veja com atenção que o sentido primeiro das mesmas é o reconhecimento
da ‘existência social’ para aquelas e aqueles que eram invisíveis para a sociedade.
Concretizadas estas conquistas na vida dos homens e, principalmente,
das mulheres camponesas,
infelizmente
hoje,
o
Movimento
de Mulheres
Camponesas percebe que precisa empenhar-se na luta para que eles não sejam
retirados do patamar de direitos sociais universais. É o que relata a militante Justina,
ao situar a ofensiva das políticas neoliberais.
[...] Também é preciso dizer que se a gente for ver a conquista da
aposentadoria continua muito presente, porque não foi nem uma e nem
duas tentativas, mas já foram várias as tentativas que ocorreram com o
avanço das políticas neoliberais, de procurar impor uma contribuição maior,
de tentar aumentar a idade para acesso a esse direito, entre outras afrontas
a esse direito que já foi conquistado, o que faz com que haja necessidade
de continuarmos esse debate envolvendo o direito a aposentadoria e os
demais direitos sociais (Chapecó, Setembro de 2009).
Não obstante este desolador e preocupante cenário de retração de novas
conquistas e de ameaça dos direitos antes garantidos - tal como analisa Justina -, o
Movimento de Mulheres Camponesas em sua organização nacional e no Estado de
Santa Catarina continua articulando suas lutas e levantando suas pautas
reivindicatórias, em torno das quais organiza suas mobilizações e manifestações.
Isso é o que demonstra Justina, ao afirmar que
De forma geral, o direito à terra, que para nós é uma questão mais macro,
continua na nossa pauta de lutas, demarcando reivindicações como o fim do
latifúndio e a demarcação do limite de propriedade da terra. A outra grande
questão é a luta pela implementação do projeto de agricultura camponesa e
dentro deste projeto estão colocadas as mais diferentes políticas públicas
que são necessárias para a vida sustentável no campo, como a saúde
pública, a educação, a seguridade social que inclui além da saúde, a
previdência e a assistência social. Além disso, continuam as lutas pela
efetivação de uma política que garanta subsídios para a produção agrícola,
principalmente para aquela de caráter agroecológico (Chapecó, Setembro
de 2009).
Nota-se aqui que o Movimento de Mulheres Camponesas trabalha
atualmente com três grandes áreas de lutas sociais, das quais decorrem outras
mais. Para o Movimento, as três linhas de luta direcionam-se para ‘a questão da
justa distribuição de terra’ para quem nela deseja viver e trabalhar; ‘a criação,
implantação e execução de políticas públicas, econômicas sociais e culturais’ que
possibilitem
o
desenvolvimento
da
agricultura
camponesa,
sustentável
e
259
agroecológica; e àquela pela ‘garantia de manutenção e efetivação de direitos já
conquistados anteriormente’.
A partir dessas linhas de luta reeditam-se antigas frentes de luta, tais
como pela saúde, previdência e assistência social. Além do que, surgem novas
reivindicações, fruto de uma nova visão sobre a própria atividade e modo de vida
camponês, tais como a luta pelo acesso à educação no campo, com respeito às
especificidades daquela realidade, inclusive no campo cultural e de trabalho; ou a
reivindicação por espaços de cultura, esporte e lazer; e, ainda, a reivindicação por
formação técnica e/ou universitária voltadas para o trabalho, que contemplem as
expectativas dos jovens, possibilitando-os continuar no meio rural segundo as
perspectivas da agricultura camponesa e agroecológica.
Nota-se, portanto, que o perfil reivindicatório do Movimento está sempre
presente, alimentando sua caminhada política, na medida em que desenvolve sua
capacidade crítica de leitura da realidade e se assume, inclusive, como um
movimento social propositivo. Por outro lado, este perfil o conduz a denunciar as
políticas de desmonte dos direitos, e a assumir uma postura cada vez mais atenta
para a possibilidade de eliminação de direitos que representam conquistas
históricas.
Destarte, uma das militantes chama a atenção em sua entrevista, para a
forma pela qual as políticas públicas em execução no campo estão funcionando.
Vejo que é importante salientar, na questão das lutas pelos direitos, que
houve um enorme endividamento da agricultura camponesa nas últimas
décadas, porque os preços pagos pelos produtos nunca corresponderam e
nem correspondem hoje aos custos dos investimentos necessários para
produzir. Então as famílias camponesas possuem, sim, algumas políticas
públicas voltadas para elas, mas que de fato não ajudam na sua
manutenção e apenas colaboram para que este tipo de agricultura seja
eliminada. Portanto, são políticas que ajudam a cada dia para que mais
famílias saiam do campo (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009).
Nas suas palavras, é possível notar que o modelo que orienta tais
políticas é o capitalista, voltado para as intenções dos latifundiários e do grande
capital e para a eliminação da agricultura camponesa através de políticas
neoliberais, o que talvez ocorra por se considerar que este tipo de agricultura
representa a luta contra-hegemônica ao modelo capitalista atual.
Esta é uma denúncia sutil, mas contundente. Ela remete ao fato de que é
urgente agir em relação à luta contra o modelo atual, denunciando os governos em
260
relação às políticas de aniquilamento e eliminação da agricultura camponesa e se
colocando junto com os movimentos sociais camponeses e com a população
trabalhadora do campo e da cidade para pensar estratégias de luta que possam, aos
poucos, minar o sistema e desmobilizá-lo na perspectiva de uma transformação
societária para outro modelo de sociedade, onde haja o reconhecimento do trabalho,
mas também das demandas, necessidades e direitos daqueles que vivem no campo.
Neste sentido, Justina oferece indicativos sobre o que é necessário fazer.
Então, a gente tem que considerar que há uma oferta bastante grande de
dinheiro, mas que aqueles que recebem da produção familiar não estão
conseguindo dar o retorno para o pagamento desses financiamentos. Logo,
nesse caso, a luta segue na direção de que sejam oferecidos créditos
através dos quais de fato os camponeses e camponesas consigam viabilizar
a produção e se manter na agricultura (Chapecó, Setembro de 2009).
Partindo dos indicativos de que as militantes ensejam discutir suas atuais
reivindicações, pretende-se encerrar este breve debate reconhecendo que as
contribuições do MMC/SC e de outros Movimentos Sociais Camponeses para o
alargamento do campo de direitos é, deveras, notável.
As mulheres trabalhadoras camponesas souberam, ao longo dos anos,
levantar as principais reivindicações da classe trabalhadora que vive no campo,
elaborar propostas de políticas que pudessem responder às demandas camponesas
e se colocar como indivíduos sociais – na qualidade de sujeitos individuais e
também coletivos – que exigem participação e reconhecimento na esfera social,
política, econômica e cultural da sociedade brasileira.
Portanto, não é possível concordar com um sistema voltado para os
interesses de uma minoria – entenda-se: latifundiários e burguesia -, que tenta de
várias formas macular a imagem social e política de um movimento social de
indiscutível importância no campo da conquista de direitos das mulheres, dos
trabalhadores e de todas e todos aqueles que vivem na área rural: ‘o modo de vida
camponês’.
As análises até aqui feitas, a partir das falas das mulheres camponesas,
indicam que elas percebem que a contra-tarefa à falta de reconhecimento das
conquistas e à deturpação das lutas do MMC/SC deve ser assumida por todos os
trabalhadores e trabalhadoras que se colocam críticos ao sistema capitalista e se
propõem discutir um novo modelo de sociedade, com base na democracia social, na
261
justiça econômica e social, na participação política e no pleno exercício da
cidadania, a fim de que se possam concretizar as aspirações da emancipação
humana.
4.4.2 “[...] Nós sabemos que precisamos avançar constantemente”
Considerando que as falas das entrevistadas estão mescladas pelos
apontamentos das conquistas e as atuais reivindicações, procurar-se-á neste item,
que se pretende seja breve, apontar como se encontra o campo das lutas atuais do
Movimento de Mulheres Camponesas, tanto em nível nacional, quanto em nível
estadual, uma vez que as contribuições das militantes entrevistadas permitem esse
avanço territorial. Para isto, necessariamente se falará dos desafios postos para a
caminhada do movimento na atualidade.
Quem primeiro colabora com a discussão é a militante Luci, ao salientar
que
Nós ainda continuamos na reivindicação da saúde pública com garantia de
acesso e de qualidade no atendimento. Veja que as Unidades do SUS
também chegam às mulheres camponesas e, por isso tem que ter esse
atendimento respeitando essa particularidade de quem mora e trabalha no
campo, que é um pouco diferente do atendimento das mulheres urbanas,
pela própria realidade que elas vivem (Florianópolis, Setembro de 2009).
A partir dessa afirmação de Luci, pode-se perceber o nível de
compreensão e de leitura da realidade social que as militantes, já num patamar de
dirigentes, têm acerca da realidade social e dos sistemas de atendimento das
políticas sociais. Neste caso, é possível dizer que tal capacidade de percepção e de
leitura da realidade, muitas vezes, não é alcançada nem por trabalhadores sociais
que freqüentaram os bancos universitários por anos e que, conseqüentemente,
deveriam estar habilitados para essas leituras.
Realmente, a militante traz para o debate uma questão que se configura
como ‘desafio’ no campo da garantia dos direitos sociais dos cidadãos e da
execução das políticas públicas, que é o direito universal de acesso ao serviço, mas
também a garantia de um atendimento que respeite suas especificidades.
262
Neste sentido, alguns legisladores e planejadores das políticas sociais já
previram nos textos das Políticas Nacionais que orientam e organizam os sistemas
únicos de atendimento aos direitos sociais, que o executor dessas políticas deve
considerar
as
especificidades
dos
usuários,
principalmente
segundo
sua
territorialidade, a fim de que a própria garantia do direito seja efetivada. Mas,
fundamentalmente, que as características da realidade social, econômica e cultural
dos indivíduos sejam consideradas para que o atendimento seja eficaz e eficiente
segundo suas necessidades e demandas.
Não obstante tal questão já tenha sido prevista pelos legisladores e
contemplada nos textos legais das políticas, na prática não se concretizam. Nota-se
que Unidades Locais de Saúde e de Centros de Referência em Assistência Social
são praticamente inexistentes na zona rural dos municípios. O que se dirá, então, de
Postos de Atendimento Previdenciário?
Entretanto, a maioria dos governantes e, conseqüentemente, críticos
desta análise, podem argumentar que é muito oneroso para o Estado manter
unidades de atendimento em locais com pouca densidade populacional. Mesmo que
se assuma o discurso da eficiência de recursos, no caso da execução de políticas
sociais – e somente neste caso -, não se isenta os executores de um atendimento
qualificado e voltado para o reconhecimento e respeito às especificidades dos
indivíduos sociais camponeses; ou então, num outro exemplo, das mulheres
trabalhadoras urbanas e rurais.
Portanto, o que a militante levanta como uma luta que ainda precisa ser
travada pelo movimento e que, por isso, o desafia, nada mais é do que uma
denúncia sutil de que o Estado, os governos, mas também os trabalhadores do
campo social estão negligenciando algo que já está determinado em Lei. Além do
indicativo que fez Luci acerca de um dos desafios atuais de luta do Movimento,
também outros são levantados por outra militante. E desta vez quem colabora é
Justina, ao dizer que
O que demarca também esse terreno das conquistas de direitos, é que
permanece com o Movimento um patrimônio que se concretiza na própria
emancipação de um significativo contingente de mulheres, através da
participação social e política, embora eu não possa fazer essa mesma
afirmação em relação à emancipação no campo econômico (Chapecó,
Setembro de 2009).
263
A partir de sua fala, pretende-se chamar a atenção para as políticas
públicas de âmbito econômico, que estão negligenciando o atendimento das
mulheres camponesas, ou, quando parecem atendê-las, o fazem de modo a manter
as mesmas relações de subordinação econômica e de manutenção dos padrões
desiguais de gênero, já referenciados em parágrafos anteriores. Para exemplificar,
cita-se o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, que é um
programa de financiamento público, previsto na política de desenvolvimento da
agricultura familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Este Programa tem
uma linha de atendimento voltada para a ‘mulher camponesa’; entretanto, funciona
em patamar de desigualdade para com os homens, uma vez que o valor de crédito
disponibilizado às mulheres é inferior ao valor disponibilizado aos homens. Além
disso, por ser um programa voltado para a família, quando um membro acessa uma
linha de crédito, os demais membros ficam automaticamente excluídos da
possibilidade de acessá-lo naquele mesmo período. Como conseqüência, o que se
observa é que, apesar do governo prever a linha de crédito para as mulheres, elas
acabam não a acessando, pois acaba não sendo conveniente para a família, de
forma geral.
É neste sentido que o MMC/SC indica a presença de um grande desafio
no que se refere à emancipação econômica da mulher camponesa. É óbvio que aqui
somente tomou-se como exemplo uma das questões que estão relacionadas à
emancipação econômica das mulheres. Entretanto, a partir dela objetivou-se
demonstrar como as militantes do Movimento são capazes de captar na realidade de
seu dia-a-dia, os desafios para o exercício de sua cidadania e para o
desenvolvimento de sua autonomia e emancipação.
Destarte, Justina assevera que
As conquistas, bem como os desafios continuam com o próprio Movimento,
pois na verdade é como o próprio termo diz, ele é ‘movimento’, já que ele
tem sua continuidade através da mesma dinâmica pela qual entram e saem
permanentemente pessoas que colaboram para sua construção e para a
construção de uma proposta alternativa de sociedade. Portanto, nós
sabemos que precisamos avançar constantemente na direção de um projeto
de sociedade que garanta essa questão da dignidade humana e do respeito
ao planeta. Esse é o grande desafio que também é representado pela luta
de classe e de gênero, junto com a grande questão estrutural da sociedade
que é a superação do modelo capitalista.
264
Observa-se que aqui a militante enseja destacar o caráter processual e
dinâmico do movimento, o qual se faz dentro de um campo de forças sociais. Nele
entram e saem militantes, por isso ele está em permanente construção e isso
também se configura como um desafio: a alimentação das lutas e a manutenção do
movimento. É um desafio que tem de ser superado cotidianamente, pois dele resulta
a possibilidade de enfrentamento dos demais desafios, dentre os quais figuram no
discurso de Justina, o desafio estrutural da construção de um novo projeto de
sociedade e o desafio da luta de gênero e de classe.
E para finalizar, mais uma vez nas palavras da camponesa Justina, está
posto o significado da luta do MMC/SC.
Mesmo considerando tudo isso, [...] também afirmamos que o que nos
motiva a continuar diante desse contexto, são as conquistas, aquilo que já
se construiu e acumulou em todos esses anos de caminhada, o estudo, as
reflexões, a formação que conseguimos concretizar mesmo hoje no
Movimento e que segue nos alimentando, juntamente com uma grande
mística que é cultivada no sentido de acreditar que é possível a
continuidade da luta (Chapecó, Setembro de 2009).
Desafios, conquistas, processo, mística, crença na possibilidade de
transformação, enfim, são todos esses elementos que alimentam a continuidade da
luta. São eles que compõem a trajetória de lutas do Movimento de Mulheres
Camponesas. São eles que conformam a sua história.
QUINTA SEÇÃO
Serviço Social e espaço rural
- Um olhar para essa relação, segundo as falas de quem vive no campo -
Abre-se mais uma página deste estudo. A partir dela se desenvolve a
análise do tema que marca a última das grandes discussões aqui assumidas: a
relação entre ‘o Serviço Social e o espaço rural’.
265
Admite-se que esta não é uma tarefa fácil. E, talvez, seja bom neste ponto
do percurso revelar que todas as discussões anteriores tiveram o intuito de preparar
o terreno para esta discussão. Realmente, quem olha para ‘o rural’ de dentro da
profissão e tendo como origem o próprio modo de vida rural – como é o caso da
investigadora -, nota que emergem constantemente indagações de como a profissão
faz o encontro com o ‘campo’, como ela se prepara para isto, como visualiza esta
área de estudos e práticas profissionais e o que faz em relação a ela?
São inúmeras as perguntas, por isto é grande o desafio e, por
conseguinte, a responsabilidade da discussão. Reconhecendo tais desafios e
responsabilidades e, considerando que esta é apenas uma parte da totalidade do
debate desenvolvido, a qual compõe - tão significativamente como as demais
seções – a investigação realizada, não se pretenderá esgotá-la. Outrossim, imaginase que é possível adentrar um pouco mais nesta área de produção de conhecimento
em Serviço Social, o qual poderá contribuir com futuros estudos. E isso se fará,
outra vez, a partir das falas das mulheres camponesas entrevistadas.
Entretanto, antes de começar as análises dessa questão, pensa-se que é
importante situar sobre o ‘desenrolar’ do diálogo estabelecido com Justina, Luci e
Noeli. Explica-se essa importância pelo fato de que em momentos diferentes da fala
das militantes, poder-se-á perceber que são expressos conceitos, os quais logo
após são retomados sob outra perspectiva. É bom esclarecer que isso acontece
devido aos elementos que a investigadora vai apresentando durante a conversa com
as entrevistadas. É justamente por isso que se pode dizer que, embora muitas vezes
o discurso delas pareça não estar concatenado com as falas precedentes, aos
poucos, elas demonstram que vão tomando parte do tema discutido, aproximandose processualmente da profissão que ora está na ‘vez do jogo’.
Antes de partir para a análise, nota-se que é importante alertar para o fato
de que muitas vezes se encontrarão críticas contundentes ao Serviço Social nas
considerações das entrevistadas. Elas demonstram, por um lado, o nível de
criticidade das mesmas e, por outro, a realidade da atuação profissional junto ao
espaço rural e aos indivíduos camponeses. Já estes indicativos oferecem os
elementos para afirmar a importância da discussão, bem como a necessidade de
dedicar atenção investigativa exclusiva para questão. Assim, assume-se a tarefa de
266
trabalhar com estas críticas contundentes, procurando encontrar nelas as vias para
o estabelecimento, ou pelo menos, re-significação das relações entre ‘o Serviço
Social e espaço rural’.
4.5.1 “[...] Aquilo que a gente vem sentindo, acredito, não corresponde ao
papel do Assistente Social”
A primeira questão levada para o debate versava sobre o papel
correspondente ao profissional Assistente Social, na perspectiva das entrevistadas.
Duas delas foram objetivas, ao dizer que não tinham clareza sobre o que o
assistente social faz, por isso, alertavam que fariam apenas uma aproximação,
segundo aquilo que acreditam ser o trabalho desta profissão. É o que manifesta
Noeli ao dizer: “essa é uma pergunta bem desafiadora, porque aquilo que a gente
vem sentindo, de fato, acredito que não corresponde ao verdadeiro papel do
Assistente Social” (Chapecó, Setembro de 2009).
Já a terceira militante, que exerceu três mandatos como legisladora,
representando as mulheres camponesas e todos os cidadãos catarinenses, fala do
lugar de quem conhece a profissão. Entretanto, por um momento apresenta
elementos que relaciona com o perfil de um profissional que trabalha na área das
ciências humanas e sociais, mas não necessariamente se caracteriza como
Assistente Social. Mesmo considerando que essa entrevistada não esteja se
equivocando com o profissional da sociologia, cabe destacar que a fala dela também
não estabelece uma aproximação efetiva com a prática do Serviço Social, embora
se reconheça que os elementos que apresenta compõem o cotidiano desse
profissional.
Nesse sentido, considerando a aproximação feita pelas três entrevistadas
a esta primeira indagação, notou-se um forte indicativo de que o Assistente Social,
antes de tudo, necessita conhecer a realidade, o modo de vida e os indivíduos
rurais, para que depois possa atuar profissionalmente. É o que afirma Luci,
Vejo que o papel primeiro desse profissional é de compreender a cultura, a
vida dos indivíduos. Quem não compreende a cultura e a realidade do povo,
267
não vejo como conseguirá desempenhar, de forma efetiva, a função de
Assistente Social. Então, em relação ao campo, seu primeiro papel é o de
reconhecer a realidade camponesa e mesmo de quem veio do campo para
as cidades, mas que ainda é camponês e que, geralmente, tem dificuldade
em se acertar no contexto urbano e, muitas vezes, passa a sua vida inteira
aí e não consegue se encontrar naquele espaço (Florianópolis, Setembro de
2009).
Além de Luci, Noeli também afirma a necessidade de conhecer a
realidade do campo e mesmo de qualquer outro contexto em que o Assistente Social
irá atuar. Entretanto, ao conhecer o discurso dessa última, note que sua abordagem
se diferencia – sutilmente - da abordagem de Luci, pois as duas levantam situações
diferentes que justificam a necessidade de que o Assistente Social conheça a
realidade do campo, dos sujeitos rurais, bem como seu modo de vida e trabalho.
Conforme Noeli,
[...] Penso que uma pessoa que trabalha na área social primeiramente
precisa conhecer tanto o campo, quanto a cidade, já que necessita
conhecer a realidade em que vai trabalhar. [...] A gente escuta reclamações
de pessoas que são atendidas por esses profissionais, os quais geralmente
são pessoas ‘grossas’, estúpidas, que não têm um mínimo conhecimento
sobre a realidade das pessoas que estão atendendo, porque não sabem o
que é trabalhar no campo, o que é a dupla ou tripla jornada de trabalho das
mulheres camponesas. [...] Então, o que fica, é uma imagem de
profissionais que geralmente não conhecem ‘a fundo’ a realidade do campo
para poder atuar junto a ele (Chapecó, Setembro de 2009).
Ora, o primeiro indicativo para discussão reside no fato de que as duas
militantes chamam a atenção para a mesma necessidade: a atenção e o olhar para
o campo. Entretanto, cada qual aponta um motivo pelo qual percebe essa
necessidade. Enquanto Luci indica a questão da cultura como valor a ser percebido
e considerado para um atendimento segundo a realidade, Noeli ressalta a premência
em conhecer o âmbito do trabalho, pois esse guarda grandes diferenças com aquele
exercido no contexto urbano.
Parece importante levar em conta que o âmbito cultural engloba todo o
modo de vida no campo, incluindo a questão do trabalho: o que é feito, como é
organizado, seu processo de trabalho, as exigências para seu desenvolvimento, seu
produto, além de sua legitimação na esfera da divisão social do trabalho e seu
registro nos órgãos trabalhistas. Reciprocamente, é também através do trabalho que
são desenvolvidas as relações sociais, econômicas e políticas dos indivíduos rurais,
as quais vão aos poucos conformando sua cultura camponesa.
268
Entretanto, na fala das entrevistadas, talvez mais importante que estes
dois âmbitos da vida no campo – cultural e laboral –, os quais se encontram
profundamente entrelaçados, o que as camponesas militantes do MMC/SC chamam
a atenção é para a questão de que é condição sine qua non conhecer o rural, em
seu contexto, modo de vida e indivíduos. Tal necessidade é dada tanto para atender
os indivíduos sociais que vivem no campo, quanto àqueles que migraram para as
cidades - onde passam a receber atendimento através das políticas sociais – mas
que ainda conservam os elementos do modo de vida e da cultura camponesa.
Portanto, Luci e Noeli apresentam elementos mais que convincentes
sobre a imprescindibilidade de que o Serviço Social volte seu olhar para o campo,
desde os espaços de formação acadêmica de seus futuros profissionais, passando
pelo âmbito da investigação e chegando naquele referente aos processos de
trabalho propriamente ditos com a população.
Ao responder a segunda questão as entrevistadas explicitam o que
poderia se colocar como uma exigência de que se faça uma reflexão ético-política a
respeito da profissão de Assistente Social e do desempenho do Serviço Social. É
apontada por Noeli, quando fala que o atendimento à população rural deixa a
desejar no quesito de humanização, o que, segundo ela, seria efeito do
desconhecimento do cotidiano de vida dos indivíduos camponeses.
Não obstante possa ser considerado como indicativo acerca da
metodologia e da didática de atendimento utilizada por muitos profissionais do
Serviço Social, esta afirmação não possibilita elementos concretos para uma
denúncia de que o Código de Ética Profissional esteja sendo descumprido, mas
adverte sobre uma situação preocupante em relação ao tipo de atendimento que
está sendo efetivado por, pelo menos, parte dos profissionais da área52.
Neste sentido, há que se ponderar que a forma pela qual a categoria
profissional relaciona-se com a população atendida já foi e continua sendo objeto de
discussão do Serviço Social. Dito isto, relembra-se da reflexão realizada por
diversos autores, tais como Vicente de Paula Faleiros (2001), em seu livro “Saber
52
Embora se considere preocupante tal situação, ela deve ser considerada apenas como um
indicativo acerca da prática profissional que está sendo efetivada por alguns profissionais do Serviço
Social, já que a mesma surge através de comentários ouvidos de outras camponesas e, portanto, não
pode ser tomada como fonte primária de informação.
269
profissional, poder institucional”, quando chama a atenção para o fato de que –
muitas vezes – os Assistentes Sociais incorporam em suas práticas um ‘tipo de
poder’ proveniente da função que assumem na instituição, do espaço um tanto
quanto institucionalizado onde trabalham, bem como de seu saber profissional
maximizado em relação ao saber da população atendida. Com efeito, minimiza-se a
participação e a autonomia dos sujeitos usuários dos serviços, já que se
desconsidera seu saber e seu modo de vida53.
Destarte, não há dúvidas de que a revelação de Noeli reveste-se de
significativa importância, pois leva a refletir sobre como a profissão, em seu
cotidiano de trabalho, está agindo com relação ao respeito e à humanidade
desenvolvidos no trato com a população. Logo, não cabe aqui fazer uma discussão
ética sobre o exercício da profissão em sua totalidade e profundidade, mesmo
porque este não é o foco do estudo e nem do presente capítulo. Entretanto, não é
possível abster-se de colocar à baila das reflexões, os procedimentos e a didática de
atendimento adotados pela profissão, os quais encontram-se imbricados em sua
dimensão técnica-operativa.
Por conseguinte, apontam-se dois Artigos do Código de Ética Profissional
(RESOLUÇÃO CFESS N.º 273/93), que devem ser observados nesta discussão
sobre o exercício profissional, uma vez que oferecem indicativos sobre a relação a
ser estabelecida com a população no processo de seu atendimento.
Note-se
que
no
Título
II
que
versa
sobre
os
direitos
e
as
responsabilidades gerais do assistente social , o Art. 3º, Alínea ‘C’, aponta que “são
deveres do assistente social, [...] abster-se, no exercício da profissão, de práticas
que caracterizem a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos
comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes”. Nesse
caso, poder-se-ia apontar os indicativos de que muitas vezes se procede de forma a
censurar os indivíduos sociais atendidos pelo Serviço Social, em relação a sua
cultura, seu modo de vida e organização, seja em contextos urbanos –
principalmente nas periferias -, seja em contextos rurais. Freqüentemente isso
53
Para maior aprofundamento da questão, indica-se recorrer diretamente à obra de Faleiros (2001).
Referência completa ao final da dissertação.
270
ocorre sem que o profissional note a perspectiva coercitiva de sua ação, uma vez
que o que o orienta é apenas seu ponto de vista pessoal, portanto etnocêntrico.
Além disso, no Art. 13, Alínea ‘B’, consta que são deveres do assistente
social, nas relações com entidades da categoria e demais organizações da
sociedade civil,
[...] Denunciar, no exercício da Profissão, às entidades de organização da
categoria, às autoridades e aos órgãos competentes, casos de violação da
Lei e dos Direitos
Humanos, quanto a: corrupção, maus tratos, torturas, ausência de
condições mínimas de sobrevivência, discriminação, preconceito, abuso de
autoridade individual e institucional, qualquer forma de agressão ou falta de
respeito à integridade física, social e mental do cidadão (RESOLUÇÃO
CFESS N.º 273/93).
Em relação a esse artigo, deseja-se chamar a atenção para o fato de que
tanto o abuso de autoridade individual ou institucional, quanto a falta de respeito ao
cidadão,
configuram-se
como
atitudes a
que
o
Assistente
Social
deve,
principalmente, abster-se no exercício profissional, mas também denunciar situações
em que perceba que isto esteja ocorrendo. Esta não é uma questão tranqüila de ser
discutida e, muito menos, de ser resolvida, já que requer reflexão pessoal - de cada
profissional -, mas também coletiva -. Enquanto categoria, cabe aos profissionais do
Serviço Social definir as formas pelas quais se realiza o reconhecimento do
indivíduo social e da realidade em que se atua e, com base nisto, estabelecer qual
deve ser o relacionamento com a população atendida.
Observadas estas primeiras contribuições de Noeli e Luci, nota-se que a
terceira militante entrevistada, Justina, aponta para novos elementos de discussão.
Segundo ela,
Na verdade, eu estava justamente pensando no significado da palavra
‘assistente’, que é de ‘assistir o social’. Então, eu penso que o papel seria
justamente de alguém que acompanha a vida social da comunidade, do
município e que ajuda a propor alternativas, contribuindo para um contexto
em que todos sejam atores para a construção de espaços coletivos e de
participação. Agora o que eu vejo, na verdade, é que as Assistentes
Sociais, até então, com raras exceções, elas são engolidas pelas estruturas
de governo e acabam sendo instrumentos eleitoreiros nos municípios
(Chapecó, Setembro de 2009).
Ora, observa-se que Justina faz uma aproximação coerente com a função
profissional, embora o faça através do significado que ela atribui a alguém cuja
tarefa é de ‘assistir o social’, tal como afirma. Aparecem na expressão da militante
271
do MMC/SC o acompanhamento da população, as ações propositivas de
alternativas, a construção de espaços coletivos de participação e o trabalho voltado
para a promoção da autonomia e emancipação dos indivíduos sociais.
Não obstante esta constatação, nota-se a instalação de nova polêmica,
quando a militante relaciona - diretamente - os profissionais do Serviço Social com
as estruturas do Estado, por ela consideradas como estruturas pesadas,
burocratizadas e de dominação. Assim sendo, a militante adentra numa reflexão de
caráter político profissional, uma vez que aponta para um possível atrelamento do
Serviço Social em relação ao Estado e, por conseguinte, às estruturas de
burocratização do atendimento. Como conseqüência, ocorreria o engessamento das
ações profissionais contrariando o desenvolvimento de um trabalho democrático,
participativo, de respeito à liberdade dos indivíduos, e voltado para a promoção da
autonomia e da emancipação humana.
Considera-se que esta é uma realidade que, de certa forma, continua
perpassando a cultura institucional de significação da profissão, por – no mínimo –
duas maneiras. A primeira delas reside no fato de que em algumas situações os
governantes procuram atrelar as ações do Serviço Social à plataforma de ações do
governo, considerando preponderantemente os interesses partidários. Quando isto
ocorre, nota-se uma nítida tentativa de diminuir ou até extinguir programas e/ou
projetos sociais de governos anteriores, geralmente geridos e executados pelos
Assistentes Sociais, os quais supostamente possuem, enquanto base legal, as
diretrizes e orientações legais para as políticas sociais, tais como a Política Nacional
de Assistência Social - PNAS, aprovada na Resolução nº145/2004 do Conselho
Nacional de Assistência Social - CNAS.
Mesmo considerando que tal realidade ainda ocorra em diversos
municípios, Estados e até mesmo na esfera federal, é interessante registrar que nos
últimos anos várias políticas sociais, que antes não tinham um estatuto legal para
sua efetivação, passaram a tê-lo. Este fato dificultou bastante o atrelamento de
‘programas sociais’, bem como do trabalho dos ‘Assistentes Sociais’ às plataformas
partidárias, embora não tenham sido extintas as tentativas dos governos de atrelar
as políticas sociais às plataformas de campanha partidária.
272
Neste sentido, ainda é importante registrar que os profissionais da gestão
ou execução de políticas sociais costumam se ver envolvidos nas mudanças que
ocorrem com as trocas quadrienais de equipes de governos, pois implicam em
mudanças também na gestão e execução das políticas implementadas. Desta forma,
tal situação requer dos profissionais um forte empenho – que deve ser aportado em
sua competência profissional – para garantir que tais políticas tenham embasamento
legal e caráter de ‘políticas de Estado’ – ou, quando muito, ‘políticas de governo’ - e
não se configurem enquanto políticas governistas e/ou partidárias.
Por outro lado, a segunda maneira pela qual a idéia de ‘atrelamento aos
interesses político-partidários’ pode perpassar a cultura institucional de identificação
do Serviço Social, reside no fato de que são bastante freqüentes as críticas
efetivadas à profissão pelos grupos de oposição política aos governos. Estes grupos
geralmente afirmam que os ‘Assistentes Sociais’ têm seu trabalho constantemente
atrelado aos governos, ao Estado e à burguesia e que, por isto, cumprem papel
eleitoreiro em relação ao governo vigente.
Logo, também a existência de críticas de oposição em relação à gestão
dos governos, respinga no Serviço Social, colaborando para a reprodução da
imagem ‘socialmente determinada’ da profissão. Ou seja, de que os profissionais do
Serviço Social executam políticas sociais de caráter eleitoreiro e de que facilmente
são cooptados pelos governantes, o que faz com que seu fazer profissional se
vincule aos interesses de quem está no poder no momento.
Assim, pode-se afirmar que tanto a primeira, quanto a segunda situação
parecem corroborar para a reprodução de uma antiga tensão já discutida por
Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008)54, identificada como caráter "socialmente
determinado" em relação ao exercício profissional. Destarte, o atrelamento do
campo profissional do Serviço Social às esferas e instituições de governo, parece
ser algo que guarda estreita relação com a organização e a forma de gestão política
da sociedade.
54
O conceito sobre ‘o socialmente determinado para a profissão’ é desenvolvido pela professora e
investigadora Marilda Iamamoto em vários de seus trabalhos, sejam livros ou até mesmo artigos
científicos. Para melhor aprofundamento acerca desta, indica-se recorrer principalmente à obra da
autora, intitulada “Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional”,
atualmente na sua 7ª edição (2007). Referência completa no final da dissertação.
273
Entretanto, percebendo este ‘caráter socialmente determinado’, a
categoria profissional iniciou, desde os anos 1970, um processo de ruptura com tais
práticas, o qual tem continuidade até hoje - o momento inicial desta ruptura foi
conhecido como ‘Movimento de Reconceitução Teórica’ e já nos anos seguintes
como ‘Movimento de Ruptura’.
Portanto, pode-se afirmar que grande parte dos Assistentes Sociais lutou
e continua lutando para eliminação de qualquer possível traço de atrelamento ao
Estado. Logo, nota-se que muitos Assistentes Sociais, através de suas práticas
profissionais,
questionam a
caracterização
daquilo
que
seria
‘socialmente
determinado’ como prática profissional. Ao fazerem isto, assumem um poder
profissional resultante de seu saber, o qual lhes confere o caráter de autonomia no
exercício da profissão.
Embora não se possa negar a existência desse caráter ‘socialmente
determinado para a profissão’ - tal como indica Iamamoto - deve-se considerar que,
na atuação cotidiana, a categoria profissional posiciona-se de forma a romper com
este determinismo e a construir processos de autonomia em relação ao exercício
profissional, bem como em relação aos valores esperados pela população para sua
ação.
Esta reflexão é, pois, confirmada, quando Justina complementa sua crítica
à profissão, ao dizer que,
Vou ser bem dura, porque na maioria das vezes em vez de construir uma
proposta de planejamento participativo, de construção coletiva, o que se vê
é o desempenho de uma atuação que é muito mais politiqueira, no sentido
de entregar uma coisa para um, ou de fazer um favor para outro e assim por
diante (Chapecó, Setembro de 2009).
Logo, o que ainda baliza o reconhecimento da profissão pela camponesa
Justina, é seu caráter assistencialista, clientelista e promotor de ações de cunho
eleitoreiro, portanto ‘politiqueira’ nas palavras da entrevistada. Diante disto,
permanece o desafio para toda a categoria profissional: o que está sendo realizado
para que definitivamente se possa romper com esse perfil ‘socialmente
determinado’?
Consideradas essas questões, ainda é preciso reconhecer que Justina
trouxe muitas outras contribuições para a discussão sobre a relação entre o Serviço
Social e o meio rural, dentre as quais algumas nem mesmo poderão ser discutidas,
274
dado o aprofundamento que seria necessário. Mesmo tendo isso presente, há que
se ressaltar mais uma passagem de sua análise, quando afirma que
E outra questão que a gente tem muita crítica a essa profissão é que ela
não chega a atuar no meio rural. Por isso a gente mesmo sente um desfio
muito grande que vai desde a necessidade de compreender essa profissão.
As assistentes sociais, na grande maioria dos municípios, estão voltadas
para o meio urbano, então é normal para nós camponesas ouvir que existe
certo desconhecimento sobre essa profissão. [...] Mesmo assim, penso que
o assistente social precisaria compor com outros setores profissionais e
retomar com muita garra a atuação no âmbito social e político, para de fato
estar engajado nas lutas sociais (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009).
Ora, novamente aponta-se a insuficiente relação existente entre a
profissão e o conhecimento sobre o contexto rural, o que resulta – segundo Justina –
no próprio desconhecimento por parte do cidadão camponês acerca do que poderia
dispor enquanto um atendimento e que lhe é assegurado no âmbito dos direitos
sociais, tais como o direito à Assistência Social, à Saúde e à Previdência Social.
Além disso, a militante do MMC/SC aponta para a necessidade de que o
profissional esteja envolvido e comprometido com as lutas sociais encampadas pela
população e pelos movimentos sociais, a fim de que possa compor com outros
segmentos profissionais, mas também com os diversos segmentos da sociedade
civil, uma luta maior que contribua para a melhoria das condições de vida, só
possível a partir da transformação societária.
Diante disso, Justina finaliza sua primeira contribuição para o debate
afirmando,
[...] Portanto, eu penso que essa profissão ainda tenha um desafio muito
grande, no sentido de compreender o seu papel profissional dentro de outra
proposta de sociedade que não é esta que está posta hoje. Caso essa
profissão não compreenda esse desafio, ela estará destinada a ser
permanentemente assistencialista, pois de fato ela não estará a serviço do
social, mas permanecerá a serviço de uma estrutura, de modo a garantir
sua continuidade (JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009).
Consequentemente, por considerar que a grande questão para os
movimentos sociais críticos é o combate ao modo de produção capitalista, a
militante aponta - a partir de sua leitura e compreensão da sociedade e também da
profissão de Assistente Social - para a necessidade de que a categoria profissional
se comprometa efetivamente com a luta contra-hegemônica ao capitalismo. É assim
que Justina faz um convite à profissão para que articule suas lutas profissionais com
as lutas populares e dos movimentos sociais. Para ela, esta é uma das formas da
275
profissão voltar sua prática para o espaço rural: a articulação com as lutas
camponesas.
4.5.2 “As experiências que eu conheço são de profissionais que [...]”
Já num segundo momento do diálogo com as militantes, indagou-se às
entrevistadas sobre o fato de já terem sido atendidas por algum profissional de
Serviço Social, em algum momento de suas vidas. Como a resposta das três
entrevistadas foi negativa, confirmou-se que era necessário fazer uma aproximação
- bastante atenta - das militantes em relação à profissão. Eis, então, que se
apresentou um novo saber para compor o diálogo: desenvolveu-se com Justina, Luci
e Noeli o conceito sobre quem é e o que faz o profissional ‘Assistente Social’,
segundo as orientações do Conselho Federal de Serviço Social – CFESS.
Desse modo, passou-se a dialogar com elas, tomando como referência a
informação de que
O Brasil tem hoje aproximadamente 80.000 profissionais que atuam,
predominantemente, na formulação, planejamento e execução de políticas
públicas como educação, saúde, previdência, assistência social, habitação,
transporte, entre outras, movidos/as pela perspectiva de defesa e ampliação
dos direitos da população brasileira. Trabalham também na esfera privada,
principalmente, no âmbito do repasse de serviços, benefícios e na
organização de atividades vinculadas à produção material, e atuam em
processos de organização e formação política de segmentos da classe
trabalhadora (CFESS [Site institucional], 2009, s/p)
De posse dessa informação, as entrevistadas foram novamente
convidadas a refletir sobre a presença do Serviço Social no contexto rural, agora
num outro patamar de saber, uma vez que poderiam partir do conceito formalizado
pelo órgão nacional da categoria.
Mesmo com esse acréscimo de conhecimento, houve novamente um
estranhamento de duas das entrevistadas – Justina e Noeli - quando indagadas se
conheciam experiências de atendimento e/ou acompanhamento do Serviço Social
junto ao espaço rural. Há que se destacar tal reação a essa pergunta, uma vez que
ela significou o ‘silenciamento’ daquelas que até então tinham sido bastante solícitas
e expansivas em suas manifestações.
276
Destarte, depois deste momento de silêncio, houve um cruzamento de
olhares das duas entrevistadas – Justina e Noeli - que pareceram buscar na
memória alguma lembrança sobre a atuação desse profissional junto à questão
agrária e/ou no meio rural. Por fim, as duas balançam a cabeça numa expressão
negativa, demonstrando que de fato não conheciam nenhum Assistente Social que
atuasse no contexto rural e/ou com grupos de camponeses.
Desse modo, indica-se que o longo silêncio - por si só - já é sugestivo
dessa inexistência de atuação profissional junto ao campo, ou pelo menos do seu
desconhecimento por parte das entrevistadas. O que chama ainda a atenção é que
as mesmas são militantes e dirigentes de um Movimento Social camponês, o que
possibilita dizer que o horizonte de onde afirmam não conhecerem a atuação desse
profissional, vai para além do olhar pessoal enquanto mulheres camponesas e
avança para um olhar que é coletivo,ou seja, um olhar que sintetiza a resposta de
várias mulheres.
Por outro lado, a terceira entrevistada aponta que conhece, sim,
experiências de atuação junto ao contexto rural. Segundo ela,
As experiências que eu conheço são de profissionais que têm a vinculação
com o governo, mas que estão com as atividades já determinadas na
direção dos movimentos sociais, principalmente nos Assentamentos da
Reforma Agrária, que é onde são mais visíveis as diversas carências sociais
no campo, pois lá o grupo é bem maior, então as questões se concentram,
como o acesso a saúde, à benefícios, à educação, etc.
A partir do seu depoimento, nota-se que a presença do Assistente Social
– quando ocorre – restringe-se aos territórios em que foram feitos ‘assentamentos
de reforma agrária’. Não que isso imprima alguma negatividade à atuação
profissional, muito pelo contrário, nota-se a importância do trabalho que pode ser
desenvolvido neste espaço ocupacional, com os indivíduos sociais que têm como
identidade ‘ser classe trabalhadora e camponesa’ e como modo de vida as
experiências de coletividade.
Não obstante, o que se observa é que, embora o Serviço Social possa
estar presente em algumas experiências de assentamentos rurais de reforma agrária
no país, sua atuação não é suficiente para cobrir todas as demandas, restringindose apenas a alguns dos grupos de reforma agrária e somente durante o período
inicial de acomodação e adaptação das famílias e grupos de famílias nos terrenos.
277
Outrossim, sabe-se de antemão que ainda é irrisória a política de reforma
agrária, decorrendo disso a insuficiência de assentamentos frente à demanda
existente. Por último, é importante considerar que a própria ideologia que perpassa a
política de reforma agrária no Brasil tem como horizonte orientador os interesses da
burguesia brasileira, com destaque para os interesses dos latifundiários rurais.
Portanto, é urgente que a profissão aprofunde seu olhar para o contexto
rural, a fim de que possa atuar diretamente com sujeitos sociais camponeses, sejam
particulares e/ou coletivos. Este é um campo ocupacional bastante amplo, que
oferece perspectivas de atuação voltadas para a participação popular, para o
exercício da democracia e para a promoção de atividades na perspectiva da
emancipação humana, mas que, infelizmente, ainda sente a ausência de
profissionais Assistentes Sociais
4.5.3 “[...] Para os Assistentes Sociais tem uma sugestão central que é essa
questão da participação e da articulação com os atores organizados da
sociedade”
A fim de que se possa adentrar na última parte do diálogo sobre a relação
entre meio rural e Serviço Social, é importante ter presente o percurso percorrido até
então. Apesar de imaginar que o mesmo tenha se tornado evidente, entende-se que
é interessante demarcá-lo uma última vez como estratégia para melhor compreender
as
significativas
contribuições
das
militantes
do
Movimento
de
Mulheres
Camponesas de Santa Catarina.
Desse modo, registra-se que a primeira questão tratada no diálogo com
Justina, Luci e Noeli foi discutir a concepção acerca do Serviço Social e se já haviam
sido atendidas por um profissional dessa área. Efetuadas as conversas, tomou-se a
tarefa de lhes explicar a respeito da profissão – segundo as orientações do
Conselho Federal de Serviço Social - para, somente então, perguntar-lhes se
conheciam profissionais Assistentes Sociais que trabalham no meio rural e/ou com
indivíduos camponeses.
278
Aos poucos foi se construindo, sutil e conjuntamente, a compreensão
acerca dessa profissão e sobre as diversas possibilidades de exercício profissional.
E, mesmo tendo já avançado consideravelmente nesta construção do conhecimento,
ainda restava uma última provocação para findar essa parte do diálogo. Neste
sentido, procurou-se saber das entrevistadas suas sugestões para a atuação
profissional do Serviço Social no contexto rural, junto aos camponeses e/ou junto
aos movimentos sociais campesinos.
Novo e profícuo debate foi estabelecido. As mulheres camponesas
entrevistadas ofereceram muitas contribuições para que se possa pensar - ou
repensar – a relação entre a profissão e o meio rural. Mesmo considerando a
importância de todas as discussões, assume-se a responsabilidade de debater aqui
somente algumas delas, dado a profundidade reflexiva exigida, o que levaria a
estender ainda mais este trabalho. Ao reconhecer que não é possível efetuar tal
debate ‘em profundidade’, já neste ponto final da dissertação, assume-se o
compromisso de resgatá-lo em estudo posterior, a fim de que os necessários
aportes à profissão não sejam dispensados.
Feitas essas considerações, a primeira contribuição a ser apresentada foi
indicada pela militante Justina, que asseverou
Eu penso que tem uma sugestão central que é essa questão da
participação e da articulação com os atores organizados da sociedade. [...]
O trabalho (a missão, a função) desses profissionais é muito bonita e muito
importante, mas que essa profissão permanece atrelada ao Estado, o que
faz com que a articulação com os setores organizados da sociedade ainda
seja inexistente e, portanto, ainda necessária (JUSTINA, Chapecó,
Setembro de 2009).
Uma primeira consideração a ser feita é que a militante mais uma vez
apresenta a idéia de atrelamento da profissão ao Estado, o que - na sua opinião tem como conseqüência certa imobilidade dos profissionais em estabelecer
articulações com os ‘setores organizados da sociedade’, tais como os movimentos
sociais campesinos. Nota-se que na fala de Justina fica expresso um convite para o
estabelecimento de parcerias entre a profissão de assistente social e os movimentos
sociais, a fim de que se possam reunir forças sociais e políticas para o
tensionamento do Estado na perspectiva da ampliação do campo dos direitos e da
efetivação daqueles já garantidos legalmente.
279
Além disso, nota-se uma provocação para que os profissionais se
assumam como uma categoria crítica ao capitalismo e, por isso, empenhe-se nas
lutas junto com os‘setores organizados da sociedade’ na direção da transformação
societária.
Portanto, já no comentário de Justina percebe-se a abertura de um campo
de possibilidades para que a profissão trabalhe junto aos sujeitos sociais,
incentivando-lhes – bem como exercendo - a participação política e o protagonismo
social, desenvolvendo com eles processos de construção de autonomia e de
emancipação humana, que possibilitem uma aproximação do horizonte da
transformação societária que se quer.
Acrescentando as suas contribuições, Justina ainda apontou outra
sugestão para a profissão, dizendo que
A segunda questão é que a própria profissão precisa de uma articulação e
organização interna, porque dentro do grupo de profissionais existem os
que pensam num projeto de sociedade e sonham - como nós sonhamos com uma sociedade mais justa, mais humanitária, mais solidária etc. Mas
também existem aqueles profissionais que pensam e trabalham apenas
para manter o modelo e sistema atual como está. Neste caso, a atuação
efetiva em relação aos direitos e às políticas sociais, exigiria também uma
articulação interna da profissão na defesa da proposta de uma nova
sociedade e contra o atrelamento com o atual modelo de sociedade
(JUSTINA, Chapecó, Setembro de 2009).
Novamente entra em jogo a cobrança de um posicionamento político, no
sentido de que a profissão efetivamente se declare crítica ao sistema de sociedade,
o que, na compreensão da entrevistada, significa se colocar contra o atrelamento ao
Estado e às estruturas capitalistas.
Entretanto, mais do isso, a questão fundamental que aqui está posta na
mesa de debates resulta da constatação de um antagonismo entre o conceito crítico
e político da profissão, defendido pelo CFESS, e a forma como a entrevistada
percebe a prática profissional nos municípios em que atua como dirigente do
MMC/SC. Isto só foi notado na fala de Justina, quando ela começou a fazer
cobrança de uma postura efetivamente crítica ao sistema, somente depois que foi
apresentado - para as entrevistadas - o conceito de profissão, indicado pelo
Conselho Federal de Serviço Social.
Neste sentido, no próprio diálogo com a entrevistada observou-se que ela,
por várias vezes, procurou contrapor a imagem que fazia da profissão antes de ouvir
280
tal conceituação e depois dela. Logo, o que parece se ter criado é um tipo de
‘ruptura’ entre a imagem – socialmente construída - que Justina tinha antes e depois
desse diálogo, o que lhe faz querer conhecer mais a profissão e, por isso, a leva a
indicar a necessidade de parcerias – tal como dito anteriormente.
A aparente – porém fundamental - confusão entre o que se percebe na
prática e o que está posto teoricamente para a profissão, faz com que a militante
entenda que não há articulação interna da profissão, uma vez que uns profissionais
estariam atuando de forma atrelada ao Estado e às políticas macroeconômicas
capitalistas, enquanto outros estariam se posicionando na lógica contra-hegemônica
do capital e do Estado neoliberal.
Fica, portanto, a sugestão de se conferir as observações de Justina, que
insiste numa necessária articulação política dentro da própria profissão. Articulação
que deixaria claro tanto seu posicionamento teórico e ético-político quanto sua
prática profissional, na medida em que estariam fundamentados numa mesma
perspectiva, seja ela crítica ou atrelada ao sistema.
Logo, cabe reconhecer a necessidade de avançar nos debates políticos
da profissão, respeitando a diversidade que configura essa que é uma ‘ampla’
categoria profissional, utilizando-se dessa característica para ampliar o horizonte
teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo, mas tendo maturidade
intelectual e profissional para assumir uma posição política que confira identidade à
categoria das e dos Assistentes Sociais.
Dito isso, passa-se a dar atenção para as sugestões apontadas pela
companheira Luci, no que se refere à atuação do Serviço Social junto ao contexto
rural e sujeitos rurais. Segundo a militante,
[...] Como profissional, preciso fazer com que as pessoas se eduquem, se
transformem, que sejam instrumentos e protagonistas dessa transformação
social que eu desejo que aconteça na sociedade. Que elas mesmas se
apropriem desse conhecimento a partir da sua realidade e baseado nela,
transformem as estruturas. Essa metodologia é mobilizadora de
participação, de protagonismo e de transformação. Penso que essa
metodologia é fundamental para quem trabalha com o social e essa é minha
sugestão para os Assistentes Sociais para trabalhar no campo (LUCI,
Florianópolis, Setembro de 2009).
Observe-se
que,
para
ela,
os
processos
sociais
têm
maiores
possibilidades de reconhecimento e visibilidade social quando voltados para a
perspectiva pedagógica de mobilização da participação e do protagonismo dos
281
indivíduos sociais. Neste sentido, a palavra chave para a militante passa a ser
‘educação’. Para Luci, é nesse âmbito de atuação que reside a mais significativa
contribuição que o Serviço Social pode oferecer ao meio rural.
Logo, fica evidente que a militante do MMC/SC visualiza que o trabalho
do Serviço Social é necessário, sim, no contexto campesino. Entretanto, seus
profissionais devem atuar partindo do cotidiano e da realidade das camponesas e
camponesas, para – aos poucos – ir construindo junto com os grupos e/ou
indivíduos sociais camponeses processos de trabalho, que correspondam às
necessidades e demandas dos mesmos. Portanto, o último indicativo de ação
profissional que se deseja destacar, volta-se para o desenvolvimento de processos
pedagógicos emancipatórios.
Enfim, a militante Noeli marca novamente sua fala na roda de diálogo
apontando para a necessidade de conhecer o campo e o modo de vida camponês.
Para ela, é muito importante que tenham profissionais do Serviço Social que se
disponham a voltar sua atenção profissional para este tipo de atendimento.
Assim, primeiramente, Noeli indica o que imagina que deva ser a primeira
tarefa daqueles profissionais que quiserem dedicar seus esforços para esse campo
de atuação, para em seguida apontar a importância deste tipo de trabalho.
Vejo que um dos papéis fundamentais desse profissional, para ser uma boa
assistente social, principalmente relacionado ao campo, é o de reconhecer a
realidade camponesa. Ou seja, é necessário conhecer realmente como
funciona, não é só conhecer a unidade de produção, mas conhecer e
compreender todo o modelo que engloba o modo de vida no campo, a
forma pela qual algumas famílias camponesas conseguem resistir ao
modelo químico de produção, entre outras coisas. Portanto, penso que essa
é uma das exigências primordiais para se trabalhar no meio rural e com os
camponeses.
[...] Então, eu só queria dizer que tenho a impressão que este é um trabalho
muito importante para melhorar e, até mesmo, transformar o modo de vida
no campo, mas que precisa realmente ser revisto o seu modo de atuação,
para que pelo menos a gente possa ter contato com essa profissão. Além
disso, também quero registrar que acho bom que ainda tenham pessoas
nessa profissão que vêem a necessidade de trabalhar no campo, junto às
famílias camponesas (NOELI, Chapecó, Setembro de 2009).
Portanto, encerra-se esta última seção do Capítulo de análise do material
empírico, reafirmando que se percebeu, nas falas das entrevistadas, anseios por
uma ação profissional realmente efetiva no contexto rural. Elas são representativas
de que esse campo profissional é demandante de olhares e atenções por parte do
Serviço Social.
282
Entretanto, para que se possa responder a tais demandas, torna-se
urgente conhecer, estudar, investigar o mundo rural, a realidade atual do campo e o
modo de vida camponês. Não se avançará no amadurecimento político da profissão
e
nem na
transformação
societária,
caso
não se
confira
visibilidade
e
reconhecimento social a esse modo de vida diferente do modo predominante na
sociedade.
Enfim, estão postos significativos desafios para se definir a atuação do
Assistente Social no meio rural, onde estarão incluídas práticas emancipatórias que
os sujeitos singulares e coletivos camponeses possam incorporar na sua luta. Tal
articulação com a sociedade civil, especialmente com os Movimentos Sociais
camponeses, terá o propósito de reforçar a luta pela transformação societária. Isso
requer uma articulação interna da profissão em torno de um projeto ético-político,
que responda coerentemente à perspectiva crítica do Serviço Social no contexto
brasileiro.
Algo a considerar olhando para a última parte dessa empreitada – O quarto
capítulo!
Novamente o caminho se fez longo e exigente. Entretanto, há que se
ressaltar o significado do aprendizado! Cheiros e sabores estiveram presentes no
trajeto. Certezas e incertezas quanto ao caminho a seguir, também marcaram as
encruzilhadas!
Aos poucos... caminhou-se! Aos poucos... desbravou-se o caminho! Aos
poucos... edificou-se uma relação compartilhada entre as protagonistas - com suas
falas - e a investigadora em sua tarefa de construir saberes. Nada fez sozinha, pois
no caminho sempre esteve acompanhada.
Dito isto, é fundamental perceber que - neste capítulo - não se trabalhou
com teorias conclusas, registradas em livros de ciências humanas e sociais. Ao
contrário, os saberes que pulularam nestas páginas surgiram das experiências
cotidianas das mulheres camponesas que militam no Movimento de Mulheres
Camponesas em Terras Catarinas, as quais foram agregadas ao saber que,
283
construído anteriormente, ficou registrado nas páginas dos capítulos precedentes.
Eis aqui a riqueza de um conteúdo, o qual partiu de um arcabouço teórico, mas que
foi construído basicamente através da cotidianidade das militantes do MMC/SC,
através do diálogo estabelecido entre elas e a investigadora.
Deste diálogo emergem vários mundos que expressam a totalidade do
caminho percorrido. O mundo rural no olhar das camponesas e no olhar da
sociedade! Os movimentos sociais camponeses na construção da história! O
Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina: seu surgimento,
identidade, organização, lutas e conquistas! As Políticas Públicas a partir das
conquistas do MMC/SC e as demandas atuais! O Serviço Social e a vontade política
de construir saberes que levem a atuação profissional no espaço rural!
Resta então celebrar, assim como celebram as mulheres camponesas do
MMC/SC em seus momentos de mística revolucionária, reafirmando que é preciso
continuar, pois o fundamental é colocar-se a caminhar, reconhecendo que o
percurso é longo e que o horizonte parece sempre se colocar para além do que
antes, pois ele é um ‘horizonte utópico’, no dizer do Movimento de Mulheres
Camponesas do Brasil.
Por último, deseja-se reforçar que - já que, nesta empreitada, a
caminhada foi realizada em conjunto - espera-se continuar junto também na última
parte desta grande jornada, onde serão agregadas as principais considerações que
resultaram dos quatro capítulos da presente dissertação.
284
APONTANDO PARA UM NOVO HORIZONTE: Definitivamente, à guisa de
conclusão
Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo
Mercedes Sosa
Chega-se ao final da parte da investigação que se propôs a percorrer na
etapa dos estudos de pós-graduação em nível de mestrado. A tarefa foi desafiadora,
extensa e exigente, entretanto, trouxe novos saberes resultantes do processo de
construção do conhecimento. E como todo processo, causou mudanças. Mudanças
no modo de pensar, mudanças no modo de olhar e perceber os espaços e
indivíduos sociais no mundo. Mudanças que ora se colocam num patamar de novos
saberes e de re-significações de outros tantos. Saberes plenos de possibilidades
para aportar novas investigações e, por conseguinte, novas produções de saberes.
Este é o movimento dialético. Este é o movimento da mudança. Pois, como disse
Mercedes, “tudo muda neste mundo”.
Assim, a investigadora também muda. Ela já não é a mesma, pois seus
conhecimentos agora são outros, sendo esta dissertação parte do resultado desta
transformação. Neste sentido, apropriando-se da ‘parte singular da mudança’ que
apenas a ela cabe, espera – humildemente - colaborar para ‘a parte genérica da
transformação’ que, imagina, possa ser vivida pela sociedade.
Portanto, através de suas reflexões, esta investigadora espera ter
colaborado, provocando algumas mudanças seja no modo pelo qual esta sociedade
percebe os espaços rurais e os indivíduos sociais rurais singulares e coletivos; seja
no modo pelo qual ela passa a significar e valorizar a participação social, política,
econômica e cultural destes sujeitos rurais; e, quiçá, através destas primeiras
285
mudanças, possa-se transformar o modo pelo qual são construídas as relações com
tais indivíduos rurais, no espaço da totalidade da sociedade.
Diante deste cenário de possibilidades e de mudanças, a tarefa que
cumpre agora é de sintetizar as considerações e análises que perpassaram os
quatro capítulos desta dissertação, compondo significativamente o processo de
transformação desta investigação. E, já de antemão, deve-se dizer que esta tarefa é
tão desafiadora, quanto foi desafiadora a própria elaboração da dissertação, pois, ao
procurar cumpri-la, eis que surgem novas e diferentes perguntas, como por exemplo:
o que dizer em relação à localização do espaço rural frente à academia e também à
sociedade? Ou, então: o que falar diante do protagonismo dos movimentos sociais
na trajetória histórica da sociedade brasileira? O que afirmar frente ao intenso
processo de articulação, lutas e conquistas das mulheres camponesas, reunidas e
organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas em Terras Catarinas? E
ainda: como considerar a relação estabelecida - até este momento - pela profissão
de assistente social com os sujeitos e espaços rurais?
Embora a tarefa reservada para este momento seja desafiadora, parte-se.
E, inicia-se refletindo sobre as particularidades existentes no espaço rural. Reflexão
que diz respeito à diversidade de modos de vida, de produção econômica rural, de
organização social e política e, enfim, de transmissão e cultivo de valores e
princípios que permeiam este espaço, guardam algumas significativas distinções em
relação ao espaço urbano.
Pôde-se perceber, através desta investigação, que a principal fonte
destas distinções está no modo de produção econômica. Este, embora seja
contextualizado em sua totalidade - não pelas particularidades - reserva
especificidades próprias a cada espaço, as quais terminam por caracterizar os
diferentes modos de vida, neste caso: urbano e rural.
Ainda no campo das discussões ‘econômicas’ sobre o rural, é necessário
ressaltar que esta esfera de organização da sociedade dá origem a uma diversidade
de modos de vida coexistentes no mesmo espaço rural. Isto não poderia ser
diferente, dado que se vive numa sociedade de classes, o que é decorrente,
inclusive, do próprio modo de produção capitalista. Neste sentido, ressalta-se que a
distinção de classes sociais e, por conseguinte, o surgimento da luta de classes
286
perpassa e se reproduz na sociedade capitalista, tanto no espaço rural, quanto
naquele urbano.
Ora,
foi
a
partir
desta
reflexão
que
se
passou
a
identificar,
fundamentalmente, dois grupos de indivíduos rurais, cada um dos quais produzem e
reproduzem seu próprio modo de vida, embora estejam interligados no âmbito da
luta de classes55. São eles: os grandes proprietários de terra, latifundiários ou
ruralistas – como se queira identificar – e os camponeses, em sua identidade de
trabalhadores rurais, cujo modo de vida está ligado à agricultura familiar. Estes
últimos são assim identificados independente de possuírem ou não pequenas
propriedades de terra, pois são caracterizados a partir da questão de que a
subsistência familiar é produzida através do emprego da força de trabalho exercida
no espaço rural e no âmbito da organização e produção familiar. Tal fato não impede
que o produto deste mesmo trabalho possa - muitas vezes - ser comercializado,
quando excedente, a fim de se obter renda para comprar outros produtos que
permitam suprir necessidades não respondidas pela produção familiar.
Dito isto, é imprescindível demarcar que a partir desta distinção de
classes, confirmou-se o propósito inicial de que seria a classe camponesa, em seu
modo de vida e produção, o foco central desta investigação. Logo, torna-se evidente
que o espaço e os indivíduos sociais rurais, que figuraram nas discussões dos
quatro capítulos da dissertação, são componentes do mundo rural campesino, fato
exigido, inclusive, porque o objeto de estudos desta investigação – o Movimento de
Mulheres Camponesas de Santa Catarina – é um movimento social que se identifica
como ‘organização da classe trabalhadora camponesa’.
Cabe destacar, ainda, que foi necessária fazer a reflexão sobre quem é o
público predominante das ações do Serviço Social, campo profissional que situa
também as análises realizadas. Desse modo, partiu-se do reconhecimento de que
esta profissão direciona suas ações para a classe trabalhadora, mas também –
principalmente - para a classe que já não consegue alcançar o patamar de
trabalhadora, pois se encontra em situação marginal ao mundo do trabalho
55
Mais uma vez identifica-se o processo e movimento dialético da sociedade capitalista, agora
especificamente na questão da luta de classes.
287
oficializado pelo registro de trabalho e, portanto, marginal também à proteção social
atribuída à condição de trabalhador.
Além disto, foi importante o reconhecimento de que esta profissão
encontra-se inserida na sociedade brasileira, cujo Estado democrático desenvolve
políticas de cunho neoliberal, fazendo com que - cada vez mais - as políticas sociais
sejam residuais e focalizadas, negando a universalidade de acesso a serviços, os
quais deveriam ser garantidos por ele, com base legal nos direitos sociais já
conquistados.
Destarte, diante deste tipo de Estado e das políticas neoliberais de
governo, identifica-se que o Serviço Social poderia atuar profissionalmente junto às
mulheres e homens camponeses, uma vez que as políticas sociais planejadas,
geridas e executadas pelos Assistentes Sociais, teriam na classe trabalhadora os
sujeitos de sua ação. Tal fato aponta para a necessidade de que a profissão dedique
atenções e esforços para estes sujeitos, tanto em sua formação quanto em sua
prática profissional e – inclusive - na área da investigação.
Dito isto, salienta-se que as particularidades do modo de vida e produção
camponês guardam características que devem ser relevadas no momento de pensar
e propor ações do Serviço Social junto aos indivíduos camponeses, às
organizações, movimentos e mobilizações rurais camponesas.
Considerando-se que a mediação fundamental do exercício profissional
acontece através das Políticas Sociais, aponta-se - por exemplo – para a
necessidade de pensar as especificidades do modo de vida camponês, ao planejar,
implementar, executar e avaliar as políticas sociais direcionadas aos sujeitos rurais.
Exemplificando, alude-se o fato de que a política pública de saúde deveria prever
cuidados especiais para os camponeses, os quais são requisitados tendo em vista
as próprias condições de vida dos trabalhadores camponeses. Neste caso,
conhecendo e considerando-se que o exercício laboral no campo exige o constante
emprego de força física e também está submetido às diferentes manifestações das
adversidades da natureza - tais como o calor ou o frio intensos -, os períodos de
chuva ou então de estiagem etc -, a atenção básica em saúde – no caso deste
exemplo - deveria considerar a ocorrência destas adversidades, tanto no que tange
às doenças que têm maior incidência neste contexto, quanto em relação à dinâmica
288
e ao tipo de atendimento que se fazem necessários frente ao cotidiano de vida e
trabalho dos camponeses.
Outros
exemplos
também
poderiam ser
dados
no
âmbito
das
especificidades da Política de Educação no campo; no atendimento da Política de
Assistência Social; no desenvolvimento de Políticas de Geração de Trabalho e
Renda; no âmbito da Política Previdenciária, entre vários outros.
Portanto, essas são apenas algumas das particularidades apontadas em
relação ao espaço rural e, nele, sobre o modo de vida campesino, as quais exigem
dos profissionais uma atenção distinta em relação às especificidades encontradas
no espaço urbano. O reconhecimento da existência destas particularidades e de
outras, requer das profissões e de todos os profissionais que decidirem voltar suas
atividades para o campo, conhecimento apropriado para poder desenvolvê-las, de
modo que contemplem as demandas e necessidades camponesas.
Para isto, é imprescindível estudar o espaço rural em sua totalidade;
conhecer o cotidiano de vida e de trabalho das classes sociais do campo; identificar
e compreender as formas de organização social, política, econômica e cultural
destes indivíduos rurais – principalmente dos trabalhadores camponeses, e por fim,
reconhecer os valores e princípios que orientam o modo de vida campesino, pois,
dialeticamente, será a partir destes elementos que, também os indivíduos
camponeses – singulares e coletivos – estabelecerão suas relações com estas
profissões e seus respectivos profissionais, principalmente no âmbito das relações
sociais e políticas.
No segundo capítulo da dissertação, desenvolveu-se um estudo sobre os
movimentos sociais, que partiu desde o reconhecimento em relação ao surgimento
deste tipo de organização social e política, até o apontamento para os paradigmas
teóricos desenvolvidos sobre o tema e as principais concepções adotadas pelos
estudiosos na atualidade.
Dado que um dos objetivos daquela parte da investigação, era apontar
para a importância da participação dos movimentos sociais na construção sóciohistórica do Brasil, e a partir dela reconhecer a contribuição dos movimentos sociais
camponeses e do próprio Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina,
há que se destacar nestas considerações finais que, de fato, os movimentos sociais
289
marcaram a história do país. Por muitas vezes direcionaram e/ou re-direcionaram a
trajetória da nação; significaram e/ou re-significaram a participação social e política
da sociedade civil; pressionaram o Estado no sentido de olhar para os interesses da
classe trabalhadora; cobraram dos governantes o exercício da democracia e a
valorização da participação popular, entre várias outras contribuições históricas para
constituição da nação brasileira tal como se encontra na atualidade.
Portanto, considerando que são inegáveis as contribuições dos
movimentos sociais para a construção da história do país, reconhece-se que eles se
configuram como sujeitos sociais coletivos, cuja importância é notória no campo
dialético do jogo de forças da sociedade. São estes sujeitos que conferem a
dinâmica necessária para que as transformações sociais, políticas, culturais, mas
também econômicas sejam possíveis. Logo, devem ser reconhecidos, considerados
e valorizados como ‘forças sociais’ propulsoras das necessárias mudanças da
sociedade, as quais possuem características e dinâmicas particulares, que
permitem, ao mesmo tempo, identificá-las, mas também compreendê-las em seus
processos de organização e momentos de lutas.
No espaço sócio-político da sociedade, constituído pelos Movimentos
Sociais, é fundamental reconhecer a importância das manifestações e lutas
assumidas pelos segmentos camponeses. E, diante dos diversos cenários que
conformam as lutas sociais campesinas no Brasil, é indispensável perceber que a
‘questão da terra’ sempre se constituiu como um marco das lutas sociais e políticas
camponesas.
A terra significa para o trabalhador camponês a possibilidade de produzir
sua subsistência, conferindo-lhe identidade, mas também lhe oferecendo maior ou
menor possibilidade de autonomia em relação à classe latifundiária. Mas, não
obstante o acesso e a propriedade da terra representarem a possibilidade de
conquistar um nível maior de autonomia, ela - por si só – não propiciará autonomia
ao camponês em relação ao mercado, uma vez que o mesmo é regulado pelo modo
de produção capitalista, o qual, por conseguinte, também interfere no modo de vida
e de produção dos indivíduos sociais camponeses.
A partir dessa reflexão, cabe ressaltar que se reconhecem os motivos
pelos quais a luta pela terra e a luta contra o modo de produção capitalista tornam290
se bandeiras tão fortes para a articulação e mobilização dos movimentos sociais
campesinos. Essas lutas representam, para eles, tanto a possibilidade de aumento
nos níveis de autonomia (individual e coletiva) quanto a de conquista da
emancipação humana. Portanto, são assumidas como condição sine qua non para a
concretização do objetivo posto em seu horizonte utópico, qual seja, a
transformação societária.
Neste mesmo espaço da sociedade, deve ser identificado o Movimento de
Mulheres Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC, em sua organização,
objetivos, articulação, lutas e conquistas. Um movimento social que possui uma
identidade construída a partir do cotidiano de vida de suas militantes, fortemente
marcada pelos elementos de classe, de gênero e do espaço e modo de vida
camponês.
Deste modo, o cotidiano camponês e as experiências de vida das
mulheres trabalhadoras rurais confluem para constituir um movimento social que se
auto-identifica como movimento “camponês, autônomo, democrático, popular,
feminista e de classe, na perspectiva socialista” (MMC do Brasil, 2009. Site
institucional).
Além disto, no decorrer da investigação ficou explícito o forte significado
conferido pelo MMC/SC ao processo de construção da identidade de gênero do
movimento e seu entrelaçamento com a construção da identidade singular de cada
uma das mulheres camponesas que participam de seus grupos de base.
Ficou evidente que o desenvolvimento de uma consciência crítica, capaz
de reconhecer os elementos que configuram o modo de vida e a realidade da classe
trabalhadora rural frente ao capitalismo é condição para que as mulheres
camponesas possam participar do movimento e contribuir para a conquista de
direitos, de políticas públicas e de espaços de participação na sociedade. Da mesma
forma, é o desenvolvimento de uma consciência crítica que leva a denunciar as
situações de exploração e dominação das mulheres e de todos os trabalhadores
rurais, bem como denunciar a existência de desigualdades e discriminações de
classe, de gênero e de espaço territorial – rural e urbano.
Pôde-se perceber também que, para o Movimento de Mulheres
Camponesas de Santa Catarina – MMC/SC, a construção da consciência crítica
291
possibilita o fortalecimento da identidade de mulheres trabalhadoras rurais e, a partir
dela, a conquista da autonomia; o exercício do protagonismo das mulheres nos
espaços sociais e políticos; os avanços em relação à emancipação feminina e
humana, além da aproximação do horizonte utópico da transformação societária, na
perspectiva socialista.
Enfim, para o MMC/SC todos estes avanços são consequências da
organização, articulação, mobilizações e lutas do movimento. Geralmente, seus
efeitos não podem ser observados de imediato; entretanto, produzem também
efeitos diretos na vida das mulheres camponesas e de suas famílias e, estes sim,
podem ser observados através da conquista de direitos. Assim aconteceu no
momento em que, após longa e desafiadora luta social e política, as mulheres
trabalhadoras rurais do Brasil conquistaram a aposentadoria rural para as
camponesas aos 55 anos de idade e para os camponeses aos 60 anos de idade.
Portanto, o Movimento de Mulheres Camponesas – na experiência de
organização e lutas observadas em Terras Catarinas – é um movimento que parte
do cotidiano de vida e de trabalho de suas militantes, para chegar à conquista de
direitos e políticas públicas que venham responder às necessidades e demandas
das famílias, mas principalmente das mulheres trabalhadoras camponesas.
Destarte, o movimento constrói e é construído através da história de vida
e de lutas das diversas Justina’s, Luci’s e Noeli’s, as quais dele participam. Assim,
também, o movimento constrói a história camponesa no Brasil e a própria história da
Nação Brasileira. Reconhecer a participação e o protagonismo destas mulheres não
é tarefa somente do Estado, quando oficializa seus registros históricos sobre a
Nação. É papel de todos os cidadãos brasileiros, inclusive daqueles trabalhadores
dos âmbitos social e político, a fim de que nas páginas da história também constem
as marcas deste ‘Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil’, na experiência
construída nas Terras Catarinas.
Por último, cumpre a tarefa de tecer algumas considerações acerca da
atuação do Serviço Social no espaço rural. Neste sentido, torna-se necessário fazer
três apontamentos. No entanto, antes de fazê-los é importante explicitar que são
frutos de conversas, discussões e reflexões com os pares profissionais, não
podendo ser considerados como fatos comprovados – uma vez que não foram
292
verificados através de investigação científica – mas, sim, como indicativos, cuja
relevância justamente está no fato de que apontam para possíveis e novos
caminhos de investigação.
O primeiro destes apontamentos se refere ao fato de que não é possível
afirmar que a profissão nunca desenvolveu e nem que hoje não desenvolva
atividades profissionais voltadas ao espaço rural e aos sujeitos camponeses.
Outrossim, durante o período de investigação, constatou-se principalmente através
das conversas com colegas, professores e estudiosos do Serviço Social, que a
profissão em seu desenvolvimento histórico já dedicou olhares, atenções e fazeres
para o espaço rural. Isto ocorreu principalmente em meados da década de 1950,
quando se trabalhou sob a perspectiva norte-americana de ‘organização e
desenvolvimento de comunidades’. Além disto, no período seguinte, o Serviço Social
também orientou parte de sua atuação profissional para o espaço rural, quando
trabalhou sob a perspectiva do Serviço Social de Caso, de Grupo e de Comunidade.
É importante se considerar ainda que, além da perspectiva teórica que
orientava o exercício da profissão naquele período, a realidade que se apresentava
na
maioria
das
cidades
brasileiras
indicava
que
a
população
era
preponderantemente rural. Isto fazia com que o próprio Estado Brasileiro dedicasse
maior atenção para o âmbito rural.
É necessário ponderar, inclusive, que se vivia naquele momento o
período identificado na história da nação como o ‘período desenvolvimentista’. Nele,
inicia-se, com bastante intensidade, a implantação de uma política voltada para o
desenvolvimento e progresso do espaço rural, que ficou conhecida como ‘Revolução
Verde’, pois através da introdução de defensivos agrícolas e da mecanização do
campo elevou-se a produção rural para níveis inimagináveis antes. É notório
também que, naquele período, os incentivos não eram iguais para todas as famílias
camponesas, ou seja, os incentivos eram dados segundo os princípios da
‘(des)igualdade capitalista’, observando o potencial de produção econômica; logo, as
diferenças de classe.
Sem adentrar nesta questão – embora ela seja bastante provocativa -, o
que se almeja destacar é que o cenário do país naquele período possibilitava que as
293
profissões dedicassem seus olhares e suas práticas – um pouco mais – para o
espaço rural e para os sujeitos que nele trabalham e vivem.
O segundo apontamento refere-se ao fato de que, mesmo na atualidade,
há experiências de profissionais do Serviço Social no desenvolvimento de projetos,
de programas e de políticas voltados para a população camponesa. São
experiências geralmente ligadas a políticas de geração de renda, ou então
experiências como de alguns Centros de Referência em Assistência Social,
implantadas no espaço Rural – CRAS-Rural, ou de Unidades Locais de Saúde
também implantadas nesse espaço. Além delas, há que se considerar que há
indicativos na Política de Reforma Agrária para que os Assentamentos Rurais sejam
acompanhados, em seu período inicial, por profissionais do Serviço Social, muito
embora isto nem sempre ocorra. Assim, ainda que não existam em grande
quantidade, estas experiências devem ser consideradas no momento de analisar a
presença da profissão no espaço rural.
Como terceiro apontamento, deve-se considerar que, atualmente, em
algumas Escolas de Serviço Social, se prevê a abordagem sobre o contexto e a
realidade rural em algumas disciplinas, não obstante tais disciplinas sejam
consideradas optativas ou eletivas e, portanto, não necessariamente freqüentadas
por todos os alunos do curso.
Feitos os três apontamentos, é possível agora afirmar que se notou uma
tímida atuação do Serviço Social no espaço rural e com os indivíduos camponeses.
Esta forma de atuação – bastante sutil – acaba por provocar um distanciamento
entre os sujeitos rurais e os profissionais, fato que colabora para que a imagem
profissional reproduzida naquele espaço seja aquela ‘socialmente determinada’, de
um profissional burocrata e atrelado aos interesses do Estado e das classes
dominantes56.
Dito isto, é importante refletir sobre os fatos que levam a profissão a tal
distanciamento em relação ao espaço rural. Assim, poder-se-ia sugerir que já
durante a formação profissional não são conferidos aos estudantes, os elementos
teórico-metodológicos e técnico-operativos que possibilitem a ele, depois de
56
Conforme reflexão já realizada na quinta parte do quarto capítulo, cujos aportes foram encontrados
em Iamamoto (1982, 2000, 2007 e 2008).
294
graduado, reconhecer as demandas e atuar com competência ética-política junto a
este espaço e com os indivíduos que nele vivem.
Por outro lado, poder-se-ia indicar que a profissão não reconhece – ou,
pelo menos, caso reconheça, não confere importância – o espaço e os indivíduos
rurais como sujeitos que demandam atenção e ações profissionais especializadas.
Por conseguinte, não haveria necessidade de, durante a formação profissional,
dedicar estudos para aprofundar a realidade e o cotidiano dos indivíduos que vivem
naquele espaço.
Poder-se-ia continuar o levantamento de diversas questões com a
intenção de comprovar que, de fato, nota-se um estranhamento na relação entre
Serviço Social e espaço rural. Entretanto, elas seriam apenas tentativas de
encontrar a origem deste estranhamento - se na formação ou se na atuação
profissional – sem, contudo, imbuírem-se de importância ao indicarem saídas para
esta situação.
Além das considerações acima, não cabe a esta investigação apontar
responsáveis por este estranhamento ou, então, culpabilizar a própria profissão pelo
fato. Parece importante reconhecer os determinantes da realidade capitalista, os
quais interferem para que o Serviço Social volte-se, predominantemente, para o
contexto urbano. Tais determinantes, aqui serão considerados como elementos que
conferem aquilo que Iamamoto (2007) aponta como ‘relativa autonomia’ da
profissão57.
Dito isto, considera-se que é importante indicar nestas ‘considerações
finais’, algumas possibilidades para diminuir o distanciamento há pouco mencionado,
a fim de que a investigação colabore com possíveis avanços no âmbito do Serviço
Social. Destarte, um dos indicativos refere-se ao fato da urgência de que a profissão
dedique maiores atenções ao espaço e sujeitos rurais citados, através da inclusão
de disciplinas – ou, ao menos, de conteúdos nas disciplinas já existentes – nos
currículos de graduação, as quais, ao abordarem o tema, possibilitem aos
estudantes uma aproximação com as questões emergentes no espaço rural.
57
A reflexão sobre a ‘relativa autonomia’, embora seja discutida com competência pela estudiosa
Marilda Iamamoto, a qual se tornou referência para o debate, também pode ser encontrada nos
estudos e discussões de outros autores do Serviço Social, dado que já foi bastante socializada pela
profissão.
295
Outro indicativo direciona-se para o âmbito da pós-graduação e da
investigação em Serviço Social, expressando a necessidade de se
desenvolver
mais pesquisas que possibilitem a produção de conhecimento nesta área. Para
tanto, é importante disponibilizar disciplinas que desenvolvam o tema; criar grupos e
núcleos de estudos e investigações voltados para o campo; realizar encontros de
socialização de conhecimento nesta área; estabelecer parcerias com organizações
sociais, mas também públicas, que trabalham com o tema, tais como os movimentos
sociais camponeses e as agências estatais de assessoria técnica ao campo; entre
outras iniciativas possíveis no âmbito dos estudos e investigações em nível de pósgraduação.
Além destes indicativos, aponta-se que as escolas de Serviço Social –
tanto em nível de graduação, quanto em nível de pós -, o Conselho Federal e os
Conselhos Regionais de Serviço Social – CFESS e CRESS respectivamente -, bem
como a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS podem realizar atividades de capacitação, voltadas para a atualização profissional
dos Assistentes Sociais. Nelas, sugere-se a abordagem sobre as questões relativas
à realidade e ao cotidiano rural; sobre as implicações do capitalismo e de suas
crises para o campo; sobre as ‘expressões da Questão Social’ manifestas também
naquele espaço; entre outras.
Assim sendo, reconhecendo que o Serviço Social avançou, ainda,
timidamente na direção de estreitar sua relação com os ‘movimentos sociais’ e com
o ‘espaço e os sujeitos camponeses’, assume-se, enquanto Assistente Social e
investigadora, o desafio posto através desta constatação, de que de ainda há muito
para se fazer.
Deste modo, ao chegar ao final da investigação, nota-se que apenas
iniciou-se uma nova jornada investigativa e profissional, pois o percurso realizado
até aqui simplesmente aponta para um novo horizonte investigativo, o qual também
requer novos olhares e esforços para desvendá-lo.
Portanto, encerra-se esta investigação com as mesmas palavras da
poetiza e escritora Clarice Lispector, com as quais se iniciou:
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas,
... continuarei a escrever!”
296
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo. O cultural e o político
nos movimentos sociais latino-americanos (Introdução). In: ALVAREZ, Sonia E.,
DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo (org). Cultura e política nos movimentos
sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000.
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STROPASOLAS, Valmir Luiz. O mundo rural no horizonte dos jovens.
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301
APÊNDICES
302
Apêndice II
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL
INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS DE PESQUISA
ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO PARA ORIENTAÇÃO DE ENTREVISTAS
MESTRANDA: Mailiz Garibotti Lusa
ORIENTADORA: Dra. Maria Carmelita Yazbek
EIXO 1: Sobre como o campo figura na atual sociedade capitalista
Ao ser questionado sobre como compreende o mundo rural na atualidade, um pesquisador afirma:
[...] Concebo um universo que interage, nas mais diversas dimensões, como o conjunto da sociedade
brasileira e mantêm estas relações que se estabelecem no cenário global. Não visualizo, assim, um
espaço rural autônomo em relação ao conjunto da sociedade, que se caracterizaria por uma lógica
própria e independente de reprodução social. Importa salientar, entretanto, que este mundo rural
mantém particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas, que o recortam como uma
realidade própria, da qual fazem parte, inclusive, as próprias formas de inserção na sociedade que o
engloba (Stropasolas, 2006, p.33).
1.1 Para você, como os diversos segmentos da Sociedade (instituições, políticos, mídia, população
em geral) vê o cotidiano e a realidade da vida no campo em seus apectos sociais, econômicos,
políticos e culturais?
1.2 Para você, como esses mesmos segmentos da sociedade apontados acima, visualizam o
“homem campones” e à “mulher camponesa”? Há diferença em relação aos “homens e mulheres
urbanos”?
EIXO 2: Sobre os movimentos sociais camponeses no Brasil
Na história do Brasil nota-se a ocorrência de muitas lutas sociais. A guerra de Canudos e do
Contestado são exemplos, assim como a luta pela reabertura política e pela redemocratização no
início da década de 1980 e pela conquista de direitos sociais na Constituição Federal de 1988.
Uma referência significativa, por exigência da Constituição Brasileira de 1988, vem sendo a
participação da população nas estruturas de conselhos e colegiados, em geral, fruto de políticas
específicas. A saber, da mulher, da criança e do adolescente, dos idosos, da saúde, da educação,
etc.. Contudo, a experiência mais bem-sucedida nesse aspecto é a participação popular na
elaboração dos orçamentos municipais [...] (SILVA, 2001, p.33).
2.1 Qual o papel desempenhado pelos movimentos camponeses na trajetória histórica do país?
2.2 Como você avalia a participação dos movimentos campesinos na esfera política da sociedade, ou
seja, qual o grau de participação que desempenham nas lutas e conquistas para a garantia dos
seus direitos?
303
EIXO 3: Sobre o Movimento de Mulheres Camponesas
Diversos pesquisadores reconhecem a importância dos movimentos de mulheres no
cenário público – social e político, principalmente - do Brasil nas últimas três décadas. Veja
o que diz uma estudiosa dos movimentos sociais brasileiros:
É indispensável assinalar que os movimentos sociais, no Brasil como na América Latina,
trouxeram à cena política, de forma majoritária, a participação das mulheres, especialmente como
demandatárias de reivindicações populares por melhorias e serviços coletivos. Elas estão
mudando com sua participação, forte e decidida, muitos valores e comportamentos entre os sexos
na cultura popular brasileira(SILVA, 2001, p.33).
No site institucional do MMC encontramos a seguinte afirmação sobre a identidade do
movimento
Somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóiasfrias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem-terra,
assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade
do nosso país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela
transformação da sociedade (MMC, 2009).
3.1 O surgimento: o que levou a constituição do MMA?
3.2 Trajetória dos anos 1980: era o período de reabertura política e de conquistas de direitos. Como
foi
a participação do MMA?
3.3 Trajetória dos anos 1990: fala-se em crise dos movimentos sociais. Como estava o MMA naquele
momento?
3.4 Como está a organização do MMC hoje? Quais são suas bandeiras e suas estratégias de luta ?
3.5 Qual a sua concepção sobre “identidade camponesa”? Há diferença na ‘identidade da mulher
camponesa’antes e depois dela iniciar sua militância no MMC?
3.6 Na sua opinião, em que consiste o “protagonismo” do MMC ? A partir de que elementos pode-se
afirmar que o protagonismo se concretiza no MMC ?
3.7 Como define a autonomia do MMC ? Quais as características do MMC que permitem identificá-lo
como autônomo? Quais os principais desafios enfrentados no processo de conquista da
autonomia?
304
EIXO 4: Sobre os direitos sociais e as políticas públicas
Nota-se na fala de uma dirigente do MMC, Dona Adélia, numa entrevista no ano de 2007, que o
campo dos direitos sociais são muito importantes para o movimento. Segundo ela,
Somos um movimento classista, das mulheres trabalhadoras do campo que compõem a classe
trabalhadora. [...] Nossa causa é a transformação da sociedade. Por isso nós lutamos por direitos sociais
[Entrevista de D. Adélia Schmitz para a Revista Estudos Feministas] (PAULILO e SILVA, 2007 [15(2)],
p.399-417).
4.1 Quais direitos sociais e políticas públicas voltados para as camponesas e camponeses
existem atualmente no Brasil?
4.2 Poderia dizer quais foram as principais reivindicações do MMC ao longo dos seus 25 anos?
4.3 Quais destas reivindicações foram conquistadas?
4.4 Qual é a atual pauta de luta?
EIXO 5: Sobre a relação entre Serviço Social e Meio Rural
Conforme site institucional do Conselho Federal de Serviço Social:
O Brasil tem hoje aproximadamente 80.000 profissionais que atuam, predominantemente, na
formulação, planejamento e execução de políticas públicas como educação, saúde, previdência,
assistência social, habitação, transporte, entre outras, movidos/as pela perspectiva de defesa e
ampliação dos direitos da população brasileira. Trabalham também na esfera privada,
principalmente, no âmbito do repasse de serviços, benefícios e na organização de atividades
vinculadas à produção material, e atuam em processos de organização e formação política de
segmentos da classe trabalhadora (CFESS, 2009).
5.1 Para você o que corresponde ao papel de um (a) Assitente Social?
5.2 Já foi atendida por um profissional? Caso afirmativo: como foi o atendimento?
(Somente depois destas primeiras perguntas, explicar o que faz o Assistente Social. Pode-se utilizar as informações acima)
5.3 Conhece alguma Assistente Social que trabalha com a questão agrária, ou seja, no campo ?
5.4 Se fosse para sugerir, que tipo de trabalho uma (um) Assistente Social poderia realizar junto aos
camponeses ou junto ao MMC, qual seria sua sugestão ?
305
Apêndice II
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL
INSTRUMENTAL DE COLETA DE DADOS DE PESQUISA
ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO PARA ORIENTAÇÃO DE ENTREVISTAS
MESTRANDA: Mailiz Garibotti Lusa
ORIENTADORA: Dra. Maria Carmelita Yazbek
TERMO DE CONSENTIMENTO
Local ............................................., Data........./........../.........
Eu, _____________________________________________, RG ________________
Declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha fala (entrevista ou depoimento) do
(s) dia (s) ____/____/____, para a Assistente Social Mailiz Garibotti Lusa, mestranda em
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, para usá-la
integralmente ou em partes, sem restrições de prazos e citações, respeitando apenas a
privacidade do meu nome, desde a presente data. Da mesma forma, autorizo o uso de terceiros
que podem ouvi-la e usar o texto final que está sob a guarda de Mailiz Garibotti Lusa.
Abdicando direitos meus e de meus descendentes, subescrevo o presente com minha
assinatura.
_______________________________________
306
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