“Por uma sociedade humanizada
para o Século XXI “
Análise da sociedade portuguesa
Novembro de 2000
FORUM ABEL VARZIM – DESENVOLVIMENTO e SOLIDARIEDADE
Instituição de Utilidade Pública
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1170-108 LISBOA
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Por uma sociedade humanizada para o século XXI
Manifesto publicado pelo Forum Abel Varzim em Novembro de 2000
Premissas
1. A associação Forum Abel Varzim tem por objectivo principal «assumir o legado espiritual
de Abel Varzim, procurando difundir o seu pensamento, obra e testemunho». Em seu
cumprimento e para celebrar o ano jubilar de 2000, empreendemos, com participação de
especialistas em diversas áreas, uma reflexão sobre a actual situação em Portugal (no
indispensável contexto mundial) e sua crítica à luz dos valores e princípios que o nosso
patrono defendeu e praticou (ver Anexo). Em consequência, fazemos a seguir apelos e
apresentamos propostas para remediar os aspectos que, segundo a nossa leitura dos
«sinais dos tempos», se afastam desses valores e contrariam esses princípios.
2. A ordenação e o funcionamento da sociedade devem possibilitar a todos os cidadãos a
sua realização como pessoas livres, dotadas de faculdades físicas e espirituais. Ora o
sistema de economia de mercado, afectando para além da esfera económica toda a
vida da sociedade, tem provocado efeitos perversos devido aos egoísmos individuais e
colectivos. Sem deixar de aproveitar as suas virtudes no apreço pela liberdade e iniciativa
pessoais e na melhor gestão dos recursos escassos do planeta, entendemos que o seu
funcionamento deve ser orientado por valores éticos, subordinando o económico ao
social e o social ao humano, a fim de promover «o desenvolvimento do homem todo e de
todos os homens», como já propunha o Papa Paulo VI.
3. Importa sobretudo corrigir as tendências actuais que alarguem o fosso entre ricos e
pobres e ameacem massificar todo o mundo no culto do materialismo consumista e
hedonista e destruir valores culturais humanistas tão ricos e variados em tantos e
tão diversos países.
O papel do Estado e a reforma da Administração Pública
1. O Estado deve organizar-se e orientar-se para o serviço e o bem dos cidadãos, em vez de
constituir um domínio privilegiado que a classe política luta por conquistar em seu benefício. A sua
finalidade é promover o bem comum, mediante as suas funções constitucionais. No resto,
compete-lhe agir supletiva e correctivamente, como poder moderador, a fim de prevenir as
causas e compensar os efeitos perversos que resultem do livre jogo do mercado.
2. O Estado deve assegurar um regime de democracia social, para o que propomos as
seguintes políticas:
• Dar prioridade absoluta à educação, com o objectivo de proporcionar uma cultura
humanista (baseada em valores éticos, na consciencialização da cidadania, no
sentido da responsabilidade e no estímulo do mérito), precedendo e estruturando a
formação profissional. Embora a responsabilidade pela educação caiba primariamente às
famílias, o Estado desempenha hoje um importante papel supletivo (sobretudo na instrução
dos mais pobres). A indispensável melhoria qualitativa do ensino público depende não só
da revisão dos programas (fomentando as actividades criativas e de cidadania desde o início),
como também da avaliação dos docentes e da criação de condições que permitam recrutar
bons professores.
• Desenvolver uma política de cultura humanista estimulando, apoiando e promovendo a
educação permanente, a investigação e a divulgação científicas, a criação e difusão das artes
e a preservação e valorização do património cultural e ambiental, o fomento da
solidariedade, para o que importa incentivar o mecenato cultural e humanitário.
• Manter e aperfeiçoar um conjunto mínimo doutros serviços de utilidade pública, entre os
quais os sistemas de saúde e de segurança social, privatizando nestes apenas
prestações parcelares que assim ganhem eficiência, com benefício dos utentes e sem perca
do desejável efeito redistributivo, considerando o escalonamento das condições de acesso de
acordo com os rendimentos e flexibilizando os regimes de segurança social.
• Melhorar as medidas de protecção às famílias e a política de habitação social,
beneficiando sobretudo os jovens casais.
• Afim de combater a pobreza e a marginalização, realizar uma efectiva redistribuição
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dos rendimentos e um esforço multiforme de assistência, recuperação e reinserção social
dos que caiam em situações de exclusão social, assim como o estímulo ao voluntariado e ao
mecenato humanitário.
• Promover uma política eficaz de combate ao desemprego e à exploração dos
trabalhadores (incluindo os imigrantes), em concertação com os parceiros sociais, sem se
limitar ao ordenado mínimo garantido.
• Empreender uma reforma agrária (em moldes bem diferentes da instaurada em 1975) que
inverta o pendor decadente do mundo rural, assegurando a existência necessária duma
reserva de produção agrícola nacional, o uso multifuncional do espaço rural e o bem estar de
quem aí trabalha e vive, que seja compatível com uma Política Agrícola Comum da União
Europeia respeitadora destes objectivos.
• Reformar o sistema judicial, urgentemente, para o tornar célere e eficaz, mediante um
número de juízes e de pessoal administrativo proporcionado às necessidades, bem como a
simplificação processual, e instalações adequadas.
• A acção contra o aumento da criminalidade, além de debelar as causas, carece sobretudo
de melhorias pontuais e conveniente descentralização que assegurem, por um lado, a mais
efectiva protecção dos cidadãos e, por outro, a melhoria do sistema prisional de modo a
facultar aos reclusos oportunidades de futura reinserção na sociedade.
• Mobilizar os fundos necessários a esta vasta política humanista e de solidariedade e
geri-los eficientemente, para o que:
• assume prioridade máxima uma reforma fiscal que combata eficazmente a fraude e a
evasão fiscais;
• urge realizar a reforma da Administração Pública para bom desempenho das suas
funções, na qual deve incluir-se uma formação contínua de funcionários, tanto técnica como
cultural e deontológica.
3. A fim de preparar estas reformas impõe-se uma planificação sujeita a debate público: há
que partir da definição das tarefas que o Estado deve assumir; há que ponderar o desejável
grau de descentralização, em cada caso; há que fixar prioridades; há que proceder de forma
a não causar instabilidades sociais graves; e importa planear com base nos valores de
qualidade de vida e de justiça social, e agir com determinação.
4. À medida que a economia assuma efectivamente objectivos sociais e culturais, e que o
dinamismo da sociedade civil aumente o suficiente, o Estado devolveria a esta as actividades
que tivesse desempenhado transitoriamente.
Uma nova orientação do poder económico e dos meios de comunicação social
1. Hoje o poder económico, muito mais dinâmico do que os Estados e os cidadãos, tende a
imperar no mundo. Mas esse «império» é, muitas vezes, desprovido de objectivos de
humanização, quando orientado apenas por objectivos de riqueza e de poder. Esta
gravíssima situação só se resolveria com a mudança de mentalidades e uma nova ordem
mundial verdadeiramente democrática, isto é, capaz de realizar a mais justa redistribuição
da riqueza, mas cuja instauração os países mais abastados vão retardando.
2. A chamada globalização, cujas implicações não são só económicas mas sócio-culturais, fazse mediante os mecanismos combinados do mercado dito livre e dos meios de
comunicação social (hoje inseparáveis da informática e da Internet). Os media, mais do
que veículos de cultura - que deviam ser e, por vezes, ainda são - estão a provocar uma
verdadeira mutação cultural, irresponsável, sujeita ao totalitarismo anónimo das
audiências e alimentada pela publicidade das empresas que, com fins de concorrência, nela
gastam rios de dinheiro assim retirado a finalidades mais construtivas para a sociedade.
3. Reconhecemos que estes maravilhosos meios de difusão põem à disposição do público uma
inaudita quantidade e variedade de informações, produtos culturais e diversões, onde
não falta a qualidade; e também desempenham, por vezes, um importante papel de denúncia
e debate dos problemas da sociedade
4. Resta que o público saiba colher os benefícios de tanta abundância (na imprensa, na rádio,
na televisão e na Internet) e, para tal, que seja capaz de bem gerir o tempo crescente que
lhes dedica; infelizmente são os próprios media que, com fins lucrativos, atraem a atenção dos
espectadores para produtos de baixa qualidade humana e cultural, destinados a garantir os
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rendimentos com a publicidade comercial, e para isso fabricados com ingredientes que
apelam mais aos instintos do que à inteligência (como sejam o sensacionalismo, a violência , o
sexo, o lucro fácil e sem mérito causal).
A fim de inverter esta tendência e assegurar as grandes vantagens potenciais, importa
promover uma educação para os meios audiovisuais, nas famílias e nas instituições de
educação.
Sendo esta acção educativa, posto que urgente, demorada em surtir efeitos, importa também
tomar medidas para limitar, desde já, os efeitos nocivos, sobretudo da televisão. Para serem
aceitáveis e eficazes, tais medidas devem conformar-se com os princípios da democracia.
Como a liberdade implica responsabilidade, a via correcta de solução pressupõe que seja
assumida publicamente a responsabilidade pelas instituições e pelas pessoas envolvidas, para
o que fazemos os apelos e propormos as acções mais urgentes:
Que as empresas portuguesas desejosas de manifestar a sua responsabilidade social
(e, felizmente, não faltam) firmem um pacto social público (incluindo um código de
conduta ética) comprometendo-se na construção de uma sociedade humanizada, na
qualidade dos bens e serviços que produzem, na protecção do ambiente, na concorrência
leal, na verdade da publicidade.
Posto que, eticamente, o lucro só é legítimo para justa remuneração do capital investido e
dos demais factores produtivos e para melhoria da qualidade da produção ou do serviço
prestados, que as empresas se comprometam em devolver à sociedade as mais valias
excedentes, não só sob a forma de impostos, mas de mecenato educativo, humanitário e
cultural e de investimentos de desenvolvimento social 1.
Que se comprometam a promover nos meios de comunicação social apenas programas e
anúncios que estejam isentos de factores nocivos à educação dos cidadãos (por exemplo, o
aliciamento à violência, ao consumo de drogas e à sexualidade irresponsável) e contribuam
para uma cultura humanista: esta podia chamar-se publicidade azul (como existe a
bandeira azul para assinalar as praias saudáveis e seguras).
Que o patrocínio de programas de interesse cultural e educativo seja considerado
mecenato cultural - neste caso designado por mecenato cultural mediático usufruindo de certas vantagens regulamentadas.
Que a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS), em colaboração com as
Instituições de Consumidores, organize um serviço denominado, por exemplo,
Observatório da Comunicação Social que publique frequente e gratuitamente nos
periódicos ou nos suplementos dedicados aos media uma certificação das entidades quanto
à publicidade e ao mecenato cultural mediático que praticam.
Que, enquanto for necessário, o Estado mantenha uma televisão de serviço público a
qual, cumulativamente, forneça programas informativos, educativos e de valor cultural (o que
a RTP já faz, em parte).
Em complemento do notável Acordo de auto-regulação sobre a violência na televisão,
assinado em 1999 entre a AACS e as empresas televisivas, deviam ser estabelecidas normas
e procedimentos deontológicos para os profissionais de televisão (que há anos o
prestigiado filósofo Karl Popper propôs2), donde sugerimos:
Que a Associação dos Profissionais de Televisão atribua uma carteira profissional
obrigatória para todos os que exerçam funções na programação televisiva, mediante uma
formação adequada e um diploma que a ateste.
Que elabore um código de conduta que os profissionais da televisão se comprometam a
cumprir perante a sociedade, sobretudo a fim de proteger as crianças e os adolescentes dos
referidos efeitos nocivos à sua formação.
Que estabeleça regulamentação deontológica (tal como o fazem as Ordens) que permita a
instrução de processos disciplinares dos quais possa resultar que seja retirada a carteira
profissional aos infractores do código de conduta.
Propomos que a Assembleia da República agende, sem demora, um debate sobre a Lei da
Televisão e a reveja no sentido de:
Proibir programas nocivos à educação no horário em que as crianças estão em geral
acordadas (das 8 às 22 horas).
1
Ver Grupo de Lisboa, Limites à Competição, Europa-América, 1994, p. 187.
2
Ver Televisão: um Perigo para a Democracia, tradução de Maria de Carvalho, Gradiva, Lisboa, 1995.
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• Obrigar à inclusão, nesse horário, de programas com valor educativo, científico e
artístico.
• Estabelecer, para os infractores, sanções prontamente executadas e publicitadas.
9. Com o propósito de responsabilizar os cidadãos na melhoria cultural e educativa da
televisão e doutros media, propomos que as associações de consumidores e outras
organizações interessadas (entre as quais a nossa) promovam um amplo movimento cívico
para apoiar a realização das medidas saneadoras aqui formuladas e doutras convenientes.
A prática da cidadania
1. O nosso País possui um considerável potencial de recursos - humanos, naturais e artísticos
- que importa preservar e valorizar, proporcionando as condições para que os portugueses
possam fruí-los de preferência aos medíocres sucedâneos que tendem a ser-lhes
oferecidos, senão impostos, pelo «livre» jogo do mercado.
2. A construção de uma sociedade mais humanizada que proporcione a melhoria geral da
qualidade de vida só é possível mediante a participação efectiva dos cidadãos, num
alargamento da actuação da sociedade civil, numa união de esforços que desenvolva, em
Portugal, um movimento de cidadania activa.
3. Este movimento permitiria pôr termo ao actual quase monopólio da acção pública exercido,
mesmo para além da esfera política, pelos aparelhos partidários, essas novas
aristocracias que mobilizam e favorecem uma minoria da população, excluindo grande
número de cidadãos válidos. Neste sentido impõe-se a revisão do processo de eleição dos
representantes políticos e do seu estatuto, para o que seria desejável:
• Estabelecer círculos eleitorais uninominais.
• Restringir regulamentarmente a substituição de deputados na Assembleia da República.
• Proporcionar aos deputados, durante o mandato, compensações materiais justas que
permitam recrutar os melhores.
• Fazer cessar todos os benefícios dos representantes com o fim da representação (incluindo
os subsídios de reforma).
• Estabelecer procedimentos de contacto permanente entre os representantes e os seus
eleitores, para dar voz a estes.
4. O exercício da cidadania que defendemos deve ser entendido e estimulado nos seguintes
termos:
• Conseguir-se-á, sobretudo, pela criação e fortalecimento de contra-poderes que impeçam
os efeitos perversos da prática actual da economia de mercado, desumanizada e
irresponsável, que denunciamos.
• Visa uma actividade criadora e fruidora de valores humanistas e culturais, em vez dos
pseudo-valores materialistas e hedonistas que criticamos como indignos da sublime
vocação do género humano.
• Depende decisivamente da melhoria da educação e da correcção dos poderosos factores
deseducativos já referidos.
• Implica a igualdade de estatuto social (de direitos efectivos e de oportunidades) das
mulheres e dos homens.
5. Assim apelamos aos nossos concidadãos em geral, sobretudo aos jovens, e em particular
às organizações religiosas (com especial responsabilidade para a Igreja Católica, pela
amplitude da sua acção apostólica, educativa e caritativa em Portugal), às ONG (incluindo as
associações de consumidores), às instituições privadas interessadas (nomeadamente
as que se dedicam ao ensino e à investigação): só elas, numa acção concertada, podem
constituir esses contra-poderes, na medida em que os cidadãos participarem
empenhadamente, trocando os objectivos do ter e do prazer que lhe são comercialmente
fomentados, pelos do ser e do ser solidário, sobretudo com os mais necessitados.
6. A participação na União Europeia abre-nos perspectivas aliciantes na promoção e afirmação
dos valores de liberdade, de justiça social, de paz, de qualidade de vida espiritual e material
que fizeram a grandeza da Europa: aí podemos defender uma política humanista e de
solidariedade com os pobres (e muitos temos entre nós) e os países pobres do Mundo
(como são as nossas antigas colónias às quais nos liga uma funda solidariedade histórica e
cultural).
7. Podemos além disso, e devemos, resolver os problemas que se põem a nível nacional. E o
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desafio é grave porque a razão adverte que caminhamos, com a celeridade própria do século
XXI que se aproxima, para uma crescente desumanização do homo sapiens - ou
desominização do universo, como diria Teilhard de Chardin, esse sábio que o Padre Abel
Varzim admirava: há que tomar consciência e inverter urgentemente o pendor da
decadência anunciada, eis o grande apelo que, seguindo o exemplo do nosso patrono, aqui
lançamos aos nossos concidadãos.
Forum Abel Varzim
Conselho Nacional
Novembro de 2000
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Anexo
Análise da sociedade portuguesa
Introdução
No tempo em que o Padre Abel Varzim viveu (1902-1964) digladiavam-se, no mundo, duas
ideologias principais: o liberalismo, propondo, em economia, o sistema de livre mercado capitalista,
e em política, a democracia formal; e o marxismo, preconizando a economia planificada e o
socialismo político, com predomínio estatal em todos os sectores da sociedade. E, em ambos os
campos ideológicos, triunfavam regimes extremos e totalitários: diversas formas do fascismo, à
direita, e do comunismo, à esquerda. Em Portugal, vigorava o regime corporativo estabelecido sob
a égide de Salazar, com contornos ditatoriais, agravados desde o início das guerras coloniais, nos
anos 60. Neste contexto histórico, Abel Varzim, padre católico exemplar e homem de fé e de
coragem, lutou indefectivelmente por uma reforma da sociedade inspirada nos valores cristãos e
no respeito e promoção dos direitos humanos fundamentais, proclamados em 1948 pelas Nações
Unidas, na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Hoje, assistimos a mudanças radicais no âmbito mundial. O colapso do comunismo na Europa,
em fins da década de 1980, levou à expansão da democracia liberal, com o seu sistema de
economia de mercado estimulada, à escala planetária, por um mirífico desenvolvimento
científico e tecnológico e pelo progresso do comércio e dos meios de comunicação social. Esta
situação seria benéfica na medida em que conseguisse a globalização dos bens culturais e
materiais para uso de todos os homens: conforme o Papa Paulo VI afirmou, «o desenvolvimento
é o novo nome da paz», desde que consiga o «desenvolvimento do homem todo e de todos os
homens». Este objectivo consideramo-lo, ontem como hoje, um ideal a atingir, pelo qual lutamos.
Verificamos, porém, que o sistema regulador de equilíbrios internacionais, que foi sendo
instituído depois da última guerra mundial, não tem evitado um estado crónico de conflitos que,
embora localizados, não são menos sangrentos e destruidores. A paz é ainda ameaçada por
muitas situações de desrespeito dos direitos humanos, pelo surto dos fundamentalismos de vária
ordem e pelo terrorismo em âmbito nacional e internacional. Se o rendimento médio per capita
tem crescido, a sua distribuição é muito insatisfatória: as desigualdades entre pessoas e entre
países não cessam de agravar-se, com as tensões decorrentes. A globalização cultural tende a
propagar através dos media um padrão uniformizado, materialista e massificador, ameaçando
destruir a enorme riqueza e variedade culturais, que importa preservar como património nacional
e mundial, embora integrando novos valores globais; e a Internet que promete pôr à disposição
de todos um manancial de informações, conhecimentos e transacções, que por ora não é acessível
à grande maioria dos habitantes do planeta. A globalização económica provoca o acréscimo de
poder dos grandes grupos multinacionais e instaura a nova ordem do homo economicus - reduzido
a factor produtivo, por um lado e, por outro, a consumidor dos produtos cujas mais valias
revertem na maior parte em favor dos ricos, enquanto a pobreza não deixa de aumentar. O
resultado verificado, por exemplo, num recente relatório da FAO é que «em cada minuto que
passa, mais 47 pessoas são apanhadas nas malhas da pobreza»; e sabemos que dois e meio
milhares de milhões de seres humanos vivem com um rendimento médio não superior a dois
Euros por dia.
Não cabe neste texto a análise crítica destas tendências mundiais. Tivemos porém presentes,
entre outros, os seguintes documentos muito significativos nesse campo: as Encíclicas papais,
Uma Ética Global (Parlamento das Religiões Mundiais, 1993), Limites à competição (Grupo de
Lisboa, sob patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994) e Cuidar o futuro: um programa
radical para viver melhor (Comissão Independente População e Qualidade de Vida, presidida por
Maria de Lourdes Pintasilgo, 1996) e A Mundialização da Economia e suas Consequências
(Simpósio de Bangkok promovido pela Aliança das Igrejas Reformadas, 1999).
As circunstâncias acima referidas fariam, decerto, sofrer, indignar-se e agir Abel Varzim, como
sucedeu no seu tempo. E nós, hoje, sentimos semelhante indignação, sofrimento e
empenhamento. O nosso propósito não é, porém, recordar nem o seu pensamento, nem as formas
como o aplicou então, e muito menos imaginar como o aplicaria aos problemas de agora,
naturalmente diferentes e requerendo soluções outras. Mas os princípios e os valores que
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defendeu e praticou não perderam actualidade e mantêm-se vivos no nosso espírito. Princípios
morais e valores espirituais que são os da doutrina católica e sua aplicação à sociedade, e que
recentemente o Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, assim resumiu como dimensões da missão
profética da Igreja e do ministério exercido pelo Padre Abel Varzim:
• A defesa da dignidade da pessoa humana, percebendo que essa defesa não pode ser só teórica, mas
esforço continuado de formação e promoção de cada homem e de cada mulher, em ordem a fazer deles
seres livres e corresponsáveis;
• Privilegiar nessa luta os mais desfavorecidos, os pobres, os injustamente tratados, os marginalizados
pela sociedade e pelos diversos poderes;
• O não se resignar às situações de facto, por mais duras que sejam, sabendo discernir nas circunstâncias
sinais da esperança de um tempo novo;
• Não se deixar intimidar pelo poder estabelecido, fazendo afirmação da liberdade como prova máxima da
dignidade;
• Sendo fiel, em todas as circunstâncias, à comunhão eclesial, na fidelidade à Igreja.
Cingindo-nos à sociedade portuguesa, entendemos prestar um serviço criticando os aspectos
que, segundo a nossa leitura dos «sinais dos tempos», se afastam desses valores e contrariam
esses princípios, mas relevando também os que nos parecem a eles conformes. Tal como a atitude
de Abel Varzim, a nossa não é saudosista nem pessimista. Deparando com graves problemas de
difícil solução, não nos contentamos com denunciá-los numa espécie de «muro de lamentações»
deste novo mundo que, na aparência de nova Babilónia, acreditamos possa ser caminho para a
nova Jerusalém (usando linguagem cara ao Padre Abel). São, portanto, as pistas para essa
caminhada, e não os obstáculos detectáveis, que constituem o objectivo final deste manifesto, e
que propomos à consideração dos nossos concidadãos, com especial atenção aos jovens, para
quem e com quem queremos construir uma sociedade mais humanizada.
Temos consciência de que o texto que elaborámos será, para uns, demasiado longo, para
outros, por demais superficial. Tentando resolver esta antinomia, reduzimos o manifesto às
propostas principais de humanização da nossa sociedade (remetendo para anexo a análise crítica);
e pedimos a especialistas que queiram apoiar-nos a publicação de um ou mais artigos
aprofundando aspectos relevantes.
A sociedade portuguesa actual e seus principais problemas
Para além das mudanças mundiais apontadas, a revolução iniciada em 25 de Abril de 1974
transformou profundamente a situação portuguesa que Abel Varzim conheceu e afrontou. O
balanço dessa transformação é decididamente positivo, com a instauração de um regime
democrático pluralista, a entrada de Portugal na União Europeia e a sua modernização
mediante um desenvolvimento económico-social sustentado (embora moderado perante as
carências reais). Mas, feita a justa constatação de progresso - que se saúda -, importa detectar os
problemas e as necessidades mais prementes, a fim de propor algumas medidas para os remediar.
1. Uma sociedade do ter
O primeiro problema é o crescente predomínio de valores materiais. O consumismo, tão
criticado desde os anos 60, propaga-se hoje mais do que nunca por meio de um sofisticado
sistema de publicidade, veiculado pelos meios de comunicação social. A propaganda foi
usada com grande (e triste) êxito para fins políticos, nos regimes totalitários fascistas e
comunistas, provocando a alienação ideológica do povo. Hoje, porém, aplicada com fins
comerciais, tende a aliená-lo doutra forma, ao consumo insaciável de bens e serviços,
dissimulando muitas vezes a verdade, com objectivos de lucro mais que de informação objectiva.
É certo que muitos desses bens e serviços têm efeitos benéficos: tornam a vida quotidiana
menos penosa, acrescem a produtividade do trabalho e aumentam os tempos livres,
proporcionando, para os preencher, divertimentos em quantidade e variedade crescentes. O que é
prejudicial é a incitação a ter cada vez mais, com o frequente efeito perverso de ser cada vez
menos, é a propagação de um espírito materialista em vez do estímulo à vida humana
integral.
O sistema de mercado livre - corolário dos direitos humanos - implica a concorrência que,
em si, pode ser factor de progresso. Mas o espírito de competição, se exacerbado e arvorado
em norma de comportamento, tende a deteriorar as relações entre as pessoas. Então, os princípios
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de fraternidade e de solidariedade são substituídos pelo culto do sucesso pessoal ou de grupo,
num clima de guerra competitiva, nem sempre leal, em vez da mais salutar e pacífica
cooperação. A sede de lucro e de sucesso pessoal, que o sistema subtilmente inculca,
predispõe ainda ao uso de meios ilícitos, como a corrupção, senão o roubo, que tendem a
passar, de acções excepcionais e reprovadas, a práticas correntes e toleradas.
O culto da liberdade ilimitada e do dinheiro ganho sem trabalho produtivo (como nos
concursos da rádio e da televisão, e nas campanhas de promoção comercial), ampliando as
deficiências de educação em largas camadas da população, juntamente com a exibição
crescente da violência pelos meios audiovisuais, incentivam a criminalidade. De facto, o volume
dos processos judiciais aumenta e o número de reclusos. A situação é agravada pela morosidade e
carestia do sistema judicial, que alimenta perspectivas de impunidade aos infractores e gera o
descrédito público no exercício da justiça e na protecção jurídica dos cidadãos (sobretudo os mais
fracos, pobres ou marginalizados). A sobrelotação e a degradação das condições de vida nas
penitenciárias cria verdadeiras escolas de crime e ameaça a integridade pessoal dos presos, cuja
reintegração na sociedade se complica, provocando marginalização e reincidência criminosa.
As consequências sentem-se no aumento do espírito de desconfiança e de agressividade,
na insegurança das pessoas e seus haveres, bem como na crescente desvalorização dos
valores morais no comportamento pessoal e nas relações sociais.
2. Uma sociedade do prazer
Outra tendência perversa do culto da liberdade individual e da crescente terciarização socioeconómica, é a criação de uma cultura do prazer. Este processo de hedonização é estimulado
por uma multiforme indústria de lazeres e diversões, uma indústria do prazer massificado.
Naturalmente, o freudiano princípio de prazer é um poderoso componente e motor do psiquismo
humano, na gratificação dos instintos. Mas, quando descontrolado, tende a mutilar as
faculdades essenciais: desde logo as faculdades espirituais, atrofiadas pela obsessão dos
prazeres físicos; e, frequentemente, também as faculdades físicas, degradadas pelos excessos
sempre difíceis de evitar.
Os meios de comunicação social - sobretudo a televisão e, ultimamente, a Internet desempenham nisto, mais uma vez, uma função propulsora, suportada pela publicidade
comercial, formando um sistema interactivo, irresponsável e expansivo. Mais do que veículos de
cultura - que deviam ser e, por vezes, ainda são - orientam-se sobretudo pela lógica do mercado,
sujeitos ao totalitarismo anónimo das audiências e ao gosto mais grosseiro. Isto pode parecer
um normal exercício da democracia, o império da vontade popular. Mas não sendo, de outro modo,
proporcionados ao público, nem educação capaz, nem estímulos a cultivar-se em mais elevadas
e fecundas esferas (nas letras, nas artes, nas ciências), e assim afinar o gosto, prevalecem os
instintos mais elementares e as escolhas mais banais, orientadas por modas comercialmente
manipuladas.
O mesmo sucede com outras formas de entretenimento de massas, em si legítimas, mas
que se estão tornando meios de massificação e de alienação colectiva. São, sobretudo, os
espectáculos de música pop e de desporto - maximamente o futebol -, hoje comercializados e
geradores de lucros desmedidos para vedetas e empresários. Mais, estes grandes pólos de
atracção e distracção tendem a criar formas primitivas de «religião», cujo «culto» dos instintos
hedonistas exalta o corpo e atrofia o espírito. Substituem assim as verdadeiras Religiões que
alimentam e revigoram o espírito, na prática dos valores morais e transcendentais, hoje em
vias de serem subsumidos pela idolatria da liberdade e do prazer egoístas.
Igualmente grave é a exploração comercial das paixões mais escravizantes por poderosas
redes multinacionais actuando dentro ou à margem da lei. O comércio e consumo da droga
é decerto o caso péssimo, pelos efeitos destruidores da pessoa humana. Mas há outras formas que
vão corroendo as energias morais, como são as perversões sexuais, promovidas pela
pornografia comercial, por novas formas de prostituição, pedofilia e «turismo sexual», onde se
pratica a exploração (até à escravatura) de pessoas mais vulneráveis, pela situação de pobreza
ou de incapacidade de resistir.
Esta situação é gravíssima para as crianças e os adolescentes. Os meios audiovisuais,
sobretudo a televisão, desempenham hoje um papel preponderante na formação da sua
mentalidade. Devido à desagregação das famílias e das antigas redes de parentela e de
integração social, devido à perda de influência formativa da escola, sobretudo a pública, as
crianças ficam desamparadas perante o forte efeito atractivo e deformativo da televisão e das
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diversões informáticas. Numa e noutras das quais são veiculados, com fins lucrativos, valores anticristãos e anti-democráticos, como sejam o desprezo pela vida, a violência e a destruição, o
egoísmo e a sexualidade irresponsável (desligada do amor e do casamento).
O resultado cumulativo ameaça levar à massificação na mediocridade e ao
depauperamento espiritual de estratos crescentes da população, sobretudo os jovens. O nosso
povo está, assim, ameaçado de se engolfar numa cultura banalizada, na maior parte imposta de
fora; em vez de desenvolver uma cultura humanista que valorize o rico património cultural e
natural e se afirme ainda por uma acrescida criatividade (nas ciências, nas artes, na solidariedade)
que não faltaria aos portugueses se fosse devidamente fomentada, numa interacção hoje
necessariamente mundial.
3. Uma sociedade crescentemente assimétrica
Não obstante os êxitos louváveis no aumento da riqueza, o liberalismo económico sempre
provocou desigualdades sociais. Embora tal não seja seu objectivo explícito - que destoaria da
alegada profissão de democracia - a livre concorrência conduz, por natureza, a extremar os níveis
de prosperidade. Não seria assim se os acréscimos de rendimento conseguidos fossem distribuídos
de forma a corrigir assimetrias. Mas sendo-lhe inerente estimular o gosto do lucro e a
competitividade (fomentada como um princípio quase absoluto, não só na actividade
económica, como em toda a vida social) são os mais aptos e hábeis na manipulação do sistema
que arrecadam as mais valias. Daí o aumento das situações de pobreza (até à miséria extrema) e
de riqueza (até à ostentação e ao desperdício) e de outras assimetrias.
Entre estas, persistem as indignas e injustas desigualdades entre o homem e a mulher, no
estatuto social, embora em Portugal se registem assinaláveis melhorias. Persistem formas
aviltantes de exploração dos socialmente mais fracos, por exemplo no trabalho feminino e
infantil. Persistem as tensões raciais e de exclusão das culturas minoritárias...
A procura da maior produtividade proveniente do progresso tecnológico - em si benéfica leva a uma contínua substituição de recursos humanos por meios técnicos que o capital financeiro
mobiliza. E se isso, por um lado, liberta os trabalhadores para tarefas mais nobres, por outro, pode
degradar a dignidade do trabalho quando, de actividade criativa, passa a factor produtivo
mercantil. Daí e das transformações no tecido empresarial deriva a crise do emprego, o qual
embora abunde em profissões pouco qualificadas (provocando grande afluxo de imigrantes com
graves problemas de integração social e de exploração por empresários sem escrúpulos), escasseia
para os recém-diplomados; e destes só escapam os mais aptos para enfrentar a concorrência.
Além do empobrecimento das classes trabalhadoras e das tensões sociais que provoca, o
desemprego e o subemprego são factores de marginalização e aliciantes à criminalidade.
E, não obstante a faculdade teórica de unir esforços, exercendo o direito de associação e
demais liberdades constitucionais, os que caem nessas situações de desgraça perdem, por isso
mesmo, a capacidade de utilizar com eficácia esses meios de luta.
Com a entrada de Portugal na União Europeia nasceram grandes esperanças de participar na
construção de uma Europa mais progressiva, economicamente próspera e socialmente coesa. E o
nosso País tem beneficiado de subsídios que permitiram realizar alguns progressos, sobretudo em
obras públicas. Por outro lado, aumentou o número das actividades comerciais (por acção de
empresas estrangeiras e de alguns grandes grupos económicos portugueses), e o nível de vida
médio. Mas estes efeitos positivos não logram, no nosso e noutros países menos ricos, a redução
das assimetrias: continuamos, economicamente, e continuaremos na cauda da Europa. Na
mecânica da globalização económica e da divisão internacional do trabalho, parece que
nos cabem, sobretudo, actividades terciárias. Em consequência, a indústria tem regredido e a
agricultura e pescas mantêm-se num crónico estado de crise, tirando casos pontuais de êxito.
Estas tendências, nem todas nefastas, causam porém desequilíbrios difíceis de gerir, dos quais
o mais grave permanece entre o interior recessivo e o litoral progressivo, e afecta o sector
primário. Portugal deixou há muito de crer na propaganda enganosa de ser «um país
essencialmente agrícola». Mas a produção agro-pecuária continua a constituir o aproveitamento de
um dos não muitos recursos naturais de que fomos dotados e o ganha-pão de numerosos
trabalhadores de difícil reconversão para outros ofícios, na perspectiva de terciarização
crescente. O sector primário está largamente privatizado, mas as dimensões das explorações são
inadequadas e, nestas condições, os vultosos subsídios financeiros europeus não terão sido, ou
suficientes, ou bem aplicados, para conseguir as indispensáveis reformas estruturais.
As sucessivas revoluções industriais proporcionaram notáveis progressos na melhoria das
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condições de vida, mas praticaram desregradamente o desperdício e a degradação do meio
ambiente nas formas mais diversas e devastadoras da natureza. A crescente consciencialização
neste domínio é, sem dúvida, um dos grandes progressos das últimas décadas. Esta é uma grave
questão de cultura e de mentalidade, e o sistema educativo - a família, a escola, os media - têm
um papel decisivo a desempenhar, para além da legislação repressiva dos abusos e incentivadora
das práticas ecológicas.
4. Uma sociedade insegura e marginalizante
Uma das funções mais relevantes desempenhadas pelo Estado, instituída e aperfeiçoada no
decurso do século XX, é a segurança social que proporciona o apoio aos cidadãos mais
carenciados, na doença, na velhice e no desemprego. No entanto a permanência desta função está
ameaçada pelas teses neo-liberais que impõem ao Estado transferir para a iniciativa privada as
tarefas assumidas supletivamente. Admite-se que, deste modo, as contribuições de trabalhadores
e empresários seriam melhor geridas; e o espectro, ciclicamente recorrente, da falência da
Previdência estatal parece hoje retornar de forma imperativa. É certo que o actual sistema de
saúde e assistência tem defeitos, sobretudo no campo hospitalar, e importa corrigi-los. Mas
tem exercido uma acção benéfica na satisfação de algumas das mais graves carências da
população, além de uma notável acção redistributiva. Quaisquer alternativas hão-de ter isto em
atenção, bem como os valores em questão, de direito à vida e à integridade física.
Outras formas de insegurança têm vindo a crescer notoriamente, sobretudo nos meios
urbanos, onde aumenta a já referida criminalidade. Enquanto o discurso político incita
incessantemente à solidariedade, os cidadãos sentem-se cada vez mais ameaçados por criminosos,
na integridade de suas pessoas e bens. E, como também já advertimos, o processo de globalização
da economia faz temer cada vez mais pela segurança do emprego.
Já apontamos algumas causas do aumento da marginalização. Quer seja provocada por
motivos étnicos e de imigração, quer por circunstâncias de desemprego ou de pobreza, quer derive
de degradações morais, cria sempre condições psicológicas e materiais que tendem a agravar e a
reproduzir as situações criadas. Sobretudo agudizadas em bairros clandestinos e bolsas de
exclusão com más condições de habitação, nem sempre são debeladas em bem intencionados
projectos de realojamento.
Mais uma vez, são as crianças e os adolescentes que mais sofrem nestas situações onde se
toldam as legítimas esperanças de um futuro digno da sua admirável condição humana; com a
agravante de serem mais e mais afectados pela já focada crise do casamento que muitas vezes
os priva de um meio familiar estável, afectivo e educativo, falta não suprida pelas antigas redes
de solidariedade, também em desagregação. E mesmo que a família não se dissolva, sofrem
frequentemente, sobretudo nos meios urbanos, com a falta de tempo dos pais (ambos absorvidos
no trabalho e sujeitos a grandes demoras nos transportes), tempo indispensável para a sua
formação como pessoas e a sua socialização; para não falar da persistência de hábitos de
violência nas famílias debilitadas nos valores morais, o que também sucede nos meios rurais. É
gravíssima, repetimos, esta situação em que os jovens não são educados num projecto de vida
mas apenas num projecto de emprego.
5. Para um admirável mundo novo
O mundo em que vivemos, já o dissemos, tem facetas magníficas, resultantes da conjunção do
património cultural com o progresso científico e tecnológico. E ultimamente está em gestação a
sociedade da comunicação que abre novas perspectivas de intercâmbio instantâneo a nível
planetário. É um admirável mundo novo que desponta, mas que só o será realmente se
beneficiar toda a humanidade. A democracia liberal é, de todos os sistemas experimentados, o
que melhor pode salvaguardar o respeito e a promoção universais dessa exigência da dignidade
humana que são os direitos fundamentais; se na prática não o tem conseguido cabalmente é
devido à prevalência de egoísmos individuais e colectivos. Não nos conformamos com a tendência
actual de guindar o neo-liberalismo a norma de organização da sociedade, senão mesmo a
sucedâneo de religião. O culto da riqueza material não sujeita à sua função social – o culto
de Mamon - denunciado por Cristo no Evangelho, foi-o também por Abel Varzim, e nisso o
secundamos. Nem podemos tolerar que se torne o mundo em palco de guerra, na desenfreada
competição económica e social, em vez de locus amoenus de convívio pacífico, fraterno e
cooperante.
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Há decerto que aproveitar as virtudes da economia de mercado, no seu apreço pela
liberdade e iniciativa pessoais, e na melhor gestão dos recursos escassos do planeta e na sua
conservação para as gerações futuras. Mas esta gestão deverá ter por fim o bem de toda a
humanidade e, para tal, há-de ser orientada por valores éticos. Importa corrigir as tendências
actuais que ameaçam alargar o fosso entre ricos e pobres, massificar todo o mundo no culto do
materialismo consumista, e destruir valores culturais tão ricos e variados em tantos e tão
diversos países. E nós acreditamos que é possível a necessária metanoia - ou mudança de
mentalidade e de comportamento - que permita insuflar no sistema democrático o
suplemento de alma que lhe falta, para subordinar o económico ao social, e o social ao humano:
ao «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens», repetimos.
Forum Abel Varzim
Conselho Nacional
Novembro de 2000
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“Por uma sociedade humanizada para o Século XXI “