POLÍTICA EXTERIOR RELACIONADA COM O IRÃ:
Diferenças entre a visão americana e a brasileira.
Carlos Jorge Sampaio Costa1
Dois artigos importantes publicados no New York Times foram recentemente
traduzidos e divulgados pelo Estado de São Paulo. O primeiro, de Henry Kissinger, publicado
no Estadão de 3 de abril último, resume perfeitamente os três principais objetivos de
segurança da política americana que têm sido seguidos no Oriente Médio: uma das metas
estratégicas claras, que a Henry Kissinger ocorreu mencionar em segundo lugar, é um alvo
de segurança mundial que interessa a todo o planeta civilizado, ou seja, o de garantir o livre
fluxo de recursos energéticos vitais para a economia mundial. Essa meta estratégica é
compartilhada por todos os países responsáveis da comunidade internacional e é o escopo
estratégico no Oriente Médio mais importante para nações como os EUA, a UE, a China, a
Rússia, a Índia, e o Brasil. É essencial não ignorar que dentro desse objetivo estratégico há
interesses significativos das grandes empresas de petróleo e outras multinacionais que
atuam ou querem atuar na região e são ligadas umbilicalmente à superpotência americana
e a seus sócios menores da Europa. Aqui convém lembrar que a Petrobras e outras
empresas brasileiras menores também têm interesses na área, que não devem ser
ignoradas pelo governo brasileiro.
Ocorre que os EUA têm outros dois objetivos na região que não dizem respeito a
países asiáticos e que importam mais à cultura ocidental por motivos históricos e
sociopolíticos que se originam em crônicas milenares. O primeiro objetivo citado por Henry
Kissinger, antes mesmo de mencionar a necessidade de garantir o livre comércio do
petróleo, é o de impedir que qualquer potência (com exceção dos EUA, é claro) tenha
hegemonia na região. A antiga máxima romana, dividir para dominar, aplicada tão bem por
todos os impérios, inclusive pelo Britânico em todo o mundo e até na Europa, é
explicitamente abraçado pelos EUA. Na realidade, o que os EUA querem dizer ao mundo é o
seguinte: queremos o fluxo comercial de petróleo normal no Oriente Médio, mas controlado
por nós. Esse objetivo estratégico americano é menos popular na comunidade internacional
por motivos óbvios, embora haja consenso de que é melhor que os EUA controlem o
comércio na Ásia Menor do que a região ficar exposta ao caos ou refém de uma potência
irresponsável.
A terceira meta estratégica dos EUA em territórios árabes é, segundo Kissinger, uma
paz durável entre Israel e seus vizinhos. Aqui há que compreender que entre cristãos,
israelitas e muçulmanos, existe uma história milenar de ódios, guerras, mitos e
perseguições que não pode ser apagada da memória das etnias envolvidas com facilidade. É
certo que a hegemonia dos EUA na região ajuda a sobrevivência de Israel e, portanto,
garante o veto de que se levante na área uma potência de grande ou médio porte que lidere
o povo árabe ainda inconformado com a existência do Estado israelita, o qual voltou a
ocupar territórios palestinos após quase dois mil anos de ausência. Ainda falta à
Comunidade
Internacional,
liderada
pela
civilização
judaico-cristã,
convencer
completamente os povos muçulmanos de que a decisão das Nações Unidas, de criar o
Estado de Israel, é irreversível porque assim o quiseram e querem as nações do planeta e
1
Membro da Comissão Permanente de Direito Internacional do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-Procurador
da Fazenda Nacional. Ex-Advogado Principal de BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Fellow da
Universidade de Harvard. Professor da Universidade Cândido Mendes.
1
porque a existência desse novo Estado é um imperativo categórico dentro de nossa
civilização ocidental, que ainda participa com primazia na Comunidade Internacional.
Dentro desse contexto surge o Irã com a possibilidade de liderar o mundo
muçulmano e adquirir armas atômicas. O Irã, segundo Samuel Huntington, por falar uma
língua diferente, tem dificuldades de estabelecer uma hegemonia entre os povos
muçulmanos. Não ignoremos que os turcos, que também são muçulmanos não árabes,
dominaram os povos árabes com conquistas a ferro e fogo. Há que reconhecer, no entanto,
que a dificuldade de unir os árabes sob a liderança do Irã não se dá somente por causa do
idioma. Recordemos que o povo iraniano tem uma etnia totalmente distinta da do povo
árabe. Também a divisão entre xiitas e sunitas e o estado tribal de muitas comunidades do
oriente médio impedem o surgimento de unificações lideradas por quem quer que seja. As
condições que permitiram o surgimento do Império Otomano não mais existem. Todavia,
mesmo assim, assusta os EUA e a Europa um Irã hostil ao Ocidente e nuclearizado.
Aparentemente, um Irã com armas nucleares ou com a possibilidade de ter armas nucleares
seria inaceitável para o Ocidente. Seria um passo para o Irã tornar-se hegemônico na
região. Segundo alguns, passaria a ser uma ameaça ao Estado de Israel, embora não seja
segredo que os israelenses já possuem armas nucleares. Parece que os EUA e Israel
estariam dispostos até a ir a guerra contra o Irã para evitar que a antiga Pérsia ressurja
como uma média potência islâmica. Obviamente essa guerra levaria o mundo ao risco de
uma ruptura dos mercados mundiais de petróleo. Ao
Brasil e aos demais países
emergentes, essa guerra seria extremamente danosa a seus interesses, já que afastaria a
viabilidade de uma recuperação da economia mundial a médio ou longo prazo, para não
falar dos mortos, feridos e desabrigados.
O segundo artigo publicado no Estadão, que chamou a atenção dos interessados em
política internacional no Brasil, pareceu-me de propósitos esquisitos. Trata-se do texto de
Bernard Aronson, Ex-Secretário de Estado Adjunto dos Estados Unidos para assuntos
interamericanos no período do primeiro Bush. Propõe o articulista do New York Times que o
Brasil simplesmente ponha fim voluntariamente ao seu programa de enriquecimento de
urânio e passe a insistir que outras nações, inclusive o Irã, façam o mesmo. Ou seja, sem
mais nem menos, Mr. Aronson sugere que façamos uma meia volta de 180º em nossa
política externa. O autor reconhece que o Brasil tem sido um líder da não proliferação, já
que em 2001 pôs suas usinas nucleares à disposição da Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA) e aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Já em 2004, o Brasil
(não por acaso detentor de expressiva reserva de urânio), proclamou que todos os Estados
soberanos têm o direito inalienável de enriquecer urânio para fins pacíficos. Claro, é público
e notório que nessa época o Brasil construía uma usina de enriquecimento de urânio tendo
confrontado a AIEA antes de autorizar a inspeção da agência. O TNP vigente autoriza os
países que o adeririam a produzir urânio enriquecido para seus reatores de pesquisa com
fins pacíficos, assim como autoriza o armazenamento do combustível radioativo e o
reprocessamento do combustível já usado, sempre que a AIEA inspecione as respectivas
instalações.
É óbvio que as usinas nucleares para fins pacíficos podem ser usadas para
enriquecer urânio destinado a fabricação de armas nucleares e, como corrobora o próprio
Bernard Aroson, o combustível reprocessado dos reatores com fins pacíficos produz
plutônio, que pode ser usado para bombas atômicas. Assim, o articulista do New York
Times, o qual exerceu função diplomática importante nos EUA, sugere que o Brasil renuncie
sua soberania e abandone seu direito de enriquecer urânio em nome da paz. Propõe que o
Brasil feche suas usinas de enriquecimento! e acolha uma antiga proposta das Nações
Unidas para somente aceitar urânio enriquecido da AIEA. Propõe ainda que o Brasil se
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autolimite para que aquela agência da ONU e somente ela cuide de seu combustível usado.
Isto é, sugere que nosso país aceite a mesma proposta que está a ser apresentada ao Irã.
Insiste Mr. Aroson que o Brasil lidere um movimento para que as outras nações que
assinaram o TNP façam o mesmo.
Vê-se claramente assim, que há setores da opinião pública americana que desejam
deixar países emergentes como o Brasil reféns em matéria de tecnologia de outras nações,
preferencialmente dos EUA ou de seus aliados, que detém a tecnologia nuclear.
Obviamente, a proposta de Bernard Aronson é inaceitável para o Brasil, mas
continua repetida por políticos republicanos conservadores dos EUA, como a deputada
federal pelo Estado da Flórida, Ileana Ros-Lehtinen, que solicitou ao Presidente Obama para
que não deixasse de abordar com a Presidente Dilma, em sua recente visita oficial aos EUA,
uma série de políticas do governo brasileiro que contrariam diretamente os interesses
americanos, mormente nossa posição em relação à Cuba, nosso reconhecimento do Estado
Palestino e nossa rejeição de ampliar as sanções contra os governos da Síria e do Irã.
Ora, resta patente que os interesses do Brasil no Oriente Médio não coincidem
inteiramente com a estratégia dos EUA na região. Compartilhamos, é verdade, a meta da
necessidade de que o fluxo do comércio de petróleo na área continue livre. Mas para nós
esse objetivo estratégico é o principal. Não compartilhamos da obsessão americanoisraelense de que não surja uma potência hegemônica entre os muçulmanos. Cremos que a
paz na região passa predominantemente por canais diplomáticos. O Brasil é e deve
continuar a ser contra uma guerra no Irã e contra qualquer intervenção militar em qualquer
país do Oriente Médio ou de outra região do planeta. A nossa tradição diplomática continua
sendo a defesa da autodeterminação das nações e do princípio da não intervenção.
Por outro lado, não podemos aceitar a proposta de que somos uma potência menor,
incapaz, que necessite de tutela. Não podemos renunciar ao direito inalienável de possuir
instalações nucleares para fins pacíficos. Os EUA, como nação altiva que sempre foi,
também não renunciaria a esse direito. Na realidade mantém as armas nucleares mais
poderosas do mundo. Cremos que o Irã, como qualquer nação independente, tem o direito
de enriquecer urânio para fins pacíficos, desde que ponha suas usinas nucleares à
disposição da AIEA para inspeções, como exige o TNP.
O fato de o Irã no momento ser governado por uma espécie de ditadura teocrática e
periodicamente profira bravatas e intimidações ao Estado de Israel e ao mundo é
irrelevante, já que não tem a menor condição de ameaçar Israel, este uma potência nuclear
não signatária do TNP. Não ameaça também a Arábia Saudita ou qualquer outro país. Uma
agressão do Irã a quem quer que seja seria uma ação suicida por ser intolerável aos
Estados Unidos e o Irã sabe disso.
Assim, a posição do Brasil deve continuar coerente com seu discurso na Cúpula
sobre Segurança Nuclear em Seul, de março deste ano, na qual defendemos, sob a
liderança do Vice-presidente Michel Temer, o direito dos países soberanos, inclusive o Irã,
de possuírem instalações nucleares para fins pacíficos, desde que sob controle da AIEA.
8 de março de 2012
O texto publicado não reflete necessariamente o posicionamento do IAB
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política exterior relacionada com o irã