Bolívar, Chávez e o bolivarismo: uma transformação de quase
200 anos
Bolívar sempre presente nas aparições de Chávez | Google Images
Talvez nenhum líder político nascido no século XVIII tenha tanta presença em nossos
dias quanto Simón Bolívar, nascido em 1783 em Caracas, na Venezuela, e morto em
1830, há 181 anos, em Santa Marta, na Colômbia. O homem que é a inspiração de Hugo
Chávez foi notícia recente e não apenas por seu aniversário, transcorrido no último
domingo (24), mas pela exumação de seu cadáver. Na Venezuela bolivariana persiste a
discussão sobre se Bolívar teria sido assassinado – hipótese defendida por Hugo Chávez
– ou não. Os últimos estudos não chegaram a uma conclusão sobre a causa da morte.
“Os resultados obtidos não permitem conhecer as causas da morte e, menos ainda,
respaldar as teorias de assassinato, ainda que a possibilidade de envenenamento por
arsênico ou cantaridina tenha ficado em aberto”, declarou o próprio vice-presidente da
República Bolivariana da Venezuela, Elías Jaua. Seus restos foram exumados por
ordem do 19° Tribunal de Controle de Caracas e a televisão venezuelana transmitiu a
abertura do túmulo. Ou seja, Bolívar é assunto de debate permanente no país.
“O novo mundo deve estar constituído por nações livres e independentes, unidas entre si
por um corpo de leis em comum que regulem seus relacionamentos externos”.Simón
Bolívar
A citação acima é um das mais caras a Hugo Chávez e ao bolivarismo atual – ela fala de
nações livres, fora da influência das metrópoles da época; também fala em nações
independentes politica e economicamente; além disso refere-se a uma união entre elas,
como os atuais blocos econômicos.
O historiador Alberto Garrido – considerado o maior especialista em “Revolução
Bolivariana”, autor de 12 livros sobre o tema e falecido em 2007 -, dizia que o novo
bolivarismo buscava conciliar uma democracia participativa com um partido civilmilitar de esquerda e que esta era uma ligação ou reinterpretação muito própria dos
fatos e das intenções de Simón Bolívar, herói das guerras de independência da
Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia (assim nomeada em sua
homenagem).
Segundo os bolivaristas, El Libertador teria sido não somente um líder militar como um
visionário e revolucionário. Seu sonho era o de transformar a América Latina numa
confederação de países livres, unidos entre si por um corpo de leis comuns com a
finalidade de tratar do comércio e de uma política externa comum. Em síntese, sua ideia
era a de construir, no hemisfério sul, uma espécie de Estados Unidos da América do
Sul. O mais perto que chegou disso foi a criação da Grande Colômbia, país estabelecido
pelo Congresso de Angostura e existente entre os anos de 1819 a 1830. O país era
constituído pelos territórios das atuais Venezuela, Colômbia, Panamá e Equador, além
de territórios que hoje pertencem ao Brasil, à Costa Rica, ao Peru e à Guiana.
O ponto de contato buscado por Hugo Chávez com Bolívar é basicamente o desejo de
uma América Latina “livre e independente do domínio dos EUA”. Se ele não busca uma
outra Grande Colômbia, busca parceiros, tendo chegado a presentear os presidentes Evo
Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Daniel Ortega (Nicarágua) réplicas da
espada de Simón Bolívar.
O Prof. Dr. Jair Antunes, da UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste do
Paraná) critica as lideranças latino-americanas de esquerda que se colocam “sob o
manto de Bolívar na perspectiva de um retorno continental da Revolução Bolivariana”.
Para apontar a incoerência da esquerda, ele começa por citar o ensaio Bolívar e Ponte
(1858), de Karl Marx. Para Marx, Bolívar é um falso símbolo da luta antiimperialista
latino-americana. “Suas ações consistiam basicamente em proclamar a libertação
nacional dos povos oprimidos contra o imperialismo sem, no entanto, alterar
fundamentalmente as relações entre as classes sociais, quer dizer, sem alterar a estrutura
sócio-econômica”.
Extremamente hostil, Marx ataca mesmo a abolição da escravatura no formato proposto
por Bolívar. Ela não estaria relacionada a “uma consciência humanista do herói”, diz
com ironia, “mas sim ao medo instalado na burguesia de uma possível revolta popular”.
Marx cita uma carta de próprio punho que Bolívar endereçou a seu principal general,
Santander, em 20 de abril de 1820. Na carta, Bolívar esclarece que a liberdade
concedida aos negros que se alistassem no exército nacional não estaria vinculada à
necessidade de aumento do efetivo do exército, mas sim “à necessidade de diminuição
de seu perigoso número”. Assim, o recrutamento dos negros às fileiras do exército
serviria para eliminá-los em combate.
O professor Jair Antunes afirma que nem mesmo Marx foi suficiente para que, no
século XXI, a esquerda latino-americana abandonasse a e idolatria a Bolívar. “Ao
contrário, essa esquerda o transformou em uma referência para a classe trabalhadora
latino-americana, passando a inventar um Bolivarismo diferente, símbolo de toda uma
suposta luta antiimperialista latino-americana”.
Segundo o discurso de Hugo Chávez, pronunciado em 19 de agosto de 2005 no “XVI
Festival de la Juventud”, o bolivarismo seria bem diferente daquele retrato de Bolívar
pintado por Marx. “A Revolução Bolivarista pode ser definida como um processo de
transformação caracterizado por quatro macrodinâmicas: 1) a revolução
antiimperialista; 2) a revolução democrática-burguesa; 3) a contrarrevolução neoliberal;
4) a pretensão de chegar a uma sociedade socialista do século XXI”.
O historiador Alberto Garrido afirma que Chávez mistura elementos históricos e
políticos de momentos diferentes, tentando conciliar uma democracia participativa com
um partido civil-militar de esquerda.
Segundo o professor de Sociologia e História Econômica no Centro Universitário
Fundação Santo André (CUFSA), Carlos Cesar Almendra, o bolivarismo de Chávez
passa necessariamente por três figuras centrais: por El Libertador, ou seja, o próprio
Simón Bolívar; por Simón Rodriguez, professor de Bolívar, que na década de 1820
defendia uma educação de caráter igualitária e uma América com sua própria
identidade; e por Ezequiel Zamorra, líder popular do século XIX, inimigo das
oligarquias e defesor que os movimentos de camponeses e militares deveriam lutar pela
reforma agrária e pela democracia direta.
O professor lembra que os três libertadores empreenderam suas lutas no início do século
XIX, no período histórico em que as lutas progressistas na América Latina eram
sinônimos de lutar contra a metrópole em favor da independência. Mais: os três
libertadores são de um momento no qual a obra marxista sequer existia.
Um dos termos mais utilizados na política venezuelana é o da “união cívico-militar”.
Seu foco central é, obviamente, o estabelecimento de uma aliança entre os militares e
não-militares. Tais premissas baseiam-se em fatores realmente alienígenas ao Brasil.
Ocorre que a formação dos militares venezuelanos é muito diversa da brasileira. Lá há
membros do exército que são de direita, outros que são de esquerda e todos se
manifestam. Os de esquerda vêem nas lutas da Coluna Prestes e na história pessoal de
Luiz Carlos Prestes um referencial prático do engajamento militar nas questões
políticas. Assim como há grande participação dos militares na vida política nacional, a
figura lendária de Simón Bolívar é costuma ser frequente e cada vez mais invocada. Os
ideais bolivaristas são fundamentais para o entendimento dos embates que se colocam
na Venezuela, sobretudo porque não influenciam apenas os venezuelanos, mas o
movimento guerrilheiro das FARCs na Colômbia através das ideias de Zamorra.
Para Pablo Uchoa, autor do livro Venezuela – A encruzilhada de Hugo Chávez, “a
história do bolivarismo na Venezuela é também a história da esquerda traída deste país,
uma esquerda que passou anos à margem da política negociada no Congresso e nas
instâncias oficiais do poder. Parte dela veio se refugiar nos Andes na década de 1960,
onde nasceram as primeiras células guerrilheiras inspiradas na revolução cubana. Assim
nasceu uma ideologia que fundia o sonho de Simón Bolívar com as teorias socialistas”.
Ao mesmo tempo, o bolivarismo vai se aprofundando na sociedade venezuelana através
do governo chavista que o cita pelos mais variados motivos. Outro fato a ser
considerado é o sucesso dos chamados círculos bolivarianos. Estes são grupos
organizados, formados sempre por um número entre sete e onze pessoas, que se reúnem
para discutir os problemas da sua comunidade, canalizando-os para o órgão competente
a fim de buscar soluções. Funcionam como pequenas assembleias populares em que se
discutem problemas de interesse local e do dia a dia e a prestação de serviços
comunitários. Eles foram criados para dar capilaridade à revolução, criando agentes de
difusão que alcançam os pequenos recantos da sociedade”.
E, para dar capilaridade à revolução, “o único requisito para conformar um círculo
bolivariano é compartilhar os ideias de Bolívar, sem importar sexo, nacionalidade, raça,
religião, cor, estado civil, profissão ou ocupação”.
FONTE: http://www.sul21.com.br
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