II Encontro Nacional de Estudos da Imagem
Anais
12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR
PAULO GAIAD: UM GUARDIÃO DE MEMÓRIAS
Fernanda Maria Trentini Carneiro1 - [email protected]
Resumo: este artigo pretende comentar dois trabalhos do artista plástico Paulo Gaiad, ou seja, a série
Auto-retratos, de 2001 e a série Receptáculos da memória, de 2002, como objetos que almejam imortalizar
as memórias da vida. Busca-se suscitar relações das séries com os pressupostos da sensação explanados
por Deleuze e questionamentos sobre a diferença e repetição presente nas obras.
Palavras-chave: memória, tempo, sensação.
Abstract: this article aims to comment on two works of visual artist Paul Gaiad, the self-portrait series,
2001 and receptacles of memory series, 2002 as target objects that immortalize the memories of life. Try
to raise relations to the series with the assumptions of the feeling described by Deleuze and questions
about the difference and repetition in this work.
Keywords: memory, time, feeling.
A sensação é vibração
G. Deleuze
A obra de arte nasce no tempo presente, propõe lançar pontos para o futuro e é
carregada de fragmentos do passado, ou seja, há temporalidades diferentes presentes e
atravessadas na obra. Para Deleuze (2006: 137) a “síntese do tempo constitui o presente do
tempo. Não que o presente seja uma dimensão do tempo. Só o presente existe. A síntese
constitui o tempo como presente vivo e constituem o passado e o futuro como dimensões
deste presente”. Nisto, o artista tem seu tempo limite, é passageiro, mas a obra permanece
no tempo e com o tempo ela percorre e flui.
Durante seu percurso o artista compõe um arsenal artístico em que é percebido a
repetição e diferença entre as obras e suas sensações são depositadas através da visualização
de um todo. Sendo assim, onde possamos encontrar essas pontuações nas obras de arte do
artista a ser estudado, no caso aqui, de Paulo Gaiad2?
Primeiramente, delimitaremos esta abordagem às séries Auto-retratos, de 2001 e
Receptáculos da memória, de 20023. Paulo Gaiad trabalha com fragmentos da memória, um
apagamento através da colocação de lembranças suas e do outro na obra. Ao mesmo tempo
em que esta reflete sua potencialidade, também guarda sutilezas de vivências, angústias e
percepções que foram marcantes em sua vida.
A cada série construída, percebe-se um novo questionamento, porém saturados de
pontuações de séries passadas, imagens e palavras vividas, ou seja, uma nova série nunca
estará por si só, ela é abarcada por outras séries e rememorações. O artista está consciente
que suas pinturas não reproduzem formas, inventam formatos, mas capturam forças, mas
“se a força é a condição da sensação, não é ela, contudo, que é sentida, pois a sensação ‘dá’
outra coisa bem diferente a partir das forças que a condicionam” e através da sensação que
nas obras tenta-se tornar visíveis as forças invisíveis (DELEUZE, 2007: 62).
Na série Auto-retratos (2001), Paulo Gaiad transforma a descrição narrativa por escrito
de pessoas sobre a própria vida, retrato ou identidade, a palavra, texto em imagem, em
obra. Assim, o artista toma como tarefa transpor esse texto em imagem por meio de suas
linguagens. Cada auto-retrato realizado é também um auto-retrato de si, isto é, ao realizar
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina –
PPGAV/UDESC, orientada pela Profª. Drª. Sandra Makowiecky, na linha de pesquisa de Teoria e História da Arte.
2
Nasceu em Piracicaba/SP em 1953. Vive em Florianópolis/SC. Pintor, desenhista e gravador. Formado em Arquitetura
e Urbanismo pela UnB/DF e Universidade Brás Cubas, SP (BORTOLIN, 2001)
3
As imagens foram disponibilizadas pelo artista durante o Seminário Temático “História da arte como operação
de hipertexto” ministrado pela professora Dra. Rosangêla Miranda Cherem do Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais PPGAV/UDESC – 2008/02.
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a proposição o artista colocara parte de si e também de suas memórias nestas imagens, um
atravessamento de pessoas e memórias.
Ao convocar às pessoas em se descrever, Paulo Gaiad instiga a relembrar e rever a si
próprio diante do mundo e do seu entorno. Muitas de suas obras, o artista deposita vivências
e instigações que fizeram parte de sua história e que não cessaram com o tempo, pois na
obra permanece e com o tempo permanecerá.
Figura 02 - Paulo Gaiad. Viagens – autoretrato de Lia Rodrigues. Série Auto-Retratos,
2001.
Figura 01 - Paulo Gaiad. Passado a limpo –
auto-retrato de uma amiga. Série AutoRetratos, 2001.
A justaposição de colagens, palavras apoiadas às placas de aço, corroídos pela ação do
tempo, é como o tempo da vida, em que vivemos o presente que já se transforma em
passado, o esquecimento toma conta e as lembranças vão desaparecendo, ficando apenas
resquícios da memória. A memória, para Deleuze (2006) é o fundamento do tempo, o tempo
do presente que é algo passageiro e retomado sob solo movente, que constitui o ser do
passado.
As imagens são repertórios do artista, problematizando a sensação antes mesmo de
transformar o texto em imagem, de resolver seus questionamentos plasticamente. Ele constrói
blocos de sensações e então transfere à obra essa energia, esse impacto, essa doença, isto é,
“entre uma cor, um gesto, um toque, um odor, um barulho, um peso, haveria uma comunicação
existencial que constituiria o momento ‘pático’ (não representativo) da sensação” (DELEUZE,
2007: 49). Nesta série, percebe-se que cada fragmento que é composto também suscita uma
coisa em comum, reverberam uma vida e potência, mas que não são iguais, isto é, cada
parte de um todo conserva e mantém uma singularidade e que é visível quando montado
como uma equipe que repulsa o individual na coletividade.
É como se cada parte desse todo tivesse vida própria e que está presente no mundo
quando contada em conjunto. É uma história da vida, do artista, de outros que se comunicam.
Percebem-se também que em suas obras possuem ranhuras, cicatrizes. Estas induzem algo
que foi significativo na vida e que ficará presente na pele, caso aqui, na memória. Vestígios
que não se apagam, ferida costurada, impossível apagamento e como no sonho, uma vez já
sonhado, ele retorna.
Em cada uma dessas obras supõe um lugar que será sempre retomado. Lugar já conhecido
ou desconhecido. Lugares e ações repetidas. Porém, uma nova repetição nunca será a mesma
anteriormente. Entre elas haverá uma pausa, um suspiro, um fôlego de se começar de novo,
que seja o mesmo caminho. As sensações e passagens serão outras, assim como o vento, que
já não será o mesmo há poucos segundos, pois “o tempo é subjetivo, mas é a subjetividade
de um sujeito passivo” (DELEUZE, 2006: 129).
Na série Receptáculos da memória, de 2002, Paulo Gaiad é um colecionador de referências,
ou se me permitir de relicários. Através da convocação de pessoas conhecidas em colaborar
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para a realização da proposição artística, que sustenta a auto-referência, o artista é
surpreendido com o recebimento de materiais de infinita importância e intimidade. Objetos
que relembram a infância, um outrem, uma sensação, um gosto, uma lembrança, enfim,
objetos que foram e são de grande valor afetivo.
Essa aquisição o propõe imortalizar os objetos-imagens através de caixas lacradas ou
guarda-lembranças. A confiança do outro pelo artista em ser o guardião dessas memórias,
refloriram esses esquecimentos e puderam ser compartilhados parte de sua vida.
Essas fissuras partilhadas com o artista retomam as principais características de suas
obras, citadas inicialmente, o da memória, do tempo e do esquecimento. É preciso um
desapego por parte de quem liberta essas memórias e um afeto e absorção deste recebimento
por parte do artista. Ao mesmo tempo em que guarda a memória, Paulo Gaiad cristaliza o
sonho do outro. Potencializa a imagem não como exposição, mas como caixinha de jóia, de
lembranças e referencias, de pessoas e de si.
Figura 03 - Paulo Gaiad. Bianka Tomie. Série
Receptáculos da memória, 2002.
Figura 04 - Paulo Gaiad. Guto Lacaz. Série
Receptáculos da Memória, 2002.
Ao construir o receptáculo é construído também algo de si junto aos objetos. Eles nos
oferecem a continuidade da vida, em guardar pequenas lembranças esquecidas no fundo da
gaveta e que retiradas emergem àquelas e novas sensações, pois as sensações são vibrações
contidas anteriormente à consciência (DELEUZE, 2007).
Diante desses objetos é de se questionar o quão importante foram e são esses detritos
para as pessoas que escolheram em deixar que a memória flua, ainda que guardassem e que
foram relembradas e repassadas com tanta ternura e afeição. Há também de refletir o voto
de confiança ao artista, pois essas jóias afetivas são entregues como presentes a um guardião
eterno de suas lembranças.
Na construção de suas séries, Paulo Gaiad manteve inseridos alguns fragmentos de sua
memória como compartilhamento entre si e o mundo através da obra. A obra de arte possui
uma potência singular, é carregada de sensações e particularidades e que num todo há
possível visibilidade. Para Deleuze (2007:43) “a sensação é o que é pintado. O que está
pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido
como experimentando determinada sensação”.
A sensação impregnada na pintura é algo experimentado e vivenciado anteriormente à
sua concepção. Nesta perspectiva, para Deleuze (2006:47) “a sensação é o que determina o
instinto em dado momento, assim como o instante é a passagem de uma sensação à outra,
mas a que ‘melhor’ sensação (... a que preenche a carne em determinado momento de sua
descida, de sua contração ou de sua dilatação)”. Paulo Gaiad transmite a sensação singular,
onde ele capta o registro, o texto, a imagem, mas é impossível captar a sensação do outro
em sua totalidade.
Sendo assim, transfere à obra aquilo que lhe foi atravessado diante da imagem que lhe
apodera. É impossível traduzir o sonho em sua totalidade, é muito mais que palavras e
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imagens, são sensações invisíveis e anteriormente captadas. Desta sensação, o artista cria a
força que está inserida em suas obras e que cabe ao espectador percebê-las, ou seja, ao citar
Deleuze (2007) “Eu como espectador só experimento a sensação entrando no quadro, tendo
acesso à unidade daquele que sente e do que é sentido”. E esse entrar na obra que eles, o
sujeito e a obra de arte se anulam, são intercomunicantes entre si.
Com a repetição em séries (DELEUZE, 2006), o diferente entre elas é justamente em
que o começo de uma é o desaparecimento de outra e esse aparecimento novo é carregada
de fragmentos do anterior, pode parecer a mesma coisa e que não é repetição, é essa outra
coisa, uma nova passagem que se faz presente.
A repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla
(...). A regra de descontinuidade ou de instantaneidade na repetição é assim formulada: um não
aparece sem que o outro tenha desaparecido. Em compensação, uma mudança se produz no espírito
que contempla: uma diferença, algo de novo no espírito (DELEUZE, 2006: 127).
Figura 05 – Paulo Gaiad. A vida como eu gosto
– auto-retrato de André Lie -Gaiad. Série
Auto-retratos, 2001.
Figura 06 – Paulo Gaiad. Juan Peralta.
Receptáculos da memória, 2002.
Na repetição de imagens, a semelhança causa estranheza, pois entre elas há uma
pausa, um silêncio que é permitido nos acontecimento entre duas singularidades. O aparecimento
da potencialidade de uma mesma imagem se diferencia, mesmo que elas sejam as mesmas
imagens, mas dessemelhantes.
As imagens permanecem na sua singularidade e a diferença entre si é essa pausa entre
elas, mesmo que as imagens lhe pareçam semelhantes. Deleuze (2006) vai explanar que a
oposição é a maior das diferenças, porém, mesmo que haja diferença entre as imagens, elas
tornam complementares, isto é, o aparecimento de um aspecto em uma só é possível a
oposição deste na outra.
Nas séries de Paulo Gaiad, a cada trabalho que se faz é possível montar e visualizar
outras séries. Ele potencializa a particularidade na singularidade, uma potência antes da
consciência, que é a sensação e que ao captar este momento o traduz em suas obras. A
memória é presentificada em todas as obras, porém os níveis de sensações que são captados
é que as diferenciam entre si, nessa construção por fragmentos e repetição.
Os que as tornam singulares e única é a potencialidade que cada uma reverbera em si e
diante das outras. Mas essa percepção pelo espectador só é possível quando há um movimento
retroativo, na relação do presente com o passado, ou seja, “o passado, então, não é mais o
passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade
refletida e reproduzida” (DELEUZE, 2006: 129). É o que as fazem estar no mundo e instigar
o entorno. Através da montagem de séries que é possível visualizarem a diferença e repetição
entre as obras.
Diante dessas pontuações podemos constituir clara relação com os pressupostos apontados
por Deleuze e as séries estudadas do artista Paulo Gaiad. A cada série realizada o artista se
coloca no outro para apreender suas vivencias que serão potencializadas na obra, mesmo que
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essa apreensão seja incansável em sua totalidade. Dessa maneira, compreendemos que seus
momentos e angustias também estarão presentes nas obras, pois se encontrarão atravessadas
por sua memória e lembranças. Memórias suas e do outro estarão, desse modo, reverberados
na obra. Dentro de cada série verificamos a diferença e repetição entre elas. Cada uma
possui sua singularidade sendo reflexivas através de um todo conjunto. A diferença se faz
presente na repetição, no seu começo e no desaparecimento de uma anterior, porém sempre
ressaltados fragmentos antecedentes na obra atual. Na visualização de um todo é que se
permitir compreender cada uma em sua individualidade e sua parte e/ou papel dentro do
conjunto, das séries. Portanto, as memórias internalizadas nas obras repetem-se e se
diferenciam a cada obra vivida e vivenciada em suas singularidades, potencialidades e sensações.
REFERÊNCIA
BORTOLIN, Nancy Therezinha. Indicador catarinense das artes plásticas. 2ed rev ampl.
Itajaí: UNIVALI; Florianópolis: Ed. UFSC, FCC, 2001.
DELEUZE, Gilles. A diferença em si mesma. In: DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São
Paulo: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles. A repetição para si mesma. In: DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São
Paulo: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles. Pintura e sensação. In: DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: A Lógica da Sensação.
São Paulo: Zahar, 2007.
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