ANA, UMA BALA E UMA MITRA: 55 ANOS DEPOIS∗
Ana Maria César é pernambucana de Recife. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife e em Letras Neolatinas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Católica
de Pernambuco. Como literata, é membro da Academia Recifense de Letras, da União Brasileira de
Escritores/Seção Pernambuco e da Academia de Letras e Artes do Nordeste. Filha do Desembargador
Amaro de Lira e César e de Áurea Ventura de Lira e César, Ana Maria iniciou sua vida de escritora
com um ensaio biográfico sobre seu pai – Lira e César, Juiz de Caruaru, em 1981. Mas foi com a
obra A bala e a Mitra, com 1ª edição em 1994, que se destacou no cenário literário, vencendo o
prêmio Vânia Souto Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras. Nesta entrevista concedida à
jornalista Clareana Arôxa, Ana Maria César apresenta um pouco das razões que a levaram a escrever
essa grande obra sobre um fato que marcou a sociedade pernambucana – o “Crime do Padre
Hosana”.
Por Clareana Arôxa∗∗
Matar compensa e limpa a honra? O que é a injustiça? Qual a linha tênue do sagrado e do
humano? O crime compensa? Estas e outras repostas são desvendadas no livro A Bala e a Mitra,
da escritora Ana Maria César. As outras perguntas ficam perambulando no inconsciente da gente
junto à tentativa de construir uma imagem concreta do personagem principal.
O enredo é uma reconstrução da vida do pároco Hosana de Siqueira, responsável pela
igreja de Quipapá, no interior de Pernambuco. Padre Hosana lidava, diariamente, com a sombra
da perseguição, caminhava entre o abismo da realidade e da loucura, a passos calmos.
Na primeira edição de A Bala e a Mitra, em 1994, Ana reconta os meandros do assassinato
de Dom Expedito Lopes, que morreu a tiros e a calúnias vindas de Hosana. O crime chocou toda
uma sociedade que ainda era governada pelas leis católicas e jogou luz aos comportamentos
humanos que eram modelados de acordo com os portões sagrados da igreja de Quipapá.
Nesta segunda edição, cinquenta e cinco anos depois e após o assassinato brutal do padre,
Ana sentia falta de parágrafos para completar a história, de vozes que não foram escutadas.
Foram quando renasceram as verdades antigas e os fatos novos, como revelou a autora. Um
emaranhado de informações que surgem da vida e com o desenrolar dela e que nem sempre
∗
Entrevista concedida à jornalista Clareana Arôxa no dia 18 de dezembro de 2012, especialmente para a Revista Documentação e
Memória do TJPE.
∗∗
Graduada em Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau.
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garantem um final feliz. Maria José, personagem inédita nesta versão, nos mostra que existem,
frequentemente, ângulos diversos, poeiras que se acumulam debaixo do tapete e que muita gente
não faz questão de varrer. Se o crime não compensa, pelo menos rende boas histórias. Agora,
Ana Maria César e Padre Hosana podem descansar em paz.
RDM: VOCÊ ESCREVEU OUTROS LIVROS, UNS RELACIONADOS À POESIA.
COMO SURGIU A BALA E A MITRA?
Me tornei escritora para escrever a história do meu pai, Amaro de Lira e César, que saiu
da seca na Paraíba e se tornou presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco. O livro chamase Lira e César.
Meu pai e minha mãe tinham a mania de fazer xerox, de cortar tudo o que eles viam nos
jornais. Resultado: quando eu resolvi escrever sobre o trabalho que eles desenvolviam, em
Caruaru, com os menores carentes - na época, chamados de menores infratores -, vi que tinha
muito material guardado. Quando eu fui pegar todos os papéis que eles tinham, encontrei o
relatório da comissão de inquérito do crime do padre Hosana. Tinha 15 anos na época quando o
crime aconteceu e meu pai foi designado presidente da comissão, saiu Estado afora para fazer as
investigações. Então, coloquei um dos capítulos, no livro sobre ele, falando sobre esse trabalho.
Quando terminei o Lira e César, um jornalista que sempre revisava os meus trabalhos me
perguntou o porque eu não escrevia só sobre o padre Hosana. Mas eu não era escritora, só queria
registar o trabalho do meu pai. Espero sempre o momento certo, não me adianto. Passados
alguns anos, o momento chegou e comecei. Destaquei muitas coisas no jornal, fui ao cartório de
execuções criminais, tirei o processo e o levei para a minha casa. Xeroquei todas as partes da
inquisição. Eram oito volumes. Selecionei só as partes que queria, junto com os depoimentos.
Cheguei a entrevistar pessoas, mas, passados 35 anos, a memória não é a mesma. Então, todo o
livro é baseado no processo.
RDM: E COMO FOI ISSO, DEPOIS DE TANTOS ANOS, CHEGAR O MOMENTO
DE ESCREVER SOBRE PADRE HOSANA?
O jornalista me deu o endereço dele, na cidade de Correntes. Então, mandei o livro Lira e
César para ele. O padre me respondeu, dizendo que havia gostado muito do livro, só não
concordava com o que estava escrito no capítulo 36, que as verdades só ele sabia. Eu disse que
estava querendo escrever um livro sobre o crime, que não era julgamento, seria apenas uma
descrição do acontecido e que queria marcar um encontro. Tempos depois, ele respondeu
dizendo que vivia na cidade de Garanhuns, que poderíamos marcar uma conversa e que queria
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que eu arranjasse uma escritora para editar o que ele tinha escrito. Mandei outras cartas para
marcarmos a data do encontro, mas não obtive resposta. A partir daí, parti para a pesquisa, saí em
loco.
RDM: AS PESSOAS TINHAM RECEIO DE FALAR SOBRE O ASSUNTO?
De jeito nenhum. A primeira pessoa que eu entrevistei foi a irmã Cândida, que tinha as
relíquias de Dom Expedito, já considerado santo pelo povo. O processo, no entanto, ainda está
no Vaticano. Eu entrevistei pouca gente, já que demorei para saber da história.
RDM: E NINGUÉM DESCOBRIU, ATÉ HOJE, QUEM ASSASSINOU PADRE
HOSANA?
Não. Possivelmente, foram ladrões. Outros já haviam passado lá para roubá-lo e tinhamno deixado pendurado numa árvore. É possível que tenha sido um desses ladrões que estavam
passando e tentaram entrar na casa. Quando viram que tinha alguém, pegaram uma barra de ferro
e mataram ele. Foi exatamente essa madeira que o pessoal coloca para fechar a porta. É uma
trava. No interior tem muito isso, já que não tem trava de segurança. Então a pessoa pegou o
negócio de madeira e bateu na cabeça dele. Um homem de 80 e poucos anos, morreu na hora.
RDM: E COMO FOI O PROCESSO DE APURAÇÃO PARA CHEGAR AO LIVRO?
Depois de pegar as notícias e o processo, fui ao arquivo público. Eu tinha as notícias,
também, porque uma pessoa de Quipapá me deu um álbum de recortes sobre o crime. A parte de
julgamentos, mesmo, eu tive que ir ao arquivo público copiar à mão, porque não tinha – e como
ainda hoje não tem – como xerocar. Hoje, ainda, as pessoas podem tirar foto e é o que estou
fazendo, mas, na época, não tinha nada disso. Naquele tempo, o jornal Diário de Pernambuco estava
microfilmando o acervo e ninguém podia mexer. Então, eu contratei uma estagiária de História,
que trabalhava lá, na época, para me ajudar, à tarde. No período que eu trabalhei de manhã, no
SENAC, ia à tarde para o acervo. Ela pegava o Diário de Pernambuco e eu pegava o Jornal do
Commercio. Toda a parte dos três julgamentos foi tirada no jornal.
Dou um valor imenso é a jornal. Ele comete erros, mas registra o momento. Agora estou
fazendo um trabalho sobre Henrique Galvão. Ele sequestrou um navio, na Venezuela, e queria ir
para a África começar uma revolução contra Salazar. Mas, não conseguiu chegar e veio bater no
Recife. Todo esse meu livro é baseado nos jornais do Recife.
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RDM: PADRE HOSANA FICOU BUZINANDO NO SEU OUVIDO, TODOS ESSES
ANOS, PARA QUE VOCÊ ESCREVESSE SOBRE ISSO?
Ele ficou. Quando eu fui começar a pesquisa, disse a meu pai. Ele já estava esclerosado e
não conseguia verbalizar direito, mas ainda me disse pra não fazer, porque era perigoso. Ele ficou
com uma ideia muito maior do perigo do que eu, porque ele chegou a entrevistar o padre
Hosana, junto com as pessoas que lidavam com ele.
Mergulhei no tempo pretérito para lá descobrir como se dera essa relação. Lembrei que,
enquanto Hosana vivera, a mídia vez por outra noticiava fatos e acontecimentos a ele ligados. No
entanto, o que mais me inquietava era perceber que minha história estava incompleta. Não havia
provas do relacionamento de Maria José com Hosana. Quanto à doméstica Quitéria, essa eu
pensava serem apenas boatos que a ligavam ao sacerdote. Esse o sentimento que me habitava à
época da publicação da primeira edição. Nos anos seguintes, eu ainda anotava e guardava tudo
que se referia ao Caso de Garanhuns.
Quando decidi escrever a segunda edição, agora acrescentados os fatos dos últimos anos,
como o assassinato de Hosana e o conhecimento de cartas de Maria José, vivenciei a plenitude de
atingir a verdade dos fatos (se é que verdade existe), e acredito que desde então estou em paz.
Hosana é uma porta fechada nas minhas investigações. Percebi isso ao decidir doar todo o meu
acervo da pesquisa do livro ao Memorial da Justiça, coisa que seria impensável se ainda estivesse
envolvida com os acontecimentos. Normalmente fico literalmente "agarrada" aos meus papéis,
sobretudo se são referentes a documentos primários, ainda mais sabendo que o processo está
desaparecido.
RDM: NO DECORRER DA HISTÓRIA, A FIGURA DE PADRE HOSANA
CAMINHA POR VÁRIOS LADOS. ORA, ELE É INJUSTIÇADO, ORA
TRAIÇOEIRO. QUE CONCLUSÃO TIRAR?
No primeiro livro, não sabia da existência de Maria José, tanto que me cobravam bastante.
Apenas no julgamento é que você sabe da verdade. No primeiro livro, achei que havia uma rigidez
grande do Expedito, que quis acabar com a jogatina na cidade, mas depois vi que não era bem assim.
Porque havia uma perseguição cultural, como a uma mulher desquitada. No entanto, não
havia uma perseguição à igreja, devido ao poder ser hegemônico, incontestável. A sociedade
sustentava a estrutura da igreja. Tanto que, quando Maria José ficou grávida, foram dizer ao bispo
imediatamente.
Padre Hosana gostava das pessoas até elas discordarem dele. Quando isso acontecia, ele
achava que era perseguido. E essa perseguição era patológica. Percebi isso quando vi que ele
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escrevia cartas abertas e mandava registrar em cartório. Essa necessidade de autoafirmação é atípica,
além da forma que ele as escrevia, sempre se vitimando. Não acho que havia uma perseguição e,
sim, embates com pessoas que continuavam indo à missa. Uma das coisas que eu achei que foi
realmente agressiva foi o fato de Dom Expedito falar, em público, que o padre cobrava mais para
realizar batizados. O pior é que ele cobrava mesmo e ainda mandava dinheiro para sua família. Era
comum, na época, os pais mandarem os filhos serem padres para garantir um sustento.
Além disso, eu achava que a história da empregada da casa era boato do povo, mas,
analisando bem o comportamento dele, dá para ver que é verdade. A carta de Maria José dizia
que a vida dela havia se tornado um inferno porque ele também começou a assediar essa moça.
Eu digo isso porque uma senhora guardou as correspondências e os documentos do padre, por
35 anos, em uma paróquia que ele deixou com as portas abertas, em Quipapá, logo quando
aconteceu o crime. Ela não sabe o motivo de ter guardado todas essas informações durante anos.
Eu digo, sempre, que existem anjos que ajudam os pesquisadores. Cheguei a encontrar, por acaso,
o coroinha de padre Hosana e ele me deu o começo do livro.
RDM: PARA VOCÊ, PORQUE O PROCESSO DESAPARECEU?
Não sei, mas não vejo como um roubo. Acho que alguém colocou em algum lugar e não
sabe. Não acredito que devam existir interesses para abafar essa história. No dia do lançamento
do livro, tudo voltou à tona. Fizeram uma entrevista comigo e com ele. Uma emissora de TV
mandou uma pessoa para lá, para entrevistá-lo, e ele queria publicar o que ele tinha, mas, quando
as editoras liam o material, viam que não tinha coisa com coisa. O laudo psiquiátrico confirma
suas paranoias.
RDM: VOCÊ ACHA QUE EXISTEM OUTRAS VERDADES, ALÉM DAS ANTIGAS?
Não. Eu ia aos locais e as pessoas me perguntavam sobre o que eu estava escrevendo e
sempre me diziam para colocar a versão de Maria José. Não tenho mais dúvidas. As coisas
acontecem tão naturalmente na vida. Podia ter sido algum desafeto, já que ele vivia brigando com
todo mundo. Aquele casal não o matou, mas foram acusados pela mídia, já que esta precisava de
uma história.
O padre era tão amoral e nem sabia disso. E também tinha uma paranoia de fazer
denúncias. Em Correntes, todo mundo me disse que não se preocupavam mais com ele porque
ele era “louco”. As pessoas que conviviam com ele diziam que, após o crime, continuou o
mesmo: brigando com todo mundo e indo à delegacia denunciar pessoas que se diziam do contra.
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RDM: PADRE HOSANA DESCANSOU NA SUA CABEÇA OU AINDA CONTINUA
APARECENDO?
Fechou. Com esse segundo livro, sinto que prestei uma grande contribuição a nossa
história. A jornalista Taís Araújo entrevistou muita gente e ficou com tanto material que veio à
tona quando ele foi assassinado. O que ela tinha era idêntico ao que possuo. Não encontrei uma
única página que destoasse do meu livro.
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