Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul
ASPECTO VERBAL: UMA CATEGORIA REVELADORA
NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA
Andrea Tatiana DIESEL (UNISINOS)
ABSTRACT: The assignment presents a reflection about mother language teaching starting from data
revealing difficulties of the students in questions that cannot be solved based on a divided teaching model
as the traditional one. This reality provides questions that pass through the former language conception.
KEYWORDS: teaching/learning; mother language; verbal aspect; functionalism
0. Introdução
No discurso dos/as educadores/as, é comum ouvir que a produção escrita de um/a aluno/a é
a melhor forma de verificar sua capacidade lingüística. Assim sendo, a princípio, os conteúdos e as tarefas
escolares das aulas de Português deveriam ter como objetivo desenvolver a produção textual dos/as
educandos/as. Curioso, no entanto, é observar como a escola imagina alcançar esse objetivo. Parte-se de
palavras isoladas, estudam-se as formas e a estrutura da língua, acreditando-se na transferência
automática por parte dos/as alunos/as daquilo que foi aprendido fora de uma situação de uso.
No caso específico do verbo, é prática tradicional apresentar seu conceito enquanto classe
de palavra, para que os/as educandos/as o identifiquem em frases e textos. Em seguida, os/as aprendizes
devem classificar essa palavra em relação à conjugação e à transitividade, exercitar a conjugação das
formas regulares e, mais tarde, das irregulares e, por fim, realizar atividades em que as formas aprendidas
devem ser empregadas de maneira adequada. Nessa perspectiva, é natural que, na produção escrita dos/as
alunos/as, os/as educadores/as cobrem exatamente aquilo que ensinaram: a adequada utilização
morfológica e sintática das formas verbais. O que se espera é que as palavras sejam grafadas de acordo
com as normas ortográficas, que estejam conjugadas de acordo com os quadros passados, que as
correlações entre alguns tempos e modos especialmente problemáticos sejam respeitadas.
Essa prática tem se verificado na escola, nas aulas de Português, e dominado os livros
didáticos, como constatou Silva (2001: 50) em uma amostragem que “reflete a predominância de um
trabalho estruturalista e pouco funcional” (idem). Segundo a avaliação da autora, “isso representa a
predominância dos conceitos gramaticais, em detrimento das informações fornecidas pela Lingüística”
(ibidem). O resultado desse tipo de prática, todavia, não pode ser considerado satisfatório, uma vez que,
ao avaliarem redações escolares, professores e professoras constatam o pouco domínio que os/as
alunos/as mostram ter da linguagem escrita.
Para aqueles que entendem a linguagem como uma atividade humana, a ineficiência das
práticas tradicionais de ensino de língua materna é algo compreensível. Isso porque a língua não foi
estudada no uso. Na visão funcionalista, o uso determina a forma e a ela se sobrepõe. Qualquer palavra só
adquire significado se inserida em um contexto. A forma, por si só, tem pouco a dizer sobre como utilizar
cada palavra ao se escrever um texto, ou seja, não revela a intenção que se tem, o público a que se dirige,
a modalidade pretendida.
Ao se compreender a língua enquanto atividade social, inserida em um contexto específico
e produzida a partir de intenções e expectativas de resposta, as palavras não podem ser estudadas de
maneira abstrata. Cada forma pode adquirir significados diferentes, dependendo do uso que dela se faz.
Por isso, características morfológicas e sintáticas são insuficientes para se desenvolver a capacidade
lingüística do/a aluno/a. É necessário promover a reflexão sobre as características semânticas e
pragmáticas de cada palavra em situações concretas de uso. Além disso, se buscarmos apoio também em
Vygostky (1998), o desenvolvimento da língua enquanto atividade sociodiscursiva implica o
desenvolvimento da autonomia da pessoa, identificável nas marcas de autoria que o/a usuário/a utiliza ao
construir seu discurso. Um ensino essencialmente taxionômico, como o tradicional, jamais oportunizará
esse desenvolvimento.
Também os Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Língua Portuguesa, publicados em
1998, orientam os/as professores/as a trabalharem a língua materna a partir dessa visão:
O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo
com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem
(PCNs Língua Portuguesa, 5ª a 8ª séries: 22).
Todas estas contribuições, no entanto, parecem não chegar às salas de aula. Neves (1990:
12-14) registra que as áreas do Programa de Língua Portuguesa mais trabalhadas são essencialmente as
classes de palavras, a sintaxe e a morfologia; a semântica recebe espaço pequeno, enquanto a pragmática
sequer é registrada. Sabe-se que o guia da grande maioria dos programas para a disciplina é a Gramática
Normativa; portanto, pode-se afirmar que os limites dos programas refletem os limites dessa gramática.
Os motivos desta resistência são de muitas origens, e não se pretende fazer aqui um levantamento deles.
Crê -se, todavia, na necessidade de empenhar tempo de pesquisa na busca de algumas soluções, com o
objetivo de diminuir a distância entre os estudos lingüísticos e as práticas escolares. Assim, este trabalho
pretende colaborar com a educação, de maneira mais específica com ensino de língua materna, ao mostrar
de que maneira uma visão de linguagem baseada nos usos efetivos da língua pode favorecer a construção
de uma proposta de prática de ensino da língua materna voltada para o desenvolvimento da competência
comunicativa 1 dos/as alunos/as.
A escolha do foco deste trabalho – o aspecto verbal - deve-se às observações feitas no
decorrer do trabalho docente da pesquisadora e das colocações de Neves (2000: 23) de que todas as
palavras da língua podem ser analisadas dentro da predicação, e de que sua base – o predicado – é
constituída geralmente por um verbo. Acrescenta-se a isso o fato de essa categoria verbal exigir o
domínio dos elementos extralingüísticos, tão desprezados nas práticas tradicionais de sala de aula a que
nos referimos anteriormente. Como tentaremos mostrar neste trabalho, o aspecto verbal concretiza-se na
língua portuguesa através da relação entre elementos de diferentes níveis de funcionamento da língua.
Dessa forma, uma concepção de linguagem que se retém ao que é interno à linguagem jamais terá
condições de descrever e explicar essa categoria verbal no Português. Também o ensino baseado nessa
concepção não encontrará formas de oportunizar a aprendizagem do aspecto verbal, uma vez que não
considera a interação e os elementos extralingüísticos componentes da atividade de linguagem.
1. Perspectiva teórica
Quando nos propomos a estudar o aspecto verbal em Português, enfrentamos
imediatamente uma dificuldade: essa categoria verbal é desconhecida de muitos. Professores e
professoras, estudantes dos cursos de Letras e até acadêmicos/as de pós-graduação em Lingüística não
raro jamais ouviram falar em aspecto verbal. De fato, o assunto não é abordado na maioria das obras que
envolvem estudos lingüísticos e/ou gramaticais, o que Comrie (1981:1) ratifica, afirmando que o termo
aspecto é “menos familiar para estudantes de Lingüística que outros termos de categorias verbais, tais
como tempo e modo” (idem). Se isso é uma realidade no estudo das línguas em geral, para o Português
pode-se dizer que pouco se sabe sobre o aspecto verbal e seu funcionamento em nossa língua. Os estudos
ainda são insuficientes e constituem uma pequena amostra do que já se pesquisou sobre como essa
categoria se concretiza na língua portuguesa. Na opinião de autores que mais recentemente se debruçaram
sobre o enigma, alguns trabalhos estão repletos de confusões e enganos que em nada colaboram para a
compreensão do assunto. Aparentemente, essa confusão está fortemente ligada às concepções lingüísticas
mais voltadas ao chamado ‘núcleo duro’ da Lingüística, isto é, às áreas mais tradicionalmente
encontradas nas gramáticas e que estão diretamente relacionadas com o que é inerente, interno ao sistema:
Fonética, Fonologia, Sintaxe, Morfologia e, de maneira menos rígida, Lexicologia e Semântica. O aspecto
verbal não consegue ser abordado nestes estudos, porque não se manifesta unicamente através de marcas
fonéticas, fonológicas, morfológicas ou sintáticas, tampouco se restringe à semântica dos verbos. Dessa
forma, não encontra espaço para ser compreendido dentro dessas concepções. Em outras palavras, parecenos correto afirmar que, ao olhar apenas para dentro da língua, para o funcionamento das partes do
sistema de maneira rígida, como elementos independentes, as escolhas que envolvem relações entre os
elementos e principalmente os próprios elementos que se estabelecem na interação, no uso da língua,
1
Hymes (1964) já se referia à competência comunicativa ao falar da etnografia da comunicação: “... deve tomar
como contexto uma comunidade, investigando seus hábitos comunicativos como um todo, para que qualquer uso do
canal e do código tome seu lugar como parte dos recursos de que os membros da comunidade fazem uso... O ponto de
partida é a análise etnográfica dos hábitos comunicativos da comunidade em sua totalidade, determinando o que pode
ser tomado como acontecimento comunicativo, como componentes do mesmo; e concebendo o comportamento nãocomunicativo como independente do grupo que compartilha um contexto e conhecimentos implícitos. O
conhecimento comunicativo, portanto, é central”. Em obra de 1995, afirma: “A aquisição de tal competência se
nutre, a saber, da experiência social, das necessidades e dos motivos, temas cadentes, que por si só são uma fonte
renovada de motivos, necessidades e experiências”. (Hymes, 1995: 34 - tradução livre).
ficam de fora, o que implica excluir o aspecto verbal, justamente porque esta categoria se concretiza, na
língua, através das relações entre elementos de diferentes níveis.
Assim é que o aspecto verbal não costuma ser abordado nas gramáticas tradicionais ou,
conforme Azeredo (2000), deixa de ser mencionado, apesar de os gramáticos a ele se referirem. Também
Travaglia (1985) destaca a pouca atenção que tem sido dada à categoria de aspecto no estudo do verbo em
Português. Segundo o autor, “evidência disto é o fato de nossas gramáticas tradicionais, com raras
exceções, quase não tratarem desta categoria.” (Travaglia, 1985: 21). Isso se explica talvez pelo fato de a
língua portuguesa não apresentar marcadores (morfológicos) do aspecto verbal e, por isso mesmo, ele ter
sido deixado à margem nas pesquisas, já que grande parte dos estudos desenvolvidos no século XX
mantiveram um forte compromisso com uma visão mais engessada de língua e linguagens em geral. Em
comparação com outras línguas, a portuguesa não salienta a questão aspectual de maneira incisiva,
utilizando, por exemplo, desinências específicas ou construções próprias para essa categoria do verbo.
1.1. O Funcionalismo
O Funcionalismo surgiu como escola lingüística em resposta ao estruturalismo, criticando
os limites da visão de língua presa ao sistema, como uma estrutura suficiente em si. Os pensadores do
Funcionalismo com que nos identificamos nessa pesquisa destacam, acima de tudo, o caráter social da
linguagem, sendo esta concebida como uma ferramenta criada pelo e a serviço do ser humano em suas
relações na sociedade. Dessa forma, qualquer linguagem desempenha, em primeiro lugar, uma função
comunicativa à qual a forma se adapta. Aquilo que é interno, portanto, surge de atividades humanas que
se localizam fora da estrutura lingüística e geram os diferentes usos.
Portanto, quando falamos que perceber o aspecto como uma categoria verbal significa
compreendê-lo enquanto responsável por uma função específica na língua estudada, estamos resgatando
os ensinamentos de lingüistas como Givón e Halliday. Para entendermos o que significa enxergar a
função que uma categoria tem dentro da língua, encontramos em Givón (1995) uma referência a Halliday
(1973), que nos alerta para o fato de que considerar a função de um elemento lingüístico significa, em
primeiro lugar, investigar seu uso:
[...] Uma pesquisa funcional para a linguagem significa, antes de tudo, investigar como a
linguagem é usada: tentando achar quais são os propósitos para os quais ela é usada, e
como estamos aptos a obter esses propósitos através do falar e do escutar, do ler e do
escrever. Mas isso significa mais do que isso. Significa tentar explicar a natureza da
linguagem em termos funcionais: observando se a própria linguagem é moldada no uso, e
caso seja, de que maneira – como a forma da linguagem tem sido determinada pela função
em que ela está inserida para servir [...] (Halliday,1973, p. 7, apud Givón, 1995, p.2 –
tradução livre).
O próprio Givón explica “...todas as pressões funcionais -adaptativas que formam a
estrutura sincrônica – idealizada – da língua são usadas na performance atual. É nela que a linguagem é
adquirida, que a gramática emerge e muda” (Givón, 1995: 7 – tradução livre). Na citação, Givón está
esclarecendo uma premissa do Funcionalismo, à qual se juntam outras:
• a linguagem é uma atividade sócio-cultural;
• a estrutura cumpre uma função cognitiva ou comunicativa;
• a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica;
• mudança e variação estão sempre presentes;
• o significado é dependente do contexto e não atômico (não casual e não mecânico);
• categorias são menos-que-discretas (less-than-discrete);
• a estrutura é flexível, não rígida;
• a gramática é emergente;
• as regras da gramática permitem algumas fugas (distorções).
Essas premissas, segundo o próprio autor, são válidas, mas seguidamente degeneradas,
porque tratadas como leis fechadas. Ele lembra, no entanto, que elas são válidas até um certo ponto e em
contextos bem definidos, já que qualquer sistema processual biológico é tipicamente interacional. Dessa
forma, se o funcionalismo atribui um valor maior à função, sendo a forma dependente dela, também
temos considerar que qualquer generalização fica submissa ao contexto, ou seja, ao uso. Assim é que, nas
palavras do lingüista, “o surgimento e a subseqüente mudança nas estruturas gramaticais é sempre
motivada funcionalmente” (Givón, 1995: 10). Ao contrário do que pode parecer, isso não significa rejeitar
a estrutura formal. Afinal, se há uma ritualização e uma gramaticalização, então ocorre o surgimento de
uma estrutura formal. A diferença da visão funcionalista em relação à estruturalista, no entanto, é
perceber que essa estrutura tem uma motivação funcional, embora, muitas vezes, essa motivação se perca
no próprio uso. Por isso, Givón chama a atenção para o necessário equilíbrio que deve haver entre o
processamento automatizado (mais categorial) e o consciente (attended - mais contextual e flexível). Uma
categoria pode apresentar uma certa regularidade de emprego que, no entanto, em um uso específico é
quebrada. Givón defende que esse sistema complexo é dominado pelo/a falante da língua em questão
através da ativação gramatical e semântico-lexical e pelo reconhecimento da palavra-forma. Um exemplo
que ilustra bem essas asserções de Givón é a possibilidade de um nome próprio masculino – João – ser
tranqüilamente substituído, em uma sentença qualquer, por um pronome pessoal – ele. Em um texto real,
porém, essa substituição pode não ser possível, pelo simples fato de haver outros substantivos masculinos
no texto, o que geraria ambigüidade. Ou seja, a substituição não se aplicaria a esse caso em especial, sob
o risco de o texto não cumprir sua função comunicativa. Compreende-se, então, que a língua não se
restringe à forma, envolvendo, segundo Givón (1995), três domínios distintos:
• semântica lexical (significado das palavras);
• semântica frasal (informação proposicional);
• pragmática discursiva (coerência transfrasal).
O autor salienta que essas três áreas se relacionam de forma a uma incluir a outra, o que
gera uma dependência que vai da maior para a menor. É assim que, para compreender o sentido de um
texto, sempre se inicia pela busca do contexto que o gerou. Nesse ponto, aproximamos as afirmações de
Givón (1995) da visão de Halliday (1974) de que a linguagem é essencialmente um produto social, que
surge da interação entre os seres humanos. Ele defende: “A língua não se realiza em abstrato, mas se
realiza como atividade dos homens em situações, como fatos lingüísticos manifestos em um determinado
dialeto e registro” (Halliday, 1974: 113). Dentro dessa percepção é que Halliday destaca o caráter social
que a língua tem, no sentido de demarcar a posição social de um indivíduo. Aqui, como se vê, a questão
pragmática recebe atenção especial, uma vez que um uso pode perfeitamente cumprir sua função
comunicativa, mas, ao mesmo tempo, salientar um ‘valor’ que o emprego recebe no grupo em que foi
utilizado. O resultado é que o que foi compreendido pode ou não ser atendido, segundo critérios de
prestígio social ligados ao uso específico de certas estruturas da língua.
O estudo do aspecto verbal, para nós, insere-se nos marcos do Funcionalismo, em primeiro
lugar, porque acreditamos nesta visão de como a linguagem humana se realiza. De modo especial, porém,
porque na língua portuguesa essa categoria não se restringe a nenhuma área específica, o que nos obriga a
considerar vários elementos, tanto intra quanto extralingüísticos, para a compreendermos de fato. Essa
realidade faz com que não se possa considerar a parte sem o todo, ou seja, não se possa estudar a
categoria verbal de aspecto sem considerar o contexto de produção que gera o discurso em que ela se está
inserida. Mesmo encontrando-se regularidades, o que deverá ser levado sempre em conta é o conjunto
construído para atingir um determinado propósito comunicativo, no qual as formas estão a serviço do
cumprimento de uma função que tem como objetivo final uma intenção comunicativa. Assim é que,
dialeticamente, o aspecto verbal compõe uma relação de dependência própria da atividade humana da
linguagem, sendo, ao mesmo tempo, independente de qualquer forma rígida ou previamente determinada.
1.2. Definindo aspecto verbal
Para melhor entendermos a categoria aqui estudada, convém defini-la com maior precisão.
Essa tarefa, porém, não se constitui como algo fácil, uma vez que não identificamos consenso entre os
autores que abordam de alguma forma o aspecto verbal. Assim, foi necessário buscar em diferentes
trabalhos e estudos lingüísticos, tanto em língua portuguesa quanto em outras línguas, um aporte mínimo
para compreender melhor o funcionamento dessa categoria verbal. Quando dizemos que queremos
entender de que maneira a categoria desempenha sua função na atividade que percebemos ser a
linguagem, já estipulamos a que abordagens sobre o assunto recorremos: a autores e autoras que mantêm
um compromisso com uma visão de linguagem como algo que ultrapassa o sistema, que considera,
portanto, os elementos extralingüísticos na realização dessa atividade. Encontramos algum material em
língua inglesa e poucos autores e autoras de língua portuguesa que abordaram as relações não-dêiticas de
temporalidade que compõem o discurso. Por uma questão de espaço, apresentaremos apenas as definições
de dois autores que consideramos fundamentais: um que estudou a categoria na língua portuguesa e outro,
na inglesa. Para iniciarmos com um autor brasileiro, queremos apresentar a definição de Travaglia (1985)
dessa categoria:
Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca a
duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes
pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realização da
situação (Travaglia, 1985: 53 – grifo e destaque do autor).
Como se vê, “o aspecto diz respeito ao tempo interno, de realização da situação”
(Travaglia, 1991: 78) que, portanto, não se relaciona com um ponto de referência externo à situação, pelo
contrário, implica a observação do desenvolvimento da situação em si, como uma atividade que dispensa
um certo tempo para se realizar. Nesse sentido, o aspecto se contrapõe a outra categoria verbal: o tempo.
Enquanto o tempo marca a realização de uma situação em relação a outras situações presentes no texto,
sendo que essa relação se apóia em um tempo referencial, o aspecto determina a extensão interna da
situação, sem nada dizer sobre sua realização em consideração ao ponto de referência temporal
estabelecido no texto. Outra diferença que o aspecto apresenta, quando comparado com o tempo verbal, é
que este vem marcado morfologicamente de maneira clara, através de desinências temporais específicas,
enquanto aquele, como já se afirmou, não depende exclusivamente dessas marcas.
Comrie (1981), ao definir aspecto, o compara com o tempo, descrevendo este como uma
categoria dêitica que se estabelece na relação com um ponto de referência. Destaca ainda que o momento
de referência é chamado de tempo absoluto, em inglês, quando considerado, de maneira geral, o momento
presente; quando a referência é um outro ponto, estabelecido no discurso, chama-se de tempo relativo.
Percebe-se nessa menção, a compreensão da existência de diferentes momentos que interferem na
produção discursiva, como destacou Reichenbach (1947): o momento da produção, o momento do
processo e o momento psicológico de referência (apud Bronckart, 1999: 276). Já o aspecto é apresentado
pelo autor, de maneira geral, da seguinte forma: “aspectos são diferentes maneiras de observar a
constituição temporal interna de uma situação” (Comrie, 1981: 3). Acrescenta, buscando esclarecer essa
diferença, que aspecto não é dissociado (unconnected) de tempo (time), ou seja, tanto a categoria de
tempo (tense) quanto a de aspecto se relacionam com tempo (time), mas de maneiras muito diferentes.
Nas palavras do próprio autor:
[...] tempo (tense) é uma categoria dêitica, i.e., localiza as situações no tempo (time),
comumente com referência ao momento presente, mas também com referência a outras
situações. Aspecto não tem o papel de relacionar o tempo (time) da situação a um outro
ponto temporal, mas, pelo contrário, com a constituição interna de uma situação; podemos
colocar a diferença como estando entre ‘tempo interno da situação’ (aspecto) e ‘tempo
externo da situação’ (tempo) (Comrie, 1981: 5 – tradução livre).
Conclui-se, portanto, que o aspecto mantém uma estreita relação com o tempo verbal.
Além de ambos serem categorias do verbo, relacionam-se com a temporalidade. No entanto, é necessário
destacar a diferença no tipo de relação que cada uma estabelece: enquanto o tempo verbal se apóia em um
ponto de referência estabelecido no discurso e, a partir dele, localiza a situação em uma linha de tempo,
marcando anterioridade, simultaneidade ou posterioridade em relação ao momento tido como referencial,
o aspecto apresenta uma noção de temporalidade interna ao próprio evento, que determina o
desdobramento da situação, independentemente de sua localização na linha de tempo, dentro do espaço
temporal do discurso. O que fica claro é o caráter não dêitico da categoria verbal de aspecto em oposição
à característica dêitica do tempo. Ainda é importante salientar que, conforme destacado pelos/as
autores/as estudados/as, o aspecto verbal não apresenta uma forma única de concretização, manifestandose de modos diversos nas diferentes línguas e, especialmente, combinando uma série de elementos na sua
realização. O tempo verbal, ao contrário, é geralmente marcado por desinências específicas, apresentando,
portanto, formas mais fixas.
1.3. O Aspecto como categoria textual-discursiva
Completando o que se disse anteriormente, convém lembrar que, a respeito das
características aspectuais, por mais que possam ser esquematizadas e alguns empregos típicos
determinados, apenas a ocorrência das formas em atividades reais de uso da língua pode nos fornecer
informações confiáveis sobre a noção aspectual pretendida em cada caso. Travaglia (1991) estabeleceu
uma relação entre algumas tipologias textuais e o uso das categorias verbais, entre elas o aspecto,
baseando-se em um levantamento feito a partir de textos tirados de diferentes meios de circulação. Nesse
levantamento é possível observar a incidência de cada noção aspectual nos diferentes tipos de texto
através de uma tabela. Nela, vemos que o aspecto indeterminado está bastante presente nas dissertações e
descrições, e que o pontual é freqüente nas narrações presentes, por exemplo.
Outro autor importante nessa discussão é Bronckart (1999), que, assim como Travaglia
(1991), aponta o aspecto verbal como um dos elementos responsáveis pela coesão verbal, ou seja, como
um mecanismo de textualização. Ao destacar as controvérsias suscitadas no estudo do aspecto verbal,
justamente por ser uma categoria complexa e multiforme, o autor afirma:
[...] o conjunto dos constituintes do sintagma verbal podem marcar [...] uma ou
várias propriedades internas do processo (sua duração, sua freqüência, seu grau de
realização, etc). É essa expressão de uma propriedade interna ou não relacional do
processo, expressa pelos constituintes do sintagma verbal, que é chamada de aspecto ou
aspectualidade (Bronckart, 1999: 278 – grifos do autor).
Travaglia (1991), apresentando uma abordagem mais funcionalista, analisou de que
maneira a categoria verbal de aspecto colabora na coesão textual, sendo, portanto, essencial para que o
discurso atinja seu objetivo comunicativo. O autor concluiu que o aspecto verbal atua de maneira decisiva
no estabelecimento da continuidade, na relevância, na definição de primeiro e segundo planos, na
distinção de trechos de progressão dos de elaboração de um ponto e, inclusive, na concordância no nível
frasal.
Essas colocações mostram claramente o que se pretende dizer ao defender que a
aspectualidade é um fator de contextualização, que exige, portanto, noções semânticas e pragmáticas. No
entanto, isso não significa afirmar que seja impossível identificar os elementos que alteram o aspecto
verbal em nossa língua. Dentre eles podemos destacar (Oliveira, 2003:133):
• natureza semântica dos predicados;
• afixos que contêm também informação temporal;
• construções com auxiliares e semi -auxiliares (tem lido, começou a ler, está lendo);
• certos adverbiais e a natureza sintático-semântica dos sintagmas nominais.
Dessa maneira, é possível definir algumas regularidades e tendências, que apontarão os
usos mais freqüentes em cada caso, sem, porém, esquecer que vários elementos podem interferir na
determinação das noções aspectuais e que a relação entre eles colocará em evidência qual dos elementos
em questão deverá sobrepor-se em cada caso, ou até que nuance original um determinado emprego pode
passar a ter. Essa percepção reforça a capacidade do/a falante nativo/a de refletir sobre as escolhas que
estão à disposição em sua língua e de criar situações em que melhor conseguirá expressar aquilo que
pretende. Em outras palavras, a capacidade de perceber as noções aspectuais com precisão está
intimamente ligada ao desenvolvimento da competência comunicativa do/a falante.
Não convém aqui expormos a relação de noções aspectuais encontradas, mas cabe ressaltar
que há consenso entre os/as autores/as que pesquisaram essa categoria verbal sobre a saliência da
dicotomia imperfectivo/perfectivo. Enquanto o aspecto perfectivo desempenha um papel na construção do
texto/discurso – o de fazer a narrativa progredir -, o imperfectivo tem função diversa - fica responsável
pela figuração, pelo plano de fundo, pelo cenário que dará suporte à narração. Essas funções bem
delimitadas foram discutidas por vários/as autores/as que abordaram a questão. De fato, o levantamento
das ocorrências de cada noção em textos narrativos ratifica a tese de Hopper (1979) de que as formas
imperfectivas compõem o plano de fundo (background) e as perfectivas, o primeiro plano (foreground),
mas também demonstra que não se pode estabelecer empregos fixos e noções fechadas.
Ao fazermos um levantamento das noções já descobertas, no entanto, encontramos
diferenças que exigiriam um estudo maior, válido se o objetivo fosse estabelecer como essa categoria
verbal se realiza no português, apresentando uma proposta de classificação para as noções encontradas em
nossa língua, como fez Travaglia (1985), por exemplo. Mas não é isso que se pretende aqui. Nossa
intenção é destacar que o aspecto verbal exerce uma função na construção textual/discursiva, o que
acreditamos ter ficado claro, para, a partir desse fato, fundamentarmos nossa proposta de aplicação
pedagógica. Como já destacamos e explicaremos mais adiante, a proposta que construímos envolve uma
aplicação que almeja mostrar as implicações de uma concepção de linguagem no ensino de língua
materna. Assim, buscamos oportunizar a reflexão dos/as eduncandos/as sobre essa categoria
tradicionalmente esquecida em sala de aula; não havendo, portanto, qualquer preocupação com
classificações.
Dessa maneira, acreditamos suficiente considerar que as noções que destacam a
perspectiva interna de uma situação, chamando a atenção para a realização do fato em si, se ligam ao
imperfectivo – é o caso do habitual, do durativo, do iterativo, na maioria das vezes, do progressivo, do
atélico; enquanto que aquelas noções que destacam a ausência dessa perspectiva – como o pontual, o
télico, o acabado, o concluído – estão mais ligadas ao perfectivo. Essas relações, todavia, não são diretas,
podendo ocorrer entrecruzamentos entre noções aparentemente contraditórias.
2. A construção de uma proposta de aplicação
Dois fortes motivos nos fizeram crer na validade de estruturar a pesquisa a partir dessa
categoria verbal: de um lado, o fato de os/as alunos/as mostrarem, em suas composições, bastante
dificuldade no seu domínio; de outro, por ser o aspecto verbal uma categoria tão complexa e, por isso
mesmo, tão evitada nas abordagens tradicionais da gramática e de sala de aula.
Com o foco lingüístico da pesquisa estabelecido, tratamos de definir a coleta de dados.
Utilizamos para isso o primeiro encontro no início do ano letivo de 2004 com turmas do 2º ano do Ensino
Médio. A escola na qual esses grupos, compostos, em sua maioria, por adolescentes, estudam é estadual e
localiza-se em um bairro popular de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre. A escola é a
segunda maior da cidade e sua comunidade é, do ponto de vista sócio-econômico, bastante mista. Nas
turmas do Ensino Médio diurno, os/as estudantes que permaneceram na escola e nesse turno, no geral, são
aqueles que se destacaram no Ensino Fundamental e apresentam um bom suporte familiar para
prosseguirem os estudos. Já as turmas do noturno são compostas por alunos/as que trabalham durante o
dia. Apesar disso, nesse ano, as duas turmas do noturno com que trabalhamos não apresentaram muitas
diferenças relacionadas à idade ou à classe social entre os/as estudantes: ambas eram compostas
basicamente por adolescentes vindos/as de famílias de trabalhadores/as, e moravam nas redondezas.
Também boa parte dos/as alunos/as, tanto do diurno quanto do noturno, já freqüentavam essa escola há
mais tempo.
Para verificar as dificuldades que os/as estudantes apresentavam em relação ao uso das
formas verbais, priorizamos a produção de um texto escrito da ordem do narrar, pois avaliamos que eles
se prestam para denunciar as dificuldades do/a produtor/a em relação ao aspecto verbal. Baseamos-nos
nos levantamentos de Travaglia (1991) que mostram que textos narrativos apresentam alto índice de
presença de aspectos como o perfectivo, o imperfectivo, o durativo, o pontual, o cursivo. A ordem da
tarefa foi assim passada: “Relatar uma experiência significativa em relação à aprendizagem de Língua
Portuguesa, mostrando se ela marcou positiva ou negativamente”. O trecho abaixo ilustra as dificuldades
apresentadas pelas turmas:
(1) Estavamos debatendo um assunto e a professora fez uma pergunta ninguém respondia a
pergunta nenhuma, e quando alguém respondia sempre achavam um motivo para rir.
Levantei, o meu braço e respondi o que eu achava todos riram muito, minha professora
falava que naquela sala era bom de dar aula, pois todo mundo era o sabe tudo ninguém
fazia pergunta então não precisava explicar muito.
O fragmento apresenta vários problemas; a forma verbal destacada, porém, localiza um
desses problemas no aspecto verbal. Uma forma imperfectiva foi utilizada no lugar de uma perfectiva,
que seria adequada à situação narrada, já que a “fala” da professora se deu em um momento específico e
já concluído no passado. A forma destacada deveria ser substituída por falou.
Após a coleta dos dados e a constatação de que realmente havia problemas no uso das
formas verbais para expressar as noções aspectuais de maneira adequada, construímos uma proposta de
aplicação baseada na concepção de linguagem aqui defendida. Nela o ensino só pode ser entendido como
um processo em que a língua não é uma forma a ser aprendida e respeitada enquanto abstração, mas um
elemento ativo, vivo, capaz de transformações sociais. Assim sendo, qualquer prática que vise a
desenvolver nos alunos a linguagem deve partir e ter como objetivo a língua enquanto atividade concreta.
Sua produção deve ser considerada pragmaticamente, em todos os seus aspectos contextuais. Isso nos
leva a duas questões, levantadas por Neves (2000a), que devem ser consideradas para que se consiga
produzir sentido ao utilizar a língua:
1. a compreensão daquilo que no funcionalismo [...] se chama “modelo de interação
verbal”, ou seja, o esquema efetivo e pleno da interação no evento da fala;
2. a compreensão do jogo entre as determinações do sistema e as possibilidades de escolha
dentro desse evento [...] (Neves, 2000a: 53).
Nesse sentido, ou seja, levando-se em conta tanto a interação em si quanto as escolhas que
a língua permite, Pereira (2000) procura mostrar que é necessário promover a reflexão sobre a língua, sem
negar a importância de se aprender como ela deve ser usada, ou seja, devem existir, nas aulas de
Português, momentos distintos: da ordem da ação – momentos em que se pratica a língua - e da ordem da
reflexão – momentos em que se estuda a língua. Os dois momentos se fazem necessários, porque, ao
contrário daquilo que alguns/mas professores/as imaginam, conhecer uma metalinguagem não equivale
automaticamente a adquirir uma competência processual. Na obra, Pereira fala de malabarismos
conceituais realizados por professores/as ao usarem os textos apenas como pretexto para um ensino
bastante normativo e centrado nos aspectos micro-estruturais. Outra questão levantada é a crença de que a
motivação por si só pode garantir o sucesso da produção textual dos alunos. Embora muitas pesquisas já
tenham apontado a possibilidade de se confirmar essa hipótese – da eficiência da motivação -, Pereira
acredita que não se pode reduzir o trabalho a isso. Muitas tentativas de se promover uma situação real de
produção, como as correspondências interturmas e os jornais -murais, mostraram que, embora possa haver
um estímu lo em relação à escrita, este não é suficiente para garantir o desenvolvimento da competência
comunicativa. Além disso, o/a aluno/a sabe que, em última instância, o texto é produzido para a escola. Já
se estabeleceu até a existência do gênero escolar (Schneuwly, 2002). Nesse sentido, como não é possível
criar de maneira virtual um espaço real, a autora crê na transparência, i. e., deve-se aproveitar essa
consciência que os/as alunos/as têm de que o texto escolar serve para se aprender a escrever e sistematizar
esse ensino. Isso é essencial para que o/a aluno/a “compreenda o sentido e atribua sempre significação à
tarefa que executa” (Pereira, 2000: 311).
Travaglia (2003), seguindo a mesma linha, defende que o ensino deva ser plural, no
sentido de envolver atividades que promovam tanto o uso da língua, quanto a reflexão sobre ela, o
desenvolvimento cognitivo que ela propicia e, por fim, o domínio dos padrões de prestígio social da
língua. O autor acredita que se deva assumir a postura de que gramática é tudo que afeta a produção de
sentidos por meio de textos da língua. Assim, a dicotomia tão presente no ensino texto x gramática perde
o sentido. Entender que a gramática é usada para se construir bons textos e não para ser estudada
enquanto objeto independente é o primeiro passo para que se efetuem mudanças na educação escolar. O
passo seguinte é oferecer um estudo gramatical do texto, o que é muito diferente de usar o texto como
pretexto para se estudar algum conteúdo programático que envolve a gramática tradic ional. A produção e
a compreensão de texto serão, assim, desenvolvidas ao mesmo tempo que a gramática. Esse ensino
preparará o/a aluno/a para a vida e para a conquista de uma melhor qualidade de vida e o resultado será
um/a usuário/a competente da língua, que não só recebe as formas da sociedade e da cultura, como
também a elas dá forma.
Além disso, ao buscarmos uma aprendizagem que favoreça o desenvolvimento da
autonomia, acreditamos que a educação lingüística desempenhe um papel fundamental para alcançar esse
objetivo, pois os/as alunos/as, uma vez senhores/as dos saberes da língua, tornam-se capazes de produzir
seus próprios textos e de fazer escolhas conscientes, deixando de apenas reproduzir modelos que outras
pessoas – que ocupam instâncias de poder – apresentam como ideais. Essa compreensão vai ao encontro
do conceito dialógico da linguagem de Bakhtin (1981), em que os interlocutores têm uma postura ativa
em relação ao que recebem e produzem. Ora, ser ativo significa necessariamente colocar-se como autor
dos enunciados realizados.
Outra questão a se considerar é a existência de uma distância entre os saberes de referência
e os saberes a serem ensinados, i.e., aquilo que se sabe/conhece sobre o conteúdo a ser trabalhado com
os/as alunos/as não será transposto ipsis litteris em sala de aula, já que não é objetivo da Educação Básica
formar especialistas. Essa distância constitui a base do conceito de transposição didática, conceito que,
segundo Garcia-Debanc (1998), foi inventado pelo sociólogo Michel Verret. É necessário, portanto, em
primeiro lugar, transformar o objeto de estudo em objeto de ensino. Esse processo é conhecido como
transposição didática ou como práticas de referência.
Também Schneuwly e Dolz (2004) defendem a transformação do objeto de estudo em
objeto de ensino. Para eles, as transposições didáticas devem ser planejadas em forma de seqüências
didáticas, que eles definem como “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática,
em torno de um gênero oral ou escrito” (Schneuwly e Dolz, 2004: 97). Segundo os autores, essas
seqüências apresentam um número limitado e preciso de objetivos e são organizadas a partir de um
projeto de apropriação de dimensões constitutivas do objeto de ensino. Apesar de o conceito estar
direcionado para o trabalho com gêneros, acreditamos que as seqüências didáticas podem e devem ser
aplicadas também no ensino da gramática. Até mesmo porque esses autores, que defendem uma linha
totalmente voltada à produção discursiva, em que o objetivo primeiro da ílngua materna é ensinar
gêneros, afirmam que “é essencial reservar tempo para o ensino específico de gramática, no qual o objeto
principal das tarefas de observação e de manipulação é o funcionamento da língua” (Schneuwly e Dolz,
2004: 116). Essa afirmação reforça nossa convicção de que o trabalho com textos, voltado somente para
a compreensão e a interpretação de seu conteúdo, ou unicamente para um dos planos que compõem o
texto – o macro-estrutural, por exemplo - sem o estudo de elementos lingüísticos é insuficiente para uma
aprendizagem de língua materna. É necessário reservar espaço em sala de aula para a reflexão sobre o uso
das categorias lingüísticas e a análise de sua função e de seu funcionamento, através de atividades
específicas. Do funcionamento da linguagem fazem parte, portanto, a atividade de linguagem como um
todo, o conjunto, mas também o papel de cada elemento inserido nesse todo, de forma que voltamos ao
que já foi dito e repetido: é necessário, sim, trabalhar a gramática nas aulas de Português.
Dessa feita, considerando todas as contribuições acima destacadas de estudos voltados
para o ensino de língua materna, chegamos a um denominador comum, que pode ser expresso em
premissas seguidas na construção da proposta: 1) a língua deve ser sempre trabalhada a partir de situações
concretas de uso, que nortearão a seqüência didática a ser desenvolvida; 2) esta deve ter como objetivo
contribuir com os/as alunos/as na resolução de suas dificuldades; 3) para que os/as estudantes se
apropriem de fato dos objetos de ensino, transformando-os mais uma vez – agora em saberes aprendidos , faz-se necessário promover a reflexão sobre o funcionamento da língua e de seus elementos (situados em
textos e discursos); 4) somente a produção textual dos/as aprendizes poderá indicar até que ponto eles/as
realmente aprenderam. Seguindo essas premissas, acreditamos que o ensino de língua materna terá mais
possibilidades de alcançar os objetivos expressos nos PCNs (1998), tanto em relação à aprendizagem da
língua portuguesa, quanto em relação à consolidação de uma educação que promova a autonomia. Foi
assim que, observando essas orientações e acreditando nelas, construímos uma proposta de aplicação para
testarmos tanto sua aplicabilidade quanto os resultados advindos de uma prática baseada nessas
premissas. Em outras palavras, considerando as reflexões acima expressas, que envolvem tanto a
concepção de linguagem quanto a visão sobre o objetivo do ensino da língua materna, tivemos a
pretensão de repensar a prática de ensino, buscando a coerência entre proposta e prática, ao construirmos
seqüência didática para o trabalho com o aspecto verbal.
A seqüência didática partiu de textos tirados de jornal (uma crônica, uma propaganda e um
conto – todos relacionados ao tema “livro”). A partir deles, foram elaboradas questões que exigiam a
reflexão dos/as alunos/as a respeito do sentido das formas verbais em cada texto. As noções aspectuais
eram destacadas a partir de perguntas específicas que solicitavam dos/as estudantes a explicitação do
sentido percebido no uso de cada forma, e também de questões que promoviam mudanças nas formas
que implicavam alteração do sentido ou da intenção comunicativa do/a autor/a, fato que o/a aluno/a
igualmente deveria perceber e explicar. Após o estudo de cada texto e das formas verbais neles
empregadas, os/as aprendizes produziam uma redação. O resultado, após 20h/a, foi redações em que as
formas verbais que expressam noções aspectuais foram utilizadas de maneira consciente, demonstrando a
apropriação do saber ensinado.
Os textos a seguir ilustram o resultado do trabalho em relação ao domínio, por parte dos/as
alunos/as, das formas adequadas para expressar as noções aspectuais pretendidas. O primeiro texto –
exemplo (2) - é uma crônica. Sua autora utilizou o presente do indicativo para expressar a duração das
situações presentes no texto e seu caráter atemporal, em que as situações recebem um valor de norma, lei,
e permanecem sendo válidas por tempo indeterminado.
(2)
A importância da leitura em nossa vida
A leitura é um instrumento básico da educação e um dos hábitos mais importantes na vida
cotidiana.
Através da leitura, podemos viajar, conhecer lugares incríveis, conhecer novos
personagens e mexer com a nossa imaginação.
A Leitura nos desenvolve um vocabulário amplo e útil, é maravilhoso ler, tentar descobrir
os significados exatos, adquirir novos conceitos e avaliar a idéia do escritor.
Os livros nos proporcionam conhecimentos que nos ajudam de diversos modos.
Para quem lê com facilidade e rapidez, o mundo dos livros oferece horas intermináveis de
prazer e entretenimento variado.
Os livros são uma fonte de inspiração e prazer; por isso, devemos cultivar esse hábito que
quebra a rotina e nos enche de sabedoria.
O segundo texto – exemplo (3) - também apresenta as formas verbais empregadas de
maneira adequada. Trata-se de um conto, que envolve, portanto, um enredo, o que exigiu do aluno a
alternância entre formas perfectivas e imperfectivas.
(3)
Revolta Literária
Um dia cheguei em casa cansado, por causa do colégio. Tomei um banho e fui dormir.
Então tive um sonho muito estranho, onde os livros haviam criado vida, ficado rebeldes e se tornado
guerrilheiros.
Eles queriam mais atenção por parte das pessoas, pois elas estavam só olhando televisão.
E eles eram bons guerrilheiros, tinham metralhadoras, e eram bem revoltados, no estilo
Rambo. Fizeram muitas pessoas reféns, elas eram obrigadas a lê-los.
Quando me acordei, pensei melhor, e não queria que aquilo acontecesse na minha vida. E,
então, comecei a ler um deles.
Essa experiência nos mostra que a mudança que acreditamos ser necessária no ensino de
língua materna não passa simplesmente pela aplicação de novos métodos de ensino ou de projetos que
motivam os/as alunos/as, mas, sim, pela concepção de linguagem que sustenta o ensino em nossas
escolas. A compreensão do funcionamento da língua e do conjunto de elementos que envolvem a
atividade de linguagem alteram as práticas escolares e possibilitam a construção de propostas com
maiores chances de alcançar os objetivos do ensino de língua materna.
RESUMO: O trabalho apresenta uma reflexão sobre o ensino de língua materna, a partir de dados que
revelam dificuldades dos/as estudantes em questões que não podem ser resolvidas com base em um
ensino seccionado, como é o tradicional. Essa realidade gera questionamentos que perpassam a concepção
de linguagem subjacente.
PALAVRAS-CHAVE: ensino/aprendizagem; língua materna; aspecto verbal; funcionalismo
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aspecto verbal: uma categoria reveladora no ensino/aprendizagem