Um Olhar sobre o Desenvolvimento das Acções: Uma Perspectiva Epigenética
João Barreiros
Faculdade de Motricidade Humana
Universidade Técnica de Lisboa
Um Estranho Processo Adaptativo
O ser humano desenvolveu um estranho e complexo processo adaptativo. Na realidade não nasce dotado
de soluções óbvias do ponto de vista da sobrevivência, não parece buscar a eficiência a curto prazo, como
os outros animais, nem acelera o processo de crescimento para atingir rapidamente uma potencialidade
máxima de acção sobre o envolvimento. Pouco parece estar preocupado com a emergência da capacidade
reprodutora ou com a construção de uma rápida autonomia enquanto ser individual. Muito pelo contrário, o
desenvolvimento humano pode ser facilmente considerado como um processo preguiçoso e demorado, sem
linhas orientadoras firmes, deliberadamente susceptível aos efeitos de condições de desenvolvimento
particulares.
Em certa medida, e observado com distanciamento, o ser humano foi escolher uma fantástica estratégia de
desenvolvimento.
Outros animais podem locomover-se com poucas horas de vida; os humanos levam entre um a dois anos
para o conseguirem em padrões minimamente eficientes. Muitos outros animais podem usar rapidamente os
mecanismos para optimizar o uso da informação ambiental disponível e são por isso precoces no
desenvolvimento de acções de captura de presas ou de organização de estratégias defensivas; os humanos
gastam tempo a aprender a fazer uso das faculdades sensoriais e a estruturar perceptivamente o mundo. O
uso habilidoso das extremidades ou presas em diversas espécies pode ser observado desde muito cedo; os
humanos arrastam por longos anos a aquisição de soluções de resposta aceitáveis, persistindo num
processo moroso de construção, por vezes de abandono de respostas aparentemente estáveis, numa
evolução que parece errática e muito difícil de entender. Toda a resposta humana parece ser
deliberadamente atrasada ao longo da infância e, pelo menos, boa parte da adolescência.
Qual a razão adaptativa de tanta lentidão ? Diversas justificações podem ser dadas com base na lentidão
maturativa que nos é inerente, contudo, uma observação perversa poderia apontar o argumento de que o
desenvolvimento humano é propositadamente lento para dar possibilidades ao sistema para cometer erros e
aprender com eles. Nesse sentido, os humanos prolongariam a infância com a finalidade teleológica de
aumentar a capacidade adaptativa. Fazem-no com recurso a um processo maturativo sinuoso e a
estratégias sociais interessantes como o prolongamento dos processos de ajustamento e aculturação.
Então, e de entre as muitas soluções que nos é permitido inventar para um mesmo problema, algumas
possuirão certamente um valor adaptativo acrescentado. Esta forma peculiar de ver o desenvolvimento
quase pressupõe uma direcção longe do equilíbrio. Quase uma contradição.
O desenvolvimento do ser humano, e a sua componente motora em particular, está associado a uma
progressiva eficiência dos mecanismos responsáveis pela recepção, processamento e armazenamento de
informação, para além das evidentes transformações dimensionais do corpo. Como em qualquer sistema
auto-organizado, a adequação do trabalho, a estabilidade e a economia do sistema, dependem de fluxos
informacionais permanentes e da sua adequada gestão. O desenvolvimento é, por isso, um aumento da
capacidade de receber informação, de proceder a uma codificação mais eficaz dessa informação, uma
incorporação progressiva de memórias e uma organização mais rápida de fluxos informacionais acrescidos.
Este ganho exige eventualmente boas explicações para dispositivos bioinformacionais simples e boas
explicações para a sofisticada actividade cognitiva.
Outros aspectos estranhos do desenvolvimento humano são a liberdade de trajecto individual de que
dispõe, e a rapidez e diversidade de novas soluções comportamentais na ontogénese. Estes dois aspectos
apresentam alguma dificuldade de conciliação com uma visão determinista do desenvolvimento: de onde
vêm os planos de acção, a rápida mudança comportamental, a plasticidade e a liberdade de inovação ? É
nossa suposição que uma abordagem epigenética do desenvolvimento, com foco na dinâmica dos
constrangimentos é mais adequada à compreensão do desenvolvimento que uma visão mais tradicional
regida pelo princípio de “planos de desenvolvimento” (Thelen & Smith, 1998; Newman & Muller, 2000).
Adaptação e constrangimentos
Homens e animais movem-se em ambientes instáveis e complexos. A satisfação das necessidades mais
elementares exige mobilidade e ajustamento contextual. A locomoção, a alimentação ou a reprodução
dependem das possibilidades de movimento de um organismo.
Este facto óbvio torna-se interessante quando nos questionamos sobre o modo de ajuste entre organismo e
envolvimento. Na realidade a orientação para um objectivo, definido no espaço e no tempo, requer a
mobilização de recursos energéticos consideráveis, o esboço de objectivos em sequências longas e
encadeadas, a percepção inicial e continuada das condições ambientais e da pertinência e qualidade da
resposta. Listadas as condições imensas da adaptação questionar-nos-íamos sobre como tal é possível
quer em organismos dotados de grande simplicidade estrutural quer de organismos biologicamente mais
complexos mas fortemente imaturos, como sucede com o ser humano.
A noção de que o comportamento de um organismo é um jogo de equilíbrio entre constrangimentos e
solicitações ambientais e possibilidades desse mesmo organismo pode ser interessante, uma vez que
parece contemplar os elementos essenciais em presença. Detenhamo-nos sobre os três pontos fulcrais
referidos: solicitações, constrangimentos e capacidades individuais.
A ideia de solicitação corresponde à noção de orientação comportamental. Pelas mais diversas razões,
pulsões ou construções, os animais movem-se, comportam-se de certa forma e não de outra. O
comportamento animal pode ser visto, de uma forma simplista, como interna ou externamente orientado. No
primeiro caso responde a intenções, necessidades ou impulsos internos, auto-formulados num plano
consciente ou decorrentes de processos fisiológicos elementares. No segundo modo, a resposta emerge
como uma solução a um problema exterior, tornado pertinente e significante para o organismo por uma
miríade de possíveis razões. A diferença fundamental entre comportamentos externa e internamente
orientados reside na diferenciação quanto à função do plano de acção e à dependência de informação
ambiental.
As respostas internamente orientadas estão normalmente associadas a contextos estabilizados e, como tal,
parece ser possível estruturar antecipadamente um plano ou programa de acção desde que exista
conhecimento disponível sobre as variáveis essenciais do organismo e do meio. Tal é o caso de acções
como as de escrita ou a manipulação da matéria prima por um escultor ou por um carpinteiro. Contudo, uma
grande parte das acções fundamentais do quotidiano, não se define por esta estabilidade das condições
ambientais. Frequentemente as pessoas e os objectos estão em movimento: não nos movemos apenas
num mundo, mas sim num mundo móvel. Neste caso, as acções são estruturadas na e para a variabilidade.
As soluções estáveis, compatíveis com envolvimentos razoavelmente estabilizados, não são facilmente
aplicáveis a ambientes inerentemente variáveis ou, pelo menos, não o são sem cuidados especiais.
É nossa ideia que o desenvolvimento lida com dois grandes problemas: o de estruturar respostas e o de as
seleccionar pertinentemente e ajustar a certas condições externas. O primeiro é vulgarmente tratado no
âmbito da formação dos automatismos e da refinação das acções. O segundo é enquadrado na selecção da
resposta, na eleição do plano de acção mais favorável ou da tomada de decisão. É também nossa ideia que
esta dualidade deve ser ultrapassada pela ideia de “emergência”: “the coming into existence of new forms
through ongoing processes intrinsic to the system.” (Smith & Thelen, 2003). O desenvolvimento das acções
é gerado pela própria actividade do sistema, num certo sentido é uma consequência da auto-organização.
Por auto-organização referimo-nos ao produto das relações entre a multiplicidade de componentes de cada
sistema e, inseparavelmente, da sua relação com o exterior – o conjunto de constrangimentos e
oportunidades que se oferecem em cada instante do processo de desenvolvimento. Os organismos
desenvolvem-se porque a sua estrutura, operando sob certo tipo de condições possíveis, realiza
continuamente ajustes e modificações perante as janelas de oportunidade abertas para o exterior.
No desenvolvimento das acções muitos padrões só são estáveis durante períodos muito diminutos. Outros,
pelo contrário, mantêm-se estáveis por grande parte da vida. É o caso, respectivamente, dos movimentos
pré-marcha e da marcha. Enquanto os movimentos de reptação e quadrupedia só persistem por aguns
meses, a marcha é uma solução mais definitiva. Os movimentos rudimentares de reptação representam
soluções provisórias, contudo estáveis, adequdas ao estado do organismo naquela altura da vida. Deixam
de ser soluções sustentáveis quando as condições orgânicas internas se modificam e a melhor solução será
outra. Durante a sua fase de ouro, estes movimentos representam estados emergentes estáveis,
substituíveis por outras soluções mais eficientes quando a dinâmica do sistema se altera. Muita da
responsabilidade advêm do próprio crescimento e da progressiva competência do sistema nervoso.
De um modo geral, não existe prescrição nem para as acções nem para a evolução das acções – apenas
estados biológicos diferenciados a suscitarem soluções modificadas. Nesta perspectiva a existência de
programas, mesmo que filogeneticamente desenhados, deixa de ser necessária. O jogo entre as
possibilidades do organismo, a sua morfologia, as competências cognitivas e o ambiente é fabuloso:
“newborns display reaching without grasping. Around 2 months… there is a decline in reaching
attempts … jerky movements with closed hands … (and) a change to more coordinated movements
– open hand contacts object – occurring after 3 months. At the time infant starts developing more
coordinated reaching and grasping for stationary objects (16-20 weeks), they will also successfully
reach for moving ones…” (Savelsbergh & van der Kamp, 1993, p.296).
Esta transformação não está prescrita. Antes resulta de jogo livre entre constrangimentos morfológicos
(dimensões da criança, comprimento dos braços, proporcionalidade braços/tronco, por exemplo),
constrangimentos ambientais (a gravidade, a posição de sentado adoptada, os objectos alcançáveis, a sua
forma ou a sua posição relativa), e intensa actividade cognitiva (as memórias, a sensação de sucesso, a
comparação entre condições, etc.). O percurso individual de desenvolvimento é construido a par e passo,
por certo organismo em certo ambiente. Como organismos e constrangimentos apresentam semelhança, o
processo de desenvolvimento é formalmente semelhante, contudo improvavelmente igual.
A noção de constrangimento é especialmente atraente. Cosntrangimentos são os limites das acções.
Limites variáveis, já se vê, e especialmente variáveis no tempo. A altura de uma criança é constrangimento
para objectos colocados fora do seu alcance morfo-funcional; deixa de ser quando o crescimento ocorre. A
maioria dos constrangimentos intrínsecos de qualquer animal é de natureza anatómica, daí que se possa
prever como grande parte das soluções evoluirá a partir da configuração anatómica de uma espécie. Somos
prisioneiros da nossa anatomia e dela nos servimos para criar soluções de acção.
Uma segunda valência do conceito de constrangimento diz respeito aos obstáculos externos, físicos, que a
natomia em acção encontra. Este confronto define compatibilidades e impossibilidades. Desenha leques de
soluções. Cada animal, particularizado num corpo com certas dimensões e funcionalidades, encontra um
conjunto especial de constrangimentos. Os constrangimentos não são abstractos – são específicos de cada
animal, em cada condição da sua existência. Mais uma vez, as infâncias servem de excelente
exemplificação deste conjunto de contrangimentos: o mapa da evolução é o mapa dos constrangimentos, os
ultrapassáveis e os outros. O perfil evolutivo individual, a ontogénese, é este jogo entre constrangimentos
internos e externos, decorrendo num plano temporal extenso.
Um terceiro aspecto da noção de constrangimento deve ser também abordado. Refiro-me aos
constrangimentos sociais e morais: aqueles que sendo funcionalmente legítimos na relação de
compatibilidade organismo-meio, não o são perante as condicionantes sociais que igualmente configuram o
comportamento. Se em termos puramente motores esta questão não tem merecido atenção, não há dúvida
que em termos educacionais e mesmo comportamentais, em sentido lato, muito se tem debatido este
aspecto. As sociedades, por processos de modelação muito sofisticados, constrangem as soluções motoras
a um grupo aceitável de comportamentos. Este processo pode ser geral, sobre todos os indivíduos de uma
comunidade, ou ser inciodente em sub-grupos, como os constituidos por homens e mulheres, por adultos e
crianças.
A noção de paisagem epigenética
O biõlogo Conrad Waddington lançou o conceito de paisagem epigenética nos anos 40 do século passado
(Waddington, 1942, 1956). A sua preocupação era de natureza embriológica e orientada especificamente
para a compreensão dos mecanismos de diferenciação de celular, de tecidos, orgãos e sistemas. Na
realidade, este autor buscava uma superação do problema genético-ambiental, tal como se formulou
durante a maior parte dos séculos XIX e XX: como é possível a um organismo manter um padrão evolutivo e
comportamental tão estável, se tomarmos em consideração que cada indivíduo, nos mamíferos por
exemplo, é um ser geneticamente específico e que defrontará pela vida fora condições ambientais também
únicas ? A noção de epigénese corresponde à influência do ambiente na expressão do código genético:
muitos genes requerem condições especiais de ambiente para ganharem expressão fisiológica e
comportamental, outros genes provavelmente nunca encontrarão condições adequadas de expressão.
Contudo, cada espécie, e cada indivíduo de cada espécie, manifesta um conjunto identificador de formas e
de comportamentos. Mais, o desenvolvimento de cada indivíduo, apesar da disponibilidade para a variação
única que pode protagonizar, apresenta um percurso evolutivo também específico da espécie.
Figura 1. Fluxos e constrangimentos.
A paisagem epigenética representa o conjunto de traçados, individualizado, de um organismo
dotado de certas características de base, e circulando por um envolvimento peculiar, com efeitos de
interacção específicos e individualizados. Para desenvolver mais intensamente a sua ideia Waddington
criou duas noções interessantes: a noção de “chreoid”, o caminho por vales e montanhas que um organismo
percorre ao longo da vida, e a noção de “homeorhesis”, referente à consistência dos processos de
mudança. Tome-se um organismo delimitado geneticamente num conjunto de possibilidades. O percurso, o
chreoid, considera simultaneamente essa delimitação genética e as condições ambientais, as contingências
externas. Perturbe-se o organismo e ele retornará, não necessariamente ao ponto em que estava antes da
perturbação mas ao ponto para que teria evoluido caso não tivesse sido perturbado.
Figura 2. A paisagem ontogenética para a locomoção (Muchisky, Gershoff-Stowe, Cole e Thelen, 1996).
As flutuações comportamentais ilustram bem esta noção de chreoid. O comportamento flutua, mas dentro
de limites. Os organismos tendem a exibir um número limitado de estados comportamentais possíveis, que
em certas condições actuam como atractores. Estes modos preferenciais são sulcos na paisagem
epigenética, evoluem de modo individualizado dentro dos constrangimentos morfo-funcionais de cada
espécie, e asseguram a cada organismo o direito a uma variação “natural” e a um individualismo no
percurso de desenvolvimento.
Um segundo conceito interessante avançado por Waddington é o de Homeorhesis “a estabilização de um
processo de mudança”. Os organismos não só percorrem caminhos como constroem, ou aprendem,
soluções para percorrer caminhos. Esta noção corresponde à ideia de “aprender a aprender”, não apenas a
aprendizagem de uma solução mas a aprendizagem de um modo mais geral de resolver problemas.
Digamos, uma estratégia.
O desenvolvimento humano em particular adianta ainda um aspecto muito especial. A possibilidade de, por
aprendizagem, se modificarem antecipadamente os ambientes em que certos comportamentos ou
transformações de comportamento podem ocorrer. Trata-se assim, não apenas de proceder a adaptações
ao ambiente mas, num sentido muito mais interessante, de adaptar ambientes para o desenvolvimento.
Neste contexto, cai por terra qualquer abordagem determinista do desenvolvimento humano, mesmo
aquelas que admitem um lugar espcial para a individualidade interactiva desse processo (Gottlieb, 1991). A
existirem, e a respeitarem um carácter evolutivo, eventuais planos de desenvolvimento não poderia
acomodar esta fantástica possibilidade de transformação do próprio contexto. Desse modo, será preferível
apontar para perspectivas do desenvolvimento mais dinâmicas, de que a metáfora da paisagem epigenética
de Waddington é um bom exemplo.
Referências:
Gottlieb, G. (1991). Epigenetic systems view of human development. Developmental Psychology, 27, 33-34.
Muchisky, M., Gershoff-Stowe, L., Cole, E & Thelen, E. (1996). The epigenetic landscape revisited: a
dynamic interpretation. In C. Rovee-Collier e L.P.Lipsitt (Eds.) Advances in infancy research, (pp.
121-159), Vol 10. Norwood: Ablex Publ. Co.
Newman, S. A., & Muller, G. B. (2000). Epigenetic mechanisms od character origination. Journal of
Experimental Zoology, 288, 304-317.
Savelsbergh, G. J. P. & van der Kamp, J. (1993). The coordination of infant’s reaching, grasping, catching
and posture: a natural approach. In G. J. P. Savelsbergh (Ed.) The development of coordination in
infancy. (pp. 289-358). Amsterdam: Elsevier.
Smith, L.B. & Thelen, E. (2003). Develoment as a dynamic system. Elsevier: Trends in cognitive sciences,
vol. 7, 8, 343-348.
Thelen, E., & Smith, L.B. (1998). A dynamic systems approach to the development of cognition and action.
Cambridge, MA: The MIT Press.
Waddington, C.H. (1942). The epigenotype. Endeavour, 1, 18-20
Waddington, C.H. (1956). Principles of Embriology. New York: Macmillan.
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