Cenas de uma vida de professora
Sandra Mara Corazza1
Palestra
Formação Continuada:
UNIFEBE (Brusque)
Brusque, SC, 22 de julho de 2008.
Cena 1. Uma escola, professoras em reunião de estudos, agendada no início
do ano letivo. Algumas fazem tricô e crochê, outras aprendem os pontos; algumas
escrevem receitas de bolo, outras aguardam; algumas cevam o mate, outras esperam
a sua vez de tomá-lo; algumas abrem pacotes de bolachas recheadas ou salgadas,
outras esperam que as bolachas lhes sejam oferecidas; algumas fazem as unhas,
outras pedem a lixa e o alicate emprestados; algumas lêem o jornal, outras contam
casos amorosos; algumas atendem o celular, outras comentam a-novela-das-8;
algumas tiveram de ir ao médico, outras foram ao dentista. Lá na frente da sala, sem
muita vontade, a diretora, a supervisora e a orientadora educacional discutem, entre
si, o texto programado para estudo coletivo.
Cena 2. Uma mesma região do Estado, professoras reunidas em classesparalelas, para trabalhar o currículo de sua respectiva série ou ciclo. Objetivos do
encontro de dois turnos, dia inteiro: 1) avaliar os currículos desenvolvidos nas
escolas,
com base em suas experiências, 2) propor reformulações curriculares.
Algumas professoras puxam, de dentro das suas pastas, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, do Governo FHC; enquanto outras puxam, também de dentro das suas
pastas, vários
livros didáticos. Então, há
professoras que copiam conteúdos
programáticos dos PCNs e dos livros didáticos; enquanto muitas deixam os
currículos da série ou do ciclo, em que trabalham, como sempre estiveram: intactos.
Cena 3. Inverno em Porto Alegre. Sábado à tarde. Numa escola de periferia
urbana,
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encontram-se:
assessora
pedagógica
da
secretaria,
vice-diretora,
Professora Doutora da Linha de Pesquisa “Filosofia da diferença e educação” do Programa de PósGraduação em Educação e do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pesquisadora e Coordenadora do Grupo de
Pesquisa “DIF – artistagens, fabulações, variações” junto ao CNPq.
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coordenadora cultural, professora da turma. Embarcam no Audi da vice-diretora e
entram na vila, para visita à família de um aluno:“pesquisa sócio-antropológica”,
com quase dez páginas de itens. A família do aluno, constrangida, mal e mal
responde às questões. Realizada a pesquisa, em cem escolas, obtém-se como
resultado as seguintes temáticas: cidadania, violência, participação da comunidade.
Cena 4. Cidade do planalto médio do Rio Grande do Sul, seminário
promovido pela secretaria municipal de educação. Entrada de um salão, 8 horas e 30
minutos da manhã, cerca de 800 professores em imensa fila, carimbo de entrada.
Painel integrado por três professoras convidadas, que tinham vindo da capital, e
coordenado por uma supervisora da secretaria. Às 11 horas e 15 minutos, sem que a
terceira painelista tivesse concluído a sua exposição nem ocorrido os debates, outra
fila de professoras começa a se formar no corredor de acesso ao salão. – “O que está
acontecendo”? pergunto, baixinho. A coordenadora explica, também baixinho: –
“Começamos a carimbar as saídas das professoras às 11 horas e 45 minutos. Elas
estão em fila, esperando o carimbo”. O painel termina com mais professoras na fila
do que no auditório.
Cena 5. Interior do Estado, instituição de ensino superior, curso de
especialização. No meio da discussão sobre a vida das professoras, uma aluna
exclama: – “Mas, a secretaria de educação deveria nos dar espaço para estudar”!
Outra aluna do mesmo curso, coordenadora pedagógica da secretaria, retruca: –
“O problema é que nós damos espaços, mas as professoras não aproveitam. Na
semana passada, convidamos um psiquiatra, para dar uma palestra sobre
“hiperatividade”. Foram as próprias professoras que indicaram o tema, por meio de
uma ficha aplicada em todas as escolas da rede! Pagamos muito caro o palestrante!
Compareceram apenas dezoito professoras! Quando chegou a hora do debate,
ninguém perguntou nada! Quase morremos de vergonha! Nós, da secretaria, é que
tivemos de fazer algumas perguntas, para não ficar feio! No intervalo, eu tive de
atravessar a praça, para fazer xerox de um material, e vi: muitas professoras estavam
olhando as vitrines, enquanto algumas tomavam cafezinho, e outras iam ao Banco!
Não sabemos mais o que fazer”...
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Cena 6: Nós, pensando nas cenas...
O que está havendo? O que estamos fazendo com a nossa profissão? O que
estamos fazendo conosco mesmas? O que estamos fazendo com os outros? Por que
fugimos da reflexão sobre o que vivenciamos? Por que professoramos, durante tantos
anos, e nada escrevemos? Por que valorizamos o não-estudo? Por que não estudamos os
tipos diferentes de pensamentos, de modo a poder situar o nosso? Por que não
encontramos prazer em nossa profissão? Por que ela nos parece tão pesada?
Talvez, a raiva e o espírito de vingança povoem essas cinco cenas. Mas, temos
raiva de quem? Dos alunos? De suas famílias? Dos governos? Dos proprietários de
escola? Queremos nos vingar do quê? Em quem? Nos alunos, na direção, na secretária
de educação, em nós mesmas? Cultivamos a raiva e a vingança, através de um boicote
contínuo às oportunidades que nos são oferecidas, ou que nós próprias ensejamos?
Será que, em nossas declarações de pobreza, inferioridade social, pouca
valorização, não se oculta um enorme ódio ao que é belo, alegre, afirmativo? Um ódio
que tudo negativiza? O que queremos? Que nos valorizem, nos reconheçam, nos amem?
Mas, seremos dignas do que acontece no dia-a-dia de nossa profissão?
Parece existir uma maquinaria montada, há longo tempo, e que prossegue
operando, por meio da capacidade depreciativa dirigida contra as professoras que criam;
contra as assessoras pedagógicas que realizam trabalhos consistentes de formação;
contra as secretárias de educação comprometidas com a educação! Nada resiste a essa
maquinaria! Ninguém lhe resiste! As professoras que a integram não respeitam seus
amigos nem seus inimigos! Elas fazem das próprias dificuldades alguma coisa de
medíocre!
Será que essas professoras do ressentimento sabem e querem amar? Ou, só
querem ser amadas? Sabem e querem ser educadas? Ou, só querem saber de educar?
Sabem e querem acariciar? Ou, só querem receber carícias? Será que elas não vêm
gostando de se sentirem impotentes, escravas das paixões tristes? Não estarão
exagerando na caça constante aos erros alheios, na distribuição de culpas, na acusação
perpétua? Por que acusam tanto os outros? As condições de trabalho, a precariedade
material, a carga horária, a merenda escassa, a pobreza dos alunos, o salário baixo, o
salário insuficiente, o salário... Tudo falta... Falta de tudo... É uma falta só...
Sempre o mesmo chavão: – “É culpa de...” Sempre a mesma relação de
causalidade: – “Se tu fosses diferente... Se ele fosse diferente... Se a profissão fosse
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honrada... Se o meu curso tivesse sido melhor... Se o que me ensinaram na academia
fosse útil na prática... Se me pagassem bem... Se o governador... Se o prefeito... Se o
presidente... Se o sindicato... Se a escola apresentasse condições... Se as famílias fossem
estruturadas... Se a comunidade tivesse mais recursos... Se os alunos nos respeitassem...
Se os alunos se interessassem... Se os alunos tivessem limites... Se eles tomassem
Ritalina... Se tudo fosse diferente, então, sim, eu seria uma ótima professora! Então,
sim, eu seria plenamente realizada! Então, sim, eu seria feliz”! (Sempre a mesma
malevolência do ressentimento? – perguntaria Nietzsche.)
Essas professoras do ressentimento não apenas denunciam, apontam indiciados,
acusam, mas querem os culpados, desejam os responsáveis! Não somente alimentam
rancor, mas clamam por vingança! Elas fazem questão de considerar os outros maus,
para sentirem-se boas. Dizem: – “O sistema, o horário, o salário... são maus; portanto,
eu sou boa”! O que quer aquela que diz isso? Primeiro, não agir, não afirmar; em
segundo lugar, eximir-se de criar valores, encontros, saberes, amores!
Vê-se, aqui, uma tipologia das forças e uma ética, ou seja, uma maneira de ser e
de trabalhar correspondente. As professoras do ressentimento negam, de saída, quando
dizem: – “A nossa formação, as famílias, os alunos, o salário... etc., etc., etc. são maus”!
Elas precisam negar, para erigir uma aparência de afirmação. – “Vocês são maus;
portanto, nós somos boas”! É assim que elas alimentam o ódio contra a vida de
professora, e contra tudo aquilo que, nessa vida, é alegre, potente, criativo! Um ódio
especialmente dirigido contra as professoras que se destacam, se diferenciam, que
estudam, discutem, propõem, questionam, problematizam, desestabilizam!
E essas professoras ressentidas são cada vez mais jovens! Tão logo saem das
universidades, vão para as escolas, e, cada vez mais precocemente, passam a não criar,
não estudar, não escrever! Elas se deixam mediocrizar pelo tipo reativo de professoras,
que impede o tipo ativo de agir. Situação que nos leva a viver, em todos os espaços
educacionais, uma ficção, uma mistificação, uma inversão por projeção!
Ficção que atribui a dominância às professoras reativas, que faz com que elas se
oponham às ativas, e que se auto-representem como superiores! Mistificação, que leva
as reativas a projetarem uma imagem abstrata das ativas, como separadas de suas ações.
Inversão, que culpa as ativas por agirem; e, se não agirem, então é que são consideradas
meritórias. As professoras reativas se furtam à ação das ativas e invertem suas relações,
triunfando sobre as ativas e separando-as do que elas poderiam fazer. Dessa maneira, as
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relações de forças entre as professoras são vistas e valorizadas sempre do lado das
reativas, o que faz com que a atividade das ativas deixe de ser acionada.
As professoras reativas se apresentam, então, como superiores; enquanto as
ativas passam a ser consideradas inconvenientes, estranhas, exóticas, folclóricas, “fora
da casinha”... Acabam sendo depreciadas, desqualificadas, estigmatizadas, excluídas,
escanteadas, isoladas... na sala dos professores, nas reuniões, nos conselhos de classe,
nos chás, festas, passeios, excursões. A falsificação em movimento consiste em que a
professora ativa é separada do que pode, acusada e tratada como culpada, de modo que
os valores são invertidos. A flor do ódio e a semente da vingança, assim, extravasam
todo o grupo de professoras, toda a escola, toda a pedagogia, toda a educação...
O poder de negar a profissão fica fortalecido, à medida que as professoras ativas
afastam-se de suas condições materiais de exercício. Então, a força dessas professoras
se volta para dentro, contra si mesmas, de modo que elas chegam a dizer: – “É nossa
culpa”! Elas interiorizam a sua ação, a um ponto tal que essa ação se torna reativa e
passiva. Elas, as acusadas, reconhecem os seus erros, introjetam as culpas, prolongam
os ressentimentos. Deixam-se, por fim, contagiar. Fabricam assim a igualdade,
assemelhando-se a todas as professoras reativas, entrando em um abismo de
mesmidade, cada vez mais voraz. Em um abismo, onde a diferença deixa de ser
produzida, e todas as professoras viram uma só associação, uma só comunidade, um só
rebanho. Dizem, então: – “Todas nós somos culpadas”!
Um rebanho que se forma, desde que as professoras ativas transformam a sua
atividade em falta, em pecado, em crime. Aí, elas também querem sofrer, interiorizam a
dor, pretendem curar a dor infeccionando mais o ferimento, sofrem as penas de serem
nada mais do que umas criminosas e pecadoras. Elas se retraem e, em si mesmas,
encontram a causa de seu sofrimento. – Ora, quem mandou elas serem daquele jeito? Só
podiam mesmo ficar sozinhas... Se foram ativas, agora, devem dizer: “Tudo ocorreu por
nossa culpa”!
Assim é que elas transformam a sua vida de professora, de sadia em doente:
passando da condição de acusadas para a auto-acusação, sentindo-se sofredoras,
culpadas, criaturas que devem pagar, expiar suas faltas... Infelizes, elas cultivam a
virulência, o ódio contra a profissão, contra os outros, contra si mesmas. Nesse
momento, adoecem, aumentando as faltas, os afastamentos, as licenças médicas...
Essa é a nossa cultura de professoras, sobre a qual vimos calando, sem coragem
de falar... Uma cultura decadente, que engendra uma escola também reativa e
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ressentida, uma comunidade parasita, alunos domesticados, vontades docilizadas, uma
tristeza imensa... Serão, pela frente, mais vinte e cinco ou trinta anos: dizendo o que
todo mundo diz; fazendo o que todo mundo faz; pensando como todos pensam...
Para fugir dessa cultura, a serviço das forças tristes, são importantes cinco
“nãos”:
1) Luta contra uma certa dívida eterna, impagável, das professoras salvacionistas
(há um “exército da salvação” na educação?) – para com o Estado, a sociedade, o povo,
a classe, a revolução, o progresso, a cidadania, a humanidade, a divindade –, que traz
consigo o desânimo e a desesperança, o desencanto e o desamor, a mortificação e as
lamúrias.
2) Contra o niilismo da vida de professora-ressentida, expresso pela causalidade
negativa do “Se os outros fossem diferentes, então, eu seria feliz”..., afirmar-se, de
início, enquanto livre, leve, autônoma, super-moral, “além do bem e do mal”
(Nietzsche, 1992); afirmar-se, criando novas maneiras de pensar, sentir, interpretar,
avaliar; construindo novas possibilidades de vida; produzindo uma arte de trabalhar.
3) Luta contra as perguntas – “Quem é a professora? Qual o seu papel, perfil,
identidade”?, que leva a indagar: – “Quem supera a professora – triste, reativa,
ressentida? Como essa professora pode ser superada”? – enquanto superar opõe-se a
conservar, apropriar, reapropriar (Deleuze, 1976, p.136 ss.). Anúncio, espera e produção
da ultra-professora, do além-da-professora, de uma professora diferente do tipo
professora-ressentida...
4) Contra o que temos de mais no “magistério” (neste termo, evidencia-se o
continuísmo religioso) – o espírito do sério, do pesado, da gravidade; a culpa, o erro, o
pecado, a falta –, lutar com o que temos de menos – o riso e a alegria, a inocência e o
jogo, o acaso e a necessidade, o caos e o eterno retorno...
5) A luta contra as cinco cenas, aqui apresentadas – dentre um sem número de
cenas vividas pelas professoras –, implica levar a crítica bastante longe, isto é, trazê-la
para o nosso meio, para junto, para bem perto de nós... Implica, talvez, o risco de não
ser entendida.
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976.
NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do
futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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