PEDAGOGIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL EM UMA TURMA DE
ALFABETIZAÇÃO: UM OLHAR PARA O DIÁRIO DE CLASSE DE UMA
PROFESSORA ESTAGIÁRIA.
LETÍCIA GERMANO (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL).
Resumo
Este trabalho, parte integrante de uma pesquisa de mestrado em andamento, tem
como objetivo problematizar a escolarização da literatura infantil a partir da análise
inicial de cinco diários de classe de alunas do curso de Pedagogia, nos quais
registram seus estágios docentes nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O foco
desta investigação consiste em algumas aulas em que o livro infantil foi utilizado de
modo a pedagogizar o letramento, bem como os discursos engendrados neste
material. Contou–se, para tal análise, com o referencial teórico dos Estudos
Culturais pós–estruturalistas e pós–modernos, que entende o livro infantil e os
diários de classe como parte de um sistema de significação, produtores de
identidades e subjetividades, ou seja, como artefatos culturais. A análise de um dos
diários de classes que fazem parte do corpus da pesquisa, pertencente a uma
professora alfabetizadora em estágio docente, é examinado neste trabalho, tendo
como ponto de partida um mapeamento dos livros de literatura infantis utilizados
ao longo do ano letivo em sua turma de alfabetização, relacionando–o com as
tendências editoriais atuais observadas no site de uma livraria de abrangência
nacional. Tal análise, mesmo sendo inicial, permite a articulação de reflexões sobre
a escolarização da literatura infantil e o caráter deliberadamente pedagogizante
observado em grande parte da atual produção de livros endereçados às crianças.
Palavras-chave:
literatura infantil , letramento, diários de classe.
Apresentação
Quais os livros de literatura infantil que circulam em nossas salas de aula e
de que forma eles são pedagogizados nas classes de alfabetização? Este foi o
questionamento propulsor deste trabalho, que é um recorte da minha pesquisa de
mestrado em andamento. Para isso, faço inicialmente uma reflexão sobre a
escolarização da literatura infantil, assim como um mapeamento das tendências do
mercado editorial de livros infantis destinados às crianças.
Por fim, analiso o diário de classe no período de um ano de uma professora
estagiária alfabetizadora do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, relacionando com as tendências do mercado editorial
atual observadas.
Conto, para tais análises textuais e discursivas, com o referencial teórico dos
Estudos Culturais pós-estruturalistas e pós-modernos, que traz uma nova
concepção de cultura e linguagem. Para este referencial, o conceito de cultura
possui uma dimensão diferente daquela que facilmente reconhecemos no senso
comum. Como Stuart Hall refere, a noção de cultura passou por uma "virada
cultural", uma mudança que passou a "ver a cultura como uma condição
constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente, provocando,
assim, nos últimos anos, uma mudança de paradigma nas ciências sociais e nas
humanidades" (Hall, 1997:27). Dessa forma a linguagem, no seu sentido mais
amplo, possui uma "posição privilegiada na construção e circulação do significado"
(Hall, 1997:28). Sob esse olhar, vemos o diário de classe e a literatura infantil
como artefatos culturais, ou seja, como parte de um sistema de significação,
produtor de identidade e subjetividade. Analisar o uso escolar da literatura infantil a
partir da narrativa de uma professora estagiária permite dar voz a uma narrativa
de experiência, que faz do diário de classe mais que uma formalidade, mas uma
possibilidade de repensar a sua prática docente constantemente.
A pedagogização da literatura infantil
Silveira (2000), nos seus estudos sobre a escolarização da literatura,
enfatiza a conexão existente entre a literatura infantil e a sua missão pedagógica,
haja vista que o próprio conceito de literatura infantil firmou-se com o conceito de
infância. Hoje, os inúmeros catálogos de livros infantis das editoras enfatizam e
lucram com esta relação, assim como o alto investimento de políticas públicas para
a leitura, como o Plano Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE), que investe
milhões na compra e na distribuição de livros de literatura infantil.
Em seu estudo sobre os discursos presentes nos catálogos, Goulart
(2000) mostra como são produzidas verdades sobre a infância e sobre a
pedagogização da literatura infantil a partir dos discursos presentes nesses
materiais. Nos catálogos, assim como nos planejamentos pedagógicos, é visível o
lugar central que a literatura infantil assume nas práticas de escolarização da
infância, assumindo um papel de integrador de um tema especifico.
O texto literário aparece de diversas formas na escola, não apenas no
seu suporte original. São exemplos de outras formas de escolarização do texto
literário o livro didático - que traz cópias de excertos dos livros infantis ou de
pequenos contos ou poemas - as fotocópias em preto-e-branco e os livros ou
adaptações virtuais, utilizados nos laboratórios de informática.
As contações de histórias nas salas de aula da educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental também ganharam um amplo espaço de discussão e
formação. Nas propostas destas atividades, há um discurso sobre a pedagogização
da literatura que surgiu a partir dos anos 70, nomeado por Silveira como "discurso
renovador da leitura na escola", em que a equação "prazer - interesse - leitura hábito - gosto" imperava (Silveira, 1998, p. 112). Ainda hoje essa equação, com
destaque para o "prazer da leitura", é o termo chave em vários materiais e
catálogos sobre livros infantis.
Tendências do atual mercado editorial
Para traçar um mapa das tendências do atual mercado editorial, fiz uma
pesquisa virtual entre janeiro de 2008 e junho de 2009 no site de uma livraria com
grande acervo infantil de abrangência nacional. Para isso, analisei os resumos dos
livros publicados durante o período por essa livraria. Vale salientar que os resumos
geralmente são transcrições das contracapas dos livros, escrito pelos próprios
autores ou editores.
Uma das características observadas é um sem-número de livros infantis
lançados a cada mês, por diversas editoras, assim como o relançamento de obras
da década de 80, época do boom da literatura infantil.
Cerca de dois terços dos resumos analisados são de obras
deliberadamente pedagogizantes. Chamo dessa forma aquelas obras que procuram
formar o sujeito politicamente correto corroborando a concepção de criança como
ser ingênuo, acrítico, dócil, assexuado: seja aquele que respeita as "diferenças"
(docilizando as "deficiências", e com isso, marcando ainda mais as diferenças), o
bem alimentado, o ecologicamente correto, e o bem-comportado, que "ensinam" o
que é ser menino e menina, como somos gerados e nascemos, avizinhando-se a
livros didáticos, inclusive.
Apesar de temas-tabu como a sexualidade infantil se apresentarem nos
livros infantis, alguns personagens ainda não têm voz na literatura infantil, como
gays, transexuais e bissexuais, o que leva à conclusão que a heteronormatividade
ainda impera nos livros infantis. Em outros países, como Estados Unidos e
Inglaterra, por exemplo, há uma crescente publicação de livros infantis com
personagens gays[1].
Outros livros muito comuns desta vertente são aqueles com temas já
consagrados na escolarização inicial, como o tempo (as horas), datas históricas do
calendário regional[2], aniversário de morte ou nascimento de pessoas famosas,
que viram personagens em biografias, e datas comemorativas da história do Brasil.
Como exemplo desta última categoria, cito o livro 1808: A viagem da família real
(Barreto, 2007) sobre a vinda da família real para o Brasil, que destaca os feitos
dos nossos heróis, como são denominados os personagens históricos na narrativa.
Há também livros com personagens de desenhos animados da TV aberta
(adaptações do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato) e de TV por
assinatura, tais como o Barney, Backyardigans, e personagens de filmes da Disney,
frequentemente na lista dos mais vendidos na livraria analisada.
Literatura, alfabetização e letramento
A presença de livros que pedagogizam o letramento e os "auxiliares na
alfabetização" são frequentes no atual mercado editorial. São aqueles livros que ou
"encartilham" os diferentes portadores de texto nas suas histórias, ou então
aproximam-se às cartilhas.
O livro Felpo Filva (Furnari, 2006), selecionado pelo PNBE de 2008[3] é
um exemplo dessa tendência. É a história de um coelho poeta e solitário, que por
ter orelhas de diferentes tamanhos, quando era criança era zombado pelos colegas
da escola. Um dia ele resolve fazer a sua autobiografia e começa a trocar
correspondência com uma fã. Aparecem então diferentes tipos de texto, através da
narrativa literária: receita culinária, manual, bula, telegrama, cartão-postal, letra
de música. No final do livro há, inclusive, um glossário dos diferentes tipos de
textos presentes na narrativa. Abaixo, no arquivo ANEXO 1, apresento o exemplo
do manual de uso da Sticorelia Rabite Perfection (Furnari, 2006: 10), aparelho que
foi usado por Felpo quando criança para tentar "corrigir" sua orelha mais curta,
para exemplificar o uso "encartilhado" de outros portadores de texto na narrativa:
A metalinguagem, presente na história do Felpo Filva, é recorrente nas
atuais narrativas infantis. Percebe-se a presença destes tanto no mercado editorial
atual quanto em parte dos livros selecionados no último PNBE.
Diário de classe: um olhar para a literatura infantil
A análise do diário de classe de uma professora estagiária de Pedagogia,
numa classe de alfabetização, permitiu-me observar de que maneira os textos
literários estão presentes e se eles têm um lugar de destaque na narrativa da
professora, em seu diário[4].
Durante o estágio, com a duração de um ano letivo numa escola pública estadual, a
leitura de textos literários infantis esteve presente em uma de cada três aulas: seja
como a atividade principal ou então como atividade de abertura ou encerramento
do dia letivo.
A escolha dos livros infantis para a hora do conto na sua maioria foi feita
pelos próprios alunos, com livros que eles levavam de casa para a escola. Na sua
maioria, os livros levados pelos alunos eram contos de fadas, muitas vezes, livros
que os alunos ganhavam de presente. A professora destaca na sua narrativa que os
alunos gostavam muito quando o livro sugerido por eles era lido em aula para os
colegas, e a leitura geralmente era seguida de aplausos. Geralmente os livros
indicados pelos alunos eram lidos na hora do conto na sala de aula ou na biblioteca
da escola e a professora não propunha atividades a partir dele.
Quanto às histórias escolhidas pela professora, a preferência também era pelo
portador original - ou seja, ela raramente utilizou fotocópias. A atividade de leitura
era motivadora para outras, como recontagem da história através de desenhos,
reescrita pelos alunos, invenção de paródias. Algumas vezes, a mesma história era
recontada pela professora em mais de um dia, com propostas de diferentes
atividades.
No início do ano letivo, a professora propunha em geral, a leitura de poesias; no
decorrer do ano, foi abandonando o gênero em detrimento de contos. Destes
contos e poesias, o tema recorrente foi a metalinguagem e livros que aproximamse às cartilhas, tendência do atual mercado editorial apresentada na seção anterior.
Uma das suas escolhas foi o livro O Batalhão das Letras[5] (Quintana, 1992) e foi
lido em duas aulas pela professora, propiciando outras atividades. Nesta obra,
podemos observar o vínculo entre as ilustrações de Eva Furnari com o texto
poético, criando uma brincadeira com as palavras que iniciam com cada uma das
letras do alfabeto. Abaixo estão as passagens do livro (p. 26 e 27) destacadas pela
professora em seu diário, aquelas que trazem as letras W e X - a primeira por ser a
letra inicial do nome de um dos alunos e a última escolhida pelos alunos como a
mais "engraçada" por apresentar a palavra xixi. Cabe destacar o uso por Mario
Quintana das letras K, W e Y, já em 1948, o que não era recorrente nos livros
infantis e didáticos até a apresentação da Reforma Ortográfica de 2009, mesmo
que o seu uso social já estivesse estabelecido anteriormente, tanto pelo uso de
estrangeirismos quanto pela grafia de nomes registrados em cartório, como
observamos no arquivo ANEXO 2:
Observa-se, no mapeamento realizado, que obras que funcionam como
"auxiliares na alfabetização" tal como esta de Mario Quintana, são muito frequentes
ainda hoje. A partir do alfabetismo literário, aproximam o alfabetizando do livro, da
forma das letras, das rimas, do jogo lúdico das palavras. Erico Veríssimo, Cecília
Meireles, José Paulo Paes, Ziraldo e Elias José, são autores que também fizeram
uso desta aproximação.
Considerações finais
A tentativa da professora estagiária de aproximar a ludicidade e o prazer a
partir da leitura de livros infantis revela a tendência de valorizar a literatura infantil
como fruição, como uma experiência estética, a despeito da quantidade significativa
de obras deliberadamente pedagogizantes observadas no mercado editorial.
Experiência esta que assume outras formas de pedagogização da literatura, com
aproximações que até pouco tempo não eram muito recorrentes, tais como os
"encartilhamentos" de variados portadores de texto, como observamos no livro
Felpo Filva (Furnari, 2006).
A análise do diário de classe de uma professora estagiária e o mapeamento
das tendências editoriais atuais corroboram os estudos sobre o lugar central que
ainda assume o livro infantil na escola e o seu destaque cada vez maior no mercado
editorial.
Referências
GOULART, Maria Alice Hamilton. O prazer como imperativo, a literatura como
meio, os corpos dóceis como fim: o micropoder dos catálogos de livros
infantis. 2000. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós Graduação
em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre: UFRGS, 2000.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura. Notas sobre as revoluções de nosso tempo.
Educação e Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação da UFRGS, v. 22,
n.2, p. 15-46, jul./dez. 1997.
MAXIMILIANO, Adriana. O patinho agora é gay. In: Revista Veja Online.
Disponível em: .Acesso em 20 set. 2008.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Contando histórias sobre surdos(as) e surdez. In:
COSTA, Marisa Vorraber. Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura,
brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS,
2000. p. 175-204.
_________. Leitura, literatura e currículo. In: COSTA, Marisa (Org.). O currículo
nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. Cap. 6, p. 105128.
Obras analisadas
BARRETO, Gilson. 1808: A viagem da família real. Ilust. Alexandre Cartianu. São
Paulo: Caramelo, 2007.
FURNARI, Eva. Felpo Filva. São Paulo: Moderna, 2006.
QUINTANA, Mario. O Batalhão das Letras. Ilust. Eva Furnari. São Paulo: Globo,
1992.
URBIM, Carlos. Piá Farroupilha. Ilust. Rodrigo Rosa. Porto Alegre: Zero Hora,
2005.
[1] Ver matéria publicada na Veja, O patinho agora é gay, na edição de 31 de maio
de 2006, em que a autora cita títulos publicados com esta temática nos Estados
Unidos (vide referências).
[2] No Rio Grande do Sul, proliferam-se livros sobre a Guerra dos Farrapos: Piá
farroupilha, de Carlos Urbim (2005), é um exemplo desta temática.
[3] O último PNBE que selecionou obras para os anos iniciais do Ensino
Fundamental foi o de 2008. O PNBE de 2009 selecionou obras para os anos finais
do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio.
[4] A escolha deu-se em conjunto com minha professora orientadora, que também
é orientadora de estágio docente e pesquisadora em alfabetização.
[5] Livro do poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994), com ilustrações de Eva
Furnari. Lançado originalmente em 1948. Foi o primeiro livro destinado às crianças
do autor. O Batalhão das Letras também foi selecionado pelo PNBE de 2008.
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