Apresentação
Há, pelo menos, três semióticas: a doutrina dos signos elaborada por
Charles Sanders Peirce, o desenvolvimento do formalismo russo e a teoria
da significação proposta por Algidar Julien Greimas. Nosso trabalho é
vinculado a esta última. O que a diferencia das demais, e também da teoria
geral do signo chamada semiologia, é a ênfase dada não mais nas relações
entre os signos, mas no processo de significação capaz de gerá-los. O livro
que inaugura essa semiótica chama-se Semântica estrutural, de A. J. Greimas.
Partindo da dicotomia de Saussure significante verus significado, Greimas define
assim os domínios da semiótica:
Quando um crítico fala da pintura ou da música, pelo
próprio fato de que fala, pressupõe ele a existência de um
conjunto significante “pintura”, “música”. Sua fala constitui-se, pois, em relação ao que vê ou ouve, uma metalíngua.
Assim, qualquer que seja a natureza do significante ou o
estatuto hierárquico do conjunto significante considerado,
o estatuto de sua significação se encontra situado num nível metalingüístico em relação ao conjunto estudado. Essa
diferença de nível é ainda mais visível quando se trata do
estudo de línguas naturais: assim o alemão ou o inglês
podem ser estudados numa metalíngua que utiliza o francês e vice-versa. Isso nos permite a formulação de um princípio de dimensão mais geral: diremos que esta metalíngua
transcritiva ou descritiva não apenas serve ao estudo de
qualquer conjunto significante, mas também que ela própria é indiferente à escolha da língua natural utilizada.
(GREIMAS, 1979: 23)
Semiótica visual • Os percursos do olhar
Recorrendo às definições de plano de expressão e plano de conteúdo, de Louis Hjelmslev, Greimas define os domínios da semiótica no plano
de conteúdo, já que o conjunto significante mencionado por ele pertence
aos domínios da expressão, e a manifestação em línguas naturais distintas
também. Nos domínios do conteúdo, a significação é descrita pela
semiótica no modelo do percurso gerativo do sentido, que prevê a geração do sentido por meio do nível semio-narrativo, geral e abstrato, que
se especifica e se concretiza na instância da enunciação, no nível discursivo.
Colocado de lado em um primeiro momento do desenvolvimento
teórico da semiótica, o plano da expressão passa a ser tomado como
objeto de estudo quando uma categoria do significante se relaciona com
uma categoria do significado, ou seja, quando há uma relação entre uma
forma da expressão e uma forma do conteúdo. Em seu texto “Por uma
semiótica topológica”, A. J. Greimas faz a seguinte observação a respeito:
Porque o espaço assim instaurado nada mais é que
um significante; ele está aí apenas para ser assumido e significa coisa diferente do espaço, isto é, o homem que é o
significado de todas as Linguagens. Pouco importam,
então, os conteúdos, variáveis segundo os contextos culturais, que podem se instaurar diferencialmente graças a
este desvio do significante: que a natureza se ache excluída
e oposta à cultura, o sagrado ao profano, o humano ao
sobre-humano ou, em nossas sociedades dessacralizadas,
o urbano ao rural; isso em nada muda o estatuto da significação, o modo de articulação do significante com o significado que é ao mesmo tempo arbitrário e motivado: a semiose
se estabelece como uma relação entre uma categoria do
significante e uma categoria do significado, relação necessária entre categorias ao mesmo tempo indefinidas e fixadas num contexto determinado. (GREIMAS, 1981: 116)
Essa relação entre expressão e conteúdo é chamada semi-simbólica.
Ela é arbitrária porque é fixada em determinado contexto, mas é motivada pela relação estabelecida entre os dois planos da linguagem. Assim, partindo dos conceitos de signo e de símbolo de F. de Saussure,
define-se o semi-simbolismo entre o arbitrário de signo e o motivado
8
Apresentação
do símbolo (SAUSSURE, sd: 81-84). Considerado um dos principais fundadores da semiótica visual, Jean-Marie Floch explorou em seus trabalhos esse conceito, aplicando-o ao estudo das artes plásticas, do marketing,
da comunicação, do gosto, entre outros objetos.
Este trabalho é motivado pelos estudos de J. M. Floch, em especial pela
obra Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit. Nela, o autor desenvolve o conceito
de semi-simbolismo aplicando-o no estudo da fotografia, da pintura, das
histórias em quadrinhos, da arquitetura e da propaganda publicitária. Em
nosso trabalho, escolhemos os mesmos objetos, com excessão da propaganda publicitária, e incluimos dois capítulos sobre a poesia concreta e um
sobre a escultura. Contudo, tomamos o cuidado de escolhê-los entre manifestações da cultura brasileira, com o objetivo de torná-los mais próximos
do contexto histórico e cultural de nossos leitores. Não se trata, por isso, de
repetir o trabalho de J. M. Floch mudando apenas seus objetos de estudo,
mas de mostrar a operatividade do conceito de semi-simbolismo aplicado
a outros textos; e de propor alguns avanços no estudo da expressão a partir
da aplicação da semiótica nesses domínios, a respeito da enunciação, do ritmo e da narratividade.
Como conceito teórico, qual o estatuto semiótico do semi-simbolismo? J. M. Floch define a semiótica semi-simbólica dentro dos domínios da semiótica poética. Utilizando a definição de função poética da
linguagem, de Roman Jakobson, como a projeção do eixo
paradigmático no sintagmático, a semiótica define a poeticidade do
mesmo modo. Quando no plano de expressão de um texto verbal há
uma rima, as relações paradigmáticas estabelecidas entre significantes
semelhantes são projetadas no eixo sintagmático; e quando no plano
de conteúdo há uma metáfora, são projetadas as relações paradigmáticas estabelecidas entre significados.
Essas projeções, embora responsáveis pelos efeitos de poeticidade,
não são necessariamente semi-simbólicas. No entanto, a relação entre
uma forma de expressão e uma forma de conteúdo manifesta-se quando há uma relação entre os eixos paradigmáticos de cada uma delas, e
quando eles são projetados no eixo sintagmático. Se em uma pintura,
por exemplo, as cores quentes são relacionadas a conteúdos do sagrado, e as cores frias, do profano, em seu texto há uma projeção no eixo
9
Semiótica visual • Os percursos do olhar
sintagmático da relação entre os paradigmas que formam a categoria
de expressão cor quente vs. cor fria e a categoria de conteúdo sagrado vs.
profano. Assim, toda relação semi-simbólica é poética, mas nem toda
relação poética é semi-simbólica.
Quando se trata de objetos próprios dos sistemas semióticos plásticos, sempre que houver uma relação semi-simbólica entre formas plásticas e formas semânticas, há efeito de poeticidade. Contudo, nem todo
semi-simbolismo é necessariamente uma semiótica plástica. Uma relação entre sabores, próprios de uma semiótica gustativa, pode ser semisimbólica caso uma categoria dessa ordem, como doce vs. salgado, seja relacionada a uma categoria de conteúdo, como infantil vs. adulto. Como a
semiótica plástica estuda as formas de expressão relacionadas a formas
de conteúdo, toda semiótica plástica é semi-simbólica, mas nem todo
semi-simbolismo é uma semiótica plástica. Desse modo, como afirma o
próprio J. M. Floch, a semiótica plástica faz parte da semiótica semi-simbólica, que por sua vez faz parte da semiótica poética (FLOCH, 1985: 1415). Esse é o estatuto semiótico do conceito de semi-simbolismo.
Como este trabalho tem também o objetivo de divulgar a semiótica,
tomamos o cuidado de anexar, antes dos textos destinados às aplicações,
uma pequena introdução, em que se apresenta o percurso gerativo do
sentido, para os leitores que não conhecem a teoria. Recomendamos, para
aqueles que quiserem uma introdução mais detalhada, os trabalhos Elementos de análise do discurso (FIORIN, 1989), de José Luiz Fiorin; Teoria semiótica
do texto (BARROS: 1990), de Diana Luz Pessoa de Barros; e A abordagem do
texto (FIORIN, 2002: 187-209), de Luiz Tatit.
Por fim, nesta apresentação, não poderia deixar de agradecer à
professora Maria Aparecida Barbosa, que me iniciou nos estudos da
semiótica, e ao professor José Luiz Fiorin, pelas orientações indispensáveis à minha formação acadêmica e pelo cuidado com que leu e
comentou este trabalho, fazendo sugestões sem as quais não seria possível terminá-lo. A ambos dedico este livro.
10
Download

Apresentação - Editora Contexto