ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007
A HORA DA ESTRELA E UMA VIDA EM SEGREDO: OBRAS CONTEMPORÂNEAS
QUE DIALOGAM COM O MODERNISMO, CONFIGURANDO NARRADORES
MASCULINOS QUE FALAM POR PERSONAGENS EXCLUÍDAS.
Ana Karoliny Teixeira da COSTA (UFGD)
Bruna Cardoso SOARES (UFGD)
A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector e Uma Vida em Segredo (1964), de Autran
Dourado, são obras que de certa forma dialogam com o Modernismo literário brasileiro.
Ambas configuram narradores masculinos que falam por personagens excluídas. Tal exclusão
pode ser verificada predominantemente no fato de essas personagens serem migrantes e
mulheres. Essa relação existente entre o intelectual e a personagem excluída é uma
característica típica do referido Modernismo, no qual o intelectual se coloca como porta-voz
dos excluídos, sendo este homem ou mulher, branco, negro ou índio (dentre outros), podendo
falar por/sobre eles sem maiores problemas. Na contemporaneidade, esse narrador que fala
pelo excluído entra em crise, com o definhamento da chamada Tradição Republicana, que
teve no Modernismo um de seus divulgadores. Nesse quadro conceitual, nosso objeto será
verificar em que medida esses narradores contemporâneos operam usando procedimentos
narrativos do modernismo para, além disso, verificar se há neles procedimentos narrativos
novos. Pretendemos, ao lado disso, relatar as reflexões preliminares das nossas pesquisas de
PIBIC feitas junto ao projeto “Fronteiras da Literatura Brasileira contemporânea”, do prof. Dr.
Rogério Silva Pereira (FACALE/UFGD).
INTRODUÇÃO
A saber, A Hora da Estrela – AHE – (1977) de Clarice Lispector e Uma Vida em
Segredo – UVS – (1964) de Autran Dourado são obras contemporâneas, as quais serão
abordadas, em um trabalho comparativo com a obra Vidas Secas – VS – (1938) de Graciliano
Ramos, em que a mesma se enquadra no período modernista. Dessa forma, buscamos
contribuir para formação das fronteiras – que ainda são imprecisas – as "fronteiras" entre o
modernismo e o contemporâneo, visando à abordagem de elementos que comprovem o
diálogo existente entre esses períodos.
1. MODERNO:
Segundo Fredric Jameson, a modernidade diz respeito à fase da história da humanidade,
enquanto o modernismo é uma forma de cultura típica da modernidade. Neste contexto
entende-se que a estética modernista é uma reação à modernidade o qual tem por finalidade
“chocar”, incomodar as pessoas deste período, explorando a condição do “feio”. Como se
observa em VS:
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, trazia nos dentes um preá.
Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras,
afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o
focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
(RAMOS, 1994, p.14).
Ainda no raciocínio de Jameson, as obras modernistas possuem profundidade, ou seja,
adquirem uma historicidade, a exemplo de VS, que sabemos de onde os personagens vieram, a
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partir do capítulo Mudança, esta parte da obra conta o momento em que esses personagens
saíram de sua terra em busca de um lugar melhor para se viver; a historicidade também se faz
presente no capítulo Fuga, pois sabemos para onde vão, este capítulo relata o momento em
que os personagens fogem da seca que se encontra no lugar, o qual acreditavam ser o que
buscavam, e vão à procura de seus “sonhos” – o tão desejado lugar para viver.
O modernismo encontrava-se num momento em que a Tradição Republicana – TR –
mantinha-se vigente, e trazia como característica para dentro da literatura a tentativa de
inclusão do marginal, com o objetivo de posteriormente incluí-lo na sociedade. Este
“marginal” era aquele que:
(...) por definição não tem voz política – mas não só. Sua marginalidade diz
respeito a uma gama ampla: ele está também fora dos circuitos de troca da
sociedade republicana e capitalista. Sobretudo dos circuitos de trocas materiais e
culturais. (PEREIRA, 2005).
Nessas condições o narrador moderno é "(...) um incluído: o intelectual republicano”
(PEREIRA, 2005), aquele que é capaz de falar sobre as condições da exclusão pela qual passa
o "marginal", "Tomando consciência dessa exclusão do outro, esse intelectual formula-o num
discurso de inclusão" (PEREIRA, 2005).
Lançando mão das palavras de Candido: “(...) seu criador e narrador são a mesma
pessoa” (CANDIDO, 1998, p. 63-4), percebe-se que, ao tentar fazer uma “boa ação”, o
narrador transforma seus personagens em objetos, no jogo de manipulação, pois tem o poder
para decidir o que deve ser dito, feito e até mesmo pensado pelos seus personagens, como
melhor lhe convier. Um bom exemplo do que se fala é um trecho do capítulo Sinhá Vitória em
que o narrador tem total controle sobre os pensamentos desta personagem “Agora pensava
nela [cama] de mal humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da casa”.
(RAMOS, 1994, p. 41).
2. CONTEMPORÂNEO:
Ao contrário do que existe no modernismo, segundo Fredric Jameson, o contemporâneo
não surgi mais com a intenção de “chocar” ou incomodar as pessoas, tudo é visto com
naturalidade, fazendo disso uma diferença entre os dois períodos, o que contribui para
pensarmos em uma quebra, uma vez que não há um pensamento contínuo da época moderna.
Expondo uma obra de caráter superficial.
O narrador contemporâneo não acredita mais nas ideologias de inclusão social provinda
da literatura – inscrito no momento de crise da TR – de forma a perder sua condição de
domínio do personagem ao longo da narração. Como por exemplo, no trecho:
Agora não é confortável: para falar da moça [Macabéa] tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de
pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha
rasgada. Tudo isso para me por no lugar da nordestina. (LISPECTOR, 1998,
p.19).
Dentro deste contexto, é que sugerimos o diálogo existente entre as obras modernas e
contemporâneas, isso ocorre porque as fronteiras entre esses os dois períodos não estão
devidamente delimitadas, como sugere Pereira em seu projeto “Fronteiras da Literatura
Brasileira Contemporânea” (FLBC):
(...) faltava um marco que não fosse o meramente cronológico. Era um recurso
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muito superficial: quase senso comum. Por outro lado, faltava também um marco
que não fosse ou meramente sócio histórico. Nesse caso, parecia que o fenômeno
literário vinha atrelado como senso de uma mera derivação da vida histórica (...)
(Cf. FLBC, 2006).
Assim, podemos observar que há diálogo entre as obras já mencionadas. Como
podemos constatar em UVS, que embora seja considerada uma obra contemporânea, apresenta
aspectos modernistas. A título de exemplo, tem-se um intelectual que fala por uma excluída
sem apresentar “desconforto” ao falar por esta:
(...) como sempre sentada na canastra que lhe lembrava a vida de antigamente.
Cansada de ruminar sem fim as mesmas lembranças, agora ela não pensava
precisamente em coisa nenhuma (...). Muitas vezes se perdia assim naquelas
ausências, naquelas lerdezas. (DOURADO, 1964, p.56).
Em AHE, Clarice pretende mostrar uma obra contemporânea, através da crítica –
enquanto incorporada em Rodrigo S.M. – aos escritores que a antecede, sobre a possibilidade
de não se falar mais por uma excluída. No entanto, mesmo fugindo a esta característica
modernista, ela acaba falando por Macabéa, elaborando dessa forma um diálogo com o
passado – Modernismo.
3. NARRADOR:
(...) a pessoa que fala [narrador] e seu discurso constituem o objeto que especifica
o romance, criando a originalidade deste gênero. (...) Sua ação é sempre
iluminada ideologicamente. (BAKHTIN, 1993, p. 135-6).
Essa ideologia – de falar pelo excluído – é arraigada de preconceito, pois como o
próprio Bakhtin (BAKHTIN, 1993) propõe, ele é um “indiscreto”, visto que tenta denunciar
uma esfera à outra. Tal condição sugere um preconceito justamente porque o narrador,
enquanto pertencente à esfera da elite letrada, denuncia a esfera popular e não letrada, sem ao
menos ter estabelecido um contato direto com a mesma, criando personagens embasados em
preconceitos criados pela sociedade em que vive – burguesa.
Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder capturar sua alma tenho
que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz
calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver
o mundo. (LISPECTOR, 1998, p. 22).
O trecho acima relata esse caso de preconceito, pois fica evidente a falta de condição
que este narrador apresenta ao falar por esta excluída, uma vez que está presente em um
ambiente totalmente controverso ao que está tentando representar, como é o caso de tomar
vinho, comer frutas e descrever casos de fome, miséria. O que contribui para criação de um
personagem marginalizado.
O romancista pode também não dar ao seu herói um discurso direto, pode limitarse apenas a descrever suas ações, mas nesta representação do autor, se ela for
fundamental e adequada, inevitavelmente ressoará junto com o discurso do autor
também o discurso de outrem, o discurso do próprio personagem. (BAKHTIN,
1993, p.137).
Tal fato pode ser encontrado nas três obras. Uma das explicações que se dá a essa falta
de discurso direto nas obras é causada pelo status de quem tem direito a fala, condição que
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não é oferecida aos personagens, visto que são excluídos socialmente. Mesmo quando é
necessário o uso de discurso direto, se faz por intermédio do narrador, processo que lhe
confere uma condição bivalente, ou seja, ao mesmo tempo em que marca uma distância ao dar
voz a seu personagem, o narrador também pode se aproximar e falar por este.
4. NARRADOR MODERNISTA:
No período modernista, tinha-se a utopia, palavra essa que vem do latim “u – topus” e
significa “não lugar ainda”, ou seja, lugar onde se sonha o que não veio ainda, foi pensado,
mas não realizado na sociedade. E a literatura modernista vem cumprir exatamente este papel,
tendo em vista que é nesta esfera onde projetamos, sem nos preocuparmos com sua realização
ou não. O narrador busca inscrever o excluído socialmente, para dentro da literatura e em um
segundo momento, para dentro da sociedade. Tal condição é considerada quixotiana porque
tem em seu seio um círculo vicioso de exclusão. Pois seguindo os pensamentos de Pereira,
nos deparamos com o seguinte diagrama: Um eu (narrador) fala a um tu (elite que tem
condições de comprar livros e é alfabetizada) sobre um ele (migrante “pobre” e analfabeto).
(Cf. PEREIRA, 2005).
Levando-se em consideração a teoria de Candido: “(...) porque o seu criador [autor;
intelectual] e narrador são [na maioria das vezes] a mesma pessoa.” (CANDIDO, 1998, p.
63-4). Justificamos o fato de que na década de 30, a cafeicultura e o laticínio entram em
decadência, e isso atingiu diretamente os intelectuais que eram filhos desses “senhores” donos
de terra. Esses filhos de burgueses eram na época, os jovens que haviam estudado no exterior:
advogados, médicos, entre outras profissões valorizadas da época. E com a falência de seus
pais, foram forçados a praticar um papel de mediador entre os excluídos "pobres" e a classe
burguesa, sendo esta uma forma de trabalho exercida para que não acabassem como
miseráveis. Dentro desse contexto é que esses intelectuais constituem-se como narradores
que:
(...) por excelência, talvez seja dominante no romance (...), o narrador impessoal,
pretensamente objetivo, que se comporta como um verdadeiro Deus, não só por
haver tirado os personagens do nada como pela onisciência de que é dotado.
(CANDIDO, 1998, p. 85-6).
5. NARRADOR CONTEMPORÂNEO:
A nova reflexão é uma tomada de partido contra a mentira da representação, e na
verdade contra o próprio narrador, que busca, como um atento comentador dos
acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva. A violação da forma é
inerente a seu próprio sentido. (ADORNO, 2003, p. 60).
Na contemporaneidade, o narrador perde a “utopia”, a mentira da representação, de
tentar incluir o marginalizado na literatura, para depois incluí-lo na sociedade. Por mais que o
narrador tentasse ser objetivo na descrição de seus personagens, arraigava a estes seus
preconceitos em um discurso subjetivo, revelando todo seu preconceito diante da classe
oprimida:
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama
num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam se quer que são
facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam.
(LISPECTOR, 1998, p.14).
E mesmo que esses narradores levantem críticas sobre o narrador moderno, que narra a
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condição do marginalizado, sem nada saber sobre a realidade dos mesmos (o excluído). Em
AHE, no momento em que Clarice levanta uma crítica aos narradores modernos, criando uma
expectativa de dúvida com relação à sua capacidade de poder falar ou não por uma
marginalizada (Macabéa), ela cria Rodrigo S.M., que passa a falar por Macabéa, produzindo,
dessa forma, um diálogo com o modernismo, pois inevitavelmente, Rodrigo S.M. conclui sua
narração. Dessa forma, AHE fala pelo oprimido tal como ocorre nas obras modernistas,
mesmo que no final da obra o narrador elimine a utopia com a morte de Macabéa, condição
que trataremos mais detalhadamente adiante, já era tarde demais a narração já havia sido
concluída
Este diálogo com o modernismo – a propriedade que o narrador tem para falar pelo
excluído – ainda pode ser observado com maior intensidade em UVS, em que é notável, ao
longo de toda narrativa, o quanto o narrador se sente seguro para falar por sua personagem –
Biela.
6. PERSONAGEM:
Candido diz: “A personagem é um ser fictício (...)” (CANDIDO, 1998, p.55), o que
produz um paradoxo entre o ser e o existir, pelo fato da palavra fictício encontrar-se em uma
condição de mera existência, que pode ser enquadrada na visão de mundo adâmico, visão esta
que sugere algo sem antecedentes, sem nome, sem historicidade, onde tudo se resuma a
palavra “isso”.
Essa noção pode referir-se também àquele oprimido que vive na sociedade, local onde
sua presença não passa de mera existência, ele não faz falta a ninguém. “Por que haviam de
perder tempo com uma pessoa [Biela] tão pequena e sem importância?” (DOURADO, 1964,
p. 87). Assim é que o narrador produz a verossimilhança existente entre essa personagem e o
oprimido socialmente, criando com isso uma semelhança com a realidade, pois tal como
exemplifica a obra, atualmente muitos são os excluídos que não faz falta a ninguém,
possuindo uma situação de pequena existência.
Dessa forma é que os seres (os intelectuais) se colocam no direito de poder falar pelos
existentes (os excluídos), elaborando um discurso que representa toda essa exclusão, no
entanto, mesmo falando sobre eles os nossos narradores continuam a deixá-los sem voz, pois
eles não possuem o domínio da fala.
7. RELAÇÃO NARRADOR / PERSONAGEM:
Ao analisarmos a relação que se estabelece entre narrador e personagem, observamos
uma gama de fatores que os ligam. Entre esses fatores, tem-se a hierarquia, que se organiza
numa relação entre sujeito (narrador) e objeto (personagem), entendo a palavra sujeito como o
poder de domínio que é concedido ao narrador sob o objeto, uma espécie de poder mor. Uma
vez que se pode notar que o personagem, nada mais é que uma criação coisificada para sugerir
e até mesmo, desvendar mistérios psicológicos e metafísicos da própria existência das
pessoas, como o autor Candido nos sugere. (Cf. Candido, 1998)
Lançando mão do exemplo de Gustavo Bernardo, poderíamos dizer que o ser humano
possui uma grande complexidade com relação ao desvendamento de mistérios de sua própria
existência. Isso se dá porque segundo o autor, a realidade não é precisa, esta pode sofrer
modificações ao longo dos anos. Bernardo compara a realidade à uma laranja, que por mais
que seja cortada, jamais conseguiremos enxergar o seu interior. Em contrapartida, surge neste
contexto, a ficção entendida como: “(...) não é exatamente a “coisa” em si, mas uma idéia que
dela nos aproximamos um pouco” (BERNARDO, 2005, p.13), esta condição de aproximação
é que faz da personagem, vista em sua constituição ficcional, como uma espécie de resposta
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aos problemas existenciais do ser humano. Pois, ainda se apropriando do raciocínio de
Bernardo, temos maiores condições para confirmar que Biela morreu em um hospital, na ala
de enfermaria geral, que afirmar, com a mesma propriedade, que Napoleão realmente morreu
em Santa Helena em 5 de maio de 1821. Tendo em vista que independente da época, todos
poderão chegar á mesma conclusão com relação á morte de Biela, ao contrário da morte de
Napoleão, que pode ser contestada futuramente, com o avanço dos estudos históricos.
Essa possibilidade oferecida ao homem de obter, mesmo que ilusoriamente, respostas.
Faz do narrador um grande manipulador da realidade. Ao se apoderar do poder mor, o
narrador coisifica sua interpretação sobre a realidade que o rodeia, em conjunto com
resultados de vivências e molda uma resposta sem lacunas, que é capaz de saciar as dúvidas
do ser humano – cria-se então o personagem.
Ainda é possível observar outra relação estabelecida entre narrador e personagem, que
se encontra nítida nas obras trabalhadas – a relação entre o falante e o mudo. Macabéa, Biela e
Sinhá Vitória são personagens representantes de uma classe social excluída, que durante o
desenrolar das histórias mostram não possuir menor domínio sobre a fala. Condição, muito
bem marcada por seus narradores, como empecilho para que consiguisse incorporar uma nova
classe social – a burguesa “Nas visitas, Biela sentava-se ao pé de prima Constança. Ficava
muito séria, atenta nas falas da prima, aprendia como é que as mulheres fazem quando se
visitam”. (DOURADO, 1964, p.61).
Mesmo quando é o caso em que se faz necessário a presença da voz do narrador,
geralmente é introduzido em discurso indireto livre. Esse cuidado que se tem em “selecionar”
quem tem direito a voz, não se trata de uma mera coincidência entre as obras, mas sim, de
uma organização pré-estabelecida. Pois se pararmos para analisar, veremos que o direito á voz
está diretamente ligado à divisão de classe social, visto que os personagens tidos como
representantes dos excluídos não sabem se comunicar com grande expressividade, e o pouco
que sabem, foi copiado de outrem e geralmente aplicam as mesmas, sem saber o significado,
tornando suas falas descontextualizadas e até mesmo, sem sentido. Como observamos em VS:
Às vezes utilizava nas relações com a mesma língua com que se dirigia aos
brutos – exclamações onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as
palavras compridas d difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em
vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 1994, p. 20).
Outra relação perceptível entre narrador e personagem, encontrada no diálogo entre
essas obras é a questão de um narrador do sexo masculino falar por uma personagem do sexo
feminino, sentindo-se até mesmo com autoridade para dizer o que essas personagens estão
pensando. O narrador, em especial no modernismo, apresenta-se apto a falar por personagens
do sexo feminino, porque até então, a esfera da ação de narrar era eminentemente masculina,
restando para as narradoras, falar sobre aquilo que não era nomeado, falar sobre o nada.
Falar sobre o nada é falar do ambiente doméstico, das coisas sem importância, do que
não conseguimos nomear com exatidão. Agora, narrar, é regido pelo verbo de ligação “é”, em
que tudo pode ser nomeado, acontece ações, tem importância social.
Essa discussão ganha corpo na obra AHE, em que Clarice faz uma crítica explícita ao
criar o narrador Rodrigo S.M. para poder narrar a obra.
O tema de um homem da cidade falando por um migrante, também é outra relação que
faz presente nessas obras. Mergulhado em ideais fantásticos, o narrador apresenta a esta
migrante uma possibilidade de “salvação”, oferece a esta uma possibilidade de inclusão na
sociedade burguesa. A diferença, com relação a abordagem do fantástico, entre romances
modernistas e contemporâneos está no desfecho destas obras, pois no contemporâneo
teríamos um desenvolvimento de um tema predominantemente fantástico, e um desfecho, por
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assim dizer, irônico, visto que o desfecho não termina como esperamos, as personagens
adaptadas ou ainda, a exemplo de VS, com esperança de uma adaptação à nova sociedade
demonstrada por uma idéia de continuidade que o final da história nos passa.
Em UVS e AHE, os narradores nos surpreendem com o desfecho que é aplicado, pois
além de ir de encontro com as nossas perspectivas, os narradores ainda finalizam com todas as
possibilidades de se crer em uma futura inclusão. Esse efeito é alcançado com a morte dessas
personagens – Macabéa e Biela, realizando dessa maneira uma forma de mostrar que não
adianta mais sonhar com a utopia de inclusão, é tarde as multinacionais chegaram e o
excluído continuarão excluído.
8. CONTINUIDADE X FINALIZADO:
No que diz respeito a teoria de Jameson, o modernismo tinha difundido em sua
literatura a inclusão, acreditava na utopia dos “sonhos” , de que era possível, um dia, realizar
a inclusão dos marginalizados na sociedade, se houvesse primeiramente uma inclusão via
literária. Como ocorre em VS, no momento em que a família de retirantes foge da seca que os
perseguem, cheios de esperança de encontrarem uma vida melhor na a cidade grande: “Uma
cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e
necessárias.” (RAMOS, 1994, p. 126).
Assim como ele mesmo propõe, num dado momento, essa literatura se apresenta de
forma a transmitir uma certa continuidade, visando um futuro aos personagens, que possuem a
verossimilhança com os marginais, excluídos da sociedade.
Ao contrário das obras modernistas, as obras contemporâneas deveriam apresentar-se
sem historicidade (sem um princípio pré-determinado, sem um passado, ou mesmo
lembranças), e de forma “acabada”. No entanto, tanto AHE quanto UVS retornam a um
diálogo com o modernismo, sem conseguir esconder a historicidade de seus personagens. O
narrador as constitui como migrantes, que de certa forma, vem de algum lugar – tanto
Macabéa, quanto Biela possuem um passado – que sempre é retomado nas obras, com mais
freqüência em UVS – com Biela:
E os olhos cerrados, o corpo solto no espaço, começou a viver uma lembrança, a
antiga lembrança. E ouviu a cantiga mais bonita, mais mansa, mais feita das
cores do céu. Uma sensação assim tão boa, mais tão diferente, só de noite na
roça, o riachinho correndo, quando esticava o ouvido para ouvir o chuá-pá do
mojolo: a água enchendo o cocho, o silencio, o ranger do cepo na tranqueta, o
chuá da água, o barulho chocho da Mao caindo no pilão quando se pilava arroz,
mais duro quando se esfolava milho, e tudo se repetia feito choro monótono e
sem fim, o monjolo rangendo. (DOURADO, 1964, p.33-4).
No entanto, AHE mesmo sem essa lembrança contínua, também possui essa
característica de retornar ao passado de Macabéa: “Quando era pequena sua tia para castigá-la
com medo dissera-lhe que homem-vampiro – aquele que chupa sangue da pessoa mordendolhe o tenro da garganta – não tinha reflexo no espelho.” (LISPECTOR, 1998, p. 25-6).
O traço contemporâneo que permeia essas obras – AHE e UVS – é a forma como se
rompe com as idéias utópicas, que é representada através das mortes das personagens
Macabéa e Biela. Refletindo o fim da inclusão do marginal através da literatura, visando uma
inclusão social. Com a morte dessas personagens, tudo acaba: é o fim da utopia de inclusão.
9. A PERCA DA AURA – SEGUNDO BENJAMIN:
Benjamin sugere que o contemporâneo possui a perca da aura (Cf. BENJAMIN, 1993),
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essa aura viria a ser a perca da unificação de um determinado produto, como por exemplo: um
carpinteiro que faz tudo manualmente e sozinho, não é capaz de produzir uma determinada
cadeira exatamente igual à outra, ou ainda produzir uma quantidade dessas cadeiras para
satisfazer o pedido de toda uma cidade, essa trabalho manual, sem grandes produções
idênticas são produtos que possuem aura. Nesse sentido, a perca da aura viria ser a perca do
único, as coisas que antes eram artesanais, produzidas por uma única pessoa, ou no máximo
com o auxilio de sua família, logo deixariam de ter o seu sentido de unicidade, para abrir
espaço para a industrialização. Assim é configurado o contemporâneo. Ao contrário do que se
tinha no modernismo, o contemporâneo apresenta, com a industrialização, muita mão de obra
em que uma determinada pessoa deixa de ser responsável pela produção do todo de uma
cadeira, para se responsabilizar pela produção de uma determinada parte desse produto,
utilizando-se de materiais industrializados. Dessa forma, o carpinteiro que antes era apenas
uma pessoa que trabalhava, muitas vezes em sua própria casa torna-se dono ou então
funcionário de uma fabrica de móveis, e com mais pessoas para produzir móveis toda cidade
pode ter cadeiras exatamente iguais. Isso faz com que as pessoas do mundo contemporâneo
tornem-se pessoas consumistas, e que não querem mais os produtos manualmente produzidos.
Aceitando a teoria levantada por Benjamin, existe nas obras analisadas uma forma do
contemporâneo – AHE e UVS – com o moderno – VS – de forma que VS apresenta- se com
suas próprias características de obra moderna (de forma que a obra apresenta-se de forma a
dar aura a seus produtos de utilização) da seguinte maneira: "Fabiano, apertado na roupa de
brim branco feita por sinhá Terta, com chapéu de baeta, colarinho, gravata, botinas de vaqueta
e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. (RAMOS, 1994,
p.71).
Dessa forma, a obra representa a condição do manual em que viviam naquela época as
coisas até poderiam ser compradas, mas de modo a "mandar ser feito", pois não havia no
momento a industrialização, "o comprar pronto” como pode ser observado nesse outro trecho:
(...) Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de
riscado e andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco
na loja e incumbira sinhá Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos.
(RAMOS, 1994, p.71).
AHE também reflete sua característica de obra contemporânea, exibindo de forma
explícita a industrialização de empresas multinacionais que começam a permear o Brasil na
época em que foi escrita, da seguinte maneira: "(...) o registro que em breve vai ter que
começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso
me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países". (LISPECTOR, 1998, p.23)
Mesmo sem relatar a produção de um determinado objeto, esse trecho exemplifica
perfeitamente a questão da industrialização, de modo que as pessoas se tornem dependentes do
consumo de coisas supérfluas. Nesse sentido a perca da aura surge no momento em que as
pessoas deixam de lado a consciência, ficando assim, dominadas pelo desejo de consumo, "de
ter o que todos já têm", ou ainda, deixam determinadas coisas de lado para suprir as forças de
um "desejo", como podemos constatar em outro trecho de AHE: "Só vou ao cinema no dia em
que o chefe me paga. Eu escolho o cinema poeira, sai mais barato. Adoro as artistas. Sabe que
a Marylin era toda de cor- de- rosa?" (LISPECTOR, 1998, p.53).
Notamos que mesmo na condição de miserável na qual se encontrava Macabéa, ela ia ao
cinema sempre que o chefe a pagava, suprindo um "desejo" de consumo, deixando de lado
qualquer outra necessidade, só para poder ir ao cinema.
É nesse momento que sugerimos outra situação de diálogo entre o modernismo e o
contemporâneo de modo que, UVS, sugere uma tradição em que as mulheres ainda tinham em
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casa o seu próprio "quarto de costura" como observamos no trecho em que Constança convida
Biela para bordar: “Por que você não fica comigo? Vamos lá para o quarto de costura, eu lhe
ensino a bordar, você quer?” (DOURADO, 1964, p. 38).
É assim que sugerimos esse diálogo entre as obras, pois como podemos observar, UVS
ainda apresenta a aura do produto, produtos muitas vezes feito em casa mesmo, ou ainda que
se compre, esses produtos eram mandados ser feito, produtos manuais. Um bom exemplo é
quando Constança se anima em ajudar Biela a “virar gente” (Cf. p. 42):
Deixa por minha conta, que logo mais eu falo com o Conrado e a gente vai fazer
um sortimento completo no seu Gaudêncio. Você vai ver cada esguião, cada sura,
cada velbutine, cada veludo, cada tafetá que ele tem. (...) Eu tenho uns modelos de
uma revista francesa que Conrado trouxe do Rio, que vão ficar muito bem em
você. Eu chamo Marieta para vir coser aqui em casa. Eu ajudo nos arremates
(DOURADO, 1964, p. 43).
Neste contexto sugerimos que enquanto em VS e UVS o narrador apresenta seus
personagens exigindo deles um padrão de aceitação pela sociedade, em que os mesmos
(personagens) acreditam que por estarem de forma a se vestir bem, a sociedade os aceitará,
eles se submetem a sociedade. Essa submissão surge através da utilização de agentes
externos, como as roupas, produzindo, dessa maneira aparências diferentes das quais lhes
confere para que dessa maneira, consigam ser incluídos pela própria sociedade. Já AHE o
narrador revela de forma clara e objetiva o quanto as pessoas se esquecem da condição de
"excluídos" em que vivem deixando de lado o querer ser aceito pela sociedade, para poder
suprir seus desejos de consumo. Assim Macabéa deixa de lado os agentes externos, para
suprir os seus próprios desejos, isso seria mais uma verossimilhança com a realidade, pelo
fato de que nesse momento histórico, as pessoas deixam de acreditar na situação de opressão,
pois com a chegada das multinacionais, os tidos como "excluídos" acreditam que as
multinacionais solucionariam todos os problemas de desemprego e miséria existente no
momento , dessa forma, AHE representa o quanto a industrialização fez com que os excluídos
se esquecessem de suas necessidades só para que pudessem consumir. Pois acreditavam que
não mais iriam passar por necessidades.
É através desses fatos, analisados durante o período de nosso plano de trabalho que
sugerimos o quanto existe de moderno no contemporâneo, e essa forma de dialogo que aqui
propomos, acreditamos, que ainda necessita de mais analises e reflexões. Para que dessa
maneira possamos, auxiliar no delimitar das fronteiras da literatura brasileira contemporânea.
REFERÊNCIAS
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A HORA DA ESTRELA E UMA VIDA EM SEGREDO: OBRAS