A Princesa, a Gata e a Borralheira: construção de imaginários sobre o casamento
Marina Blank Virgilio da Silva1
Resumo:
O principal objetivo desta pesquisa é refletir sobre a construção de imaginários
que envolvem o casamento, aprofundando a figura da noiva e a associação com o ideal
romântico personalizado na “princesa”, relação central a um imaginário sobre
matrimônio e estética marcado pelos contos de fada. Destaca-se a memória e o papel da
fotografia no ritual.
À noiva são atribuídas as características valorizadas das princesas Disney
clássicas: beleza, graça, elegância. Existe a necessidade de vínculo conjugal da princesa
com um príncipe para a constituição do próprio status de “princesa”, não é uma
conceituação fixa, se faz por imagens cambiantes, está compreendida no imaginário
sobre o que é ser noiva, assim como o inverso.
A construção social que a preparação do casamento é importante para a noiva,
devendo ser realizada por ela, é analisada. Para o noivo, tomar decisões poderia ser
opcional. A mulher é criada para desejar casar e ser uma princesa, mas para o homem o
casamento seria seu "game over". Esta reflexão norteia-se pela desconstrução do
sistema “obrigatoriamente” toda mulher deveria desejar se casar/ todo homem deveria
fugir deste compromisso.
Faz parte deste imaginário figuras como a graciosa Julia de Balzac, oprimida
pelas obrigações sociais, cujo casamento (colocado pelo autor como um dos pilares da
sociedade burguesa) é um longo sofrimento iniciado em uma ideia de amor romântico
juvenil, em “criancices” com um véu nupcial, ou as protagonistas de Jane Austen e o
modelo de casamento aristocrático, base para entendermos o ritual nos dias atuais.
Reflexões como as apresentadas por Dostoiévski em O Eterno Marido e Tolstói em A
Sonata a Kreutzer também são frutíferas para a pesquisa em um desencantamento de
um universo encantado.
Palavras-chaves: Casamento; Imaginário; Noiva; Princesa; Conto de Fada
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da
Paraíba. Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.
1
Ter um casamento completo, com cerimônia e festa é o sonho de muitas
mulheres, e de vários homens também, claro, mas não em proporcional número. O
romantismo está ligado a esse ritual, alimentado pelos contos de fada. A associação
entre ser noiva e querer ser uma princesa, mesmo que por um dia, foi desenvolvida
nesta pesquisa.
É socialmente aceito que um casal inicie uma vida conjugal, morem juntos, até
mesmo tenham filhos, sem estarem casados. Então, por que muitos não abrem mão da
celebração do casamento? Que relações, redes de afinidade e parentesco o casamento
está criando? O casamento é legitimador desse estado, da união. Passa- se de um estado
liminar, em que não se é solteiro, mas que ainda não se tem a confirmação social de sua
posição para a de casal estável. Os status de “esposa” e de “marido” são importantes na
sociedade moderna. Com o casamento, a posição social do casal se reestabelece.
O casamento como ritual de passagem, como rito simbólico, está de certa forma
no imaginário dos noivos, famílias, madrinhas, padrinhos, convidados, cerimonialistas,
fornecedores. Mas não só entre os diretamente envolvidos neste processo, essa é uma
ideia presente no senso comum, no que poderíamos chamar de imaginário coletivo, de
uma forma rudimentar. Há uma aparente tensão, no interior do próprio ritual do
casamento, entre imaginários construídos, expectativas dos noivos, das famílias e dos
convidados. Esta aparente tensão e a construção dela são foco desta pesquisa. A
abordagem principal é através do uso da fotografia, utilizando a técnica de fotoelicitação, e de elementos como filmes, livros e programas de televisão.
Esta pesquisa desenvolvida no mestrado é fruto de pesquisas anteriormente
realizadas durante a graduação. A primeira, para a disciplina de metodologia e pesquisa
de campo em Antropologia, possibilitou interessantes reflexões sobre o casamento e
verificou a falta de pesquisas contemporâneas na área das Ciências Sociais sobre o
tema. A partir desta, que abordava de forma ampla cerimônia e festa como ritual, uma
posterior foi desenvolvida em disciplina de Antropologia Visual, conjuntamente ao
início da pesquisa de Iniciação Científica, recortando o objeto casamento, iniciando a
reflexão sobre a construção de imaginários sobre este tema e inovando a metodologia. A
reflexão parte da necessidade de se compreender por que e como o ritual do casamento
perdura até a modernidade e, apesar da reconfiguração da instituição família
contemporânea, se fortalece.
O apoio na trajetória de mudanças nesse ritual já descrita pela literatura e
contexto em que os casamentos são ou não realizados colaboraram para a possibilidade
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de enxergar um cenário em que as categorias conceituais e símbolos estão inseridos,
além de servir como campo propício para reflexão sobre a inter-relação entre
indivíduos, espaço e tempo, mas não são focos para a pesquisa a ser desenvolvida,
apenas pontos de apoio à análise. Desta forma, não é o objetivo abarcar toda a
diversidade de formas de expressão desse ritual de passagem notadamente presente em
praticamente todas as sociedades e diversas épocas e sim contribuir para o entendimento
antropológico e sociológico deste importante ritual.
Turner, refletindo sobre a experiência, lembrando do que Dewey chamou de
“uma iniciação e uma consumação”, dá como exemplo a cerimônia de casamento como
uma experiência formativa e transformativa, uma sequência distinguível de eventos
externos e reações internas a ele tais como iniciações em novos modos de vida (Turner,
2005). Essa experiência interrompe o comportamento rotinizado, não é um mero
momento, mas um momento, quando a vida pode ser sentida de forma mais intensa e as
trocas são ampliadas. Daí podemos entender a relevância do “dia mais importante na
vida dos noivos”, ou pelo menos um deles, e como o comportamento dos envolvidos
nesse ritual se transforma durante o período de preparação e celebração.
Ainda pensando com Turner (1974), noiva e noivo se tornam personae
liminares, há um contraste entre seu “estado” e a “transição”, é um período ambíguo,
não possuem ainda o status de casados e, portanto, inclusive legalmente, de marido e
mulher, mas por outro lado não são indivíduos separados e nem correspondem aos
papéis de mulher e homens solteiros. No ritual da cerimônia e festa, os convidados
vivenciam “momentos de communitas”, em que há algo de sacralidade.
Nas ciências sociais existe uma percepção de que a relevância dos fenômenos
reside na sua significação, tanto para o observador quanto para os que dele participam.
Por isso é importante destacar que o ritual é maleável, a variabilidade dos ritos de
casamento está não só na diferença entre regiões e religiões, mas entre “tradição”,
“renovação” e “adaptação”, entre imaginários compartilhados. M. Segalen coloca que
perceber a plasticidade dos ritos e se interrogar sobre as condições sociais dessa
variabilidade significa compreender melhor as causas de sua manutenção na sociedade
moderna. (Segalen, 2002). A plasticidade do ritual do casamento impressiona.
Combinada com o seu alto grau de fragmentação é possível que cada elemento se
transforme seguindo uma orientação e não necessariamente quebrando a tradição. A
noiva pode entrar dançando e de vermelho na igreja, mas ainda assim manter uma ideia
romântica de casamento.
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Atentamos às tensões entre a importância do dar, principalmente compreendido
como gastar, e o receber na celebração do ritual. Busca-se uma articulação teórica entre
o simbolismo tradicional, a plasticidade de rito e a reciprocidade da troca entre os
noivos e convidados. E a dupla dimensão possível neste ritual: por um lado pode ser
compreendido como um momento de desprendimento e, por outro, como uma
demarcação social e demonstração de status.
O casamento como negócio e o negócio de casamentos
Este ritual também é uma demonstração de status no sentido próximo de
ranking, prestígio social, como Mauss aponta ao analisar o Potlatch do noroeste
americano. A pompa da celebração mostra abundância para se compartilhar e ser
mostrada. Não importa se esse status é real ou não, se o casamento foi pago vendendo o
que for preciso não é relevante no momento em que está ocorrendo a celebração. No
início da festa do casamento do casal Lontra, antes do aguardado jantar, os noivos,
agora marido e mulher, fizeram um discurso, após agradecer a presença de todos e
ressaltarem o quanto estavam felizes neste dia tão especial, a noiva declarou “só nós
sabemos os sacrifícios que tivermos que fazer para ter tudo isso hoje, só nós”. Com
direito a helicóptero, Rolls Royce, fogos de artifício, tapete vermelho e banquete, o
casamento de princesa e estrela de cinema fez valer um orçamento da realeza de
Hollywood.
2
E viveram felizes para sempre, assim que terminaram de pagar as parcelas
Além dessa dimensão de pompa e demonstração de poder, também há outra, o
verdadeiro desprendimento, a communitas. Noivos e convidados compartilham
momentos de verdadeira comunidade.
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Chegada da noiva Lontra de helicóptero e ida até o espaço da celebração com um Rolls Royce
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“Fui a um casamento em que, no final do convite, lia-se a frase „Os noivos receberão os
cumprimentos na igreja‟. Estando lá, percebi que foi a primeira vez na vida que fui a um casamento
onde não haveria festa, e confesso que só vi vantagens! Não, não pense que não sou adepta a festas,
celebrações e comemorações! Mas sinceramente, sou muito mais a favor da realidade, da
humildade e das escolhas ponderadas, feitas a dois, do que imaginar que tem gente que gasta o que
não pode para fazer uma festa pensando no que os “outros” vão pensar se não servir vinho tipo „A‟
e sim tipo „B‟ mais em conta, ou ainda que compare seu casamento à festa da amiga, da colega de
trabalho, ao da prima abastada e que faz de tudo para tentar superá-los, entrando numa verdadeira
competição ilusória sem sequer perceber que está indo por este caminho… Infelizmente, o que mais
vemos por ai são exibicionismos que realmente não têm nada a ver com a celebração do amor, da
vida a dois, da constituição de uma família.
(...) Estou contando esta história aqui porque sei que muitas noivas que passam por aqui, por opção
ou não, não terão uma festa de casamento. Que esta história inspire você a seguir em frente, a ter
certeza de que o seu casamento será único e especial, porque ele será realizado com o item mais
importante de todos: com amor.” 3
Este depoimento retirado de um blog voltado para noivas traz questões que as
ciências sociais podem trabalhar. Busco contribuir para o aprofundamento das reflexões
sobre a lógica da troca e a relação com o imaginário em construção.
No artigo de Maria de Fátima Araújo, a autora coloca que o casamento
malthusiano é um modelo de união conjugal em que a procriação não é o objetivo
principal do casamento. Não se trata de uma nova conduta que valoriza a vida comum,
respeito entre os cônjuges e afeição compartilhada como na História da Sexualidade de
Foucault. Nesta perspectiva, coloca-se como um sistema de casamento que privilegia a
ética cumulativa, o desejo de ascensão social e o individualismo possessivo (valores da
ideologia burguesa). Malthus propôs uma avaliação dos custos e benefícios do
casamento O casamento seria assim uma escolha racional, economicamente racional. O
matrimônio seria algo que envolveria custos econômicos e sociais consideráveis, que
deveriam ser pesados contra suas vantagens. Implica mais despesas e responsabilidades.
Por isso, Malthus condenava o casamento antes da independência financeira. Araújo
destaca que, com o desenvolvimento capitalista, esse modelo de casamento malthusiano
se espalha pelo mundo, sofrendo as adaptações necessárias às diferentes culturas e
níveis de desenvolvimento econômico. Por outro lado, precisamos atentar que a variável
econômica é importante, mas não é dominante. Há facetas de imaginários sem valor
econômico imediato. Imagens e fantasia constituem realidade, não são apenas ficções,
3 http://enoivasblog.com/os-noivos-receberao-os-cumprimentos-na-igreja/
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não estão descoladas do real e nem podem ser desqualificadas como lado irracional da
compra.
Em contraposição, ou ainda coexistindo à perspectiva racionalista, nota-se que o
circuito que noivas e noivos percorrem no processo do casamento (Feiras de noivas &
debutantes, visitas a fornecedores, workshops) é cheio de novidades, deslumbramento,
sabores, cheiros, texturas, negociações, decepções, sacrifícios e sonhos. O mercado de
casamentos faz circular bilhões de reais anualmente.
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Predominantemente, esses espaços são frequentados pelas noivas, por vezes
acompanhadas de seus noivos, mães ou amigas. É uma verdadeira maratona, são horas
andando de estande em estande, fazendo contatos, conhecendo novos produtos e
serviços, tendo ideias para o casamento, negociando descontos de feira, fazendo
degustações e assistindo aos desfiles de moda para noivas, noivos e debutantes. Quando
o casal está junto, pode ser um momento de certa tensão, ele entediado, ela querendo a
opinião dele, frenética em busca da compra ideal. Logo na entrada da primeira feira
visitada por mim, no guichê, ouvi um noivo reclamando, “E ainda por cima eu tenho
que pagar para entrar nesse lugar?”. Em um estande de um local para casamentos
presenciei uma noiva mais nervosa, “Vem aqui agora, a gente veio para ver as coisas
juntos, e vamos ficar juntos”- “Mas eu queria ver aquilo ali”, diz ele - “Vem logo! Fica
do meu lado!”, reafirma ela - fornecedores e outras pessoas que estavam negociando
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Feira da Noiva & Debutante realizada em Santo André- SP
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orçamentos ficaram caladas, sem reação. O noivo voltou e ficou parado ao lado da
noiva. Este é um exemplo de um tipo que ficou conhecido como “bridezilla”, termo em
inglês que brinca com as palavras Bride (noiva) e Godzilla (monstro do filme japonês
de 1954), que pode ser traduzido para o português como “noiva neurótica”. Mas o caso
também reflete a construção social de que a preparação do casamento é importante para
a noiva e deve ser realizada por ela, não pelo noivo, para ele, então, tomar decisões
poderia ser opcional. Este ponto será retomado mais adiante na análise.
Para os fornecedores, as feiras são um grande momento para fechar negócios,
caso eles percebam que você não irá assinar nada naquele momento, rapidamente já
focam a atenção nos próximos interessados. A relação comercial se sobrepõe, de uma
maneira quase irônica, à ideia reiterada constantemente de que os noivos (mais
especificamente, a noiva) merecem atenção total, pois aquele é um dos momentos mais
especiais
de
suas
vidas,
vendido
como
“o”
momento
mais
especial.
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As feiras de noiva também são, em letras miúdas, de debutantes. Os dois
universos compartilham o mesmo imaginário, as poses, decoração, vestidos, fotos,
álbum e filmagens seguem a mesma construção romântica. A diferença é que para a
debutante, ainda falta o noivo. A comparação é colocada pelo universo da pesquisa, faz
parte do entendimento sobre a construção de imaginários sobre o casamento.
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Foto negociação estande de vestidos e acessórios no Salão das Noivas & Debutantes
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“Mas eu queria tanto um vestido de baile para meu casamento... Sabe, eu não pude ter uma
festa de quinze anos... É minha última chance de parecer uma princesa”
O glamour de fogos de artifício brilhando no céu em um grande momento, seja
ele o début de uma jovem que completa quinze anos, o dia de princesa de uma noiva em
seu casamento ou no “felizes para sempre” de uma princesa Disney é mais uma imagem
compartilhada por este imaginário que estamos tentando reconstruir neste pesquisa.
A Disney lançou em 2013 uma linha de vestidos inspirada nas princesas, a
coleção tem o nome Quinceañera Disney Royal Ball, voltada para o público latino dos
Estados Unidos e Canadá. Gilberto Martínez Kladt, vice-presidente de licenças da
divisão Disney Princess, afirmou para o jornal brasileiro Folha de São Paulo (versão
virtual) que "A Disney está muito contente por poder brindar as jovens latinas e criar
oportunidades para celebrar com elegância, graça e porte de seus personagens favoritos
das Princesas da Disney em uma ocasião tão especial e memorável".
Desde 2012, a Disney investe comercialmente em sua linha para noivas,
Disney´s Fairy Tale Weddings and Honeymoons (Conto de fada da Disney –
Casamentos e Luas- de-mel ), a Bridal Collection é a linha de vestidos para noivas
inspirada nas princesas, descrita pelo site como “homenagem às princesas que se
atrevem a sonhar, Alfred Angelo (estilista que assina a coleção) revela uma
impressionante coleção de vestidos que capturam a essência de cada Disney Princess:
sua graça, sua centelha e sua beleza lendária. O seu era uma vez agora está em uma
criação de noiva etéreo alimentada pela fantasia, romance e aventura, desde as
profundezas do mar para muito acima das nuvens.” (tradução da pesquisadora).
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Foto esquerda: desfile vestidos de debutante em uma Feira de Noiva & Debutante; Foto central:
chegada da noiva Lontra em seu casamento; Foto direita: imagem W. Disney Pictures presente na
abertura de seus filmes.
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Tanto à debutante quanto à noiva são atribuídas as características valorizadas das
Princesas Disney clássicas. Beleza, graça, elegância, verdadeiras Cinderelas em seus
dias de conto de fada. A pesquisa de Michele E. Bueno, mestre pela Universidade de
São Paulo, também sobre a construção de imaginários femininos, ainda que focada no
universo infantil, chama a atenção sobre a necessidade de vínculo conjugal da princesa
com um príncipe para a constituição do próprio status de “princesa”. Vale citar a fala de
uma das crianças: “Tia, para ser princesa precisa casar, né? Senão não vai ser
princesa, vai ser solteira!” (cf. Bueno, 2012).
Bueno apresenta uma dicotomização operada pela Disney entre “Princesas
clássicas” e “Princesas rebeldes”. Os referenciais de feminilidade dispostos pelas
protagonistas Disney apresentam continuidades, caso contrário não estariam todas sob a
mesma rubrica de “Princesas”, mas também importantes rupturas. Um eixo de
continuidade da forma feminina entendida como “princesa” destacado pela autora é a
potencialidade de sucesso do amor conjugal. Pensando na personagem Cinderela como
representante das “Princesas clássicas”, sua caracterização e comportamento a levam ao
“felizes para sempre”. Como Bueno descreve, Cinderela parece flutuar pelo salão, com
seus gestos contidos e grande discrição chama toda a atenção para si, principalmente a
do príncipe, que, por diferenciá-la das demais moças casáveis no salão, a convida para
dançar e já nesta primeira dança ocorre o primeiro beijo. O beijo final do conto de fada
evoca o casamento como desfecho. A personagem do Grão-duque já sussurra ao rei que
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Foto esquerda: http://f5.folha.uol.com.br/humanos/2013/05/1279329-disney-lanca-linha-de-vestidospara-debutantes-inspirados-nas-princesas.shtml ; Foto direita:
https://www.disneyweddings.com/disney-boutique/bridal-gowns/
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“o coração (do príncipe) lhe diz que ela é a jovem destinada a ser sua noiva”. Esse
triunfo do amor romântico, do amor à primeira vista reflete um imaginário de que
“foram feios um para o outro”, “estão destinados a ficar juntos”. O casamento que se
coloca como destino final é corroborado pela cena que finaliza o filme: o príncipe e
Cinderela, agora sua esposa, saem de seu casamento em uma linda carruagem ao som do
coro que canta “seu dia feliz, um dia vai chegar; não importa o mal que te atormenta se
o sonho te contenta e pode se realizar”.
Mulan é a representante das “Princesas rebeldes” trabalhada na pesquisa de
Bueno. Quase cinco décadas depois de Cinderela suportar bondosamente a crueldade da
Madrasta, calçar seu sapatinho de cristal e se casar com o príncipe, a heroína da China
Imperial da Disney é uma jovem que foge de casa e vai para a guerra no lugar de seu
pai, após ser humilhada pela casamenteira da vila por não possuir as qualidades
esperadas de uma “noiva exemplar” (calma, reservada, graciosa, educada, delicada,
refinada, equilibrada, pontual, praticamente uma Cinderela). Travestida de soldado,
encontra seu amado, o Capitão. Depois de salvá-lo e salvar o Império contra os hunos,
se torna uma heroína de guerra, através de disciplina, força e coragem, que acabam a
conduzindo àquelas qualidades que como noiva em um modelo de feminilidade clássico
não alcançaria. Vale ressaltar que em nenhuma das coleções de vestidos
comercializadas pela Disney, seja para debutantes ou noivas, inspiradas nas Princesas,
há algum modelo “Mulan”. A associação entre noiva (e debutante) e princesa não é
realizada com qualquer princesa, a “noiva exemplar” do filme infantil repercute na
noiva real.
As protagonistas estão ligadas à marca de “Princesas” por caminhos diversos,
Cinderela pela delicadeza e passividade, Mulan por sua rebeldia e coragem, porém
ambas chegam a um mesmo ponto no final de seus filmes, a realização do amor
romântico e conjugal. Importante destacar que no caso da segunda, esse desfecho não se
realiza no longa-metragem, apenas orienta nesta direção. Interessante notar que a
criança da pesquisa de Bueno não considerou Mulan uma princesa por esta não ter se
casado no final. A ideia de princesa, desta forma, parece estar compreendida no
imaginário sobre o que é ser uma noiva, e vice-versa. Não é uma correspondência
direta, claro, inclusive porque o que se entende por “princesa” não é uma conceituação
fixa, se faz por imagens cambiantes. Ainda assim, a própria dicotomia da Disney
demonstra: uma imagem ressoa na outra, reforçando espelhamentos.
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Simbolismo, sonho, comunhão e finanças
Essa é a mensagem que recepciona os visitantes do site do casal Gade8:
Queridos familiares e amigos, criamos esse site para todos participarem de
alguns detalhes da realização de mais um sonho que Deus colocou em nosso coração.
É com a imensa alegria que estamos compartilhando com todos a contagem
regressiva do nosso casamento, que é o dia mais feliz das nossas vidas, também
queremos que todos conheçam um pouco da nossa história de amor escrita pelo dedo
de DEUS!
Obrigada pela sua visita!
Novamente aparece a ideia do “dia mais feliz na vida dos noivos” e o casamento
como sonho compartilhado. Além do amor romantizado e a importância religiosa.
“Te wo nobaseba kimi ga ita mada kokoro ni kimi ga ita”, o verso da música da
banda japonesa favorita do jovem casal Miyavi, viciado em animes, mangás,
videogames e afins, está no topo do convite de seu casamento. A questão da presença ou
não da tradução foi debatida entre noiva e madrinha, a primeira só cedeu quando a
segunda argumentou que o convite deveria ser a primeira forma de compartilhar essa
experiência dos noivos com os convidados, deixar apenas em japonês seria uma forma
de excluí-los do significado, ao invés de ser um momento de compartilhamento. Para o
leitor sentir também o clima desse casamento, segue a tradução: “Quando eu estendi
minha mão livremente você estava lá, no meu coração você continuava lá”.
Este “momento compartilhado” podemos associar ao conceito de communitas
em Turner, “uma comunidade, ou mesmo uma comunhão, de indivíduos iguais que se
submetem em conjunto à autoridade geral” (Turner, 1974) com um componente
sagrado adquirido pelos beneficiários das posições sociais nos “ritos de passagem”, esse
momento de transitória humildade legitima as posições sociais e implica que sem a
liminaridade “o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse”, da mesma forma
como os casados não o seriam sem que existissem os solteiros, e o ritual do casamento
reestabelece essa diferença estrutural, ao mesmo tempo em que estabelece um momento
transitório de ausência de “status”, em que noiva e noivo são figuras liminares. Ainda
pensando com Turner, noiva e noivo se tornam personae liminares, há um contraste
entre seu “estado” e a “transição”, é um período ambíguo, não possuem ainda o status
de casados e, portanto, inclusive legalmente, de marido e mulher, mas por outro lado
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Nomes de colaboradoras e colaboradores pesquisados e entrevistados nesta pesquisa foram alterados
11
não são indivíduos separados e nem correspondem aos papéis de mulher e homens
solteiros.
Aquilo que chamamos aqui de communitas criada no casamento é um processo
peculiar, espontâneo, que pode ocorrer dentro de um fluxo de relações que estão
afirmando todo o tempo o “status” dos participantes enquanto reativam o parentesco,
não estabelecendo exatamente igualdade.
Um exemplo ocorrido durante festa de
casamento do casal Gade mostra esses “momentos de communitas” que o ritual pode
gerar: a primeira dança do casal como esposa e esposo é claramente um espaço de
estabelecimento de desigualdade no ritual, os noivos tomam o centro do salão e apenas
eles estão dançando, enquanto convidados os cercam e observam, mas os Gade,
seguindo uma nova moda na dança do casal que tenta quebrar a tradicional valsa
tocando um pot-pourri inesperado de vários ritmos, sem ter a intenção de gerar uma
experiência de comunhão, gerou. A faixa musical iniciou com uma valsa tradicional,
mas o trecho seguinte era uma canção gospel famosa entre os convidados (os noivos se
conheceram na igreja e praticamente todos naquela celebração frequentavam o mesmo
templo evangélico), quando noiva e noivo seguiram com a coreografia, todas e todos ao
redor começaram a cantar e dançar junto a eles, em poucos segundos o círculo ao redor
do casal estava desfeito, todos estavam animados ocupando o centro, os trechos
seguintes da faixa de músicas de sucesso agrupadas mantiveram a experiência
compartilhada por todos, até que a valsa inicial voltou a tocar, espontaneamente as
convidadas e convidados voltaram a se posicionar em círculo ao redor dos noivos e
observar o fim da dança, a diferenciação estava reestabelecida.
O caso dos convites do casal Miyavi e a dança dos Gade colocam a questão de
que no casamento há vários símbolos, seus significados muitas vezes são
compartilhados pelo senso comum, como a troca de alianças, a tradição de se jogar o
buquê, mas há simbologias particulares, elementos que fazem sentidos apenas para o
casal, como uma música que será tocada, algo na decoração que lembre um momento
especial, será que estes significados devem ser partilhados com os convidados para que
eles possam entrar na lógica total (ou tentar) da celebração?
O processo do casamento pode ser algo que une mais o casal ou que gere
grandes tensões entre os dois. O casal Gade realizou as visitas aos locais e fornecedores
em conjunto, assim como as negociações contratuais. Ambos tinham direito a voz e
voto, e ambos utilizavam esse direito, as opiniões da noiva e do noivo foram levadas em
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consideração em cada decisão. A indecisão dos dois se complementava, mesmo que
discórdias surgissem.
O casal Miyavi teve uma experiência diferente. O noivo Miyavi, partindo da
ideia “você é a estrela do dia” em relação à sua noiva, se isentou da obrigação de ser um
noivo presente no passo a passo do casamento. No comportamento desse casal está
exemplificado o senso comum de que casar é o sonho da mulher, o dia dela de ser
princesa, por isso é a noiva que tem que cuidar de cada detalhe e tomar decisões de
“estilo”, cabendo ao noivo ser rigoroso com o orçamento. Mas neste caso, o salário de
ambos estava financiando a cerimônia e festa. Acessórios populares, principalmente
camisetas, brincam com esse senso comum estampando “Game over” (fim de jogo) para
o noivo, o que reforça a construção social de que esse é, na verdade, “o dia mais
importante da vida” da noiva, o homem é uma figura indispensável, mas não central, e
deseja manter seu papel como coadjuvante principal.
Em Feiras de noivas há vários estandes de locais especializados no “dia da
noiva”, espaços em que ela relaxará e será arrumada para o grande momento, se
analisarmos com mais atenção os orçamentos, geralmente na última página também há a
opção do “dia do noivo”, com menos serviços oferecidos, uma fornecedora, ao me
abordar em uma Feira se eu já tinha escolhido o espaço para meu dia e ouvir em
resposta que, na realidade, nunca tinha prestado muita atenção a este aspecto do
processo do casamento, disse “nossa, como? É o dia do noiva!” e eu complementei “e
do noivo”, ela rapidamente “ah, sim, também, do noivo também, tenho opções para os
homens. Mas, de verdade, todo mundo presta atenção é na noiva, né?!”. O negócio do
casamento tem um público alvo insistentemente feminino.
Esta é uma questão que não pode ser simplificada como unilateral. É um padrão
de comportamento ensinado e reforçado socialmente desde a infância, a menina sonha
em encontrar seu príncipe encantado, a mulher realiza seu conto de fada em seu
casamento, mas ninguém ensina o menino a ser o príncipe e o homem se sente livre da
obrigação de lidar com preparativos do casamento. A escritora feminista Chimamanda
Ngozi Adichie, em uma entrevista para o jornal paulista O Estado de São Paulo,
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apontou que ainda hoje são as mulheres que valorizam o casamento e o compromisso,
os homens não. Além disso, busca responder sobre generalização desse comportamento
afirmando que “a mensagem da mídia, hoje, é: „Como manter um homem‟, „Como
encontrar um homem‟. E mesmo que você seja uma superprofissional ou tenha uma
empresa, não está totalmente satisfeita de verdade até encontrar um homem. Essa é a
mensagem. Com os homens é diferente. Então, as mulheres são criadas para achar que
o casamento é muito importante. Os homens não.” 9. Seu interesse é como mudar esse
padrão de comportamento, o interesse desta pesquisa, refletindo sobre imaginários
construídos em relação ao casamento, é também explorar como essas ideias de noiva e
de noivo operam nos casos estudados.
Uma comunidade da rede social Facebook , Moça, você é machista, seguida por
mais de trezentas mil pessoas, compartilhou um conteúdo que provoca o outro lado do
estereótipo, comumente associado às “bridezillas” que já citamos, não coloca o
comportamento do homem em questão, mas o da noiva principalmente.
10
Um depoimento, que segue a imagem acima, de uma seguidora da página, criada
por uma educação machista que sempre a incomodou e que conheceu o movimento
feminista durante a graduação em psicologia, é mais um exemplo desta lógica ensinada
para mulheres e homens, do casamento reestabelecendo diferenças de gênero: "Tenho
26 anos e meu noivo 25. Nos casaremos ano que vem. Sempre que conto, todos ficam
felizes. Porém, meu noivo, quando conta, perguntam se ele não acha que é muito novo e
9
Entrevista disponível em http://blogs.estadao.com.br/sonia-racy/as-mulheres-sao-criadas-para-acharque-o-casamento-e-muito-importante/
10
Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=535573199868998&set=a.346412782118375.809
17.346411042118549&type=1&ref=nf
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dizem que deveria aproveitar mais a vida. O que mais me espantou foi uma mulher que
disse a ele pra ele aproveitar muito até o casamento, por que depois não poderia mais!
Meu noivo respondeu que o compromisso existe mesmo ainda não casado. Enfim. Pra
mulher, casar é sempre bom, nova ou velha. Somos úteis se esposas e só. Pro homem
não. Quanto mais aproveitar, melhor. Esse machismo entra em nossas vidas por tantas
vias que as vezes minha vontade é sumir e esquecer. Mas enquanto houver luta, eu
estarei de pé."
Como mostrado na imagem, diversos modelos de topos de bolo, item de
destaque na festa de casamento, representam as noivas como carrascas de noivos
desesperados para fugir. “Obrigatoriamente” toda mulher deveria ter que desejar se
casar, assim como todo homem deveria fogir deste compromisso. Dois estereótipos para
uma lógica que opera duas personagens, uma supostamente feminina e outra
supostamente masculina, ambos preciam ser rompidos.
A noiva Miyavi sentiu falta da presença do noivo para tomar conjuntamente as
decisões, principalmente porque ela não quer decidir nada que depois ele não goste.
Enquanto fomos fechar o contrato dos convites, a sogra acompanhou, mas o noivo foi
jogar futebol com os amigos. Ela ficou comentando o quanto estava chateada que o
noivo não estava lá e brincando com a sogra para que ela brigasse com o rapaz. Minutos
depois o noivo ligou, o tom da noiva mudou completamente, sua voz, muito amável,
nem citou o fato de estar chateada. No momento de assinar o contrato, ela ainda tirou
mais uma foto com o celular e enviou para o noivo, assim teria certeza que era isso
mesmo, que ele iria gostar de tudo. No mesmo dia, após alugarmos o vestido, noiva
Miyavi queria que seu noivo se juntasse ao grupo para escolher os itens da lista de
presentes do casamento. O noivo falou que iria sair para tomar umas cervejas com os
amigos e não poderia acompanhá-la. Mais uma vez a noiva ficou magoada, mas
justificava a ausência do noivo, quase que para ela mesma, “ah, é melhor deixar ele lá,
tudo bem, se ele vier vai ser pior, vai ficar emburrado, eu conheço ele, quando ele não
quer alguma coisa é melhor deixar para lá”.
Encantando e desencantando um universo romantizado
A pesquisa está sendo realizada entrelaçando cinco tecidos, refletindo sobre a
construção de imaginários através do acompanhamento de casais durante o processo e
na data do casamento, com entrevistas baseadas na técnica de folhear conjuntamente o
álbum de casamento, pela comparação entre noiva e debutante, por um olhar atento ao
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circuito de serviços relacionados ao ramo de casamentos e através dos discursos
reproduzidos e reprodutores de filmes, programas de televisão sobre o tema e literatura,
principalmente contos de fada.
No decorrer da etnografia, são recolhidos informações e materiais que servem de
objeto para uma elaboração teórica posterior. É uma ferramenta útil para a compreensão
do modo como as pessoas veem a sua experiência. Assim como Ingold propõe,
antropólogos trabalham e estudam com pessoas (cf. Ingold, 2011), a imersão buscará
alcançar o imaginário construído pelas pesquisadas e pesquisados.
Uma importante técnica metodológica é a observação participante, com inserção
da pesquisadora nos grupos observados durante partes do processo de preparação para o
casamento e o dia da cerimônia em si. Uma das entradas no campo foi através da
participação como assistente de cerimonialista, para poder observar etapas da
preparação e os “bastidores” do grande dia. Também houve o caso de uma situação de
participação-observação, já que em um dos rituais de casamento observados, a
pesquisadora também foi madrinha dos noivos, já sendo parte integrante do grupo
observado, realizando uma participação profunda e integrada. Existe um conflito
relacionado à observação participante ativa, decorrente da prática de uma etnografia
verdadeiramente participante, se tenta evitar participar das mudanças ou mesmo
provocá-las. Também se coloca a pergunta: não correrá o investigador o risco de
introduzir os seus valores na situação que estuda, devido ao seu grau relativamente
elevado de implicação? Neste caso específico, já era conhecida a dificuldade da
pertença íntima ao grupo social observado, mas isso não condicionou ou enfraqueceu a
objetividade do processo investigativo, por isso este material rico em detalhes de
“bastidores” também faz parte da análise.
Partindo do método utilizado por Sylvia C. Novaes em “A construção de imagens
na pesquisa de campo em antropologia”, tendo em mente que as fotos podem
desencadear conversas cruciais para obter dados de pesquisa, motivando o assunto,
possibilitando introduzir questões, esclarecer dúvidas e colher depoimentos, as
entrevistas são realizadas baseadas na técnica de observar conjuntamente álbuns de
casamento, foto-elicitação. Um dos focos é, então, a fotografia, como memória, arte e
construção do ritual. O argumento da memória não está só na teoria visual, mas nas
negociações
das
feiras
e
estúdios.
É possível pensar nos álbuns de casamento como retratos de família. A partir da
reflexão de M. M. Leite sobre esses retratos, é importante pensar no processamento
16
inconsciente de imagens, para além do processo mecânico, tanto de tirar, quanto de
olhar fotos. A autora diz que “ao olhar retratos, a pessoa que olha está sempre à
procura de uma relação entre ela e a imagem, cada uma verá parcelas e níveis
diferentes da fotografia”. Assim, a forma que eu, como pesquisadora, vejo as fotos de
um casamento, não será a mesma que a do fotógrafo profissional do ramo, e certamente
os noivos verão algo bem diferente, principalmente por se verem naquela imagem e a
relacionarem com suas lembranças e emoções do momento. Novamente pensando em
M. Leite, “o que ficou registrado pode não ser o que se quer reproduzir”. A fotografia
não só documenta este dia, ela o cria. O posicionamento, a luz, as poses, vários
elementos
orbitam
o
processo
de
cobertura
fotográfica
do
casamento.
A presença intrusiva de uma equipe de fotógrafos e filmagem parece um ruído na
sacralidade do altar no momento da benção religiosa. Entre noiva, noivo, celebrante,
madrinhas e padrinhos, fixos em suas posições no palco/ altar, circulam livremente os
fotógrafos, alterando o cenário em busca do melhor enquadramento e montagem. Para
aqueles que estão na plateia, os convidados, aquelas figuras de preto atrapalham a visão.
Aqueles que estão em seus papéis no altar têm que estar o tempo todo atentos a suas
expressões e posturas. Mas essa presença estranha já foi incorporada ao ritual, esse
elemento “paparazzo” reflete um imaginário de “estrelas de cinema” que noivas e
noivos alimentam. Esse ruído desaparece nos álbuns, a cerimônia é representada como
arte sem interferências. O fotógrafo ajuda a construir a memória, mas não será
lembrado.
As fotos de casamento costumam sugerir uma narrativa, evocando certos roteiros,
mais flexíveis na concepção moderna de fotojornalismo na cobertura de cerimônia e
festa, mas esse roteiro não é só do profissional, compartilha um imaginário sobre o que
deve ser documentado e então lembrado nesta celebração. A estética da moda também
está presente, principalmente nos retratos da noiva no making-of, como a preparação de
uma modelo antes do editorial. Essa etapa da maquiagem e de se vestir também mudou
no ritual de casamento, como uma mise-en-scene dessa etapa, a mulher virando “noiva”.
Em outras ocasiões, as mulheres se fecham para se maquiar e se vestir e só se mostram
prontas, mas neste novo conceito de fotografia de casamento, as noivas publicam esse
processo de produção. A maquiagem e roupagem perderam aquela atmosfera intimista e
“misteriosa”, do tipo a “noiva-só-pode-ser-vista-depois-de-pronta-senão-dá-azar”. O
ritual pode não ser declaradamente teatral, mas o casamento se coloca não como
17
encenação, mas realidade ensaiada, com papéis e falas, figurinos próprios e cenário
elaborado.
11
L. Bittencourt, em “Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica
na pesquisa antropológica, aponta a ambiguidade da imagem fotográfica, que se
encontra na tensão entre realismo e não realismo inerente ao processo de criação e
interpretação da fotografia, afirma que “a imagem fotográfica produz uma síntese
peculiar entre o evento representado e as interpretações construídas sobre ele”. Desta
forma se colocam tanto a captação de imagens no casamento por profissionais, que
seguem mais ou menos flexivelmente um roteiro baseado em momentos “tradicionais”,
fotos que todo álbum de casamento deve ter, quanto as imagens feitas pelos convidados
e por fim a imagem construída por aqueles que participam do ritual sobre si mesmos.
Bittencourt também aponta outra questão fundamental ao nosso objeto, a imagem
indica não só uma memória que lhe é intrínseca, mas também evoca uma memória que
lhe é externa, a memória do expectador. Ver e rever as fotos do casamento se torna uma
continuação do ritual, uma etapa que não se limita, que faz aquele dia circunscrito e
limitado temporal e espacialmente extrapolar essas fronteiras e se tonar “eterno”.
A fotografia de casamento é um instrumento de análise e pesquisa que se mostra
muito frutífero para a busca da forma como se constrói imaginários sobre esse ritual.
Como Bittencourt afirma, elucidam experiências sociais como formas de prática
simbólica, no processo imagético, processo de atribuição de significados produzidos
11
Making-of noiva Gade.
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pelos atores sociais, pensando também na negociação de sentidos. Em “A fotografia e a
vida cotidiana: ocultações e revelações”, J. S. Martins afirma que o ato fotográfico é
construção imaginária, como conjunto narrativo de histórias, assim como no álbum de
casamento, se propõe como memória dos dilaceramentos, como recordação do que não
retornará. Também coloca que “a fantasia é um dado fundante da identidade”, assim, a
noiva que se fantasia de princesa, está construindo uma imagem de si especialmente
para “seu grande dia”, que reflete um imaginário romântico compartilhado desde a
infância, assim como a debutante.
O trabalho com outras imagens, além dos álbuns, tal como obras
cinematográficas e programas televisivos sobre casamento é estímulo para ampliar a
reflexão e a investigação, constituindo o último tecido metodológico desta pesquisa.
Considera-se que esses filmes e programas são da maior importância para a constituição
de imaginários sociais e também universo compartilhado das noivas e famílias
envolvidas na pesquisa, por sua ampla inserção social e possibilidades de reflexão. A
literatura também é uma fonte muito importante para uma pesquisa que tem como foco
alcançar imaginários, no caso do ritual do casamento, os contos de fada e a imagem de
“princesa” são fundamentais para esta construção, desde a infância, principalmente para
as mulheres. Folheando um álbum promocional em um estande de local para realização
de cerimônia e festa, que, aliás, busca imitar a arquitetura de um castelo, visualizei uma
frase que resume esse encantamento construído: “Seu dia, seu conto de fadas”.
12
12
Foto esquerda: Cena do filme Noivas em Guerra. Foto central: Casamento temático
Princesas Disney realizado em Missouri, EUA. Reportagem disponível no blog
http://geekiss.com/2013/07/casamento-princesas-disney/#comments. Foto direita: Boneca
Disney princesa Ariel noiva e príncipe Eric
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configurações”. (In: Psicologia: Ciência e Profissão, vol. 22, n°2, Brasília, junho de
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de gênero em uma etnografia com crianças”. 2012. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade
de
São
Paulo,
São
Paulo,
2012.
Disponível
em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-08012013-124856
CAIUBY NOVAES, Sylvia: “A construção da imagem na Pesquisa de Campo em
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Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. (Rio de Janeiro, Zahar, 2004,
edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges).
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Disponível como artigo em: http://proc.britac.ac.uk/tfiles/154p069.pdf
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A Princesa, a Gata e a Borralheira: construção de imaginários sobre