Utopia
Sebastião Bicalho
UTOPIA
Peça teatral de Sebastião Bicalho
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Utopia
Sebastião Bicalho
PERSONAGENS:
Paulo: Doutor em filosofia, 50 anos, casado com Ana;
Ana: socióloga, em torno de 35 anos, professora;
Pepê: universitário de uns 20 anos;
ÉPOCA: dias atuais;
LUGAR DA CENA: casa de Ana e Paulo, faculdade de filosofia.
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Sebastião Bicalho
Ao acender das luzes, Ana circula ansiosamente pela
sala de sua casa, parecendo procurar algo que, no
final, revela ser um maço de cigarros. Acende um
cigarro; demonstra estar com o pensamento longe.
Paulo, seu marido, entra em casa como se estivesse
chegando do trabalho. Traz consigo uma pasta e tem o
semblante triste, cabisbaixo. Ana percebe que o marido
está entrando em casa, mas finge que não o vê chegar.
Depois de afrouxar a gravata e largar a pasta, Paulo,
com fisionomia desesperançada, olha para a mulher.
CENA I
PAULO
Oi!
ANA
(secamente, ainda sem olhar para ele) Oi...
Um silêncio desagradável se instala entre os dois.
Paulo olha a mulher como a implorar sua atenção, mas
ela permanece impassível, apenas fumando e olhando
para o outro lado. Depois de alguns instantes nesse
silêncio, é ele quem toma a iniciativa de rompê-lo.
PAULO
(amargurado) Ana, a gente não pode mais continuar assim.
ANA
(apaga o cigarro e finalmente o encara) Também acho...
PAULO
(tenta abraçá-la, ela
acontecendo, meu bem?
se
esquiva)
O
que
é
que
está
ANA
A pergunta certa não é essa, Paulo... Na verdade,
acontecendo nada... E já faz muito tempo que nada
conosco... Quantas vezes eu já te falei que
chega... acabou... Mas você insiste em fingir
entende...
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não está
acontece
pra mim
que não
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PAULO
(tenta abraçá-la novamente, de novo ela se esquiva) Mas
como é que pode acabar assim, de repente, uma relação de
mais de dez anos?
ANA
(enfaticamente)
Exaustão,
Paulo...
Exaustão!
Nosso
casamento não acabou de repente... Já tem muito tempo que
ela vem se deteriorando... você é que nunca fez questão de
ver... Mas agora eu não aguento mais... Estou me sentindo
saturada, presa nisso que já não tem mais energia... Parece
que estou prolongando a agonia de uma coisa que na verdade
já morreu... É como se estivesse participando de um velório
que nunca mais tem fim...
PAULO
Ana, acorda! Nem parece que é você quem está falando assim,
meu bem... E tudo que a gente viveu? Tudo que a gente ainda
pode viver?! Justo agora que estamos chegando no auge de
nossas carreiras...
ANA
(impaciente) Você só pensa em carreira, carreira, carreira!
Alguma vez você me perguntou se eu realmente gosto da minha
carreira?
PAULO
É claro que gosta! Você é muito preparada, com ótimas
qualificações... são poucos os professores da faculdade que
têm um currículo comparável ao seu...
ANA
(desanimada) Está vendo, Paulo!? Tanto tempo juntos e você
nem desconfia do quanto eu odeio esse trabalho... Não fui
eu que me formei e adquiri tantos títulos... Foi você quem
me obrigou a isso...
PAULO
Ana, pelo amor de Deus! Quer dizer agora que a culpa é
minha?
ANA
Eu tinha que me esforçar para agradar ao todo-poderoso, eu
não podia envergonhar o paradigma máximo da escola...
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afinal de contas, o que os outros diriam do “gênio
superstar” (entonação irônica), se sua esposa fosse apenas
uma profissional medíocre?
PAULO
Ana, eu nunca cobrei nada de você!
ANA
Claro que não! Você é muito inteligente para não deixar
pegadas no território que arrasa... Suas cobranças nunca
foram explícitas, mas sempre estiveram presentes em
discursos aparentemente despretensiosos...
PAULO
Seja como
próprios!
for,
você
chegou
aonde
chegou
por
méritos
ANA
Conversa! Você, melhor do que eu, sabe que todas as minhas
promoções naquele lugar só foram conquistadas por sua
interferência direta...
PAULO
Não é bem assim...
ANA
Claro que é! Por favor, não me subestime! Aquele povo lá
sempre comeu na sua mão... Eles morrem de medo de perder o
grande astro da companhia... O que você fala naquele lugar
vira lei...
PAULO
Tudo bem, Ana, não vamos discutir isso...
ANA
É! Não vamos discutir! Vamos jogar tudo embaixo do tapete
como sempre fazemos...(pausa; ainda mais amargurada) Ah,
Paulo! Bem se vê que você até hoje não me conhece...
PAULO
Como não, se eu tento de tudo pra te fazer feliz?
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ANA
Corrigindo: você tenta de tudo pra “se” fazer feliz, não é?
Eu sempre fui um fantoche nas suas mãos, meu caro... Eu era
ainda uma menina quando me deixei levar pela sua sedução...
pelo poder das suas palavras sempre muito bem escolhidas
para causar a melhor das impressões... eu era muito
ingênua... caí inteiramente na sua lábia...
PAULO
Quanta amargura, Aninha...
ANA
(explode de ódio) Para de me chamar de Aninha, Aninha,
Aninha! Quantas vezes já te pedi pra não me chamar assim,
com esse diminutivo ridículo?! Você faz com que me sinta
uma idiota... Eu estou com 35 anos, Paulo... Não sou mais
aquela caloura dentuça que você conheceu tanto tempo
atrás... Você continua me tratando como se eu não fosse
capaz de cuidar da minha vida... Isso é sufocante... Me
diminui como mulher... Quando estou dando aulas na
faculdade, os garotos me tratam como a adulta que sou...
mas quando chego em casa... você faz questão de escarrar na
minha cara esse apelido infantiloide que tanto me ofende...
Pai, eu já tive um... O que eu preciso é de um marido...
PAULO
Um marido ou um filho?
ANA
(pega de surpresa, cala-se por alguns instantes para em
seguida continuar extravasando suas mágoas) O que você quer
insinuar com isso?! Que eu sou um fracasso como mulher? Que
estou histérica só porque não fui competente pra gerar um
filho?
PAULO
Ana, não ponha palavras na minha boca... Eu só quis dizer
que talvez você esteja vendo um defeito na nossa relação
quando na verdade o problema pode ser outro... Quem sabe se
nós adotássemos uma criança?! Talvez você se sinta melhor...
Talvez a gente consiga fazer voltar aquela paixão de
antigamente...
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ANA
(esgotada pela decepção) Paulo, como você é cruel... Usar
do meu complexo para distorcer tudo e fingir que não
entende que eu simplesmente não quero mais nada com você!
(a última frase é dita pausadamente, escandindo as sílabas,
quase beirando o ódio; ela vira as costas para ele)
PAULO
(fingindo não entender a esposa, tenta enlaçá-la pela
cintura; ela se desvencilha dele) Ana, isso é só mais uma
crise... Todo casal passa por isso... Por que seria
diferente conosco? Eu ainda sou apaixonado por você... E
tenho certeza de que você também ainda é apaixonada por
mim...
ANA
(debochadamente,
volta-se
para
ele)
Como
você
é
egocêntrico, Paulo! E como se acha tão superior com essa
autossuficiência arrogante! Você realmente queria que fosse
assim, não é? Mas eu tenho uma péssima notícia pra lhe dar:
eu estou apaixonada sim, mas não é por você não... Estou
encantada por um cara bem mais novo, que ainda não se
mostra com esse seu ar pedante... com esse tom professoral
que ignora a opinião alheia e desdenha de todo ponto de
vista que não esteja de acordo com o seu... Ele tem tudo
que você não tem mais: juventude, frescor, entusiasmo,
inocência, garra, sede de viver...
PAULO
Eu não acredito...
agredir...
Você
está
dizendo
isso
só
pra
me
ANA
(mais calma) Não, Paulo! Você não acredita porque sempre
foi muito seguro de si... Nunca deve ter passado pela sua
cabeça que alguém pudesse rejeitar você... No fundo, eu não
rejeito...
Tenho
muito
carinho
por
tudo
que
você
representou na minha vida... Mas pra mim realmente
acabou... Ficar insistindo nessa relação só vai fazer com
que o resto de carinho e admiração que ainda tenho por você
acabe por completo... (pausa; ele abaixa a cabeça como que
vencido. Ela se aproxima dele, como quem quer consolar
alguém) Paulo, eu não posso mais viver com você... Isso
tudo está me sufocando e eu não aguento mais viver assim...
Se você realmente me ama...
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PAULO
(interrompendo-a, conformado com a derrota) Não precisa
continuar... Eu já entendi... Amanhã eu arrumo minhas
coisas... Pode deixar... A partir de amanhã... Você vai
ficar livre... (pega a pasta, desata o nó da gravata e sai
de cena) ... Amanhã...
Ana, pensativa, acompanha a saída do marido. Seu rosto
transmite todo o desgosto que lhe causou o diálogo.
Aos poucos as luzes vão se apagando gradativamente até
o Black-out.
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CENA II
Paulo, de pé, discursa durante uma de suas aulas na
faculdade. Tem o ar professoral e fala de um jeito
bastante formal, como que se distanciando dos alunos.
O ator usa a própria plateia como se ela fosse o grupo
de alunos que o ouve. Pepê se infiltra sutilmente na
plateia, sem se deixar ser percebido, até que Paulo
termine seu discurso.
PAULO
Portanto, meus alunos, estudaremos nos próximos dias a obra
“Utopia” de Thomas More, ou melhor dizendo, “Santo” Thomas
More, uma vez que foi canonizado por se tornar um mártir da
causa católica... Essa obra-prima de More é de 1516 e trata
de um dos maiores sonhos da humanidade: a busca de um lugar
ideal para viver; um tipo de terra prometida... Na ficção
de More, os costumes da ilha de Utopia lhe foram revelados
por um culto viajante que havia participado de uma das
expedições de Américo Vespúcio... Segundo esse viajante,
Utopia era um lugar paradisíaco, onde as relações humanas
chegavam à beira da perfeição... Lá, os habitantes viviam em
plena liberdade religiosa, havia trabalho para todos, os
bens eram distribuídos com igualdade e justiça, não havia o
conceito de propriedade individual; enfim, tudo funcionava
na maior harmonia e todos se mostravam muito felizes... E é
por tudo isso que a palavra Utopia foi adquirindo com o
tempo o significado de algo inatingível; um propósito ou
meta quase que inalcançável... (pausa; a entonação muda para
indicar um desafio aos alunos)... E é aí que proponho a
vocês um desafio... Com base nesse texto, quero que
explorem todos os ângulos de um possível mundo ideal... Ou
seja, quero reflexões a respeito do que é a felicidade para
o ser humano... É um lugar geográfico? Um ambiente? Um
espaço
interior?
A
felicidade
existe
mesmo?
E
a
infelicidade, o que é? A infelicidade não seria apenas a
tensão de uma busca incessante pela felicidade? Será que se
parássemos de buscar a felicidade não a encontraríamos no
mesmo instante? Somos seres de relação... Nossa noção de
existir reside muito no fato de sermos reconhecidos pelo
outro, vistos pelo outro... Estamos sempre nos medindo pelo
que o outro faz ou é... Somos movidos pela comparação...
Por isso, lanço mais perguntas: nossa felicidade ou
infelicidade não seriam também um subproduto da comparação?
Como seria viver num lugar onde todos são felizes? Não
seria um tanto frustrante? Aguentaríamos ser infelizes,
mesmo que seja um pouquinho só, numa terra onde só
detectamos
felicidade?
Ou
essa
infelicidade
se
potencializaria num grande tormento? (pausa) Muito bem,
meus queridos alunos... Por hoje é só... Multipliquei as
perguntas para que busquem dentro de vocês mesmos as
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respostas... Essa é velha maiêutica de Sócrates... Não há
nada a ensinar que já não esteja dentro de vocês para ser
descoberto... Toda a sabedoria e todas as respostas já
estão latentes em seu interior, pedindo apenas que vocês
retirem o véu que há sobre elas... Nisto é que consiste a
revelação: retirar o véu... eliminar a ignorância que
encobre a sabedoria... Pensar, filosofar, encontrar jeitos
novos de percorrer estradas antigas... Essa é a utopia
maior... (pausa)... Até semana que vem...
Paulo se prepara para sair de cena, mas Pepê, surgindo
do meio da plateia, o interpela. O garoto tem uma
paixão platônica pelo professor, a quem admira e
respeita como um ídolo.
PEPÊ
Professor! Professor! O senhor tem um minuto?
PAULO
Claro!
PEPÊ
(deslumbrado, sem conseguir disfarçar o nervosismo e a
paixão que sente por Paulo)... Sua fala foi muito
inspiradora... Mas eu queria saber mais sobre o que o
senhor pensa a respeito do assunto...
PAULO
Sem essa de senhor, ok?
PEPÊ
(embaraçado)... Tá bom, desculpa! Mas é que eu sempre fui fã
do senhor... quero dizer, você... E eu fiz questão de vir
nessa aula como penetra pra ouvir a sua fala... Só no
semestre que vem é que vou poder cursar a sua disciplina,
mas, desde já, queria ouvir o que você tem a dizer... Eu já
li todos os seus livros... Pra falar a verdade, escolhi
fazer esse curso porque curto muito o que você escreve e,
principalmente, porque queria muito ser seu aluno...
PAULO
Puxa! Assim você até me envaidece...
PEPÊ
(mais calmo)... É de coração, pode acreditar...
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PAULO
Tá bem, eu acredito! (pausa em que ambos ficam se olhando;
Pepê olha Paulo com o ar abobalhado de quem não acredita
estar frente a frente com alguém muito especial; Paulo
pigarreia e, constrangido com a falta de palavras, retoma a
conversa)... Mas... Você disse que queria saber um pouco
mais... Sobre o quê?
PEPÊ
Pelo jeito, você não acredita na felicidade, né?
PAULO
(rindo sem jeito, como se um segredo seu tivesse sido
desvendado) Olha só... O que eu acredito é que a
felicidade, como é entendida pelo senso comum, só se
conquista mediante um preço... às vezes o preço é baixo, mas
às vezes é tão alto que costuma ser pago, paradoxalmente,
com a moeda mais impensável: a própria infelicidade...
PEPÊ
O quê? Ser feliz sendo infeliz?
PAULO
(rindo de forma paternal) Parece estranho, mas é mais ou
menos isso que você falou... Tem horas que a gente opta por
ser um pouquinho infeliz na esperança de que, mesmo que
seja
por
alguns
momentos,
a
gente
seja
feliz
completamente...
PEPÊ
Não entendi!
PAULO
(rindo) Veja bem... Esse é um ponto de vista meu... não tem
nada de científico... Portanto, esqueça que quem está aqui
falando é um professor... Como professor, gosto de atuar
como mediador entre os pensadores e os alunos, sem juízo de
valor nem preocupação de quem está certo ou errado... A
minha verdade não é a mesma verdade de muitos filósofos que
admiro... Entretanto, respeito todos eles porque sei que
nem eles nem eu abarcamos a verdade toda... A admiração
nasce exclusivamente do fato de eu reconhecer neles a
ousadia de pensar... o atrevimento de não se conformar com
a mediocridade... a capacidade de questionar valores
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sedimentados por preconceitos e injustiças... a coragem de
propor novos pontos de vista para uma humanidade carente de
direcionamento...
PEPÊ
Tudo bem, entendi, mas ainda assim gostaria de saber qual é
o seu ponto de vista... Você tem alguma utopia?
PAULO
(pensativo) Olha só... Eu acho que é fundamental a gente
ter utopia, desde que ela não se torne uma obsessão e sim
apenas uma referência... Eu não acredito nessa felicidade
permanente que é o sonho acalentado por quase toda a
humanidade... Nós vivemos imersos num mundo de dualidades,
no meio das quais nos orientamos... um polo não vive sem o
outro... se um se desintegra, o outro se extingue também,
uma vez que os dois são complemento um do outro e não
opostos... Se perdermos o contato com um dos polos,
passamos a não reconhecer mais o outro e corremos o risco
de cair num tédio e num vazio absolutos que podem até nos
levar à loucura... Eu te pergunto: como é possível valorizar
o bem se não tivermos a contraposição do mal?
Como
usufruir completamente um prazer sem termos tido contato
com o contraste da dor? E, por analogia, como podemos
curtir a felicidade sem que conheçamos a infelicidade?
...(pausa)... Eu prefiro sentir a felicidade intermitente
que
vem
temperada
e
permeada
com
um
pouco
de
infelicidade... É nessa felicidade pulsante que quero
acreditar, pois tenho verdadeiro pavor de atracar meu barco
na ilha de Utopia, onde a felicidade deve ser um tédio
permanente... O grande prazer do ser humano reside mais em
viajar do que propriamente chegar ao destino... O destino é
somente um pretexto para nos motivar a caminhada... Somos
como um cachorro que corre latindo atrás de um carro... Se
o carro parar, a brincadeira perde a graça... Por isso é
fundamental sonhar com a felicidade permanente, não com a
ilusão de lá ficar para sempre, mas com a capacidade de
suportar os momentos de infelicidade que nos motivam a
caminhar para o polo oposto... O segredo da sabedoria é o
equilíbrio... A felicidade extrema nos paralisa e anestesia
os sentidos, enquanto a infelicidade na dose certa nos
estimula e nos faz crescer... Pra concluir, penso que este
é o segredo: curtir os altos e aceitar os baixos, pois tudo
é cíclico... Com essa postura, creio que a vida fica muito
mais leve e fácil de suportar...
PEPÊ
Sei lá! Essa felicidade que você defende ainda me parece
uma forma meio masoquista de encarar a vida...
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PAULO
(rindo) Liga não! Você ainda é muito novo... Tem a vida
inteira pra filosofar... Quem sabe um dia entenda o que eu
quis dizer? (pausa, olha o relógio) Bem, tenho que ir!
Espero vê-lo outras vezes por aqui... (pausa; lembra-se que
não sabe o nome do rapaz)... Como é mesmo o seu nome?
PEPÊ
Pedro Paulo! Mas o pessoal me chama de Pepê...
PAULO
(pensativo) Ok! Então tá, Pepê! Até a próxima!
Paulo se vira e sai de cena. Pepê permanece ainda um
pouco no palco enquanto as luzes vão diminuindo
gradativamente até o Black-out.
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CENA III
As luzes se acendem lentamente. Pepê está sentado
confortavelmente, lendo um livro. Está tão concentrado
que nem percebe a aproximação de Ana. Ela fica a
princípio
um
pouco
longe
dele,
observando-o.
Aproveita-se do fato de ele estar concentrado na
leitura e olha-o demoradamente. Está embevecida,
curtindo o seu amor até então não declarado a ele.
ANA
(chegando bem perto do rapaz) Oi!
PEPÊ
(surpreso, mas sem demonstrar muito entusiasmo) Oi!
ANA
(senta-se junto dele, procurando tornar-se íntima) Pedro
Paulo, não é?
PEPÊ
É sim, ‘fessora! Mas pode me chamar de Pepê!
ANA
(desajeitada, tentando puxar conversa depois de um pequeno
silêncio que se faz entre eles) Pois então, Pepê... Eu
tenho reparado que você está sempre sozinho aí pelo
campus... Até mesmo na minha sala você fica pelos cantos
sem se enturmar...
PEPÊ
(despreocupado) Ah, esse é o meu jeito mesmo... Mas quando
eu acho alguém que me interessa, solto a língua na mesma
hora... (ri inocentemente; ela ri também)
ANA
(envergonhada) Eu só queria lhe dizer que pode contar
comigo no que precisar, ouviu? Quando se é calouro, tudo
parece novidade... a gente fica meio deslocado até se
localizar melhor... Então, é bom saber que temos amigos com
quem contar, não é mesmo?
PEPÊ
Poxa! Obrigado, ‘fessora! A senhora é muito legal...
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ANA
(incomodada) Senhora?!... Que é isso, pode me chamar de
você... Afinal de contas eu não sou tão mais velha assim,
não é?
PEPÊ
Claro que não! Eu até peço desculpas, mas de onde eu venho
não é costume a gente tratar com intimidade as pessoas que
ainda não conhece direito... Aí, já viu, né? É senhor pra
cá, senhora pra lá...
ANA
(riem juntos; ela fica curiosa) Então... Você não é daqui,
não?
PEPÊ
Não! Vim pra cá só por conta dos estudos...
ANA
(fingindo fazer uma pergunta inocente) E está morando onde?
PEPÊ
Numa república vagabunda no Centro... Na verdade vou lá só
pra dormir... Não conheço ninguém da cidade... De vez em
quando, faço uns bicos como professor de violão... Por
isso, tenho de economizar a qualquer custo... Fico
praticamente o dia todo no campus... Aqui a gente sempre
gasta menos... E de noite volto pra república, torcendo pra
ninguém me chamar pra sair... Porque senão já viu, né? Uma
noitada nunca fica barata...
ANA
(calculista) Eu tive uma ideia...(pausa, toma coragem)...
Por que você não vem morar lá em casa?
PEPÊ
(surpreso e contente ao mesmo tempo) O quê? Morar com você
e o Professor Paulo?
ANA
(ela se surpreende com a menção do nome do marido, recém
saído de casa) Como?
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PEPÊ
(intrigado, pensa a princípio que cometeu uma gafe) Ué, você
não é casada com ele? Pelo menos é o que me falaram... (ela
fica tão confusa e sem graça que nem responde nada, apenas
dando a entender com a cabeça que permanece casada; o rapaz
dá prosseguimento à fala)... Ele é um cara sensacional...
Você tem muita sorte de ter encontrado alguém como ele, não
acha? (desconcertada, ela apenas concorda timidamente com a
cabeça) Puxa, eu adoraria morar na mesma casa que ele... Já
pensou? Todos os dias ter aula particular com o famoso Dr.
Paulo Alcântara na mesa do café da manhã... Quem não
gostaria? (pausa, ele contém o entusiasmo e demonstra uma
certa preocupação)... Mas ele não vai se incomodar, não? E
eu? Como é que vou retribuir essa gentileza? Vou ficar sem
graça de aceitar o convite e não oferecer a vocês nada em
troca...
ANA
(circula pelo palco demonstrando todo o embaraço que sente;
gagueja, não sabe como sair da situação em que entrou)
Bem... sei lá... se você se sentir mal por não ajudar em
alguma coisa... Quem sabe você pode cuidar do jardim... dos
nossos carros... sei lá... certamente você deve ter muito a
oferecer... com o tempo, quem sabe?, você vai nos retribuir
com muito mais do que possa imaginar...
PEPÊ
(sem conter a felicidade e o deslumbramento) Então tá! Se o
Professor Paulo não tiver nada contra, eu aceito com
prazer...
ANA
(despedindo-se) Eu acho que ele não vai ter nada contra,
não... Mas é bom conversar com ele primeiro... Depois a
gente se fala e combina isso direito, ok? Até logo!
PEPÊ
Até! (pausa) Ah... E obrigado, viu ‘fessora?
Ana sai de cena, enquanto o rapaz a observa indo
embora. As luzes vão diminuindo gradativamente sobre
ele até o Black-out.
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CENA IV
Ao acender das luzes, Ana e Paulo estão no palco. Ele
tem as mãos à cabeça como se estivesse processando
algo que estivera ouvindo de Ana. Seu semblante
demonstra inquietude, desconforto e contrariedade.
Está de costas para Ana, que o observa com o semblante
frio. Ela parece estar esperando alguma resposta.
PAULO
(voltando-se para Ana) Espera aí!! Deixa ver se eu
entendi... Você se apaixonou por um garoto lá da
faculdade... Convidou ele pra vir morar aqui... E quer que
eu volte a morar aqui também... É isso?
ANA
(embaraçada) É Paulo, é isso...
PAULO
Você tem noção do que está me pedindo? O que é que há? Não
basta ter me despachado? Ainda por cima quer me humilhar?
Quer que eu assista a suas cenas de amor com outro cara?
ANA
(falsamente ofendida) Ah, Paulo, também não precisa fazer
esse drama todo... Eu não sei se estou apaixonada por
ele... Meu interesse maior é tentar salvar o nosso
casamento...
PAULO
Salvar o nosso casamento? Ana, onde é que você está com a
cabeça? Não foi você mesma quem disse que o nosso casamento
acabou?
ANA
Paulo, eu estou confusa... Já te disse que em todo esse
tempo que estivemos juntos eu nunca tive oportunidade de
conhecer outros horizontes... viver algumas experiências
que sempre fantasiei... Você nunca largava do meu pé... Em
todas as minhas lembranças você está sempre presente... Em
todas as fotos de viagens ou passeios que fiz desde os meus
18 anos você está lá, sorrindo a meu lado... Você nunca me
permitiu ter amigos que não fossem os seus... Em todo lugar
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que eu queria ir, você estava sempre se prontificando a me
acompanhar...
PAULO
Ana, não seja injusta... Se eu fiz isso é porque não queria
que você se sentisse sozinha... Você sabe que eu te amo...
ANA
Se você me ama mesmo, está numa boa hora de provar...
(aproxima-se dele de forma sensual e carinhosa) Olha, meu
bem... eu preciso viver algo diferente que me tire desse
tédio em que se tornou a nossa relação... Quem sabe uma boa
apimentada nela não transforme as nossas vidas pra
melhor?... Você não se diz tão moderno, tão além do seu
tempo? Por que então não sai da teoria e se arrisca um
pouco na prática? (sedutora, chega quase a beijá-lo)
PAULO
(inconformado, suplicante) Mas por que tem que ter outro
cara na jogada? Quem sabe se a gente não programasse uma
nova viagem de lua de mel?
ANA
(impaciente) Ah, desisto! Você nunca vai entender...
(afasta-se e fala de costas para ele)... Pode deixar,
Paulo... Vamos ficar como estamos... Você lá, eu cá...
PAULO
(vencido, cai na chantagem emocional) Tudo bem, Ana... Você
venceu... Pra te agradar e salvar nosso casamento eu topo
fazer o que você quer...(pausa)... Só não entendi uma
coisa: se a experiência é sua, por que eu tenho de passar
pelo constrangimento de ficar aqui em casa, bancando o
corno manso?
ANA
(sem graça) O rapaz só vem morar aqui porque acredita que
ainda somos um casal que vive junto... Ele é seu fã, adora
o que você fala e escreve... Pra falar a verdade, acho até
que é apaixonado por você... A simples perspectiva de morar
aqui deixou o garoto tão excitado que ele quase não se
conteve de alegria...
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PAULO
(intrigado) Você acha que ele é...
ANA
(conclui a fala dele) Gay? Acho...
PAULO
Quem é ele?
ANA
Se chama Pedro Paulo... Mas prefere que o chamem de Pepê...
Conhece?
PAULO
(põe a mão na cabeça, enquanto responde afirmativamente com
a cabeça) Ana, Ana, Ana... Que coisa terrível brincar com o
sentimento dos outros... Além do mais, se ele é gay... Como
é que vai querer alguma coisa com você?
ANA
(fria) Isso é o que eu acho mais excitante... O desafio...
(sensual, caminha em sua direção)... E depois... Ele pode
até não querer... mas vai fazer comigo tudo que você
pedir...
PAULO
(decepcionado) Ana, você vai se arrepender desse jogo... Eu
não quero participar disso... Acho tudo muito sujo...
imoral... vulgar...
ANA
(afasta-se dele novamente; semblante carregado e ameaçador)
Você é quem sabe, Paulo... Depois não diga que não tentei...
Imoral é usar de uma moral hipócrita que sufoca o desejo
para justificar a covardia de não saciá-lo... Vai embora,
Paulo... Eu nem sei por que chamei você aqui... Foi
estupidez tentar buscar a solução de um problema exatamente
naquilo que o causou...
PAULO
(caindo mais uma vez na chantagem de Ana, caminha até ela e
a vira de frente para si) Tudo bem, me desculpa... Mas você
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precisa entender que pra mim isso é um sacrifício muito
grande (ele se aproxima, abraça-a, tenta beijá-la na boca,
mas ela vira o rosto)...
ANA
(enfaticamente) Na boca, não!!
(pausa, ele estranha a
atitude dela; tenta afastar-se, mas ela o abraça)... Na
boca ainda não... Pelo menos agora não... Por enquanto, só
me abraça...
Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As
luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o
Black-out.
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CENA V
Ao acender das luzes, Pepê está sentado num canto,
balançando-se distraidamente ao som da música que ouve
em seu Ipod. Depois de alguns instantes, Paulo chega
do trabalho. Está de paletó e segura uma pasta.
Observa Pepê de longe durante algum tempo. Pepê
percebe que Paulo chegou.
PEPÊ
(feliz) Oi, Paulo!! Chegando cedo hoje, hein? (aproxima-se
dele, pega sua pasta e guarda-a num canto; depois, retira o
paletó de Paulo enquanto continua o diálogo) Hoje o clima
deve ter ficado pesado por lá, né? Ouvi dizer que ia ter
manifestação dos alunos contra a mudança nos critérios de
avaliação... Deve ter sobrado pros professores... Eu nem
fui lá... Detesto bagunça... (Paulo permanece calado,
olhando para Pepê de um jeito ressabiado) Puxa! Nem parece
que já estou morando aqui há duas semanas... O tempo voa,
né?... (pausa, Pepê estranha o jeito de Paulo)... O quê que
foi? Você está esquisito...
PAULO
(saindo
chegou?
do
transe)
Nada...
Não
é
nada
não...
A
Ana
já
PEPÊ
Não, ela falou que vai demorar um pouco pra dar tempo de
nós dois conversarmos...
PAULO
Sobre o quê?
PEPÊ
Sobre o que está se passando aqui nesta casa... Professor,
eu posso ser mais novo do que vocês dois, mas não sou bobo
nem ingênuo... A ‘fessora já abriu o jogo comigo...
PAULO
Abriu, é? E disse o quê?
PEPÊ
Que vocês já não estavam se dando bem... Que você até já
tinha saído de casa... E também que lhe propôs um acordo
para que voltasse a morar aqui...
pág.: 21
Utopia
Sebastião Bicalho
PAULO
E ela disse também quais foram as bases desse acordo?
PEPÊ
Olha... Eu tenho de reconhecer a coragem da ‘fessora... Ela
me deixou totalmente sem chão... Disse que ficou cheia de
tesão por mim desde quando me conheceu e que não via a hora
de me pegar de jeito... Disse também que eu não conseguia
esconder a minha excessiva admiração por você, e que por
isso, achava que eu fosse gay... E pra finalizar, falou que
havia um jeito de todo mundo ficar feliz nessa história...
A princípio eu fiquei chocado com tanta ousadia e
determinação, mas depois... fui ficando curioso pra ver até
onde aquilo ia chegar... Ela então me disse que, se eu
viesse pra cá, poderia ficar mais perto de você e até, quem
sabe, conquistar um pouco mais além do que apenas sua
atenção...
PAULO
Você é mesmo gay?
PEPÊ
(ri com expressão de deboche) Se eu estou aqui, se eu
aceitei esse acordo, o que você acha?
PAULO
(fica cabisbaixo e em silêncio durante alguns instantes)
Você realmente acha que é possível ser feliz desse jeito?
PEPÊ
Lá vem de novo o velho assunto da felicidade... Quem foi
que disse que “tem horas que a gente opta por ser um
pouquinho infeliz na esperança de ser feliz completamente,
mesmo que seja apenas por alguns momentos”?
PAULO
(sorri contrafeito) A teoria muitas vezes não tem nada a
ver com a prática...
A partir deste ponto, Pepê começa a se insinuar um
pouco mais, tentando seduzir o professor.
PEPÊ
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Utopia
Sebastião Bicalho
Numa coisa ela está certa... não custa nada experimentar...
abrir mão de certos preconceitos e tentar ser feliz com o
que a vida nos oferece... (aproxima-se de Paulo, que ainda
está cabisbaixo; Paulo se esquiva e se coloca de costas
para Pepê)... Por que você não se entrega um pouco e vive
um momento especial, diferente? Que me importa o rótulo que
isso tenha? O que sei é que quero ficar junto de você a
toda hora... Por isso, se eu não puder ter você inteiro, me
contento em ficar apenas com uma parte...
PAULO
(balança a cabeça negativamente) Você não sabe o que está
dizendo... Na sua idade a gente se apaixona à toa por todo
mundo... Isso pode ser uma carência sua... Falta de pai, de
uma referência masculina na infância, sei lá...
PEPÊ
Não sei... Que seja, então... A última coisa que quero
agora é discutir as causas e os porquês... não me interessa
Freud nem Lacan... Toda a psicanálise do mundo não vai me
provar que estou errado nem vai me consertar de algum
defeito... Sabe por quê?... Eu não vejo em mim defeito
nenhum... Simplesmente aceito esse sentimento bom que me
faz levantar todo dia com a impressão de que o mundo é
melhor porque você existe...
PAULO
(olha para Pepê, quase suplicando que ele pare de falar)
Por favor, não seja piegas... Isso não tem condições de dar
certo...
PEPÊ
(indo na direção do professor, que fica acuado) Eu não me
importo se você não me ama... A mim me basta te amar...
Pago o preço que for pra estar do seu lado, assim como você
também paga qualquer preço pra estar com a Ana e ela também
paga um preço alto para estar comigo... O meu preço é estar
com ela querendo estar com você... O preço dela é estar com
você querendo na verdade estar comigo... O que custa a você
ficar um pouco comigo, mesmo querendo ficar só com ela?
(depois de uma breve pausa, Pepê se inclina para dar um
beijo na boca de Paulo que, por sua vez, vira o rosto para
se esquivar)
pág.: 23
Utopia
Sebastião Bicalho
PAULO
(enfaticamente, embora vencido) Na boca, não!!
(pausa;
demonstra perturbação com a ousadia e desenvoltura do
rapaz)... Espera um pouco... Agora não... (Paulo dá um
abraço desajeitado em Pepê, mais para evitar o beijo do que
propriamente para se entregar a ele).
Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As
luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o
Black-out.
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Utopia
Sebastião Bicalho
CENA VI
Ao acender das luzes, Pepê está sentado ouvindo seu
Ipod. Ana chega em casa. Chama a atenção de Pepê,
parecendo não querer fazer barulho. Ele desliga o
aparelho e se dirige a ela.
ANA
(sussurrando) Chegou?
PEPÊ
(afirma com a cabeça) Tomou um banho e foi dormir...
ANA
E aí? Conversaram?
PEPÊ
E como!!
ANA
Como é que foi? Ele aceitou bem?
PEPÊ
Acho que ficou um pouco assustado, mas, no geral, reagiu
melhor do que eu pensava...
ANA
O Paulo é assim mesmo... A primeira reação dele é sempre
dizer não pra tudo... Mas com o tempo vai se acostumando
com a ideia...
PEPÊ
Tem horas que eu acho essa situação um tanto surreal...
Imagina então o Professor!! Ele vai precisar de um bom
tempo
pra
assimilar
tudo
isso...
Depois
que
nós
conversamos, até eu fiquei um pouco baqueado...
ANA
(irônica, abraça-o com muita intimidade; durante o tempo em
que permanecem abraçados, ele parece muito desconfortável)
Meu Deus, quanto amor... Olha que eu fico com ciúmes, hein?
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Utopia
Sebastião Bicalho
PEPÊ
De mim ou dele?
ANA
Claro que é de você, seu bobo! Eu te amo desde que te vi
pela primeira vez...
PEPÊ
O que é que você viu em mim?
ANA
Sei lá! Eu também não acreditava em amor à primeira vista,
mas aconteceu comigo... Desde que você entrou na minha sala
eu senti que tinha de ser meu... Aquele seu jeitinho
desprotegido... Esse seu rosto de anjo que caiu do céu por
ter feito alguma travessura proibida... Aquele ar de
abandono... Aonde quer que eu fosse, sua imagem não me saía
da cabeça...
PEPÊ
Você sabe que eu não posso corresponder ao que você espera
de mim...
ANA
Eu não me importo! Quem sabe um dia você mude de ideia...
PEPÊ
(irônico) É essa a sua esperança? Acho mais fácil você
voltar a se apaixonar pelo Professor...
ANA
O Paulo é passado... Pra falar a verdade, hoje ele é apenas
um intruso nesta casa... O Paulo só está aqui porque você
veio como brinde no pacote dele... (Pepê finalmente
consegue fugir do abraço)
PEPÊ
Puxa vida, ‘fessora... Como você é maquiavélica!
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ANA
Você não é menos maquiavélico do que eu... Sempre soube que
estávamos jogando... Aceitou ser um jogador porque acha que
também pode vencer... De certa forma, você tem muito a me
agradecer... (tenta novamente aproximar-se dele, mas o
rapaz foge)
PEPÊ
Você se acha muito dona da situação, não é? Mas em qualquer
jogo não é aconselhável subestimar os adversários, por mais
confiança que se tenha... Só no fim do jogo é que se sabe
quem perdeu e quem ganhou...
ANA
Que dramático o meu garotinho... E quem disse que em todos
os jogos os jogadores são adversários? Em muitos deles, os
jogadores são parceiros de brincadeira... E é isto que eu
espero que aconteça a nós três: uma grande e prazerosa
diversão...
PEPÊ
Você me assusta, ‘fessora! Às vezes, eu me sinto como um
fantoche em suas mãos...
ANA
Sabe que me chamando de ‘fessora você fica ainda mais
bonitinho? Vem cá, vem meu fantochinho... Dá um amasso aqui
na ‘fessora... (ela tenta uma nova aproximação)
PEPÊ
(ele se esquiva novamente) Ana, peraí... falando sério...
não me dificulta as coisas... Você mesma sabe que o meu
negócio é outro... eu não curto mulher... se ainda por cima
você me tratar como um debiloide, aí é que não vai rolar
nada mesmo... Ok, eu aceitei o seu jogo e tudo mais...
Porém, se você não ajudar, vai ficar difícil...
ANA
Tudo bem, já entendi... Então, vem cá... (aproxima-se dele,
querendo um beijo)
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Utopia
Sebastião Bicalho
PEPÊ
(vira o rosto) Na boca, não!!
não... Pelo menos agora não...
(pausa)... Na boca ainda
Os dois permanecem abraçados por alguns instantes. As
luzes vão diminuindo gradativamente sobre eles até o
Black-out.
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Sebastião Bicalho
CENA VII
Apenas três focos estão acesos como se fossem os
vértices de um triângulo equilátero. Um a um, os
personagens vão entrando em cena, cada qual se
dirigindo para um foco diferente do outro. Eles estão
cobertos apenas por um lençol branco. Seus semblantes
estão sombrios, num misto de tristeza e decepção. Os
atores não contracenam entre si. Olham para o vazio,
na
direção
da
plateia,
como
se
estivessem
contracenando com ela; partilhando com ela seus
segredos.
ANA
(foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro)
Hoje eu cismei de ter saudades... Uma nostalgia imensa de
algo que nunca mais vai me acontecer... Me lembrei do tempo
em que acreditava em príncipes encantados... das paixões
que eu teria... Esperar pela paixão era mais fascinante do
que propriamente encontrá-la... No fundo, acho que tinha
medo de descobrir que a paixão não seria tão intensa quanto
a
expectativa
de
me
apaixonar...
Eu
esperava
um
acontecimento... uma apoteose... a confirmação de que o
amor resolveria todos os problemas ou os tornaria
completamente irrelevantes... Hoje eu tive saudades de
luas, estrelas e pores-do-sol... De uns tempos pra cá não
os tenho mais visto... Ou por outra, até vejo, mas não os
percebo mais como antigamente... Meus olhos não registram
mais nada... apenas veem imagens desfocadas de prazer,
embaçadas de desilusão... Definitivamente, eu olho mas não
vejo como antigamente... Eu acho que é por isso que senti
saudades... Na verdade, senti saudades da parte de mim que
olhava e enxergava as coisas... que percebia as texturas,
os brilhos e contrastes... hoje, tudo me aparece em cor
sépia... como os retratos de antigamente... Hoje eu cismei
de ter saudades... e uma irresistível vontade de recuperar
tudo que eu nunca tive... Chorei muito... A saudade
passou... Mas eu tenho medo de que ela volte com mais força
ainda...
PEPÊ
(foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro)
Eu não cheguei a conhecer meu pai... Acho que por isso me
apeguei tanto a minha mãe... Quando ela morreu, eu estava
brigado com ela... Já fazia mais ou menos um mês que a
gente não se falava... Eu era adolescente... Na verdade,
acho que ainda continuo sendo... Sabe como é... Estava
naquela fase de ser rebelde e respondão por nada... Tudo
começou quando ela achou debaixo do meu colchão umas
revistas de homem pelado... Eu estava começando a descobrir
a minha sexualidade... Quando cheguei em casa naquele dia,
pág.: 29
Utopia
Sebastião Bicalho
enxerguei mamãe sentada na minha cama folheando aquilo...
Senti tanta vergonha que fiquei até paralisado, sem
conseguir entrar no quarto... Quando ela percebeu minha
presença, olhou pra mim com um semblante enigmático... Eu
não sabia se era decepção, se era compaixão, embaraço ou
qualquer outro sentimento... Só sei é que tive uma
necessidade enorme de me defender, como se minha intimidade
fosse um campo de batalha prestes a ser conquistado pelo
inimigo... Comecei a despejar sobre ela um discurso
interminável e furioso, cheio de baboseiras e exigências de
respeito à privacidade... Sem esperar resposta, decretei
que nossas relações estavam rompidas até que minha raiva
houvesse passado... Ela sempre me paparicou... Já viu, né?
Filho único, sem pai... E eu sempre me aproveitava dos
mimos que ela me fazia... Minha mãe sempre foi muito
depressiva... Vivia se culpando por eu não ter tido um pai
dentro de casa... E dizem que ela nunca superou o fato de
ter sido abandonada com um recém-nascido... Pobrezinha!
Morreu atropelada... Algumas pessoas disseram que foi ela
que se jogou na frente do ônibus... Prefiro achar que não
foi assim... Fica mais fácil levar a vida adiante... Só sei
é que eu amava demais a minha mãe... Não me conformo de não
ter tido tempo de dizer isso antes de ela morrer... Acho
que esse remorso vai me corroer pro resto da vida... É por
isso que desde então não me permito deixar qualquer tipo de
amor escapar de novo entre os dedos... Só dá pra amar no
agora... O amor de ontem já se foi... Se não foi vivido,
perdeu-se... Só deixa um rastro amargo de arrependimento...
Olho pra trás e não vejo nada que tenha valido a pena...
Deve ser por isso que não sei o que é saudade... Não tem
nada no passado que me faça querer voltar a fita e rever a
cena... Por isso, acho que tenho saudade é do futuro... É!
Isso mesmo! Saudade de algo que ainda não vivi, mas que
deveria... Acho que essa ânsia de experimentar o ainda não
vivido é que me leva a enfrentar o desconhecido, às vezes,
de uma forma imprudente... Que eu erre, e daí? Só pode se
considerar um fracasso quem nunca buscou o sucesso... Tem
gente que não se arrisca... Prefere ser infeliz na sombra
do agora com a esperança de ser feliz depois... Eu prefiro
me arriscar a ser feliz agora porque depois... Quem sabe se
vai ter um depois?
PAULO
(foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro)
Eu também tenho saudades... Me lembro do tempo em que vivia
nas ruas soltando pipas com os amigos de infância... Os
olhos grudados naquele quadrado colorido, admirando o seu
gingado no céu, e um rabo de olho nos meninos que ameaçavam
o seu voo solitário... A segurança de continuar na posse da
pipa residia apenas na frágil linha recoberta com uma
pág.: 30
Utopia
Sebastião Bicalho
mistura de cola e vidro moído... Que ansiedade ao ver a
ameaça de outra pipa vindo em direção à minha! E quando as
linhas se entrecruzavam na disputa pela supremacia dos
céus!? Júbilo completo se a linha partida era a do rival...
Entretanto, quando era minha a linha rompida, avassalava-me
um desespero cortante... A perspectiva de perder o objeto
fabricado com tanto sacrifício e desvelo... A angústia de
vê-lo derrotado, ziguezagueando sem sustentação em queda
livre... E a corrida alucinada em direção ao lugar provável
de sua aterrissagem, onde ainda teria de disputá-lo a tapas
com o resto da meninada em alvoroço... Eu também tenho
saudades... Quem dera o céu todo estivesse reservado apenas
ao voo da minha pipa...
ANA
(foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro) O
que eu sinto às vezes é um cansaço... Cansaço das coisas
todas... Ou seria tédio a palavra certa?... Não, não, também
não é tédio... É um sentimento oco, indefinível... É mais
para uma ausência de sentimento... uma anestesia geral e
incômoda na alma... Às vezes chego a pensar que a dor...
uma dor qualquer... ainda seria preferível... Pelo menos a
dor seria alguma coisa e não esse vácuo espantoso onde nem
mesmo um tímido raio de luz se propaga... É tão estranho...
Os meus sentidos me traem... O que penso ver se transforma
em nada... Tudo que escuto é um silêncio só... Tudo que
pego se esvanece e tudo que me toca não me sensibiliza...
Acho que é por isso que busco a exaltação de tudo o que me
cerca, a começar pelo prazer... eu preciso gozar ao
extremo... quem sabe assim eu consiga o gozo mínimo?!... Na
verdade, eu não quero usar ninguém... Eu só quero me sentir
viva... O que eu não posso é perder a esperança de que
existe alguma coisa além desse vazio...
PEPÊ
(foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro)
Eu ouço falar tanto em liberdade... Mas confesso que nunca
entendi direito o que é isso... Liberdade é a gente fazer o
que quer sem ligar para o que os outros pensam? Se for
isso, acho que sou livre... Mas, então, ser livre não tem
graça nenhuma... Por isso desconfio que liberdade deve ser
outra coisa... Afinal de contas, todo mundo fala dela com
tanta veneração e reverência... Deve ser uma coisa muito
boa, bem diferente do que experimento... Eu deveria vibrar
por me sentir livre, mas não... Por mais que faça o que
quero e ninguém me impeça, menos livre me sinto... Porque,
no fundo, apenas faço algo que não consigo deixar de
fazer... Minha liberdade é limitada à compulsão de fazer
coisas contrárias à minha vontade... Não consigo fazer o
pág.: 31
Utopia
Sebastião Bicalho
que quero... mas o que não quero, isso faço a toda hora...
Então, por mais que seja livre no fazer, acabo prisioneiro
de uma ação que não consigo refrear... como alguém que
reconhece o mal de um vício mas não tem forças pra vencêlo... a liberdade de me viciar em alguém exige que eu seja
prisioneiro de uma situação indesejada... E acho que não
sou o único...
PAULO
(foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro)
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”... Eu também não tenho
resposta
para
a
pergunta
machadiana...
Aliás,
quem
teria?... Mudar é uma ciência tão complexa... Quando a
mudança é voluntária, o que nos move é a expectativa do
sabor novo que uma provável conquista promete... Mas, e
quando a mudança nos é imposta? Quando vemos que a
alternativa de não mudar é muito mais catastrófica do que
mudar de qualquer jeito?... Quando temos de mudar por
impulso, sem muito tempo para refletir, apenas por um
reflexo ou pelo instinto de sobrevivência frente a uma
tragédia iminente? Quem pode julgar o que é certo ou errado
quando esses dois conceitos se fundem tão fortemente a
ponto de parecerem indistintos? Nesse caso, mudamos à
força... não pelo desejo de mudar, mas por uma irônica
vontade de permanecer os mesmos... pela ilusão de que a
mudança congelará o tempo em que fomos felizes... assim
como se congelam no tempo os sorrisos de retratos...
fugazes instantes em que nossas poses se eternizam num
mundo paralelo de faces eternamente jovens... um mundo que
sempre existiu em nossas ilusões... e que por isso mesmo,
muito provavelmente, nunca tenha havido...
ANA
(foco apenas em Ana, os outros dois permanecem no escuro)
Não, minto... Não é bem verdade que eu não sinta nada...
Pensando bem, até que sinto sim... É uma espécie de amor
adoecido... numa espera angustiosa de uma convalescência
que parece eterna... Deve ser isso que me dá todo esse
cansaço... Meu amor é meio saúde, meio doença... A parte
saudável quer exercer seu vigor com alguém que a repele...
A parte frágil se rende à infecção de um amor que não mais
deseja, tornando-se, a cada dia, mais adoentada... É isso
mesmo! Eu não passo de uma doente terminal... Por isso é
que às vezes me vem a certeza de uma inevitável morte
emocional... Então, agarro-me à ilusão de que me prostituir
com quem já não amo me garantirá um amor que no fundo me
desdenha... Eu já não sinto mais nada... Será que o amor é
uma utopia?
pág.: 32
Utopia
Sebastião Bicalho
PEPÊ
(foco apenas em Pepê, os outros dois permanecem no escuro)
Sei que ainda é muito cedo pra desistir... Por isso
continuo seguindo em frente, mesmo sem saber direito pra
onde estou indo... Parar no meio da estrada me parece uma
alternativa pior... Não... pra ser sincero, acho que não
paro mais por medo do que propriamente por falta de
opção... E é tão irracional esse medo (como de resto são
quase todos os medos)... Vê só! Como é possível ter medo de
perder alguma coisa que nunca foi sua?... Se bem que o amor
que a gente sente é só nosso... parece que está dentro do
coração e nem precisa ser correspondido para continuar
ali... vivo, vibrante, concreto... Eu sempre fui muito
autoconfiante... senhor dos meus próprios sentimentos...
Mas agora me sinto fraco... dependente do olhar alheio...
carente da admiração de quem amo... por mais atenções que
receba de quem não me interessa, mais desejo as de quem
luto para conquistar... o que recebo de quem amo é
complacência... uma atitude condescendente de quem se
resigna a olhar pro meu lado... não para me ver... mas para
evitar o constrangimento de tropeçar em mim... Dou migalhas
a quem não amo na esperança de me fartar com as sobras que
caem da mesa de quem verdadeiramente quero... Sei que isso
é muito pouco... Sei que mereço mais... Mas, mesmo assim,
me convenço de que ainda não é hora de desistir... E por
isso sigo em frente, mesmo sem saber aonde vou chegar...
Será que o amor é uma utopia?
PAULO
(foco apenas em Paulo, os outros dois permanecem no escuro)
Será que o amor é uma utopia?
Paulo levanta-se, enquanto, vindas do escuro, ouvem-se
as vozes de Ana e Pepê repetindo a mesma pergunta:
“Será que o amor é uma utopia?”. Paulo repete com eles
a mesma pergunta, que é feita de modo desencontrado,
ou seja, ao acaso, sem a preocupação de ordem entre os
personagens nem se um começa a falar enquanto o outro
ainda está no meio da fala. O foco de Paulo se apaga e
um quarto foco se acende, bem tênue, no centro do
palco. Para ele se encaminham os três personagens,
todos
ainda
repetindo
a
pergunta
de
forma
desencontrada. Ao chegarem ao foco central, cada um
parece não enxergar os outros dois, embora os três
comecem a formar uma espécie de pirâmide em que se
aninham de um jeito íntimo e sensual. Na “escultura”
formada pelos personagens, deve estar visível a
ligação intensa entre eles e, ao mesmo tempo, um certo
alheamento. Depois de montada a “pirâmide”, ainda por
algum tempo repetem incessante e descoordenadamente a
pergunta “Será que o amor é uma utopia?”, como se ela
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Utopia
Sebastião Bicalho
fosse uma ideia fixa, uma reflexão para a qual não se
acha resposta. De repente, todos se calam. Faz-se um
silêncio por breves instantes, suficiente para causar
apenas um certo suspense. Após essa pequena pausa, a
luz sobre eles se intensifica subitamente e os três
repetem a uma só voz, de forma sincronizada: “Será que
o amor é uma utopia?”. Imediatamente após o término da
pergunta, o foco se apaga.
FIM
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UTOPIA Peça teatral de Sebastião Bicalho