Tristeza no céu No céu também há uma hora melancólica. Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas. Por que fiz o mundo? Deus se pergunta e se responde: Não sei. Os anjos olham-no com reprovação, e plumas caem. Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor caem, são plumas. Outra pluma, o céu se desfaz. Tão manso, nenhum fragor denuncia o momento entre tudo e nada, ou seja, a tristeza de Deus. Carlos Drummond de Andrade Introdução: Ganhei o livro “Poesia Completa - Carlos Drummond de Andrade” como prêmio em um concurso de poesias na Comunidade/Blog Poemblog – o espaço da poesia. Desse livro selecionei as poesias que mais gostei e organizei este e-book para compartilhar com todos estes belos, criativos e muitas vezes irreverentes poemas. Boa leitura! Lenise Marques – janeiro de 2.010 Biografia de Carlos Drummond de Andrade: Poeta, contista e cronista mineiro (1902-1987) . Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura latino-americana. Nasce e passa a infância numa fazenda em Itabira. Estuda em Belo Horizonte e em Nova Friburgo (RJ). Forma-se em Farmácia (1925) em Ouro Preto, mas não exerce a profissão. Volta a Belo Horizonte, onde freqüenta as rodas de escritores. Integra o grupo que funda A Revista, publicação literária de tendência nacionalista que se torna o veículo mais importante do modernismo mineiro. Em 1926, entra para o jornalismo no Diário de Minas. Lança o primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930 e, quatro anos depois, assume a chefia de gabinete do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Permanece no serviço público Até a aposentadoria. Ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) no início dos anos 40, escreve poesias de fundo social, como Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945). Mas a indignação pelas desigualdades sociais não lhe tira o profundo lirismo, o senso de humor e a emoção contida. A partir de Claro Enigma (1951), volta a registrar o vazio da vida humana e o absurdo do mundo. Em 1954 passa a escrever crônicas no Correio da Manhã e, em 1969, no Jornal do Brasil. Entre suas obras estão Lição de Coisas (1962), Os Dias Lindos (crônicas, 1978) e Boca de Luar (crônicas, 1984). No meio do caminho Canção amiga Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos. Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me vêem, eu vejo e saúdo velhos amigos. No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Eu distribuo um segredo como quem ama ou sorri. No jeito mais natural dois carinhos se procuram. Carlos Drummond de Andrade Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Cidadezinha qualquer Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Carlos Drummond de Andrade Eta vida besta, meu Deus. Carlos Drummond de Andrade Quero me casar Quero me casar na noite na rua no mar ou no céu quero me casar. Procuro uma noiva loura morena preta ou azul uma noiva verde uma noiva no ar como um passarinho. Depressa, que o amor não pode esperar! Carlos Drummond de Andrade Segredo O amor bate na aorta (trecho) Cantiga do amor sem eira nem beira, vira o mundo de cabeça para baixo. Suspende a saia das mulheres, tira os óculos dos homens, o amor, seja como for, é o amor. ...o amor desenha uma curva propõe uma geometria. Amor é bicho instruído. Olha: o amor pulou o muro o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar. Pronto, o amor se estrepou. Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino. Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca às vezes sara amanhã. Carlos Drummond de Andrade A poesia é incomunicável. Fique torto no seu canto. Não ame. Ouço dizer que há tiroteio ao alcance do nosso corpo. É a revolução? o amor? Não diga nada. Tudo é possível, só eu impossível. O mar transborda de peixes. Há homens que andam no mar como se andassem na rua. Não conte. Suponha que um anjo de fogo varresse a face da terra e os homens sacrificados pedissem perdão. Não peça. Carlos Drummond de Andrade José E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? Carlos Drummond de Andrade Jardim Negro jardim onde violas soam e o mal da vida em ecos se dispersa: à toa uma canção envolve os ramos, como a estátua indecisa se reflete no lago há longos anos habitado por peixes, não, matéria putrescível, mas por pálidas contas de colares que alguém vai desatando, olhos vazados e mãos oferecidas e mecânicas, de um vegetal segredo enfeitiçadas, enquanto outras visões se delineiam e logo se enovelam: mascarada, que sei de sua essência (ou não a tem), jardim apenas, pétalas, presságio. Carlos Drummond de Andrade Dorme, meu filho. Consolo na praia Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te, de vez, nas águas. Estás nu na areia, no vento... Carlos Drummond de Andrade Canto esponjoso Bela esta manhã sem carência de mito, e mel sorvido sem blasfêmia. Bela esta manhã ou outra possível, esta vida ou outra invenção sem, na sombra, fantasmas. Umidade de areia adere ao pé. Engulo o mar, que me engole. Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz azul completa sobre formas constituídas. Bela a passagem do corpo, sua fusão no corpo geral do mundo. Vontade de cantar. Mas tão absoluta que me calo, repleto. Carlos Drummond de Andrade Composição E é sempre a chuva nos desertos sem guarda-chuva, algo que escorre, peixe dúbio, e a cicatriz, percebe-se, no muro nu. E são dissolvidos fragmentos de estuque e o pó das demolições de tudo que atravanca o disforme país futuro. Débil, nas ramas, o socorro do imbu. Pinga, no desarvorado campo nu. Onde vivemos é água. O sono, úmido, em urnas desoladas. Já se entornam, fungidas, na corrente, as coisas caras que eram pura delícia, hoje carvão. O mais é barro, sem esperança de escultura. Carlos Drummond de Andrade Memória Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. Carlos Drummond de Andrade amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita. Amar Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa Carlos Drummond de Andrade Tempo e olfato Que me quer este perfume? Nem sequer lhe sei o nome. Entre o ser e as coisas Onda e amor, onde amor, ando indagando ao largo vento e à rocha imperativa, e a tudo me arremesso, nesse quando amanhece frescor de coisa viva. Às almas, não, as almas vão pairando, e, esquecendo a lição que já se esquiva, tornam amor humor, e vago e brando o que é de natureza corrosiva. N'água e na pedra amor deixa gravados seus hieróglifos e mensagens, suas verdades mais secretas e mais nuas. E nem os elementos encantados sabem do amor que os punge e que é, pungindo, uma fogueira a arder no dia findo. Carlos Drummond de Andrade Sei que me invade a narina como incenso de novena. Que me passeia no corpo como os dedos tangem harpa. E me devolve ao pretérito e a um ser de lava, quimérico, ser que todo se esvaía pela porta dos sentidos, e do mundo, em que saltava, qual dum espelho lascivo, retirava a própria imagem na pura graça da origem... Cheiro de boca? de casa? de maresia? de rosa? Todo o universo: hipocampo no mar celeste do Tempo. Carlos Drummond de Andrade As rosas do tempo Admirável espírito dos moços, a vida te pertence. Os alvoroços, Azul, em chama, o telúrio reintegra a essência do poeta, e o que é perdido se salva... Poesia, morte secreta. as iras e entusiasmos que cultivas são as rosas do tempo, inquietas, vivas. Carlos Drummond de Andrade Erra e procura e sofre e indaga e ama, que nas cinzas do amor perdura a flama. Ar Carlos Drummond de Andrade Brinde no banquete das musas Poesia, marulho e náusea, poesia, canção suicida, poesia, que recomeças de outro mundo, noutra vida. Deixaste-nos mais famintos, poesia, comida estranha, se nenhum pão te equivale: a mosca deglute a aranha. Poesia, sobre os princípios e os vagos dons do universo: em teu regaço incestuoso, o belo câncer do verso. Nesta boca da noite, cheira o tempo a alecrim. Muito mais trescalava o incorpóreo jardim. Nesta cova da noite, sabe o gesto a alfazema. O que antes inebriava era a rosa do poema. Neste abismo da noite, erra a sorte em lavanda. Um perfume se amava, colante, na varanda. A narina presente colhe o aroma passado. Continuamente vibra o tempo, embalsamado. Carlos Drummond de Andrade Ciência Começo a ver no escuro um novo tom de escuro. Começo a ver o visto e me incluo no muro. Começo a distinguir um sonilho, se tanto, de ruga. E a esmerilhar a graça da vida, em sua fuga. Carlos Drummond de Andrade Descoberta O dente morde a fruta envenenada a fruta morde o dente envenenado o veneno morde a fruta e morde o dente o dente, se mordendo, já descobre a polpa deliciosíssima do nada. Carlos Drummond de Andrade Moinho Viver Mas era apenas isso, era isso, mais nada? Era só a batida numa porta fechada? E ninguém respondendo, nenhum gesto de abrir: era, sem fechadura, uma chave perdida? Isso, ou menos que isso, uma noção de porta, o projeto de abri-la sem haver outro lado? A mó da morte mói o milho teu dourado e deixa no farelo um ai deteriorado. Mói a mó, mói a morte em seu moer parado o que era trigo eterno e o nem sequer semeado. Da morte a mó que mói não mói todo o legado. Fica, moendo a mó, o vento do passado. Carlos Drummond de Andrade O projeto de escuta à procura de som? O responder que oferta o dom de uma recusa? Como viver o mundo em termos de esperança? E que palavra é essa que a vida não alcança? Carlos Drummond de Andrade Recomendação Neste botânico setembro, que pelo menos você plante com eufórica emoção ecológica num pote de plástico uma flor de retórica. Carlos Drummond de Andrade Boitempo A palavra mágica Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo. Vou procurá-la. Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura ficará sendo minha palavra. Carlos Drummond de Andrade Entardece na roça de modo diferente. A sombra vem dos cascos, no mugido da vaca separada da cria. O gado é que anoitece e na luz que a vidraça da casa fazendeira derrama no curral surge multiplicada sua estátua de sal, escultura da noite. Os chifres delimitam o sono privativo de cada rês e tecem de curva em curva a ilha do sono universal. No gado é que dormimos e nele que acordamos. Amanhece na roça de modo diferente. A luz chega no leite, morno esguicho das tetas e o dia é um pasto azul que o gado reconquista. Carlos Drummond de Andrade Orion A primeira namorada, tão alta que o beijo não a alcançava, o pescoço não a alcançava, nem mesmo a voz a alcançava. Eram quilômetros de silêncio. Luzia na janela do sobradão. Carlos Drummond de Andrade Ausência Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade As sem-razões do amor Passatempo Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. O verso não, ou sim o verso? Eis-me perdido no universo do dizer, que, tímido, verso, sabendo embora que o que lavra só encontra meia palavra. Carlos Drummond de Andrade Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matem) a cada instante de amor. Carlos Drummond de Andrade Além da Terra, além do Céu Além da Terra, além do Céu, no trampolim do sem-fim das estrelas, no rastro dos astros, na magnólia das nebulosas. Além, muito além do sistema solar, até onde alcançam o pensamento e o coração, vamos! vamos conjugar o verbo fundamental essencial, o verbo transcendente, acima das gramáticas e do medo e da moeda e da política, o verbo sempreamar, o verbo pluriamar, razão de ser e de viver. Carlos Drummond de Andrade O mundo é grande O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar. O amor antigo Carlos Drummond de Andrade O amor antigo tem raízes fundas, feitas de sofrimento e de beleza. Por aquelas mergulha no infinito, por estas suplanta a natureza. O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença. Nada exige nem pede. Nada espera, mas do destino vão nega a sentença. Se em toda parte o tempo desmorona aquilo que foi grande e deslumbrante, o antigo amor, porém, nunca fenece e a cada dia surge mais amante. Mais ardente, mas pobre de esperança. Mais triste? Não. Ele venceu a dor, e resplandece no seu canto obscuro, tanto mais velho quanto mais amor. Carlos Drummond de Andrade