Título do trabalho:
DOR CRÔNICA: TRINCHEIRA CONTRA O INSUSTENTÁVEL
Autora:
Susan M. Sendyk
Rua Ministro Godoy, 1343
05015-001 – São Paulo - SP
Tel. (11) 3864-7487
[email protected]
RESUMO
A frágil conexão que o paciente doloroso faz entre a manifestação de dor e
subjetividade, como também a dificuldade que apresenta em abrir mão da mesma, são
as questões que propulsionam este trabalho.
É possível pensar-se na dor como tendo duas funções: uma desorganizadora,
resultante da fragilidade na forma de o ego lidar com os traumas na medida em que se
ocupar da dor seria uma forma de não se ocupar de pensamentos; e outra organizadora
do aparelho mental, na medida em que funciona como um alerta para o sujeito.
No paciente doloroso a articulação mental-somática está dificultada, mas não é
totalmente inexistente. Há também um uso deste fenômeno somático; é através de suas
dores que eles são olhados. Isto é, a dor ocupa um lugar na relação com o outro tendo,
portanto, uma função simbólica.
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Essa questão pode conduzir à hipótese de que o fenômeno da dor poderia ser de
natureza mista, somática e neurótica, um fenômeno sintomático de neurose mais ou
menos mentalizada, onde há uma irregularidade do funcionamento psíquico.
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DOR CRÔNICA: TRINCHEIRA CONTRA O INSUSTENTÁVEL
Susan Sendyk
Trabalhei durante alguns anos no setor de Medicina do Trabalho de um hospital
particular de São Paulo, onde participava como psicóloga de uma equipe, no
atendimento multidisciplinar a funcionários reunidos em torno de um problema
comum: dor crônica. Eles apresentavam uma dor freqüente e incapacitante para
algumas atividades que gostavam de realizar. O diagnóstico variava entre LER “lesão
por esforços repetitivos”, fibromialgia e dores de coluna cervical e lombar. Tratava-se
de um Programa de Reeducação para o Tratamento da Dor.
Os grupos caracterizavam-se por serem informativos e de orientação, havendo
também um espaço para se abordar os aspectos emocionais relacionados com a dor.
Estes eram compostos por aproximadamente oito integrantes, e realizava-se um total de
doze sessões. A inclusão da Psicologia deu-se tanto em função do conhecimento
baseado na literatura médica, que apontava a necessidade de se abordar os aspectos
psicológicos na origem e na manutenção das experiências dolorosas, como pela
situação de uma clínica médica que diagnosticava uma depressão associada aos quadros
álgicos. Ao final do trabalho em grupo, havia a possibilidade de opção por uma
psicoterapia individual.
Observava nos atendimentos com esses pacientes, que, para muitos, a dor crônica
era uma situação desvinculada de suas questões subjetivas, parecendo ter uma
existência a parte. Lembro-me de uma paciente que contava pormenorizadamente sua
sensação de dor, o que fazia para diminuí-la, e que ao mesmo tempo, dizia: “bem,
vamos deixar a minha dor de lado, vou falar agora dos meus problemas”. Tal situação
me levava a pensar mais no grau de exterioridade do que na interioridade do fenômeno
somático em relação ao próprio sujeito.
Chamava-me a atenção uma certa complacência com a dor, e observava que o
interesse recaía mais sobre os cuidados do que sobre a cura propriamente. Parecia que
cumpriam com o aspecto formal do Programa sem, no entanto, poder fazer um uso
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deste, no sentido de realizarem mudanças em suas vidas. Apoiavam-se mais na
esperança do funcionamento dos medicamentos. Havia um caráter de imediaticidade
relacionado ao tratamento.
Era como se fosse um pedido para tratar a dor crônica, mas ao mesmo tempo não
podendo abdicar da mesma totalmente. O efeito mais nitidamente observado era sobre a
auto-estima. Faziam referência a uma melhora de suas dores, associada à situação de ter
um espaço onde se sentiam acolhidos. Para esses pacientes a dor parecia ter um efeito
assegurador, apresentava-se como um acompanhante desprazeroso, é verdade, mas
necessário, e pouco conectado com suas vivências subjetivas. A experiência clínica
demonstra, ao trabalharmos com pacientes dolorosos crônicos, que, do ponto de vista
do paciente, são dois os sofrimentos: o sofrimento psíquico existe, mas é o sofrimento
físico que pode ser mais facilmente percebido. As questões que se impuseram a mim a
partir desta experiência, e que se relacionam com esta desarticulação da unidade
psicossomática, foram a mola propulsora deste trabalho, e é sobre elas que pretendo me
ater nesta discussão.
Perguntava-me: poderia a dor crônica estar a serviço de algo que não se podia
abandonar? Sem dor, eles seriam o quê? Quem seriam? Seria a dor crônica uma forma
de comunicação, primitiva e somática, de um sofrimento? Enfim, qual era a função da
dor para estes pacientes?
Porte (1999) desvela a função continente da dor física como salvaguarda da
identidade ameaçada por uma pulsão não elaborada psiquicamente e que tende a se
exprimir num fenômeno econômico potencialmente desorganizador.
Sabemos que a pulsão nasce no corpo e repercute no psíquico. Os aspectos
subjetivos encontram-se assim, apoiados sobre uma estrutura somática, sendo o
somático a condição de possibilidade de existência do psíquico. Não se pode separar o
psíquico do somático, mas deve-se distinguir um do outro, tendo o psíquico sua
especificidade, que se traduz por uma função protetora do soma.
A estruturação e o funcionamento do aparelho psíquico ocorrem na presença
afetiva de um outro que ampara e satisfaz. A experiência de satisfação na relação com o
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objeto cria o desejo, que vai movimentar o aparelho psíquico, retirando o sujeito da
exclusividade das manifestações corpóreas.
No bebê, a aparição da angústia é sentida nas mudanças somáticas desprazerosas
e se relaciona com a pouca produção de pensamentos, sendo traumático qualquer
estímulo que supere as possibilidades do aparelho psíquico.
Como sinaliza Meltzer (1995), um corpo que tenha podido vivenciar desde o
início da vida mental uma experiência de revêrie materna, pode se articular à psique
num movimento contínuo entre corporalidade e pensamento; a psique assumindo assim
sua função protetora do soma. Bion (1966) aponta que a capacidade de rêverie materna
é o que sedimentará a capacidade de tolerância à dor psíquica.
Quando a função de pára-excitação falha de alguma maneira, seja por falta, seja
por excesso, comprometendo a constituição do processo de representação, as
experiências emocionais ficam impossibilitadas de serem elaboradas e simbolizadas.
Ocorre uma inundação de excitação que atinge o corpo, o que parece repetir a situação
de desamparo do bebê. O aparelho psíquico, incapaz de controlar o excesso de
excitação, produz a confrontação do sujeito com uma excitação traumatizante, dando
origem a uma angústia que transborda, pois ele não dispõe de recursos suficientes para
responder a essa excitação pulsional não ligada.
Os acontecimentos traumáticos seriam os desorganizadores do psiquismo,
determinando alterações nos processos de pensamento e na atividade fantasmática.
Estes fenômenos predispõem a criação de barreiras que bloqueiam o acesso da
comunicação do indivíduo consigo mesmo; a mente perde seu controle, e aspectos
emocionais mais arcaicos, ligados à sensorialidade e à corporiedade, tendem a
prevalecer. Dejours afirma que a falha na percepção ocorre quando a sensação não
alcança a percepção. Os indivíduos mal mentalizados, para lidar com o trauma, recusam
a percepção em si mesmos, e se mantêm de forma clemente na sensação. O paciente
com dor não parece imbuído de fazer correlações entre os fatos externos e os fatos
internos.
Estamos, aqui, no terreno do trauma, condição propulsora para a ocorrência das
manifestações psicossomáticas. A manifestação psicossomática se dá em função de
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uma impossibilidade estrutural ou momentânea de elaborar perdas e privações
traumáticas através da via psíquica.
No que diz respeito à psicanálise, Freud concebe o fenômeno da dor como uma
irrupção de grandes quantidades de excitação no seio do aparelho psíquico, que
penetram no sistema de proteção relativos a mundo exterior, e a relaciona com a
passagem do investimento narcísico para o investimento objetal.
Freud, (1895) no “Projeto para uma psicologia científica”, destaca que a dor
psíquica surge em decorrência da ferida narcísica provocada pelo excesso da
quantidade de energia livre, que ultrapassa sua capacidade de ligação, inundando-o. Ele
afirma que a dor produz um aumento do nível de excitação que é sentido como
desprazer, produzindo uma propensão à descarga. O termo “dor” designa, então, uma
sensação física ou aflição associada a uma tensão instintiva, que o aparelho psíquico
tenderá a procurar evacuar segundo o princípio de funcionamento prazer-desprazer.
Para Freud, um evento exterior provoca uma excitação interna, o que o leva a
definir a dor como uma “pseudopulsão”. A dor é, portanto, por sua constância de
afluxo, como uma excitação proveniente do interior do aparelho, o que envolve uma
tentativa de ligar psiquicamente essa energia. O que está em questão aqui nesta
tentativa de ligação? Se pensarmos que o psíquico funda-se a partir das experiências no
corpo e que, como Freud (1923) explica em “O Ego e o id”, o afeto do desprazer é
sentido no ego como uma projeção da superfície corporal, não se poderia então
formular a hipótese de que a dor corresponderia à vivência de um desprazer não
elaborado psiquicamente que leva à “confusão” corpo/psiquismo?
Para Pierre Marty, (1998) o primeiro trabalho de investigação consiste em se
estudar a economia psicossomática do sujeito estimando também a separação dos
investimentos da dor nos setores narcísicos e objetais. Segundo Marty, é a boa
mentalização que protege o corpo das descargas de excitação, à medida que esta
encontra abrigo nas representações existentes no pré-consciente. O comprometimento
da mentalização, ao contrário, deixa o corpo biológico desprotegido. Neste caso, o
sentimento doloroso de frustração tende a ser descarregado de imediato no corpo.
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Parece que este processo de descarga é menos doloroso do que a dor psíquica
provocada por estímulo psíquico.
O pensamento operatório caracteriza-se por não enlaçar o orgânico com a
atividade fantasmática, causando dificuldade em manejar o conceito de temporalidade e
limitando o relato ao atual. Este pensamento é prático, linear, restrito quanto a ampliar
vivências do tipo afetivo ou fantasmático e carece de produção imaginativa, quer dizer,
mostra características de um processo secundário ineficaz. Pode ser entendido como
uma forma resultante de diferentes graus de negatividade do funcionamento mental.
Adquire um valor defensivo, como meio de regular as tensões internas, visando
proteger o sujeito de acessos de angústia cuja capacidade de elaboração se encontra
comprometida. O aparelho psíquico empobrecido, que não realiza o resgate da angústia
para alçá-la às suas possíveis vicissitudes, deixa à excitação expressa no corpo o
trabalho de realizar o movimento de uma pseudopulsão, para alcançar alguma função
simbólica. A dor crônica seria uma manifestação que corresponderia a uma tentativa de
pulsionalização do corpo pelo psiquismo. No caso dos pacientes dolorosos, a pulsão
nasce e morre no corpo, pressiona o corpo e não anima o psiquismo. Assim, não
conseguem apropriar-se desta dor para incorporá-la em suas próprias vivências,
apartando a unidade psicossomática, o que deixa à dor a eventualidade de viver na
beira, portanto, entre o físico e o psíquico: no atalho da história do sujeito.
Seria adequado precisar a manifestação somática como um mecanismo de defesa
regressivo que denuncia necessidades pulsionais que foram renegadas pelo eu? O corpo
expressaria as emoções que não tem ou as que foram reprimidas, e o indivíduo, em vez
de experimentar e elaborar a emoção sofre modificações no corpo. O retorno ao soma
seria devido a uma interrupção no processo de criação das representações.
Há aí então uma (dis) função do aparelho psíquico no que seria sua função
protetora da economia psicossomática do sujeito. Ficam prejudicadas as possibilidades
de elaboração, submetendo o sujeito a uma condição de registro, no soma, da excitação
recebida, como um “buraco psíquico” (que se distinguiria de uma eventual lacuna ou de
uma falta); o excesso de excitação suscitado pela dor entrava toda a atividade de
ligação.
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A dor crônica, neste sentido, seria uma barreira contra a dor mental? Contra o
surgimento de uma dor profunda, insuportável, cumprindo assim uma função defensiva
com relação ao psiquismo inundado pela excitação libidinal não elaborada? Uma defesa
não no sentido de um “mecanismo de defesa”, até porque o funcionamento psíquico
encontra-se insuficiente, mas uma defesa no corpo, a própria trincheira que precisou ser
adaptada como a única possibilidade disponível para conter a submersão do psiquismo;
o objetivo dessa defesa é a sobrevivência. McDougall (1997) refere que, quando a
psique recusa o conflito, é o corpo que vai reagir no lugar dela.
Aproximamos-nos da idéia de que a dor crônica pode ter uma função protetora
para o sujeito, na medida em que, ocupar-se desta dor poderia ser uma forma de não se
ocupar de pensamentos. Trata-se de um recurso: quando há dor, não há sofrimento
psíquico.
Para Marty, a dor pode compensar uma perda objetal, que apareceria se a dor
cedesse.
Na dor, há algo que não pode, ou melhor, que nunca pôde ser elaborado, que é a
perda traumática do outro. Da incapacidade de elaborar esta vivência surge a renúncia
ao objeto, porque a libido que teria destino ao objeto é dele subtraída. A carga libidinal
se concentra no ego, perde-se o interesse pelos objetos, reconstruindo-se o primitivo
estado narcisista. Por meio da redistribuição narcísica da libido, é possível que tal
excitação torne-se imobilizada sob a forma de dor corporal. A dor que aparece como
uma doença do corpo, que coloca obstáculos à atividade de representação e
simbolização e que reforça o empobrecimento da vida psíquica, pode ser uma
reminiscência de sofrimento, uma doença da psique, na verdade.
O que se pode inferir destes pacientes dolorosos é que a dor no corpo denunciaria
a vivência de desamparo, isto é o não dar conta da vida sozinho; é como se a dor fosse
o choro do bebê, que requer constantemente a presença do outro, cuja falta não
consegue suportar. A separação pode ser vivida como trauma, e a dor seria uma
manifestação do auto-erotismo que potencializa o cuidado materno. Porte afirma:
“Onde existe dor, é o objeto ausente, perdido, que está presente” (p.150).
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Na dor crônica, o objeto não poderia ser reencontrado por meio da representação;
é o investimento do corpo dolorido, que assume o lugar do objeto.
O paciente doloroso parece encontrar-se na fronteira entre o funcionamento
narcísico e a relação objetal. Porte esclarece que “a dor é a possibilidade de se alcançar
uma relação objetal sem abrir mão de um narcisismo”. Gromman (1999) refere que a
vivência da catástrofe, saída de um mundo narcísico para o mundo das relações
objetais, poderia levar à criação de defesas, sendo a dor uma expressão.
As dificuldades de se lidar com as questões da relação objetal mantêm o sujeito
vivendo dentro de uma economia de investimento narcísico. O objeto perdido não é
introjetado, como na melancolia, mas recusado, enquanto o corpo vem regressivamente
ocupar o lugar deixado vago. Por quê? Algo falhou. Parece haver consenso de que nos
pacientes com transtornos narcísicos, nos quais prevalecem os transtornos orgânicos, a
função materna foi vivida de forma específica.
A vivência dolorosa teria um papel de proteção do Eu ameaçado em sua
integridade narcísica, ao mesmo tempo em que esta organização seria um campo para o
surgimento de manifestações somáticas e operaria contra a atividade psíquica de
representação e simbolização do que é vivido.
É nesta perspectiva do negativo da atividade psíquica, da exposição às
manifestações somáticas, que nos colocamos de frente à questão da pulsão de morte.
Green (1993) explica que todos os processos que tendem a substituir o investimento do
objeto em princípio para os investimentos narcísicos, e depois os auto-eróticos, e que
desqualificam o objeto, mesmo quando mantêm sua existência, trabalham no sentido da
pulsão de morte. Cada vez que é retirada do objeto uma parte dos investimentos que lhe
são vinculados, é um pouco de vida que é retirada ao sujeito. Aisenstein e Smadja
(2001) relacionam a concepção de pulsão de morte com a destruição dos processos de
pensamento constatados durante os estados operatórios e em certas patologias
comportamentais. Essa pulsão seria mais do tipo de um princípio de morte psíquica
que, sob a forma de impulso desencarnante, ataca e mata o pensamento durante o
próprio processo do pensamento.
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Dejours (1988) realça que a incapacidade do indivíduo de se curar é a
conseqüência de a pulsão de morte de impedir a representação. Isto é o contrário do
recalcamento, da transferência do neurótico. É uma forma de se evitar o sofrimento
psíquico, já que escoa para o somático. Representar é ter uma alusão do objeto que
falta. Resposta visceral para a angústia quando o ego falha; a angústia vem do afeto
solto, que não está ligado a uma representação. Nem tudo é representável, seja por
insuficiência ou por falha do ego, ou seja, alguma situação que vai além da capacidade
de elaborar surge alguma resposta visceral.
A condição de inabilidade para representar, a dificuldade para simbolizar as
próprias vivências e a utilização de vias orgânicas para descarga da excitação,
demarcada como elemento nuclear dessas manifestações, remetem-nos à noção
freudiana de “neuroses atuais”.
Freud revela que, nas neuroses atuais, existe uma incapacidade do aparelho
psíquico para desvencilhar-se da excitação acumulada, a qual denominou “insuficiência
psíquica”. A insuficiência de simbolização tem como conseqüência uma perturbação da
economia psíquica, fragilizando o plano somático.
Freud alerta para o fato de que há duas formas diferentes de se processar a
excitação pulsional: transformando-a diretamente em angústia – na qual resultariam
sintomas somáticos ou, realizando-se a mediatização simbólica, na qual resultariam
sintomas psíquicos. No caso das neuroses atuais, ele destaca a existência de uma área
de formação de sintoma destituído de simbolização.
Retomo uma questão colocada no início quando falava que são dois os
sofrimentos e que, embora, o físico seja o mais evidente, existe também um sofrimento
psíquico. Observava nestes pacientes que havia uma sobre-reação frente às situações
consideradas estressantes, e que se relacionavam com a dificuldade em expressar suas
emoções. Eles percebiam que nestas situações havia uma intensificação da sensação de
dor. Entendo que nestes pacientes a articulação mental-somática está bloqueada,
dificultada, mas parece haver algum ponto de contato entre a dimensão propriamente
somática e a dimensão neurótica.
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Há uma espécie de uso histérico deste fenômeno somático, porque traz benefícios;
é através de suas dores que eles são olhados e cuidados. Isto é, se a dor ocupa um lugar
na relação com o outro, ela caminharia portanto, rumo a uma função simbólica. Na
clínica dos pacientes dolorosos, o sofrimento subjetivo se manifesta essencialmente sob
a forma de sintomas narcísicos, em sujeitos que apresentam dificuldades para articular
as próprias histórias, vivências e dores. Encontrarmos nesses pacientes dolorosos certa
organização histérica sobreposta a uma infra-estrutura psíquica frágil, que aflora em
situações de maior demanda emocional. Essa questão pode conduzir à hipótese de que o
fenômeno da dor crônica, nestes pacientes, poderia ser de natureza mista, somática e
neurótica, um fenômeno de “neurose de mentalização incerta”, conforme define Marty
(1998) para os casos em que se verifica uma irregularidade do funcionamento mental.
A vulnerabilidade somática destes pacientes seria o resultado de um aparelho
psíquico no qual predominam formas de funcionamentos que mostram insuficiente
organização representacional, carência de recursos mentais e tendência à descarga no
soma. Destas características, infere-se a pobreza do processo secundário que permitiria
a estes pacientes elaborar e transformar seus conflitos e, assim, postergar ou inibir esta
descarga.
Penso que os pacientes dolorosos exibem uma tentativa de vinculação psíquica da
experiência traumática, uma vez que a dor crônica passa pelo outro que cuida, passa
pelo apelo ao outro. Ela é sentida como manifestação de vida: é ela que os subjetiva, e é
através dela que eles se relacionam; ela lembra o sujeito o tempo todo de que ele está
vivo e de que não prescinde do outro destinatário de todo apelo. Por tudo isso, este não
consegue abrir mão dela. Ou seja, o investimento na dor é uma forma de reorganizar-se
dentro de um processo de vida, como se a dor crônica intermediasse sua relação com o
mundo.
É possível pensarmos na dor crônica como tendo duas funções: uma
desorganizadora, no sentido de manter um certo grau de recusa à mente, resultante do
despreparo, da fragilidade na forma de o eu lidar com os traumas, e outra
potencialmente organizadora, na medida em que pode funcionar como um alerta para o
sujeito.
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O trabalho de cura visaria à transformação do imperativo da sensação, que impede
o sujeito de apropriar-se de suas vivências subjetivas, para um investimento do
funcionamento do pré-consciente, na medida em que se analisa o conflito na origem da
manifestação somática.
Entre somatização e simbolização, a dor crônica traduz o grito “pseudopulsional”,
oriundo da experiência traumática, que jamais pode transformar-se em marca de falta,
em desejo.
A falta é sentida como uma angústia que transborda para o corpo, porque não
engancha no psíquico, e a dor ocupa o vão que se estabelece na unidade
psicossomática, no limite entre o corpo e a mente, demarcando essa dissociação, ao
mesmo tempo em que tenta organizá-la.
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PORTE, J. M. “La douleur: concept limite de la psychanalyse.” Rev. Franç.
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