1ª edição
E D I T O R A
RIO
DE
JANEIRO
R E C O R D
•
SÃO
PAU L O
2015
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Apresentação
O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é promovido
como o maior espetáculo da Terra. E tem motivos para reivindicar o título. São milhares de foliões, centenas de fantasias
diferentes e dezenas de carros alegóricos que compõem imagens impressionantes, convenientes tanto para a televisão e a
indústria do turismo, quanto para a autoestima da cidade e
do país. Tanta exuberância é um banquete para os olhos.
No entanto, a visão é apenas um dos cinco sentidos. Numa
festa sensual por natureza, melhor que todos eles sejam bem
contemplados. Deixar a audição em segundo plano dá a sensação de que falta algo importante. O samba-enredo é fundamental: por definição, porque o espetáculo é audiovisual; e por
tradição, já que, antes de se destacarem pelas grandes alegorias,
as escolas eram, sobretudo, espaços de produção musical.
Este livro desembarca no maior show da Terra cheio de
euforia para destacar como o talento do compositor popular
contribuiu para a glória do carnaval carioca. Não de forma
isolada, já que, nas crônicas sobre os sambas-enredo, um a
cada capítulo, estão as circunstâncias em que eles nasceram,
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cumpriram a sua finalidade na avenida e não chegaram ao
fim porque são lembrados até hoje. Na minha visão, o contexto
importa tanto quanto o texto. Por isso, não pretendo traçar
um perfil estritamente musical nem instigar uma luta contra
o predomínio do visual. Há registros de conflito de interesses
entre compositor e carnavalesco, mas também dos momentos
em que a criação de um complementa a do outro.
Escolhi quinze sambas não só pela sua qualidade em
particular. Pesaram na minha decisão histórias interessantes
que eles trazem. O mais antigo é de 1964; o mais recente, de
1993. Ou seja, apenas aqueles que se mostraram capazes de
resistir na memória por pelo menos duas décadas. Na seleção
há referências objetivas como o fato de terem levado notas
máximas, ajudado a ganhar o título ou terem sido premiados.
Há casos, entretanto, em que o mais curioso é justamente o
samba entrar para a história mesmo após perder pontos e a
escola ficar mal colocada. Nesses, principalmente, prevaleceu
o meu gosto, tão subjetivo quanto o do leitor. Cada um tem
a sua lista dos melhores.
O ponto de partida foi a série publicada no jornal O Globo
em janeiro e fevereiro de 2013 homônima ao livro. Entrevistei
compositores, carnavalescos e diretores de harmonia; vi vídeos
de desfiles; consultei jornais, revistas, livros, arquivos e depoimentos de sambistas ao Centro Cultural Cartola. Busquei
toda a informação disponível, e o resultado é uma narrativa
cuidadosa dos fatos, porém sem a pretensão de revelar “toda
a verdade”. Muitas outras histórias ainda podem ser contadas
sobre o mesmo assunto. Todas elas versões saborosas que
comprovam a forte presença dos grandes sambas-enredo no
imaginário brasileiro. É por isso que eles merecem estar aqui.
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Aquela aquarela mudou
Império Serrano, “Aquarela brasileira”, 1964
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A
história do Carnaval registra como uma efeméride que
em, 1964, Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”,
morreu horas antes de o Império Serrano entrar na avenida
Presidente Vargas com “Aquarela brasileira”, de Silas de
Oliveira. O desfile teve temática semelhante à obra do compositor nascido em Ubá, Minas Gerais, e torcedor fanático
do Flamengo, o mesmo time do sambista imperiano. Uma
coincidência dessas não poderia ser ignorada, da mesma
forma que a passagem de um cometa pela Terra. Mas houve algo tão ou mais surpreendente naquele ano: o samba-enredo da verde e branco — regravado por Martinho da
Vila, Elza Soares, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho e reeditado
pelo Império no Carnaval de 2004, com a reverência devida
apenas às unanimidades — não ganhou as notas máximas.
No júri oficial, “O segundo casamento de dom Pedro I”, da
Portela, foi o melhor, com um ponto a mais que o sambão
da Serrinha.
Cinco décadas depois, ninguém tem dúvida quanto à barbaridade que foi aquele julgamento. “Aquarela brasileira” é
eterno, enquanto a música da Portela pode, sem polêmica, ser
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deixada de lado em antologias. Mais do que uma avaliação
equivocada, foi um escândalo.
E havia um jornalista na época capaz de compartilhar a
indignação da Serrinha por ser um imperiano de fé. Além
de torcedor, José Carlos Rego tinha com a verde e branco
relações de amizade, compadrio (era padrinho de Silas de
Oliveira Jr.) e amorosas, porque namorou uma neta de Tia
Eulália, fundadora.
Coube a ele assinar as reportagens mais veementes contra a injustiça. E com o espaço devido. Na capa da Última
Hora de 17 de fevereiro de 1964, segunda-feira seguinte
ao Carnaval, a segunda chamada com mais destaque — a
primeira falava do aumento de servidores públicos — era
“Samba protesta hoje contra o júri que premiou Portela”.
Estava acima do texto: “As escolas de samba vão formalizar
hoje perante o sr. Carlos Lacerda o seu protesto contra o
julgamento que deu à Portela o título de campeã de 1964 e
que injustiçou o autor do samba do Império Serrano, mestre
Silas de Oliveira­, autor da ‘Aquarela Brasileira’, que todo
o povo cantou durante o desfile, e um dos mais fluentes
poetas-sambistas das novas gerações...”
Silas caminhava para os cinquenta anos. Faria 48 em 4
de outubro de 1964. Por que foi chamado de sambista da
nova geração? Talvez porque não fosse novo de idade, mas
novidade para muita gente. Ainda não tinha conquistado o
status capaz de tornar uma ousadia imensa tirar pontos da
sua “Aquarela”.
Depois daquele Carnaval, ele só cresceu em talento,
fama e prestígio até virar unanimidade. Em agosto de
1968, assinou com o portelense Walter Rosa a trilha do
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musical Dr. Getúlio, sua vida sua glória, dos imortais Dias
Gomes e F
­ erreira Gullar, com Nelson Xavier, Tereza Rachel­e
Emiliano­­Queiroz no elenco. Estava ao lado da elite cultural
e, certamente, a fama conquistada com o clássico “Os cinco
bailes da história do Rio”, com Dona Ivone Lara e Bacalhau,
de 1965, contribuiu para que fosse chamado a fazer o samba-enredo do espetáculo.
Para 1969, ele comporia, com Mano Décio e Manoel Ferreira, “Heróis da liberdade”, eleito em enquete realizada pelo
jornal O Globo em 2003 como o melhor samba-enredo de
todos os tempos. Morto em 1972, virou enredo da Imperatriz
em 1974. E chegou consagrado de tal forma a 2004, quando
o Império reeditou “Aquarela brasileira”, que os jurados do
Grupo Especial ficaram à vontade para tirar pontos da Serrinha em todos os quesitos, com exceção de samba-enredo.
Com quarenta anos de atraso, a obra imortal ganhava as
merecidas notas máximas, além do Estandarte de Ouro em
votação unânime.
Quem ousaria, em 2004, negar ao viga-mestre do Império a
consagração devida? Ninguém, pois já em 1964, quando Silas
ainda não tinha status de mito, tirar pontos de uma de suas
obras mais bonitas não era coisa que se fizesse impunemente.
Havia gente capaz de dar voz à indignação imperiana. Na
reportagem com chamada na capa da Última Hora de 17 de
fevereiro, Rego não contemporizou: “Derrota da ‘Aquarela’
injustiçou o poeta do Império” era o título publicado na
página 5 do Segundo Caderno. “Todo o sentimento da dor
de uma perda de campeonato que possa existir na mística e
alma das escolas de samba está reunido na insensibilidade
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com que o juiz de letra e melodia1 da comissão julgadora das
grandes escolas de samba julgou o samba do Mestre Silas de
Oliveira, da Império Serrano.”
Em seguida, o jornalista destaca que a nota 3 (a máxima
era 5) foi contestada até por adversários. Além disso, afirma
que bastaria a composição “Samba”, em parceria com Mano
Décio da Viola, para torná-lo imortal. E acrescenta que Silas
é “respeitado por duas gerações de sambistas, evocado com
respeito em todos os terreiros do Rio de Janeiro, com a sua
composição ‘Aquarela brasileira’, Silas de Oliveira ganhou
toda a cidade neste Carnaval. Talvez isso lhe tenha valido
muito mais do que a consagração de melhor samba do desfile
que a comissão julgadora lhe negou.”
O texto apaixonado de Rego, falecido em 2006 e velado
com a bandeira verde e branca sobre o caixão, revela a cumplicidade de quem se sentia um pouco responsável pela
“Aquarela brasileira”. Contam Marília T. Barboza da Silva e
Arthur L. de Oliveira Filho, autores de Silas de Oliveira: do jongo
ao samba-enredo, que, em novembro de 1963, o jornalista deu
um empurrão para que o sambista, após três anos, voltasse
a fazer samba-enredo. “Então, me falaram que a única coisa
que faltava para o Silas voltar a compor era uma reportagem.
Eu fui fazer”, disse ele.
Silas se sensibilizou com a reportagem e a insistência dos
amigos e compôs o samba, dois meses depois. O repórter
acompanhou a criação e orientou o sambista a não aceitar
nenhum parceiro.
Na verdade, apenas a letra perdeu pontos. Foi julgada separada da melodia,
que teve a nota máxima, 5. Cada quesito tinha um jurado diferente.
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O autor mudou a letra por sugestão do jornalista. Segundo
os autores do livro, “Quando o samba ficou pronto, havia
um verso que preocupou José Carlos Rego. Era assim: ‘Os
rios enfeitados de jangadas.’ É que, segundo haviam lhe
dito, jangada não anda em rio, só no mar. Falou com Silas.
Este, sempre cordato, foi correndo alterar o samba. E como
se Moacir Rodrigues (presidente) descobrisse, no momento,
que ele esquecera de falar em São Paulo, o verso incorreto foi
substituído por ‘São Paulo engrandece a nossa terra’”.
Quando o samba foi composto, José Carlos e Silas já tinham
começado a amizade que durou até a morte do compositor,
em 1972. Eram próximos, já que o jornalista viria a batizar
o primeiro filho homem do sambista, Silas de Oliveira Jr.,
nascido dois meses depois daquele Carnaval, em 15 de abril
de 1964. A ligação do repórter com a família Oliveira sobreviveria à partida do autor de “Aquarela”.
Em entrevista a mim, Silas Jr. contou que o jornalista
esteve presente em sua vida depois que seu pai morreu,
quando ele tinha oito anos. Foi uma referência masculina
para o herdeiro do poeta. “José Carlos segurou a minha
onda”, diz ele, que se aventurou a seguir o exemplo paterno
sem o mesmo sucesso.
É certo que Silas ouviu o jornalista para alterar a “Aquarela
brasileira”. Mas a descoberta de um antigo panfleto com a letra pelo site “Esquentando os tamborins” indica que pode ter
havido outras mudanças, não registradas em Silas de Oliveira:
do jongo ao samba-enredo. E isso não seria surpresa alguma e
tampouco desmereceria o excelente trabalho de pesquisa dos
autores do livro, porque é comum que compositores burilem
suas obras enquanto podem. Há modificações decididas
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pouco antes do prazo de entrega e até depois da decisão.
Enquanto o CD oficial não é gravado, dá para mexer.
No panfleto há um trecho — do qual faz parte o verso
referente às jangadas — que sofreu alterações na versão definitiva: “Brasília tem o seu destaque / Na arte na beleza e
formosura / Bem merece ter o nome Belacap / É símbolo de
paz e de ternura / Do leste por todo centro-oeste / Tudo é
belo / E tem encantos mil / Os rios enfeitados de jangadas...”
A ser autêntico o panfleto, São Paulo ficou de fora em alguma fase da composição. Os versos “Bem merece ter o nome
Belacap / É símbolo de paz e de ternura” foram substituídos
por “Feitiço de garoa pela serra / São Paulo engrandece a
nossa terra”.
Outra diferença do panfleto em relação à versão definitiva
é que o título é “Aquarela do Brasil”, o mesmo da música de
Ary Barroso. Na cobertura do Carnaval de 1964 dos jornais
O Globo, Jornal do Brasil e Última Hora, no entanto, aparece o
nome “Aquarela brasileira”, como sempre foi conhecido. Ou
seja, o panfleto é um registro curioso, mas deve ser considerado com cautela.
Na reportagem sobre a injustiça contra Silas na Última
Hora, foi publicada a íntegra da letra. Na maior parte, os
versos correspondem ao que se ouve na gravação de Martinho da Vila em 1975, na reedição do samba-enredo em
2004 e em outras gravações. Mas há uma diferença mínima
que pode esclarecer uma questão importante. Em vez de
“É um episódio relicário”, consta no jornal “É um episódio,
um relicário”.
As duas versões cabem perfeitamente na melodia, mas,
do ponto de vista da letra, a alteração muda o sentido. Ao
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escrever “Episódio relicário”, Silas estaria dando à segunda
palavra, um substantivo, o valor de adjetivo, o que teria motivado críticas.
Na letra reproduzida pela Última Hora, o “problema” estaria resolvido, já que, separado pela vírgula do “episódio” e
antecedido do “um”, o “relicário” voltaria à sua condição de
substantivo. A mudança pode ter sido uma falha de digitação
(há outras) ou uma tentativa de correção do “erro”. E até uma
iniciativa de José Carlos Rego para proteger o compadre da
acusação de não ter bom domínio da língua portuguesa.
Especulações à parte, uma coisa é certa. Silas contemplou
todas as regiões do Brasil.2 Ouvida hoje, a música parece
incompleta por não falar em Santa Catarina, Paraná e Rio
Grande do Sul, mas naquela época São Paulo fazia parte da
região sul. E a Serrinha foi do Oiapoque ao Chuí, levando
para a avenida Presidente Vargas a destaque Cecília representando uma gaúcha.
E se em 2015 a escola de Madureira pena há seis anos
na tentativa de voltar ao Grupo Especial, em 1964 entrou na
Presidente Vargas preparada para brigar pelo título entre as
grandes. Não se acomodou por contar com a música mais
bonita daquele ano (e uma das melhores de todos os tempos)
e investiu em outros quesitos. Enquanto o Salgueiro tinha
Arlindo Rodrigues, profissional de TV, a verde e branco
contratou o cenógrafo, diretor de arte e roteirista de cinema Cajado Filho para fazer suas alegorias. Ele, que assinou
A separação do Brasil por regiões naquela época incluía São Paulo no Sul. O
estado passou a fazer parte do sudeste a partir do decreto nº 67.647, de 24 de
novembro de 1970.
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diversos trabalhos para os estúdios da Atlântida, declarou
na época que queria mostrar um Carnaval moderno e bem
diferente dos apresentados até então pela Serrinha.
O investimento incluiu bancar a viagem do artista plástico
Jorge Bettancourt (que dividiu o trabalho com Cajado Filho,
Dino Florêncio e o escultor Soares) a outros estados em busca
de inspiração, segundo reportagem da Última Hora de 21 de janeiro de 1964. A ideia era ser ambicioso e inclusivo, sem deixar
de lado nenhum rincão na “Aquarela brasileira” (ver foto 1).
Os imperianos gastaram tudo o que podiam para brilhar
em 1964. Cada baiana saiu por 600 cruzeiros, enquanto a destaque — chamada assim porque sua fantasia se sobressai pela
riqueza — Olegária dos Anjos gastou 800. Não surpreende
porque a Serrinha foi fundada por estivadores aguerridos nas
lutas sindicais, que jamais admitiriam ver sua escola dando
uma de coitadinha.
Se a expectativa em relação à verde e branco era grande,
o desfile não decepcionou. “Império foi a melhor escola com
samba que merece nota 10” foi o título da reportagem, assinada por Marcos de Castro, que ocupou toda a página 3 do
Caderno B do Jornal do Brasil de 13 de fevereiro de 1964. Para
Castro, a Serrinha “esteve impecável em todos os pontos, mas
num entre todos se destacou, e foi no samba — um magnífico
samba de Silas de Oliveira, de uma riqueza melódica rara.
[...] Se marcou pontos altos na melodia — e na letra — do seu
samba, a Império os deve ter marcado em vários outros itens,
também, pois o desfile de sua escola esteve perto da perfeição
que se pode exigir dela”. Ao comentar a passagem da Unidos
do Cabuçu, que veio com enredo semelhante (“Brasil de norte a sul”), ele diz que sua apresentação “não deu para fazer
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esquecer — muito pelo contrário — a ‘Aquarela brasileira’
magnífica do Império”.
O texto de Marcos de Castro é a impressão de apenas um
jornalista, mas reportagens não assinadas do Globo e da Última
Hora também falam da Serrinha como favorita. No Globo, ela
é apontada como “a vedeta da noite”; na Última Hora, diz-se
que “Aquarela brasileira” foi a melhor música das dez e que
a escola era candidata ao título.
Mas o resultado acabou com a festa. Naquela época, letra
e melodia eram julgadas separadamente, com notas de 1 a 5.
“Aquarela brasileira” levou 3 do antiquário Paulo Afonso de
Carvalho, jurado de letra. Já a melodia ganhou a nota máxima
de Edgar da Rocha Miranda, somando 8 pontos, o mesmo que
“Chico Rei”, de Djalma Sabiá, Geraldo Babão e Binha, do Salgueiro, e um a menos que o samba da Portela, de Antônio Alves.
O presidente do Salgueiro, Osmar Valença, declarou que a
Serrinha não podia ter recebido uma nota daquela. E Milton
Cordeiro, advogado da vermelho e branco, protestou em nome
de todas as agremiações: “Não pelo samba do Salgueiro que
reclamo, mas sim pelo do Império, que todo mundo cantou
na avenida.”
A indignação não era só da boca para fora. O consenso de
que “Aquarela” era uma obra-prima foi sincero e dois meses
depois do Carnaval a música ganhou uma gravação em LP
pela Discobrás. Naquela época, isso era um privilégio porque
os sambas-enredo não eram lançados em disco anualmente.
A faixa foi o título do primeiro LP de Carmem Silvana, que se
destacara como puxadora. Isso um ano antes de Dona Ivone
Lara ser a primeira mulher a assinar um samba-enredo em
grande escola, “Os cinco bailes da história do Rio”.
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A Serrinha foi a terceira a desfilar, depois da Unidos de
Padre Miguel, que abriu os trabalhos por volta das 22 horas de
domingo, 9 de fevereiro, e da Unidos da Capela. Sua derrota
foi fragorosa. Ficou em quarto, somando 44 pontos, enquanto
a vencedora, a Portela, totalizou 59 e a vice, o Salgueiro, 58. Se
é verdade que a história sempre é contada pelos vencedores,
aquele Carnaval da verde e branco estaria condenado ao esquecimento. Mas foi justamente o contrário. O samba-enredo
passou pelo filtro da memória e seu autor virou herói. Não
um dos “Heróis da liberdade”, outra pérola sua, mas um
daqueles personagens a quem se recorre em momentos de
grande risco nos filmes e desenhos animados.
E o Império Serrano estava a perigo em 2003, quando a Liga
Independente das Escolas de Samba autorizou reedições de
samba-enredo para 2004, em comemoração aos vinte anos
de sua fundação e da inauguração da Passarela do Samba.
Décima segunda colocada e mergulhada em mais uma crise
política, recorreu aos poderes de Silas para se recuperar. E o
herói da Serrinha fez a sua parte. Além de ganhar as notas
máximas, “Aquarela brasileira” emocionou o público e o
Império ganhou os Estandartes de Ouro de melhor escola,
samba-enredo, bateria, puxador e ala de baianas.
No júri oficial, a verde e branco ficou em nono lugar. Sem
vencer desde 1982, não conseguia em 2004 se equiparar à
modernidade das adversárias nas alegorias e fantasias, na
coreografia da comissão de frente e em tudo mais em que é
preciso dinheiro, eficiência e pragmatismo. O que apresentou
de mais competitivo tinha sido feito quatro décadas antes,
o samba-enredo, o único quesito em que ganhou as quatro
notas máximas.
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Uma ironia “Aquarela” ser um trunfo do Império em 2004,
porque no Carnaval de 1972 Silas foi descartado por sua escola sob o argumento de que estava ultrapassado. Ele tentou
fazer um samba mais simples para 1972, em parceria com um
compositor jovem, Jorge Lucas. De nada adiantou contrariar
sua natureza, porque perdeu na final por 5 a 0 para Heitor
Achiles, Wilson Diabo e Maneco, cuja letra tinha uma gíria
que o viga-mestre jamais usaria: “Que grilo é esse / Vamos
embarcar nessa onda...”
Em 1971, o Salgueiro tinha vencido com “Pega no ganzê”,
nome com que ficou conhecido “Festa para um rei negro”,
de Zuzuca, reforçando a convicção de que, para ganhar, era
preciso ter músicas de refrão fácil e grande comunicação com
o público. Sambas de letra rebuscada como os de Silas seriam
coisa do passado a partir de então.
“Aquarela brasileira” se safou da má colocação do Império
em 2004. Estava acima do bem e do mal. Tanto que, no Desfile
das Campeãs, a vencedora Beija-Flor cantou com entusiasmo
o samba da adversária para esquentar na concentração. “Eu
quis prestar uma homenagem a um dos maiores compositores de todos os tempos”, disse Laíla, diretor de Carnaval da
escola de Nilópolis.
O desfile da Serrinha nadou contra a corrente em 2004.
Os componentes não estavam formados em fila como uma
parada militar, fórmula que domina as escolas hoje. Vieram
soltos, como nos bons tempos. Foi uma reedição não só de
samba, como também de um tipo de Carnaval que há muito
não se via, como ressaltou a carnavalesca Maria Augusta,
comentarista da TV Globo. Ela declarou que aquilo sim era
evolução de verdade e que o Império estava dando uma aula.
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Igualmente empolgado, Haroldo Costa disse que se emoção
fosse quesito, o Império teria a nota máxima garantida. E no
final afirmou que tinha acabado de passar uma das prováveis
campeãs do Carnaval.
Como a emoção não valeu nota, a verde e branco sequer
voltou ao Desfile das Campeãs. Nona colocada com 380.9
pontos, ficou atrás de agremiações sem comparação com sua
tradição musical, como a Viradouro, quarta, e a Unidos da
Tijuca, vice com o Carro do DNA, de Paulo Barros. Não resistiu à comparação com escolas mais adequadas às exigências
da modernidade, perdendo, entre outros quesitos, 2.2 pontos
em conjunto e 1.5 ponto em alegorias e adereços.
Nos quarenta anos que separam 1964 da reedição, aquela
aquarela mudou. Se na versão original a Serrinha esperneou
porque o júri não percebeu que ali estava uma obra-prima,
quatro décadas depois entrou na Sapucaí segura de que sua
música era um consenso. Não seria preciso se preocupar
porque as notas máximas no quesito estavam garantidas.
Não haveria outra hipótese.
E tamanha unanimidade se deve, em parte, a um sambista que carrega no nome uma coirmã. “Aquarela brasileira”
conheceu o sucesso na indústria do disco como a principal
faixa do LP Maravilha de cenário (título tirado de um verso
de Silas), lançado por Martinho da Vila em 1975. Até então,
boa parte do público desconhecia aquela beleza. A família
do viga­-mestre reconhece o quanto isso contribuiu para
torná-lo ainda mais conhecido. “Quem colocou esse samba
na mídia foi o Martinho”, diz Silas Jr. Tanto que até 2004
havia quem achasse que se tratava de uma obra do Poeta
da Vila.
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Martinho conta que, mais do que a “faixa de trabalho” (a
principal música para divulgação do disco na mídia), “Aquarela”, pautou toda a produção do LP. Ele gosta de álbuns
temáticos e quis fazer um passeio pelo Brasil, com músicas
inspiradas na malandragem carioca, um frevo (“Hino dos
Batutas de São José”) e “Glórias gaúchas”, o samba-enredo
da Vila Isabel de 1970, de sua autoria.
O disco anterior, “Canta, canta, minha gente”, de 1974, é
até hoje um de seus maiores trabalhos. Houve quem aconse­
lhasse o artista a esperar mais um pouco para lançar o próximo LP, por achar que o público ainda estaria na ressaca. Mas
ele conseguiu emplacar um sucesso atrás do outro. “Aquarela
brasileira” é uma das músicas mais regravadas de seu repertório. “Agradeço muito ao Silas e ao Império Serrano por isso.”
Antes de Martinho, “Aquarela” foi a última faixa do LP
Elza Soares, que a mulata assanhada lançou em 1973. O talento
do compositor na voz sensual e rascante de uma das maiores
intérpretes da MPB resultaram numa belíssima gravação.
Mas a repercussão foi menor do que a do álbum Maravilha
de cenário.
A “Aquarela” é irretocável, mas nem por isso prescindiu de
um complemento no LP de Martinho. Ele conta que “Glórias­
gaúchas” foi a última música do disco porque o sambão
parecia incompleto por não citar Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná, os únicos estados da região sul a partir
de 1970.
A música encantou Martinho principalmente pela versatilidade. Cada lugar do país citado, diz, corresponde a uma
variação na melodia. “Elas são diferentes umas das outras,
mas se encaixam perfeitamente. Não há choque.”
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